EXECUÇÃO
ENTREGA DE COISA CERTA
EMBARGOS DE TERCEIRO
ARRENDAMENTO DE IMÓVEL
MORTE DO ARRENDATÁRIO
TRANSMISSÃO DO ARRENDAMENTO AO CÔNJUGE
Sumário

I.- Deverá entender-se a residência do cônjuge no locado, nos termos e para os efeitos do art.º 57º do NRAU na redação introduzida pela Lei 6/2006, como a situação de o cônjuge ter no locado, com carácter de habitualidade e estabilidade, o seu centro de vida.
II.- Só existirão duas residências habituais se ficar demonstrado que ambas constituem, com carácter de estabilidade, habitualidade, e continuidade, o centro de vida de quem as habita, sem qualquer hierarquização ou subordinação de uma à outra.
III.- O cônjuge do arrendatário que invoque a seu favor a transmissão do arrendamento por morte do arrendatário nos termos previstos no art.º 57º do NRAU terá que alegar e provar que, à data do óbito, o locado constituía o seu centro de vida (ainda que a par com outro imóvel).
IV.- O domicílio fiscal não corresponde necessariamente à residência permanente ou habitual.
(Sumário da exclusiva responsabilidade da Relatora)

Texto Integral

Acordam neste Tribunal da Relação de Lisboa:

I - RELATÓRIO
Por apenso à execução de Decisão Judicial Condenatória com a finalidade de entrega de coisa certa que A e B movem contra C, deduziu D os presentes EMBARGOS DE TERCEIRO, invocando, para tanto, em síntese que o contrato de arrendamento do locado a que se reporta o título executivo se transmitiu para a sua esfera jurídica.
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento para audição da prova oral arrolada.
Seguidamente foi proferido despacho com o seguinte dispositivo:
“Em face de tudo quanto ficou exposto, julgo não se verifica uma probabilidade séria da existência do direito invocado pela embargante e, consequentemente, REJEITO os presentes embargos de terceiro nos termos do disposto no artigo 345.º do Código de Processo Civil.  
*
Custas pela embargante — artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
*
O valor da causa é o dos autos principais.
*
Registe e notifique, incluindo o agente de execução.”
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Inconformada, a embargante deduziu recurso de apelação, apresentando alegações com as seguintes conclusões:
“I. Em sede de despacho saneador dos embargos, o Tribunal quo proferiu o seguinte despacho: a existência de tal contrato já foi reconhecida na sentença dada à execução e confessada aí pelos próprios exequentes
II. Resultou provado que sobre o referido prédio foi celebrado contrato de arrendamento com E.
III. Nessa ação resultou provado que sobre o referido prédio foi celebrado contrato de arrendamento com E.
IV. Mais resultou provado que este faleceu, no estado de casado com a ora embargante a 23 de julho de 2008.
V. A embargante tem o seu domicílio fiscal no referido prédio, bem como aí recebe os recibos da sua pensão e a correspondência respeitante à sua conta na Caixa Geral de Depósitos, S.A.
VI. A embargante, quando se desloca à Madeira, fica a morar no referido prédio.
VII. Tendo nesse prédio um quarto no qual se encontra mobiliário e vestuário a si pertencentes.” (…)
VIII. Nos termos da mais vasta jurisprudência o conceito de residência permanente engloba a residência secundária sem obrigação de hierarquização.
IX. Uma vez que o contrato foi celebrado antes da vigência do RAU, prevê o n.º 1 do artigo 28.º do NRAU, a este são aplicáveis as disposições dos contratos habitacionais celebrados na vigência do RAU, ou seja, também se aplica o artigo 57.º do NRAU.
X. 29. Nos termos do art.º 57 º nº 1 Alínea a) do NRAU o arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário quando este lhe sobreviva: “(…) a) cônjuge com residência no locado; (…)
XI. 30. Pelo que existiu a transmissão do arrendamento para a embargante por morte do arrendatário primitivo, seu marido”
XII. “Uma vez que o contrato foi celebrado antes da vigência do RAU, prevê o n.º 1 do artigo 28.º do NRAU, a este são aplicáveis as disposições dos contratos habitacionais celebrados na vigência do RAU, ou seja, também se aplica o artigo 57.º do NRAU.
XIII. 29. Nos termos do art.º 57 º nº 1 Alínea a) do NRAU o arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário quando este lhe sobreviva: “(…)
a) cônjuge com residência no locado; (…)
XIV. 30. Pelo que existiu a transmissão do arrendamento para a embargante por morte do arrendatário primitivo, seu marido”
XV. A embargante é assim a legitima arrendatária do prédio do embargado
Nestes termos, e nos melhores de direito, que V. Exas. doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado provado e procedente e, em consequência, deve a douta sentença recorrida ser revogada, substituindo-a por outra que determine a procedência do presente recurso de apelação, conforme alegado e concluído, considerando e reconhecendo que se verifica com probabilidade séria a existência do direito invocado pela Embargante/Recorrente, e consequentemente a aceitação dos seus embargos de terceiro, assim se fazendo a costumada e boa
JUSTIÇA!”
*
Os exequentes apresentaram contra-alegações, nas quais concluíram da seguinte forma:
“1ª A sentença recorrida, não é passível de censura uma vez uma vez que os factos dados como provados e que não merecem qualquer reparo, determinam que não se verifica uma probabilidade séria da existência do direito invocado pela embargante e, consequentemente, os presentes embargos de terceiro devem ser rejeitados, nos termos do disposto no artigo 345.º do Código de Processo Civil, ou seja, perante a factualidade dada como provada não merece qualquer censura a decisão da sentença recorrida.
Na impugnação da matéria de facto efectuada a Apelante pretende apenas que os factos considerados provados se transformem em conclusões, ou seja, que o mesmo se torne numa afirmação conclusiva.
A sentença recorrida contém a enunciação dos factos julgados provados, bem como dos factos que não foram julgados provados, e as razões de direito em que o Tribunal de 1ª instância se alicerçou; entende-se com evidência a decisão que foi proferida, na sequência dos fundamentos que foram desenvolvidos, não havendo obscuridade e/ou ambiguidade geradoras de ininteligibilidade, nem os factos dados como provados devem ser modificados.
O Tribunal de 1ª instância tomou motivadamente uma determinada orientação que seguiu, não tendo que ponderar toda a argumentação jurídica deduzida pela apelante; foram conhecidos os pedidos deduzidos bem como, as causa de pedir e excepções invocadas.
Ponderando a prova efectivamente produzida, considerando os depoimentos das testemunhas apontadas pela apelante, considerando a motivação explicada detalhadamente, e não só, deve-se manter a matéria de facto provada e não provada, não se procedendo às alterações pretendidas pela apelante.
Na impugnação da matéria de facto impende sobre o recorrente o ónus, decorrente do pressuposto processual do interesse em agir e do princípio da proibição de actos inúteis (art.º 130.º do CPC), de justificar o interesse nessa impugnação, não sendo de admitir que o tribunal desperdice os seus recursos na apreciação de situações de que o recorrente não possa tirar qualquer benefício. Ora esse ónus não foi cumprido pela Apelante.
Se o facto que se pretende impugnar for irrelevante para a decisão, segundo as várias soluções plausíveis, não há qualquer utilidade naquela impugnação da matéria de facto, pois o resultado a que se chegar (provado ou não provado) é sempre o mesmo: absolutamente inócuo. O mesmo é dizer que só se justifica que a Relação faça uso dos poderes de controlo da matéria de facto da 1.ª instância quando essa actividade da Relação recaia sobre factos que tenham interesse para a decisão da causa - art.º 130.º do CPC. Quando assim não ocorre, a Relação deve abster-se de apreciar tal impugnação.
E omitindo a Apelante o cumprimento do ónus processual fixado na al. c) do n.º 1 do art.º 640.º do CPC, impõe-se a imediata rejeição da impugnação da matéria de facto, não sendo legalmente admissível a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento das conclusões.
Aliás o dever de reapreciação da prova por parte da Relação apenas existe no caso de os recorrentes respeitarem todos os ónus previstos no art.º 640.º, n.º 1, do CPC e de a matéria em causa se afigurar relevante para a decisão final.
10ª E segundo a jurisprudência do STJ, nada impede a Relação de apreciar se a factualidade indicada pelos recorrentes é ou não relevante para a decisão da causa, podendo, no caso de concluir pela sua irrelevância, deixar de apreciar, nessa parte, a impugnação da matéria de facto por se tratar de ato inútil.
11ª A alocução fundamento para impor decisão diversa, nos termos proclamados pelo n.º 1 do artigo 662.º do Código de Processo Civil, não se basta com a possibilidade de uma alternativa decisória antes exige que o juízo efectuado pela Primeira Instância esteja estruturado num lapso relevante no processo de avaliação da prova.
12ª Os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais e não meios de julgamentos de questões novas e assim o Tribunal da Relação não pode ser chamado a pronunciar-se sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida ou sobre pedidos que nela não foram formulados.
13ª E refira-se, não menos importante, no que à prova testemunhal respeita, a relevância da imediação. Daí a vantagem do Tribunal de 1ª instância, perante quem a prova se produziu e que pôde assimilar elementos que, através das gravações da prova, não são susceptíveis de, do mesmo modo, chegarem ao Tribunal «ad quem».
14ª Pelo que se impõe a manutenção da decisão do Tribunal recorrido, julgando a apelação improcedente, por não provada.
15ª E a Meritíssima Juiz “a quo” aplicou correctamente a lei, designadamente:
- artigo 1106.º, alínea a), do Código Civil; e
- artigo 345.º do Código de Processo Civil.
Nestes termos e nos mais de Direito, afigura-se-nos que nada explica ou justifica este recurso de apelação, pelo que deverá ser negado provimento e confirmada a douta sentença recorrida, nos seus precisos termos.
COMO É DE JUSTIÇA!”
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O recurso foi admitido como apelação, a subir nos próprios autos e com efeito devolutivo (cf despacho de 20.05.2024)
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Por despacho de 28.06.2024 proferido neste Tribunal de Relação de Lisboa, foi corrigido o efeito atribuído ao recurso, atribuindo-se ao mesmo recurso efeito suspensivo da decisão recorrida nos termos previstos nas disposições conjugadas previstas nos 629 nº 3 al a) e 647 nº 3 al b) do CPC.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II –  OBJETO DO RECURSO:
- Impugnação da decisão sobre a matéria de facto;
- Aferir se existe probabilidade séria do direito invocado pela embargante.
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III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:
O tribunal de 1ª instância deu como provada a seguinte factualidade:
1.º A 06 de novembro de 2023, A e B instaurou contra C execução para entrega do prédio sito no Caminho …, n.º …, 1.º andar, em …, Funchal.
2.º Fizeram-no com fundamento em sentença, oportunamente transitada em julgado, que condenou a executada a lhes entregar livre de pessoas e bens o mencionado prédio.
3.º Nessa ação os exequentes figuraram como autores e a executada como única ré.
4.º Nessa ação resultou provado que sobre o referido prédio foi celebrado contrato de arrendamento com E.
5.º Mais resultou provado que este faleceu, no estado de casado com a ora embargante, a 23 de julho de 2008.
6.º A embargante tem o seu domicílio fiscal no referido prédio, bem como aí recebe os recibos da sua pensão e a correspondência respeitante à sua conta na Caixa Geral de Depósitos, S.A..
7.º A embargante, quando se desloca à Madeira, fica a morar no referido prédio.
8.º Tendo nesse prédio um quarto no qual se encontra mobiliário e vestuário a si pertencentes.
E deu como não provada a seguinte factualidade:
a) a 23 de julho de 2008, a embargante pernoitasse, tomasse as suas refeições, permanecesse a maior parte do seu tempo no referido prédio, situação que permanece até à data de hoje;
b) após o óbito do marido da embargante as rendas fossem pagas por esta;
c) a junho de 2019, a embargante tivesse procedido à abertura de uma conta onde depositava a renda;
d) os exequentes soubessem que a embargante residia, à data do óbito no locado, e tivessem concordado que o arrendamento se transferisse para a embargante.
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IV- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO:
Comecemos por apreciar a impugnação da decisão da matéria de facto.
Dispõe o art.º 640º do CPC, com a epigrafe “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”, que:
1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.”
O Acórdão Uniformizador de Jurisprudência proferido pelo STJ em 17.10.2023 no proc. 8344/17.6T8STB.E1-A.S1 uniformizou jurisprudência nos seguintes termos:
“Nos termos da alínea c), do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações.”
Assim, embora tenha que constar nas conclusões do recurso a indicação dos concretos factos incorretamente julgados, já não tem necessariamente que constar nas mesmas a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, do corpo das alegações do recurso. E também não tem que constar nas conclusões a indicação dos meios probatórios de suporte à pretendida decisão alternativa, podendo tal indicação ser efetuada no corpo das alegações.
Ora, no caso dos autos não consta das conclusões do recurso a enunciação dos factos incorretamente julgados.
Assim, rejeita-se o recurso sobre a decisão da matéria de facto, ao abrigo do art.º 640 nº 1 alínea a) do CPC).
Passemos então a apreciar se existe probabilidade séria do direito invocado pela embargante, ou seja, se há probabilidade séria de o contrato de arrendamento do locado ter sido transferido para a embargante.
Estabelece o art.º 342.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, que: “Se a penhora, ou qualquer acto judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro”.
No que concerne ao âmbito dos embargos de terceiro, constata-se que o legislador quis, com a reforma do processo civil de 1995/96, ampliar os seus pressupostos, que deixam de estar necessariamente ligados à defesa da posse do embargante, configurando-se como meio processual idóneo para este efetivar qualquer direito incompatível com a subsistência de uma diligência de cariz executório, judicialmente ordenada.
Assim, enquanto antes era possível defender apenas a posse, agora, através dos embargos de terceiro, pode-se defender qualquer direito incompatível com o acto de agressão patrimonial cometido.
Dispõe o art.º 1037 nº 2 do CCivil que: “O locatário que for privado da coisa ou perturbado no exercício dos seus direitos pode usar, mesmo contra o locador, dos meios facultados ao possuidor nos artigos 1276.º e seguintes.”
O que inclui os embargos de terceiro previstos no art.º 1285º do mesmo Código.
Conforme resulta do art.º 350º nº 1 do CPC, “Os embargos de terceiro podem ser deduzidos, a título preventivo, antes de realizada, mas depois de ordenada, a diligência a que se refere o artigo 342.º, observando-se o disposto nos artigos anteriores, com as necessárias adaptações.”
Visa-se, pois, evitar a ocorrência de diligência de apreensão ou entrega de bens suscetível de colidir com a posse ou outro direito incompatível com tal diligência.
 É esse o caso em apreço. A embargante, arrogando-se arrendatária do imóvel, deduziu embargos de terceiro a fim de evitar a entrega do imóvel aos exequentes.
Para tanto carece de demonstrar os factos de aquisição da titularidade do arrendamento que invoca a seu favor – art.º 342 nº1 do CC.
Segundo a embargante, o arrendamento transmitiu-se-lhe por óbito do primitivo arrendatário, seu marido, óbito que sucedeu em 23 de julho de 2008.
Incumbe-lhe, pois, a prova dos factos demonstrativos de tal transmissão.
“A questão de saber se o contrato de arrendamento se transmitiu ou caducou, tem de ser resolvida em função da lei vigente ao tempo em que ocorre o facto jurídico morte do arrendatário.” – cf. Ac. do TRP de 16.12.2015 proferido no Proc. 403/14.3TBGDM.P1.
“É pela lei vigente à data da morte do arrendatário que se afere o direito à transmissão do arrendamento para o seu sucessor.” - Ac. TRG de 09.11.2023 proferido no Proc. 153/22.7T8VVD.G1.
Também o Ac. do TRL de 09-06-2022 proferido no Proc.11341/19.3T8LSB.L1-6 refere que: “Por força do disposto no art.º 12.º, n.º 2, do CC, o regime da transmissão do arrendamento ( para habitação ), não obstante celebrado em 1947, é o vigente à data do facto potencialmente idóneo a determiná-la – ou seja, na situação em apreço, do falecimento ( em 3 de Novembro de 2018 ) da então arrendatária, a mãe do réu.”
Aquando do óbito do cônjuge da embargante, o primitivo arrendatário, estava em vigor o novo NRAU aprovado pela Lei 6/2006 de 27.02, cujo regime  se aplicaria aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias, conforme resulta expressamente do disposto no nº1 do art.º 59.º do NRAU.
Entre essas normas transitórias, consta o art.º 26º, n.º 2 do NRAU, que determina que relativamente aos contratos celebrados durante a vigência do RAU (aprovado pelo DL n.º 321-B/90 de 15/10 e que foi expressamente revogado pelo art.º 60º do NRAU) se aplica o disposto no art.º 57º, que regula a transmissão por morte no arrendamento para a habitação; e os arts. 27º e 28º dos quais decorre, através da remissão para o art.º 26º, ser também aplicável esse art.º 57º aos contratos de arrendamento para habitação celebrados mesmo anteriormente à vigência do RAU.
O art.º 57º do NRAU, com a epigrafe “Transmissão por morte no arrendamento para habitação”, na redação introduzida pela Lei 6/2006 de 27/02, tem a seguinte redação:
“1 - O arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário quando lhe sobreviva:
a) Cônjuge com residência no locado;
b) Pessoa que com ele vivesse em união de facto, com residência no locado;
c) Ascendente que com ele convivesse há mais de um ano;
d) Filho ou enteado com menos de 1 ano de idade ou que com ele convivesse há mais de um ano e seja menor de idade ou, tendo idade inferior a 26 anos, frequente o 11.º ou 12.º ano de escolaridade ou estabelecimento de ensino médio ou superior;
e) Filho ou enteado maior de idade, que com ele convivesse há mais de um ano, portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60%.
2 - Nos casos do número anterior, a posição do arrendatário transmite-se, pela ordem das respectivas alíneas, às pessoas nele referidas, preferindo, em igualdade de condições, sucessivamente, o ascendente, filho ou enteado mais velho.
3 - Quando ao arrendatário sobreviva mais de um ascendente, há transmissão por morte entre eles.
4 - A transmissão a favor dos filhos ou enteados do primitivo arrendatário, nos termos dos números anteriores, verifica-se ainda por morte daquele a quem tenha sido transmitido o direito ao arrendamento nos termos das alíneas a), b) e c) do n.º 1 ou nos termos do número anterior.”
A Lei 6/2006 também alterou a redação do art.º 1106º do CC para a seguinte:
“1 - O arrendamento para habitação não caduca por morte do arrendatário quando lhe sobreviva:
a) Cônjuge com residência no locado ou pessoa que com o arrendatário vivesse no locado em união de facto e há mais de um ano;
b) Pessoa que com ele residisse em economia comum e há mais de um ano.
2 - No caso referido no número anterior, a posição do arrendatário transmite-se, em igualdade de circunstâncias, sucessivamente para o cônjuge sobrevivo ou pessoa que, com o falecido, vivesse em união de facto, para o parente ou afim mais próximo ou de entre estes para o mais velho ou para o mais velho de entre as restantes pessoas que com ele residissem em economia comum há mais de um ano.
3 - A morte do arrendatário nos seis meses anteriores à data da cessação do contrato dá ao transmissário o direito de permanecer no local por período não inferior a seis meses a contar do decesso.”
Não introduziu, contudo, a Lei 6/2006 qualquer norma transitória relativa à aplicação deste art.º 1106º.
“(…) Donde resulta que, no que concerne ao regime da transmissão da posição contratual do arrendatário habitacional, por morte deste, o NRAU consagrou duas soluções: a) uma aplicável aos arrendamentos celebrados após a sua entrada em vigor (e que é aquela que consta do art.º 1106º do C. Civil); b) e outra aplicável aos arrendamentos celebrados anteriormente à sua entrada em vigor (e que é àquela que consta do art.º 57º do próprio NRAU). (…)” – cf.  Ac. do STJ de 25.10.2022 proferido no Proc. 12912/19.3T8PRT.P1.S1.
 Aplica-se, pois, ao caso dos autos o disposto no art.º 57º do NRAU introduzido pela Lei 6/2006.
Assim, por morte do arrendatário o arrendamento transmitir-se-ia ao cônjuge com residência no locado.
E o que se deve entender por “residência no locado”?
Importa recorrer, para este efeito, a outras normas do NRAU aprovado pela Lei6/2006 que aludam ao conceito de residência. E aí encontramos o art.º 14º nº 2 do NRAU onde se alude, como fundamento de despejo, à falta de residência permanente no locado.
A residência do cônjuge no locado deve, pois, ser entendida como residência permanente no locado.
Refere-se no Ac. do TRL de 21.06.2011 proferido no Proc. 1491/04.6PCAMD.L1-1, a propósito do conceito de residência permanente do arrendatário, que: “Residência permanente é o local onde está centrada a organização da vida individual, familiar e social do arrendatário, com carácter de habitualidade e estabilidade, ou seja, a casa em que o arrendatário juntamente com o agregado familiar toma as suas refeições, dorme, desenvolve toda a sua vivência diária, familiar e social ; o local onde, de modo estável e continuado, se centra a actividade inerente à economia doméstica e familiar do arrendatário.
Também no recente Ac. do TRL de 12.09.2024 proferido no Proc. 10188/19.1T8LSB.L2-2 se alude ao conceito de residência permanente, aí se referindo que:
“(…) Valendo aqui toda o labor doutrinário e jurisprudencial precedente na construção do conceito de residência permanente, assim se entende o lugar onde o inquilino “tem o centro ou a sede da sua vida familiar e social e da sua economia doméstica; a casa em que, estável ou habitualmente dorme, toma as suas refeições, convive e recolhe a sua correspondência, o local onde tem instalada e organizada a sua vida familiar, o seu lar”.(…)”.
Assim, deverá entender-se a residência do cônjuge no locado, nos termos e para os efeitos do art.º 57º do NRAU na redação introduzida pela Lei 6/2006, como a situação de o cônjuge ter no locado, com carácter de habitualidade e estabilidade, o seu centro de vida.
Isso não impede que a pessoa possa ter duas residências habituais, nos termos previstos no art.º 82 nº1 do CC, o qual estipula que: “a pessoa tem domicílio no lugar da sua residência habitual; se residir alternadamente em diversos lugares, tem-se por domiciliada em qualquer deles”.
A esta questão refere-se o Ac. do TRL de 21.06.2011 acima identificado, onde se descrevem os pressupostos da existência de duas residências habituais nos seguintes termos:
“(…) Defende ainda a recorrente que aquilo que está demonstrada é a existência de residências alternadas,
Invoca, para tanto, o disposto no art.º 82º nº 1 do Código Civil, segundo o qual “a pessoa tem domicílio no lugar da sua residência habitual; se residir alternadamente em diversos lugares, tem-se por domiciliada em qualquer deles”.
Ou seja, teriam o falecido B e a sua mulher duas residências: Uma no locado e outra em S.....
Afigura-se-nos, porém, que essa situação não é de configurar “in casu”, por ausência dos respectivos pressupostos : Ter-se em ambos os lugares uma verdadeira habitação, uma casa montada ou instalada, onde se resida com relativa permanência, isto é, com a estabilidade, habitualidade e continuidade que enformam o conceito de residência permanente defendido, sem hierarquização de um local relativamente ao outro, como acontece com as residências secundárias ou acidentais, para fins de recreio, descanso ou outros que não prejudiquem a afectação da residência principal e, não menos relevante, que o senhorio tenha, à data da celebração do contrato, conhecimento da residência alternada do locatário e da necessidade de habitação nela deste (neste sentido cf. Antunes Varela in Rev. Leg. Jur., Ano 123, pg. 127 e Aragão Seia in “Arrendamento Urbano”, pg. 451).
Ora, encontrando-se o locado desabitado na maior parte do tempo, não havia aí uma residência estável, habitual e contínua, sem hierarquia em relação à outra residência. “(…)
Ou seja, só existirão duas residências habituais se ficar demonstrado que ambas constituem, com caracter de estabilidade, habitualidade, e continuidade, o centro de vida de quem as habita, sem qualquer hierarquização ou subordinação de uma à outra.
Daí que, por exemplo, um imóvel que seja utilizado para férias e outros períodos de lazer não possa ser considerado como residência habitual, mas tão só como segunda habitação, inexistindo nesse caso a equiparação de residências pressuposta no art.º 82 n.º 1, segunda parte, do CC.
Do supra exposto resulta que o cônjuge do arrendatário que invoque a seu favor a transmissão do arrendamento por morte do arrendatário nos termos previstos no art.º 57º do NRAU terá que alegar e provar que, à data do óbito, o locado constituía o seu centro de vida (ainda que a par com outro imóvel).
No caso dos autos, a embargante não logrou fazer tal prova.
Veja-se que foi expressamente dado como não provado que a 23 de julho de 2008, a embargante pernoitasse, tomasse as suas refeições, permanecesse a maior parte do seu tempo no referido prédio, situação que permanece até à data de hoje.
Provou-se apenas que a embargante tem o seu domicílio fiscal no referido prédio, bem como aí recebe os recibos da sua pensão e a correspondência respeitante à sua conta na Caixa Geral de Depósitos, S.A..; que quando se desloca à Madeira, fica a morar no referido prédio; Tendo nesse prédio um quarto no qual se encontra mobiliário e vestuário a si pertencentes.
Ora, esta factualidade dada como provada nem sequer se reporta à data de 23.07.2008 (data do óbito do arrendatário), reportando-se antes à atualidade.
Acresce que o domicílio fiscal não corresponde necessariamente à residência permanente ou habitual.
Veja-se a esse respeito o acórdão do TCAS de 07/04/2011, proferido no proc. 04550/11, cujo sumário, na parte que aqui releva, se passa a transcrever:
“I) - O conceito de domicílio fiscal estatuído no disposto no artigo 19° da LGT, nomeadamente no seu n°1 é um domicílio especial que se refere a um lugar determinado para o exercício de direitos e o cumprimento dos deveres previstos nas normas tributárias o qual, sendo especial, é independente do estipulado no artigo 82° do C. C.. embora, ideologicamente e na sua essência o disposto naquele primeiro inciso legal se conecte com a necessidade de o sujeito passivo e a A.F. estarem em contacto sempre que o for necessário para o exercício dos respectivos direitos e deveres, em homenagem ao princípio da colaboração ínsito no art.º 59º da LGT. (…)”.
Por outro lado, o facto de a embargante receber no locado os recibos da sua pensão e a correspondência respeitante à sua conta na Caixa Geral de Depósitos, S.A no locado também não significa, por si só, que o locado constitua residência permanente da embargante. Até porque não se provou que a embargante aí receba toda a correspondência a si destinada, mas tão só a correspondência daquelas duas entidades.
Por último, embora se tenha provado que quando se desloca à Madeira, a embargante fica a morar no referido prédio, tendo no mesmo  um quarto no qual se encontra mobiliário e vestuário a si pertencentes, não constam da matéria provada quaisquer factos relativos às circunstâncias em que se desloca à Madeira, com que frequência e quais os períodos que aí permanece.
É, pois, notória a insuficiência de factos provados aptos a demonstrar que o locado constitua centro da vida doméstica da embargante, e muito menos que o fosse por referência à data do óbito do seu cônjuge.
Ónus de prova que incumbia à embargante.
O recurso improcede.
Atenta a improcedência do recurso, as custas do mesmo são a cargo da apelante, por ter ficado vencida (art.º 527 n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil).
***
V. Decisão:
Pelo exposto acordam os Juízes desta 8ª seção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente a apelação, mantendo-se, em consequência, a decisão recorrida.
Custas do recurso pela apelante.
Notifique.

Lisboa, 05.12.2024
Carla Cristina Figueira Matos
Maria do Céu Silva
Amélia Puna Loupo