I - A competência do tribunal deve aferir-se de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do autor, compreendidos aí os respetivos fundamentos.
II - Apesar de não ser essencial ao conceito de acidente de trabalho que se afirme que “as tarefas no contexto do qual o acidente ocorre sejam prestadas no âmbito de uma relação de trabalho subordinado, titulada por um contrato de trabalho”, importa, porém, caracterizado que possa ser o evento como um acidente nos termos do artigo 8.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, que a situação se enquadre, também, na previsão do artigo 3.º, da mesma lei, assim, que as tarefas executadas o sejam «por conta de outrem», sendo beneficiária da atividade seja beneficiária a entidade para quem é prestada, ou que o trabalhador esteja “na dependência económica da pessoa em proveito da qual presta serviços”, ou, ainda, nos caos em que esteja em causa formação profissional, mas nas situações aí previstas.
III - Não se insere no conceito de formação profissional a que alude o referido artigo 3.º um caso em que foi celebrado um mero contrato de formação profissional, entre um formando e o IEFP, I.P., pelo prazo de 14 meses, a ministrar pelo último, recebendo o primeiro uma bolsa de formação mensal e um subsídio de transporte, pois que, visando é certo a capacitação do formando para eventualmente poder vir a exercer mais tarde o exercício de funções profissionais, não se traduz em qualquer exercício, muito menos em contexto laboral do formador, do exercício dessas funções.
IV - Também não se equipara tal contrato a um tirocínio, para efeitos de eventual integração na alínea g) do n.º 1 do artigo 126.º, da LOFTJ, pois que, sendo o tirocinante ou estagiário, normalmente, alguém que se exercita em certa ordem de funções laborais, como exercício preliminar indispensável ao bom desempenho de uma profissão, sendo assim o estágio um período de aproximação à inserção plena do estagiário em todos os problemas inerentes à carreira profissional que se quer abarcar, não se verificam, na situação descrita em III, tais requisitos.
Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo do Trabalho de Matosinhos - Juiz 3
Autor: AA
Réus: Instituto de Emprego e Formação Profissional IP, Companhia de Seguros A..., S.A., e B... – Companhia de Seguros S.p.A.
______
Nélson Fernandes (relator)
António Luís Carvalhão
António Joaquim da Costa Gomes
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto
I - Relatório
1. AA instaurou a presente ação com a forma de processo especial para a efetivação de direitos resultantes de acidente de trabalho, contra Instituto de Emprego e Formação Profissional IP, Companhia de Seguros A..., S.A., e B... S.A., pedindo a condenação dos Rés, “na medida das suas responsabilidades:
A) A Reconhecerem a incapacidade do Autor para o desempenho do trabalho habitual, que lhe vier a ser fixado em sede de junta médica que aqui se requer nos termos do artigo 138.º do C.P.T, para o que se juntam em anexo os respetivos quesitos;
B) A pagarem ao Autor:
a) Uma pensão anual e vitalícia com início na data que vier a ser fixada como data da alta
b) A quantia referente às ITP que vierem a ser fixadas
c) A quantia de €60,00 de despesas com transportes obrigatórios.
d) Juros de mora vencidos e vincendos pelas prestações pecuniárias em atraso.
e) A custas e acréscimos legais.
C) Subsidiariamente, devem os Réus ser condenados a pagar a quantia pecuniária de €65.000,00 a título de indemnização pelos danos sofridos, acrescidos de juros desde a data do acidente até integral pagamento.”
Para tanto alegou, muito em síntese: ter celebrado com o 1.º Réu, pelo prazo de 14 meses, com início em 24/10/2011 e término em 11/01/2013, um contrato de formação profissional de canalizações, ministrado por aquele, auferindo uma bolsa de formação mensal no valor de €146,73 e um subsídio de transporte de 44, 60€; em 18 de novembro de 2011, no decurso e por causa da formação, sofreu um acidente, do qual resultou que ficasse incapacitado de participar na parte prática de formação, pelo menos, entre novembro de 2011 e março de 2012, tendo comparecido mas não participado; a 12 de junho de 2012, no decurso e por causa da aprendizagem sofreu novo acidente, que veio a ser participado à seguradora 3.ª Ré, que veio a declinar a responsabilidade para a realização de intervenção cirúrica; foi mal acompanhado no primeiro acidente ocorrido no curso de formação, tendo a situação sido desvalorizada, sendo que, perante as suas queixas, deveria ter sido feita pelo Centro de Formação a respetiva participação ao seguro, sendo que, diz, caso tivessem sido prestados os necessários cuidados médicos de modo a que as fraturas ocasionadas pelo primeiro acidente fossem, em primeira linha, corretamente diagnosticadas, ter-se-ia evitado o segundo acidente e consequentemente os respetivos tratamentos, dores e sofrimentos; ficou deste modo com sequelas permanentes, que o incapacitam de trabalhar, uma vez que se encontra limitado de destreza manual no pulso direito, e atualmente também no esquerdo, o que compromete seriamente a sua subsistência atual e futura e, consequentemente a sua independência financeira.
No que ao presente recurso importa, o Réu Instituto de Emprego e Formação Profissional IP, na contestação, excecionou a incompetência absoluta do tribunal, invocando, em síntese, que não estamos em presença de uma situação laboral, nem sequer equiparável ou análoga, competindo antes a competência aos tribunais administrativos.
Respondeu o Autor, pugnando pela improcedência da invocada exceção.
2. O Tribunal recorrido, aquando da prolação do despacho saneador, conhecendo da invocada exceção, proferiu decisão de cujo dispositivo consta:
“Deste modo, e com fundamento em todo o exposto, ao abrigo do disposto nos arts. 4º, al. f) do ETAF, 96º, 97º nº 1 e 99º nº 1 do Código de Processo Civil, declaro este Tribunal materialmente incompetente em razão da jurisdição para conhecer da presente ação e, em consequência, absolvo os réus da instância.
Fixo em €65.000,00 o valor da presente ação.
Custas a cargo do autor.
Notifique.
Registe”
2.1. Notificado, apresentou o Autor requerimento de interposição de recurso, finalizando as suas alegações com as seguintes conclusões:
“A) Na sequência de acidentes de trabalho sofridos a 18 de Novembro de 2011 e 12 de Junho de 2012 no âmbito de contrato de formação profissional de canalizações ministrado pelo Centro de Formação Profissional do Porto, o Autora deu entrada a ação administrativa (processo ... do Tribunal Administrativo do Porto – Unidade Orgânica 2), tendo o Tribunal se declarado incompetente.
B) A Autora requereu a remessa dos autos ao Tribunal de Trabalho de Matosinhos (o que deu azo aos presentes autos) tendo o processo findado por o Douto Tribunal entender que não estamos perante uma relação de trabalho.
C) Entende o Tribunal a quo que os Tribunais Administrativos são os competentes para o conhecimento do peticionado nos autos, o que não merece o acordo do Autor.
D) Determina o n.º 3 do artigo 212. ° da Constituição da República Portuguesa que compete aos Tribunais Administrativos e Fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais.
E) Por sua vez, dispõe o artigo 1. ° do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais que os Tribunais Administrativos e Fiscais são os órgãos de soberania com competência jurídicas administrativas.
F) Ainda, nos termos do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, a competência para o conhecimento das pretensões deduzidas nos tribunais administrativos e fiscais, é repartida consoante os litígios sejam emergentes de relações jurídicas administrativas ou fiscais (artigo 1°, 4. °, 44. ° e 49. °, deste Estatuto).
G) Pese, embora, não esteja em causa nos autos factualidade subjacente a acidente de trabalho, afigura-se que a relação contratual estabelecida entre as partes extravasa a competência dos tribunais administrativos.
H) Cabe ter presente a jurisprudência do Tribunal de Conflitos, nomeadamente o Acórdão de 19/10/2017, Processo n.º 015/17 e o Acórdão de 30/01/2020, Processo n.º 015/19.
I) Estamos perante uma relação jurídica atípica (v. acórdão de 19-10-2017, T. Conflitos, processo n.º 015/15): o contrato reúne características próprias de um contrato de trabalho, desde logo os seus elementos caraterizadores (bilateralidade, prestação de uma actividade por banda do trabalhador, mediante retribuição, em regime de subordinação) e de uma acção de formação/capacitação que se manifesta na sua precariedade, regime remuneratório, bem como na sua finalidade mediata, que se alcança através da associação do contrato a uma política de segurança social orientada para a qualificação e empregabilidade
J) Em todo o caso, o que sobressai nessa relação jurídica atípica e complexa são os elementos caracterizadores do contrato de trabalho, tal como definidos pelo art.º 11.º do Código de Trabalho (CT) - Lei n.º 7/2009
K)O contrato em causa não pode ser considerado contrato em funções públicas o qual tem por objeto, qualquer que seja o modelo de vínculo (contrato, nomeação, comissão de serviço), o exercício de funções próprias do serviço público.
L) A matéria dos autos cai no âmbito de previsão do artigo 4.º, n.º 4, alínea b) do ETAF, segundo o qual está excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal “A apreciação de litígios decorrentes de contratos de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa coletiva de direito público, com exceção dos litígios emergentes do vínculo de emprego público”.
M) Ora, na presente ação, o Autor pretende ser indemnizada pelos danos decorrentes de acidente que sofreu no local onde recebia formação profissional, no âmbito do contrato de formação que celebrou com o Réu, ao abrigo do Decreto Lei n.º 242/88, de 7 de julho.
N) Resulta do n.º 2 da cláusula 1ª do contrato celebrado entre ambas as partes que “Nos termos do n.º 3, artigo 4.º do Decreto Lei n.º 242/88, de 7 de julho, o presente contrato não gera nem titula relações de trabalho subordinado e caduca com a conclusão da ação de formação para que foi celebrado.”
O) É, assim, inequívoco que o que está em causa nos presentes autos (integrando, por isso, os factos que conformam a relação jurídica, tal como esta vem delineada na petição inicial) é a responsabilidade emergente daquele contrato, sendo este um contrato que não configura a modalidade de relação jurídica de emprego público, seja ela, na modalidade de nomeação, ou contrato de trabalho em funções públicas, seja, por tempo indeterminado ou determinado. E em face do que, como resulta, aliás, do contrato celebrado entre as partes, este não gera qualquer relação subordinada de emprego, mas tão só a regulação dos termos em que, no âmbito de medidas de apoio ao emprego e inserção na vida ativa, a contraparte recebe a formação profissional proporcionado pelo Réu, o que, naturalmente, não pode considerar-se como tendo celebrado contrato na modalidade de contrato de trabalho em funções públicas, razão pela qual a competência para conhecer do presente processo deve ser atribuída aos tribunais judiciais.
P) Entende o Autor que, não obstante não existir entre o Autor e o IEFP um contrato de trabalho, a relação existente é equiparável a uma relação de trabalho, cabendo ao Tribunais de Trabalho a decisão quanto ao presente diferendo.”
2.1.1. Não constam dos autos contra-alegações.
2.2. O recurso foi admitido em 1.ª instância, como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.
2.3. Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, parecer esse ao qual respondeu o Apelado, referindo a esse adere.
Respeitadas as formalidades legais, cumpre decidir:
II – Questões a resolver
Sendo pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso – artigos 635º/4 e 639º/1/2 do Código de Processo Civil (CPC), aplicável “ex vi” do artigo 87º/1 do Código de Processo do Trabalho (CPT) –, integrado também pelas que são de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido decididas com trânsito em julgado, a única questão a decidir passa por saber se o Tribunal a quo errou na aplicação da lei, ao considerar-se incompetente para os termos da causa.
A) Fundamentação de facto
Os factos relevantes para a decisão do recurso resultam do relatório a que se procedeu anteriormente.
Como resulta da decisão recorrida, nessa declarou-se procedente a exceção da incompetência invocada pelo Réu na sua contestação, por considerar que não é competente para o conhecimento da causa.
No recurso que interpôs, para ver afastado o julgado, apresenta o Apelante como argumentos o que fez constar das conclusões que apresentou e que, tendo sido antes transcritas, não importa aqui repetir.
Não constando dos autos contra-alegações, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Fez-se constar da decisão recorrida a seguinte fundamentação:
«(…) Como resulta dos autos, o autor e o réu IEFP, IP celebraram a 24/10/2011 um contrato de formação profissional, ao abrigo do disposto no Portaria n.º 230/2008, de 7/3, mediante o qual a ré se obrigou proporcionar àquele a ação de formação profissional de canalizações.
Ao IEFP,IP compete promover a formação profissional, como já resultava do art. 3º, n.º 1, do DL n.º 213/2007, de 29/5, que aprovou a sua orgânica e que estava em vigor na data da celebração de tal contrato.
Essa formação profissional que foi regulada pelo DL n.º 242/88, de 7/7, o qual tem por objetivo regular a situação jurídica do formando que participe em ações de formação profissional (art. 1º), e define os conceitos de formando, ação de formação profissional, entidade formadora e contrato de formação (cfr. art. 2º). Assim, e de acordo com este preceito, por formando, entende-se qualquer indivíduo que esteja inscrito e participe em ações de formação profissional promovidas ou realizadas por entidades formadoras competentes mediante um contrato de formação; por entidade formadora, entende-se qualquer entidade do sector privado, público ou cooperativo que organize e realize ações de formação profissional; e por contrato de formação, entende-se o acordo escrito celebrado entre uma entidade formadora e um formando, mediante o qual este se obriga a frequentar uma ação de formação profissional determinada, com vista à apreensão de um conjunto de conhecimentos e de técnicas de execução das tarefas inerentes a uma profissão ou grupo de profissões, e aquela se obriga a facultar, nas suas instalações ou na de terceiros, os ensinamentos e meios necessários a tal fim.
Por sua vez, o art. 4º do mesmo diploma refere-se ao contrato de formação, estabelecendo nos ns. 1 e 2 as formalidades a que ele deve obedecer; e o nº 3 estipula que "o contrato de formação não gera nem titula relações de trabalho subordinado...". Temos, assim, que face àquele nº 3 o contrato de formação se não pode considerar como sendo uma espécie do contrato de trabalho.
Estipula ainda a al. e) do n.º 1 do art 7º deste mesmo diploma que a entidade formadora fica obrigada a “celebrar um contrato de seguro de acidentes pessoais que proteja os formandos contra riscos e eventualidades que possam ocorrer durante e por causa das actividades de formação”.
Resultando do exposto que não se constituiu qualquer relação de trabalho entre o autor e o réu IEFP, IP, cumpre determinar se, porém, são os tribunais judicias os competentes para o conhecimento da questão suscitada nos autos e, na sua organização, se essa competência específica compete ou não aos tribunais de trabalho.
A Constituição da República Portuguesa (CRP), no n.º 1 do seu artigo 211º estipula que “os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”. Neste seguimento, o art. 64º do Código de Processo Civil dispõe que “são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.”
Estabelece-se assim, nas citadas normas, um critério geral de competência residual dos tribunais comuns, já que estarão excluídas da sua competência todas as causas que forem pela lei atribuídas a algum tribunal de competência especializada.
Por sua vez, a competência dos juízos do trabalho encontra-se definida no artigo 126.º da LOSJ (Lei n.º 62/2013, de 26/8), estabelecendo a al. c) do seu n.º 1 que “compete aos juízos do trabalho conhecer, em matéria cível”, “Das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais”.
Importa ainda ter presente que, conforme ensina Manuel de Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, 1963, pág. 89, citado no acórdão referido), para se decidir qual a norma de competência aplicável “deve olhar-se aos termos em que foi posta a acção – seja quanto aos seus elementos objectivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou acto donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjectivos (identidade das partes)”.
Depois de salientar que a competência do tribunal “se determina pelo pedido do Autor”, acrescenta que “é ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor (compreendidos aí os respectivos fundamentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão”.
Na petição inicial invoca o autor a celebração com o réu do referido contrato de formação profissional e que no dia 18/11/2011, no decurso, e por causa dessa formação, sofreu o acidente que aconteceu quanto estava a trabalhar com ferro e, ao apertar uma mola, sentiu muitas dores no pulso direito, tendo este inchado e imediato; e que por indicação de seu formador recorreu ao posto médico do Centro de Formação Profissional.
Dos elementos constantes dos autos temos de concluir que o contrato de formação profissional não estabeleceu qualquer vínculo de emprego público, até por imposição legal, pelo que não pode ter aplicação ao regime jurídico dos acidentes de trabalho ocorridos ao serviço de entidades empregadoras públicas, já que o mesmo pressupõe a sua aplicação a “todos os trabalhadores que exercem funções públicas, nas modalidades de nomeação ou de contrato de trabalho em funções públicas, nos serviços da administração directa e indirecta do Estado” (art. 2º, n.º 1, do DL n.º 503/99, de 20/11).
No entanto, é também certo que, dos elementos trazidos aos autos não se pode também concluir que, na relação entre as partes desse cotrato de formação, exista uma qualquer dependência funcional e uma relação jurídico de subordinação por parte do seu beneficiário em relação à entidade formadora. Na verdade, dos factos alegados pelo autor não se pode concluir que exista uma qualquer prestação de trabalho por sua parte e que alguma entidade beneficie dessa prestação de trabalho. Ao contrário do que se verifica nos contratos de emprego-inserção, no contrato de formação descrito nos autos não se pode concluir que exista uma qualquer e efetiva prestação de atividade de trabalho pelo autor, que a bolsa que auferia seja uma qualquer contrapartida por um trabalho prestado, nem que exista uma qualquer subordinação ou dependência económica do autor à entidade promotora da formação.
Ora, a Lei n.º 98/2009, de 4/9, prevê no seu art. 3º que:
“1 - O regime previsto na presente lei abrange o trabalhador por conta de outrem de qualquer actividade, seja ou não explorada com fins lucrativos.
2 - Quando a presente lei não impuser entendimento diferente, presume-se que o trabalhador está na dependência económica da pessoa em proveito da qual presta serviços.
3 - Para além da situação do praticante, aprendiz e estagiário, considera-se situação de formação profissional a que tem por finalidade a preparação, promoção e actualização profissional do trabalhador, necessária ao desempenho de funções inerentes à actividade do empregador.”
Ainda que seja certo que nesta previsão normativa se podem enquadrar relações de trabalho que não configurem um típico contrato de trabalho nos termos em que vem definido no Código de Trabalho (como a jurisprudência tem vindo a considerar que acontece com os contrato de emprego-inserção celebrados pelo IEFP,IP), a verdade é que se deve exigir a existência de uma relação de trabalho (a prestação de trabalho e o correspetivo benefício para outrem desse trabalho prestado), o que não se pode concluir que existisse no caso em apreço.
Deste modo, não se podendo concluir que estamos perante um acidente de trabalho ressalta a incompetência em razão da matéria deste Juízo do Trabalho para o conhecimento da presente ação.
Resta, então, aferir se essa competência será de atribuir aos Tribunais Administrativos ou aos Juízos Cíveis (face à sua competência residual, consagrada nos art. 130º da LOSJ).
A competência do Tribunais Administrativos está prevista no art. 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19/2).
O réu IEFP, IP invoca a alínea f) do n.º 1 do art. 4º do ETAF, afirmando depois que estamos perante uma relação jurídica administrativa.
A referida alínea f) prevê a competência dos tribunais administrativos para apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a “Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional”.
Ora, como supra se referiu, o art. 7º, na sua al. e), do DL n.º 242/88, ao exigir a celebração pelo IEFP, IP de um contrato de seguro de acidentes pessoais, estabelece uma responsabilidade sem culpa por parte daquele, para cobertura dos riscos e danos sofridos pelo formando durante e por causa dessa formação (cfr. neste sentido o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 20/10/1998, processo nº 038844, com sumário disponível em www.gde.mj.pt, ainda que a propósito de contratos de aprendizagem, regulado então pelo DL n.º 102/84, de 29/3, na reação introduzida pelo art. 1º do DL n.º 436/88, de 23/11). E foi precisamente essa responsabilidade civil extracontratual que o autor invocou na petição inicial que impulsionou a ação administrativa comum. Conclui-se, assim, serem os Tribunais Administrativos os competentes para o conhecimento do peticionado nos autos. (…)»
Cumprindo-nos pronúncia, começaremos por fazer um breve enquadramento da questão que nos é colocada, nos termos seguintes:
Afirmando a própria Constituição da República Portuguesa (CRP), no n.º 1 do seu artigo 211.º, que “os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”, o artigo 64.º do CPC dispõe que “são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.”[1]
Enuncia-se assim, nas citadas normas, um critério geral de orientação para a resolução do problema da determinação da competência do tribunal em razão da matéria, no sentido de que estarão excluídas da competência do tribunal comum todas as causas que forem pela lei atribuídas a algum tribunal ou secção de competência especializada. Ou seja, passa o critério da determinação da competência do tribunal por verificar primeiramente se de acordo com as leis de organização judiciária a ação deve ser submetida ao conhecimento de um dado tribunal ou secção de competência especializada – por determinação direta –, e, seguidamente, se não for esse o caso, residualmente, pela atribuição da competência ao tribunal comum[2].
Sabe-se também que a competência dos juízos do trabalho se encontra definida no artigo 126.º da LOSJ, sendo que aí se estabelece, para o que aqui importa, no seu n.º 1, al. c), que “compete aos juízos do trabalho conhecer, em matéria cível”, “Das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais”.
Importando ainda ter presente, mais uma vez com relevância para a resolução da questão que nos é colocada, que a competência do tribunal se deve aferir de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do autor, compreendidos aí os respetivos fundamentos[3], aplicando então o referido critério orientador ao caso, como se refere na decisão recorrida, temos de ter como pressuposto que o Autor / aqui recorrido invoca ter celebrado com o Réu, pelo prazo de 14 meses, com início em 24/10/2011 e término em 11/01/2013, um contrato de formação profissional de canalizações, ministrado por aquele, auferindo uma bolsa de formação mensal no valor de €146,73 e um subsídio de transporte de €44,60€, e que, em 18 de novembro de 2011, no decurso e por causa da formação, sofreu um acidente, do qual resultou que ficasse incapacitado de participar na parte prática de formação, pelo menos, entre novembro de 2011 e março de 2012, tendo comparecido mas não participado, sendo que, a 12 de junho de 2012, no decurso e por causa da aprendizagem, sofreu um novo acidente, que veio a ser participado à seguradora 3.ª Ré, que veio a declinar a responsabilidade para a realização de intervenção cirúrgica, mas que, por ter sido mal acompanhado no primeiro acidente ocorrido, tendo a situação sido desvalorizada, e que, perante as suas queixas, deveria ter sido feita pelo Centro de Formação a respetiva participação ao seguro, sendo que, diz, caso tivessem sido prestados os necessários cuidados médicos de modo a que as fraturas ocasionadas pelo primeiro acidente fossem, em primeira linha, corretamente diagnosticadas, ter-se-ia evitado o segundo acidente e consequentemente os respetivos tratamentos, dores e sofrimentos, tendo ainda ficado com sequelas permanentes, que o incapacitam de trabalhar, uma vez que se encontra limitado de destreza manual no pulso direito, e, atualmente, também no esquerdo, o que compromete seriamente a sua subsistência atual e futura e, consequentemente a sua independência financeira.
Avançando-se agora na análise, importa desde já evidenciar, a respeito da jurisprudência a que alude o Recorrente, que os Acórdãos que invoca e em parte cita para ancorar a sua posição não incidem sobre situações propriamente iguais àquela que no caso está em causa, em termos de enquadramento normativo, pois que em tais Arestos estava em causa a celebração de designados contrato de emprego-inserção, disciplinados pela Portaria n.º 128/2009, de 30 de janeiro, com as alterações que ocorreram posteriormente, sendo que, caso fosse esse o caso (mas não é na presente ação pelas razões que seguidamente avançaremos), como se afirmou no Acórdão desta secção de 27 de novembro de 2023[4], a jurisprudência desta Secção tem sido uniforme, no sentido de que o Tribunal do Trabalho é competente para apreciação de sinistro ocorrido no exercício de “funções” nessas situações.
O que referimos visa salientar que, a respeito dos casos em que se inserem os que antes mencionámos, diversamente do que se verificará noutros, não existe propriamente divergência relevante na jurisprudência, incluindo do Tribunal de Conflitos.
A razão de ser desse sentido decisório, ou seja, a justificação que estava afinal na base desse entendimento, que aqui referiremos (apenas para esclarecer que aí não se integrará o caso que apreciamos), pode ser encontrada, para além de outros, no Acórdão proferido pelo Tribunal de Conflitos em 5 de maio de 2021[5] (proferido no seguimento do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de dezembro de 2020[6], por ter sido solicitada junto do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça a resolução do conflito negativo de jurisdição), do qual resulta designadamente o seguinte (transcrição):
«(…) A Portaria n.º 192/96 foi revogada pela Portaria n.º 128/2009, de 30 de Janeiro, que regulamenta as medidas «Contrato emprego-inserção» e «Contrato emprego-inserção+», através das quais é desenvolvido trabalho socialmente necessário.
Esclarece-se no preâmbulo da Portaria n.º 128/2009 que “O contrato emprego-inserção e o contrato emprego-inserção+ integram-se no conjunto destas medidas, considerando que, ao permitirem aos desempregados o exercício de actividades socialmente úteis, promovem a melhoria das suas competências sócio-profissionais e o contacto com o mercado de trabalho. A experiência havida ao longo dos anos permite verificar o impacte positivo dos apoios públicos ao desenvolvimento de trabalho socialmente necessário por parte de desempregados, enquanto estes aguardam por uma alternativa de emprego ou de formação profissional.”.
Nos termos do artigo 2.º da Portaria n.º 128/2009 (alterada e republicada pela Portaria n.º 20-B/2014, de 30 de Janeiro, que entrou em vigor no dia 31 de Janeiro de 2014), “Considera-se trabalho socialmente necessário a realização, por desempregados inscritos no Instituto do Emprego e da Formação Profissional, I. P. (IEFP, I. P.), de atividades que satisfaçam necessidades sociais ou coletivas temporárias”.
Segundo o artigo 3.º, são objectivos do trabalho socialmente necessário:
a) Promover a empregabilidade de pessoas em situação de desemprego, preservando e melhorando as suas competências socioprofissionais, através da manutenção do contacto com o mercado de trabalho;
b) Fomentar o contacto dos desempregados com outros trabalhadores e atividades, evitando o risco do seu isolamento, desmotivação e marginalização;
c) A satisfação de necessidades sociais ou coletivas, em particular ao nível local ou regional.”.
Tais contratos cessam (artigo 11.º) nos seguintes termos:
“1 - O contrato cessa no termo do prazo ou da sua renovação, bem como quando o beneficiário:
a) Obtenha emprego ou inicie, através do IEFP, I. P., ou de qualquer outra entidade, ação de formação profissional;
b) Recuse, injustificadamente, emprego conveniente ou ação de formação profissional;
c) Perca o direito às prestações de desemprego;
d) Perca o direito às prestações de rendimento social de inserção, salvo o disposto no artigo 22.º-A da Lei n.º 13/2003, de 21 de maio, alterada e republicada pelo Decreto-Lei n.º 133/2012, de 27 de junho, nomeadamente nas situações de alteração de rendimentos decorrente da atribuição da bolsa mensal prevista no n.º 3 do artigo 13.º do presente diploma;
e) Passe à situação de reforma.
2 - A entidade pode proceder à resolução do contrato se o beneficiário:
a) Utilizar meios fraudulentos nas suas relações com aquela ou com o IEFP, I. P.;
b) Faltar injustificadamente durante cinco dias consecutivos ou interpolados;
c) Faltar justificadamente durante 15 dias consecutivos ou interpolados;
d) Desobedecer às instruções sobre o exercício de trabalho socialmente necessário, provocar conflitos repetidos ou não cumprir as regras e instruções de segurança e saúde no trabalho.
3 - A entidade deve ainda proceder à resolução do contrato se o beneficiário não cumprir o regime de faltas das ações de formação nele previstas.
(…)”
5. Colocando-se numa perspectiva não totalmente coincidente com o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Novembro de 2001, atrás citado, quanto às relações entre o trabalhador e a entidade promotora do contrato, mas concluindo igualmente que não se trata de um contrato de trabalho privado, mas antes de um contrato que se insere no âmbito da segurança social, o acórdão do Tribunal dos Conflitos de 19 de Outubro de 2017, www.dgsi.pt, proc. n.º 015/17, veio julgar que a competência para julgar acidentes sofridos pelo trabalhador cabia aos tribunais judiciais, apesar de “a relação que liga o trabalhador sinistrado ao Município” então em causa ter “elementos de natureza administrativa”:
“As medidas disciplinadas na Portaria n.º 128/2009, de 30 de janeiro, enquadram-se no direito constitucional à Segurança Social, com assento no artigo 63.º da Constituição da República, sendo medidas de política ativa de emprego e são complementares aos instrumentos de proteção social, no caso o Rendimento Social de Inserção, realizando os objetivos definidos no artigo 3.º daquela Portaria (…).
5 - De acordo com os elementos decorrentes do processo, o sinistrado quando se encontrava no exercício das suas funções, ao descer de um andaime, torceu o pé esquerdo, do que resultaram as lesões clínicas igualmente documentadas nos autos que produziram incapacidade para o trabalho, não decorrendo dos autos quais são as consequências definitivas das mesmas.
As funções em causa eram desempenhadas nos termos de um contrato de inserção-emprego+ celebrado com o Município ….. que enquadrava e dirigia o trabalho prestado pelo sinistrado e que assumia a responsabilidade pelo pagamento de parte da contrapartida paga ao sinistrado pelo trabalho desempenhado.
Mau grado o trabalho em causa se insira no âmbito das medidas de inserção que enquadram a situação inerente à atribuição do Rendimento Social de Inserção de que o sinistrado beneficiava, a bolsa que o mesmo auferia não se confunde com a prestação do rendimento social, tendo autonomia face à mesma, sendo uma verdadeira contrapartida do trabalho prestado.
O Município é o destinatário do trabalho em causa, que enquadra e dirige, assumindo igualmente parte da contrapartida devida ao sinistrado pelo trabalho prestado.
Pode o acidente dos autos ser considerado um acidente de trabalho, nos termos da Lei n.º 98/2009, concretamente à luz dos artigos, 3.º que se refere ao âmbito da lei e da noção conceito de acidente de trabalho que resulta dos artigos 8.º e 9.º daquela Lei?
A resposta é claramente afirmativa.
Na verdade, o evento sofrido pelo trabalhador dos autos preenche o conceito de acidente descrito no n.º 1 do artigo 8.º daquela lei que refere que «é acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza direta ou indiretamente, lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução da capacidade de ganho ou a morte».
Por outro lado, independentemente da natureza da relação estabelecida entre o Município e o Trabalhador, dúvidas não restam de que a situação dos autos se insere no n.º 1 do artigo 3.º da Lei que refere que o «regime previsto na presente lei abrange o trabalhador por conta de outrem de qualquer atividade, seja explorada ou não com fins lucrativos».
No caso dos autos o Município era o destinatário do trabalho prestado e responsável pelo mesmo, pelo que não pode dizer-se que as funções em causa não fossem desempenhadas «por conta» daquele Município.
Mesmo que se considerasse que não existia nos autos uma situação de subordinação relevante, o que não é o caso, o conceito de acidente de trabalho sempre enquadra os acidentes sofridos na execução de trabalhos espontaneamente prestados, conforme decorre da alínea b) do n.º 1 do artigo 9.º daquela Lei.
Importa contudo que se afirme que não é essencial ao conceito de acidente de trabalho que as tarefas no contexto do qual o acidente ocorre sejam prestadas no âmbito de uma relação de trabalho subordinado, titulada por um contrato de trabalho.
Caracterizado o evento como um acidente nos termos do artigo 8.º da Lei, e enquadrada a situação em cujo âmbito o acidente ocorre, no âmbito do n.º 1 do artigo 3.º daquele diploma, ou seja, que as tarefas executadas o sejam «por conta de outrem» isso, em princípio isso basta para que se possa considerar o acidente como um acidente de trabalho, a abranger pela Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro.
(…) 6 - O Regime Jurídico dos Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, hoje resultante da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, é parte integrante do regime do contrato de trabalho consagrado no Código do Trabalho.
(…) Apesar de o sinistrado se encontrar ao serviço de uma autarquia local, o sinistro dos autos não pode considerar-se um acidente em serviço, nos termos do Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de novembro.
Na verdade, as funções assumidas pelo sinistrado, dada a sua atipicidade, não podem considerar-se «funções públicas», nos termos e para os efeitos do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 2.º do referido Decreto-lei, uma vez que não se inserem na realização das atribuições do Município.
Por outro lado, a relação de trabalho que ligava o sinistrado ao Município não integra um vínculo de trabalho em funções públicas, tal como ele hoje decorre da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de junho.
(…) O acidente dos autos não pode pois considerar-se abrangido pelo Regime Jurídico dos Acidentes em Serviço e das Doenças Profissionais no âmbito da Administração Pública.
(…) Na verdade, o processo dos acidentes de trabalho, disciplinado nos artigos do 99.º ss. do Código de Processo de Trabalho é um instrumento de natureza processual que visa a garantia do direito à assistência e justa reparação das vítimas de acidentes de trabalho, consagrado no n.º 1, alínea a) do artigo 59.º da Constituição da República.
Mais do que declarar os direitos do trabalhador vítima de acidente de trabalho, o processo foi concebido como instrumento da realização efetiva do direito à reparação das consequências do acidente, objetivo do qual o Estado não se pode dissociar.
(…) No fundo, o que o presente processo visa é a garantia do direito à reparação das consequências de um acidente sofrido por um trabalhador no desempenho das suas funções, ou seja de um normal acidente de trabalho.
O acidente em causa preenche todas as condições para ser considerado como um acidente de trabalho, nos termos da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, e dada a relação do regime destes acidentes com o regime jurídico do contrato de trabalho, por força do disposto no art. 4.º, n.º 4, alínea b) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, conforme acima se referiu, a competência para conhecer do presente processo deve ser atribuída aos tribunais judiciais.
Termos em que se decide resolver o presente conflito de jurisdição atribuindo a competência para conhecer do presente processo aos Tribunais Judiciais”. (…).
Ora, como se extrai do citado Aresto, apesar de não ser essencial ao conceito de acidente de trabalho que se afirme que “as tarefas no contexto do qual o acidente ocorre sejam prestadas no âmbito de uma relação de trabalho subordinado, titulada por um contrato de trabalho”, também se assinala, do mesmo modo, como fator que aliás temos como decisivo, que, caracterizado que possa ser o evento como um acidente nos termos do artigo 8.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, e ainda, também, “enquadrada a situação em cujo âmbito o acidente ocorre, no âmbito do n.º 1 do artigo 3.º daquele diploma, ou seja, que as tarefas executadas o sejam «por conta de outrem» isso, em princípio basta para que se possa considerar o acidente como um acidente de trabalho”, a abranger então pela referida Lei.
Do mesmo modo, diga-se, ou seja exigindo como pressuposto um exercício de atividade de que seja de algum modo beneficiária a entidade para quem é prestada, se incluirá, também, a previsão do n.º 2 quando nesse se alude à presunção de que o trabalhador esteja “na dependência económica da pessoa em proveito da qual presta serviços”, ou, nas situações previstas no n.º 3, referente a formação profissional, que nesta se incluirá, “para além da situação do praticante, aprendiz e estagiário”, que naquela situação se considera estar a que tem por finalidade “a preparação, promoção e actualização profissional do trabalhador, necessária ao desempenho de funções inerentes à actividade do empregador”, sendo que, como é consabido, e resulta aliás expressamente da alínea g) do n.º 1 do artigo 126.º, são também da competência dos juízos do trabalho as “questões emergentes de contratos de aprendizagem e de tirocínio”.
Neste contexto, diga-se, é precisamente no analisado aspeto / pressuposto que falha o enquadramento do caso que apreciamos, pois que, afinal, não está em causa qualquer exercício de funções por conta de outrem, no caso o aqui Réu, ou pelo menos que tivesse em vista tal exercício, incluindo no âmbito da formação profissional que possa ser incluída no âmbito do n.º 3 do aludido normativo, pois que, no caso, está afinal apenas em causa, noutros termos, dado o modo como foi configurada a presente ação, a mera celebração, entre as partes, pelo prazo de 14 meses, de um contrato de formação profissional (de canalizações), ministrado pelo Réu, auferindo o Autor uma bolsa de formação mensal (no valor de €146,73) e um subsídio de transporte (de €44,60€). Ou seja, trata-se, apenas, de um contrato que visa a mera formação que, visando é certo a capacitação do formando para eventualmente poder exercer mais tarde o exercício de funções profissionais, no caso de canalizador, sequer se traduz em qualquer exercício, muito menos em contexto laboral do aqui Réu, do exercício dessas efetivas funções – não estão em causa tarefas, utilizando-se as palavras do Acórdão antes citado, executadas «por conta de outrem», aqui se acrescentando, dada a particularidade do caso que apreciamos, uma das situações de formação profissional previstas no referido artigo 3.º do CPT.
Sequer o caso que apreciamos, diga-se por último, a respeito da previsão da alínea g) do n.º 1 do artigo 126.º antes citada, quanto nesse se alude às questões emergentes de contratos de tirocínio”, aí pode ser integrado.
Na verdade, tendo o IEFP, I.P., por missão promover a criação e a qualidade do emprego e combater o desemprego, através da execução de políticas ativas de emprego, nomeadamente de formação profissional – artigo 3º/1 do DL 213/2007, de 29/5 –, e estando a formação profissional regulada pelo Decreto-Lei n.º 242/88, de 7 de julho, cujo objetivo passa por objetivo regular a situação jurídica do formando que participe em ações de formação profissional (art. 1.º), definindo ainda os conceitos de formando, ação de formação profissional, entidade formadora e contrato de formação (cfr. artigo 2.º), e constando do seu artigo 4.º, quanto ao contrato de formação, nos seus n.ºs 1 e 2, as formalidades a que esse deve obedecer, estabelecendo porém o n.º seguinte que “o contrato de formação não gera nem titula relações de trabalho subordinado...”, pode assim dizer-se, por decorrência, que tal contrato não se pode considerar como sendo uma espécie do contrato de trabalho e, por isso, as questões dele emergentes não podem qualificar-se, desde logo, também, como questões emergentes do contrato de trabalho – por consequência, a competência dos tribunais do trabalho para conhecer e decidir das questões emergentes dos contratos de formação não pode fundar-se no artigo 126.º, alínea a), da LOFTJ.
Por outro lado, entendendo-se por contrato de aprendizagem o contrato celebrado entre um formando ou, quando este seja menor de idade, o seu representante legal, e a entidade formadora, em que esta se obriga a ministrar-lhe formação e aquele se obriga a frequentar essa formação, executando todas as atividades que constam da estrutura curricular do curso (artigo 10.º/1 da Portaria 1497/2008, de 19/12), sendo os contratos desta natureza celebrados no âmbito dos denominados cursos de aprendizagem regulamentados por essa mesma Portaria, sequer o contrato de formação do tipo do celebrado pelos aqui Autor e Réu pode ser equiparado a um qualquer contrato de tirocínio, situação sobre a qual incidiu o Acórdão da Relação de Coimbra de 6 de junho de 2013[7], e por essa razão integrado na previsão da alínea g) do n.º 1 do artigo 126.º antes citada, com os fundamentos seguintes (transcrição)
“(…) Como é sabido, o tirocínio (ou estágio) é uma realidade que se distingue da aprendizagem, no sentido atrás exposto, bem como do contrato de trabalho propriamente dito.
Como resulta do artigo II da petição inicial, conjugado com o documento de fls. 10 a 18, a autora e a ré celebraram entre si um contrato de formação em contexto de trabalho no âmbito do programa de estágios profissionais regulado pela Portaria 129/09, de 30/1, na redacção em vigor à data da celebração do contrato de trabalho.
(…)
Portanto, o contrato de formação em que a autora outorgou e os contratos de aprendizagem correspondem a categorias jurídicas distintas e autónomas entre si.
Logo, a competência dos tribunais do trabalho para conhecer e decidir das questões emergentes dos contratos de formação não pode fundar-se no art. 85º/g da LOFTJ, na parte em que nela se mencionam os contratos de aprendizagem.
No entanto, esta mesma norma refere-se, também, aos contratos de tirocínio.
Como é sabido, o tirocínio (ou estágio) é uma realidade que se distingue da aprendizagem, no sentido atrás exposto, bem como do contrato de trabalho propriamente dito.
Na verdade, o tirocinante ou estagiário é, normalmente, alguém que se exercita em certa ordem de funções laborais, como exercício preliminar indispensável ao bom desempenho de uma profissão; o período de estágio é, assim, um período de aproximação à inserção plena do estagiário em todos os problemas inerentes à carreira profissional que se quer abarcar.
Em última análise, o estágio permite à entidade formadora e ao formando um período de experiência e de avaliações recíprocas sobre um conjunto de aspectos subjectivos, objectivos e circunstanciais relevantes para a decisão de se constituir ou não uma relação de trabalho subordinado.
O estágio em empresas no âmbito do ensino técnico-profissional rege-se pelo disposto do DL 253/84, de 26/9.
O estágio profissional não inserido no sistema educativo rege-se pelo DL 242/88, de 7/7.
Como assim, as questões emergentes de um contrato de formação celebrado ao abrigo destes dois últimos diplomas legais devem considerar-se abrangidas nas “…questões emergentes de contratos de … tirocínio…” a que se alude no referido art. 85º/g da LOFTJ.
Por isso, os tribunais do trabalho são competentes para conhecer e decidir de acções respeitantes a questões emergentes de contratos de formação em contexto de trabalho como aquele que está em causa no âmbito destes autos”
Na verdade, como é de fácil constatação, não se pode integrar nesse âmbito, pois que desde logo não comporta as caraterísticas assinaladas em tal Aresto, o contrato celebrado, objeto dos presentes autos, e sujeito à nossa apreciação.
Em face de todo o exposto, não assiste razão ao Recorrente, em face dos fundamentos que invoca, para considerarmos, como o defende, que a competência assista no caso aos juízos do trabalho.
Improcede, pois, o presente recurso.
Por decaimento, a responsabilidade pelas custas impende sobre o Recorrente (artigo 527.º, do CPC).
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Nos termos expostos, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação do Porto em declarar improcedente o recurso.
Custas pelo Recorrente.
Porto, 11 de dezembro de 2024
(assinado digitalmente)
Nélson Fernandes
António Luís Carvalhão
António Costa Gomes
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[1] Redação idêntica à que consta do n.º 1 do artigo 40.º da LOSJ: “Os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.
[2] Cfr. Ac. RP de 7 de Fevereiro de 2017, por apelo, por sua vez, à anotação ao Ac. STJ de 20 de Maio de 1998, in BMJ 477, pág. 393.
[3] Manuel de Andrade, Noções Elementares do Processo Civil, ed. 1976, pág. 91.
[4] Relatado pelo também aqui relator.
[5] Relatora Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, in www.dgsi.pt.
[6] 1064/18.6BEBRG.G1.S1, Relator Conselheiro António Leones Dantas, in www.dgsi.pt.
[7] Processo n.º 64/12.4TTGRD.C1, Relator Desembargador Jorge Manuel Loureiro, in www.dgsi.pt.