EMBARGOS DE EXECUTADO
TÍTULO EXECUTIVO
AUGI
INSOLVÊNCIA DE PROPRIETÁRIO
OBRIGAÇÃO PROPTER REM
EXTINÇÃO
Sumário

1 – Estruturalmente, a obrigação propter rem é uma verdadeira obrigação à qual se aplicam as regras das obrigações em geral e, porque assume ainda uma natureza particular, aplica-se o regime decorrente dessa natureza.
2 -  À luz do Código da Insolvência e da Recuperação da Empresa, não existe fundamento legal para, após a liquidação e rateio de uma sociedade comercial, e sua consequente extinção, à luz do artigo 234.º, n.º 3, do CIRE, se extinguir uma obrigação propter rem estabelecida de acordo com o regime decorrente da Lei n.º 91/95, de 02 de Setembro (Regime AUGI).
3 – Também não pode a referida obrigação ser extinta por força do artigo 824.º, n.º 2, do Código Civil, na sequência da venda no processo de insolvência do imóvel sujeito ao regime AUGI que deu origem à obrigação propter rem, porque a letra do artigo 824.º, n.º 2, não suporta tal extinção.
4 – E também não existe lacuna que deva ser integrada, atento o regime muito particular das AUGI que regula a natureza ambulatória da obrigação.

Texto Integral

Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
1. A executada/ora apelante deduziu oposição mediante embargos de executado à execução que lhe foi movida pela apelada.
2. Alegou, além do mais, que não é responsável pelo pagamento da dívida que a exequente pretende ver coercivamente paga por via da execução de que dependem estes autos, porquanto adquiriu os lotes a que respeita tal dívida - peticionada a título de comparticipações das obras de urbanização através de uma venda judicial no âmbito do processo de insolvência da sua anterior proprietária, tendo tal venda sido feita livre de ónus ou encargos.
3. A exequente/ora apelada contestou os embargos, após o que o tribunal de primeira instância julgou verificada exceção dilatória da insuficiência/falta de título executivo.
4. Na sequência de recurso interposto, foi revogada a decisão e ordenado o prosseguimento da ação executiva.
5. Após julgamento, o tribunal de primeira instância proferiu sentença julgando parcialmente procedente a oposição, determinando o prosseguimento da execução para a cobrança coerciva da quantia de €56.411,65, acrescida de juros de mora, à taxa legal para os juros civis, desde a data da interpelação ao pagamento, ocorrida em 28.01.2021, até integral pagamento.
6. A apelante, inconformada com a decisão do tribunal de primeira instância, recorreu. Concluiu as alegações da seguinte forma (as conclusões enunciadas mostram-se sumarizadas face à extensão e repetição das mesmas no requerimento recursivo):
CONCLUSÕES DA APELANTE
I. O Tribunal julgou parcialmente procedente a presente a oposição (mediante embargos de executado apresentada pela exponente) imputando à Executada, ora Recorrente, o pagamento de €56.411,65, acrescido de juros de mora, à taxa legal para os juros civis, desde a data da interpelação ao pagamento, ocorrida em 28.01.2021, até integral pagamento.
II. A decisão do tribunal de primeira instância foi errada porque desconsiderou que o imóvel em causa (anteriores lotes 64 e 65) foi adquirido por venda judicial num processo de insolvência do anterior proprietário - que se caracteriza por ser um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores -, entre os quais a Exequente que reclamou o seu crédito (a dívida ora reclamada) e viu o seu crédito aí reconhecido e graduado na liquidação do património do devedor insolvente e na repartição do produto obtido pelos credores.
III. E desconsiderou, ainda, que à venda judicial em sede de insolvência são aplicáveis as regras da venda executiva previstas no CPC, designadamente em que tal venda, forçada e de cariz expropriativo, tem por função específica proporcionar a satisfação coativa de um crédito em estado de não cumprimento voluntário – artigo 817.º do Código Civil.
IV. E que, tratando-se de uma venda judicial no âmbito de um processo judicial, o direito de regresso previsto no referido artigo 3º da Lei n.º 91/95 de 02-02 encontra-se prejudicado.
V. Tendo o processo encerrado por rateio, a Executada ficou impedida de declarar nula a venda.
VI. A venda no processo de insolvência foi feita livre de ónus e encargos, aliás como todas as vendas judiciais realizadas em insolvência, tendo caducado dos direitos de garantia, conforme o disposto no artigo 824.º Código Civil, tendo-se transferido esses mesmos direitos para o produto da venda dos respetivos bens.
VII. O privilégio imobiliário de que a AUGI gozava, nos termos do artigo 3, n.º 5 da Lei n.º 91/95 de 2 Setembro e artigo 743º do CPC, extinguiu-se com a declaração de insolvência do anterior proprietário.
VIII. A dívida ora reclamada, tendo sido anterior à insolvência e sendo reclamada e reconhecida no âmbito da insolvência da anterior proprietária, passou a ser uma dívida da insolvência.
IX. Assim, no processo de insolvência, quando declarada, todos os créditos reclamáveis sobre a insolvência, de natureza patrimonial, serão garantidos por bens integrantes da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração (cfr., artigo 47.º do CIRE) e, uma vez encerrada, os credores da massa, entre os quais a aqui Exequente AUGI - podem reclamar do devedor os seus direitos não satisfeitos, artigo 233 n.º 1, d) do CIRE, não o devendo a exequente fazer à executada.
X. A venda em processo de insolvência foi feita naqueles termos e condições e não noutras. Se assim não fosse, a Executada não teria adquirido o imóvel (lotes), pelo menos por aquele preço!
XI. O tribunal de primeira instância omitiu que as dívidas já existiam à data da declaração de insolvência da anterior proprietária - que deixou de pagar - e que as mesmas foram reclamadas e reconhecidas neste processo de insolvência, tendo sido efetuada venda judicial para pagamento das mesmas dividas, entre outras!
XII. Existem aqui, em bom rigor, dois regimes especiais, como é o caso do aplicados às AUGIS e o da Insolvência, tendo o tribunal desconsiderado totalmente este regime.
XIII. A venda judicial em sede de insolvência põe em causa o n.º 4 do referido artigo 3.º da Lei 91/95 de 2 Setembro segundo o qual os encargos com a operação de reconvenção impendem sobre os titulares dos prédios abrangidos pela AUGI, sem prejuízo do direito de regresso sobre aqueles de quem hajam adquirido, quanto às importâncias em divida no momento da sua aquisição.
XIV. Apesar da prova efetuada através da documentação e testemunhal, não deu como provada / não considerou relevante alguma matéria essencial.
XV. Desconsiderando que a dívida exequente já se encontrava vencida antes da declaração de insolvência da anterior proprietária.
XVI. De que tal dívida foi reclamada pela AUGI em sede de Insolvência foi reconhecida e graduada.
XVII. A exequente reclamou o seu crédito em dois processos judiciais distintos e em momentos temporais subsequentes: o da Insolvência, onde o mesmo até lhe foi reconhecido e os presentes autos onde procurou igualmente cobrar o mesmo.
XVIII. Foi ressarcida parcialmente da mesma. Não pode voltar a pedir o mesmo.
XIX. A dívida da exequente não foi paga no processo de insolvência por erro da própria AUGI, ora Exequente, que na reclamação identificou erradamente o crédito como comum ao invés de crédito privilegiado.
XX. Estamos perante caso julgado, a mesma causa de pedir e o mesmo pedido, mesmo título executivo e a mesma quantia (no processo de insolvência e agora, na presente execução).
XXI. E na verdade não se coloca em causa, neste aspeto, pois o que se coloca, por um lado em causa, é que a Exequente reclamou a mesma quantia em dois processos diferentes, sendo que o seu pedido até foi deferido na insolvência. Dado que tal dívida já existia aquando da anterior proprietária ter sido declarada insolvente - situação que o douto Tribunal reconhece, mas não valoriza nem tem em conta.
XXII. Pois, e como resulta da prova testemunhal, o preço de aquisição dos lotes na venda judicial já teve em conta tais comparticipações, aliás o administrador da Executada à data sugeriu deduzir tais valores ao preço e entregá-los diretamente à AUGI, no entanto, tratando-se de uma venda judicial, tal teria que ser feito pelo Tribunal.
XXIII. A Executada, além de não ser parte legítima, não é responsável pelo pagamento.
XXIV. A sentença é nula por errada, incompleta ou insuficiente fundamentação.
XXV. Há um erro de raciocínio lógico consistente em a decisão emitida ser contrária à que seria imposta pelos fundamentos de facto ou de direito de que o juiz se serviu ao proferi-la.
XXVI. Ocorre quando os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam necessariamente a uma decisão de sentido oposto ou, pelo menos, de sentido diferente.
XXVII. É o caso pois o tribunal admite que a Exequente já foi, em sede de Insolvência, parcialmente ressarcida: "A exequente reclamou créditos no referido processo de insolvência- os mesmos créditos que ora reclama - no valor total de €81.423,84, correspondendo €63.476,51 a título de capital e €17.947,33 a título de juros calculados à taxa legal de 4% contados desde 16/05/2010 requerendo que os mesmos fossem verificados e a final graduados, na posição que lhe couber. Tais créditos reclamados pela Exequente foram reconhecidos e graduados como créditos comuns. A exequente, após rateio, recebeu a quantia de €8.769,35 por conta dos créditos reclamados."
XXVIII. Assim, dúvidas inexistem de que a Exequente reclamou, e assim pediu o pagamento, da verba que consta na quantia exequenda em sede de processo de Insolvência.
XXIX. Por outro lado, é nula a sentença quando "os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível; E/ou o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento."
XXX.Ora no caso, a aquisição foi livre de ónus e encargos, designadamente no que importa à imputação da divida ora reclamada pela Exequente.
7. A apelada respondeu ao recurso pugnando pela manutenção da decisão recorrida, apenas corrigindo o valor em dívida para 85.347,35€, invocando ter havido erro de aritmética.
OBJETO DO RECURSO
8. O objeto do recurso é delimitado pelo requerimento recursivo, podendo ser restringido, expressa ou tacitamente pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC). O tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista e é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC).
9. À luz do exposto, o objeto deste recurso consubstancia-se em analisar e decidir o seguinte:
- Nulidades decisórias;
- Outras questões suscitadas
- Erro de julgamento – Extinção do crédito da apelada por força da venda em processo de insolvência.
10. Na análise das questões objeto de recurso, todas as referências jurisprudenciais respeitam a acórdãos publicados em www.dgsi.pt/, exceto quando expressamente mencionada diversa publicação.
FUNDAMENTOS DE FACTO
11. Com interesse para a decisão importa considerar o que resulta descrito no relatório que antecede, a que acrescem os seguintes factos, conforme julgados pelo tribunal de primeira instância.
FACTOS JULGADOS PROVADOS PELO TRIBUNAL A QUO
1. A Exequente - AUGI - Administração Conjunta do Bairro Nossa, sita na Rua …, Sintra, é representado pelos seus Administradores em exercício, tendo sido eleitos em Assembleia Geral de Proprietários e Comproprietários na Administração conjunta realizada em 28 de outubro de 2018.
2. Em 08.03.2021, deu entrada ação executiva movida por ADMINISTRAÇÃO CONJUNTA DE AUGI NOSSA SENHORA DOS ENFERMOS, contra U - GESTÃO IMOBILIÁRIA, LDA., com vista à cobrança coerciva da quantia de €71.214,17.
3. A exequente invoca, como subjacentes títulos executivos, uma deliberação tomada pelos presentes em Assembleia Geral de Proprietários e Comproprietários realizada em 16 de maio de 2010, e documentada em pertinente ACTA com o nº 20, e outra deliberação tomada pelos presentes em nova Assembleia Geral de Proprietários e Comproprietários realizada em 12 de dezembro de 2010, e documentada em pertinente ACTA com o nº 21.
4. Da ata da Assembleia Geral de Proprietários e Comproprietários realizada em 16 de maio de 2010, consta, designadamente, que:
Aos dezasseis dias do mês de Maio do ano dois mil e dez, pelas dez horas, nos termos da lei nº 91/95, de 2 de Setembro (artigo 11), com as alterações introduzidas pelas Leis nºs 165/99, de 14 de Setembro, 64/2003 de 23 de Agosto e 10/2008 de 20 de Fevereiro, reuniu no Grupo Recreativo e Desportivo de … junto ao campo de bola), em …, em Pêro Pinheiro, a Assembleia-geral ordinária da Administração conjunta de proprietários e comproprietários dos prédios integrados na AUGI (área urbana de génese ilegal), denominada Bairro da Nossa Senhora dos Enfermos, em …, Freguesia de …, Concelho de Sintra;
(...)
Entrando na ordem de trabalhos:
a. Eleição de uma nova comissão de Fiscalização, convidando-se, desde já, os Senhores proprietários e com proprietários a apresentarem listas concorrentes nos termos da lei.
b. Apresentação, discussão e aprovação das contas respeitantes ao ano de 2008, que se encontram disponíveis para consulta na Sede da Junta de Freguesia de ….
c. Apresentação, discussão e aprovação das contas respeitantes ao ano de 2009, que se encontram disponíveis para consulta na Sede da Junta de Freguesia de ….
d. Apresentação, discussão e aprovação do orçamento para o ano de 2010, que se encontra disponível para consulta na Sede da Junta de Freguesia de ….
e. Apresentação da lista de devedores e deliberar sobre a forma de cobrança das quotizações em divida.
f. Fixação da quota de comparticipação para o ano de 2010.
g. Outros assuntos de interesse para o Bairro.
Por falta de quórum para se reunir às 09.00 horas, iniciaram-se os trabalhos pelas horas, conforme consta do aviso convocatório.
(...)
No que diz respeito ao ponto seis foi feita a proposta pelo senhor Presidente da Comissão de Administração, no sentido de os Senhores proprietários procederem ao pagamento de uma comparticipação no valor de dez por cento sobre o valor estimado que cabe a cada proprietário, até ao fim do ano de 2010, tendo sido aprovado por maioria, com três abstenções e todos os restantes a favor;
5. Da ata da Assembleia Geral de Proprietários e Comproprietários realizada em 12 de dezembro de 2010, consta, designadamente, que:
a. Aos doze dias do mês de Dezembro do ano dois mil e dez, pelas dez horas, nos termos da lei nº 91/95, de 2 de Setembro (artigo 11), com as alterações introduzidas pelas Leis nºs 165/99, de 14 de Setembro, 64/2003 de 23 de Agosto e 10/2008 de 20 de Fevereiro, reuniu no Grupo Recreativo e Desportivo de … junto ao campo de bola), em …, em Pêro Pinheiro, a Assembleia-geral ordinária da Administração conjunta de proprietários e comproprietários dos prédios integrados na AUGI ( área urbana de génese ilegal), denominada Bairro da Nossa Senhora dos Enfermos, em …, Freguesia …, Concelho de Sintra;
(...)
Entrando na ordem de trabalhos:
h. Apresentação, discussão e aprovação do orçamento para as obras de urbanização, que se encontram disponíveis para consulta na Sede da Junta de Freguesia ….
i. Apresentação, discussão e aprovação da Empresa que irá executar as obras de urbanização.
j. Apresentação, discussão e aprovação do restante pagamento faseado das comparticipações devidas a cada proprietário a iniciar em Janeiro de 2011
k. Outros assuntos de interesse para o Bairro.
Por falta de quórum para se reunir às 09.00 horas, iniciaram-se os trabalhos pelas 10 horas, conforme consta do aviso convocatório.
Aberta a Assembleia pelo Presidente da Comissão de Administração, passou-se de imediato aos pontos da ordem de trabalhos.
(...)
Quanto ao ponto três da ordem de trabalhos e após a prestação dos esclarecimentos ao caso atinentes, tendo sido aprovado que o pagamento restante correspondente a 40 % fosse feito em 5 prestações mensais, a começar no início das obras”
6. Os lotes 64 e 65, ambos integrantes do AUGI (área urbana de génese ilegal), denominada de Bairro da Nossa Senhora dos Enfermos, em …, Freguesia de …, Concelho de Sintra, mostram-se descritos [sob o nº 9791, do Livro nº 28] na 2a CRP de Sintra.
7. A aquisição, por “Compra em Processo de Insolvência”, dos referidos lotes está inscrita a favor da sociedade executada (AP.1108 de 2019/06/18).
8. Do Documento anexo à ata de 21 de maio de 2010, consta o seguinte quadro (na parte respeitante aos lotes em causa nos autos):
9. Por despacho liminar proferido a 16.03.2021 foi decidido “indeferir parcialmente o requerimento executivo apresentado (no que aos peticionados valores de € 1.500,00 e € 51,00 diz respeito), nos termos do disposto no artigo 726.º, n.º 2, alínea a) do Código de Processo Civil”.
10. Foi deliberado e registado na ata n.º 1, relativa à assembleia geral constitutiva da Administração Conjunta de Proprietários e Comproprietários dos prédios integrados na AUGI «Quinta de Nossa Senhora dos Enfermos» realizada em 13 de Dezembro de 1998, correspondente ao ponto 6. da ordem de trabalhos, "fixar uma quotização mensal a pagar por cada proprietário e comproprietário (proporcionalmente por cada lote) da que é titular; no valor de ESC; 5,000$00, com efeitos desde 19.01.97 e ESC: 7.500$0[,J com efeitos desde o dia 01.06.98" (ponto 3. do Requerimento Executivo).
11. Foi deliberado e registado na ata n.º 10, relativa à assembleia geral da Administração Conjunta de Proprietários e Comproprietários dos prédios integrados na AUGI «Bairro da Nossa Senhora dos Enfermos» realizada em 6 de Abril de 2002, correspondente ao ponto 4. da ordem de trabalhos, que a forma de pagamento das quotizações seria "por via posta! por meio de chegue, sendo posteriormente enviado o recibo comprovativo do pagamento" (ponto 4. do Requerimento Executivo).
12. Foi deliberado e registado na ata n.º 17, relativa à assembleia geral da Administração Conjunta de Proprietários e Comproprietários dos prédios integrados na AUGI «Bairro da Nossa Senhora dos Enfermos» realizada em 15 de Julho de 2007, correspondente ao ponto 2. da ordem de trabalhos, que os proprietários e comproprietários ficavam obrigados ao “pagamento de vinte por cento do valor previsível para a recuperação da AUGI. descontando os valores, entretanto iá pagos a título de comparticipações, em três prestações, nos meses de Agosto, Setembro e Outubro de 2007 e o remanescente, a partir de novembro de 2007 em setenta e duas prestações mensais e sucessivas até pagamento integra!" (ponto 5. do Requerimento Executivo).
13. Consta da ata n.º 20, referida sob os factos 3. e 4., no que se refere ao ponto 5. da ordem de trabalhos (Apresentação da lista de devedores e deliberar sobre a forma de cobrança das quotizações).
14. Os referidos lotes 64 e 65 - atualmente prédio urbano composto de pavilhão industrial e arrumo de material de rés-do-chão, primeiro e segundo andar e logradouro, denominado Bairro Nossa Senhora dos Enfermos, sito em …, concelho de Sintra, inscrito na matriz predial da freguesia da União de Freguesias de …, … e …sob o artigo … - foram adquiridos pela executada/opoente através de uma venda judicial, conforme escritura pública outorgada em 18 de Junho de 2019, no âmbito do processo de insolvência da sociedade SILMORMOVEL- INDUSTRIA DE MOBILIÁRIO LDA, NIPC …, anterior proprietária dos referidos lotes, a qual foi declarada por sentença datada de 06-06-2017 e publicada em 08-06-2017 como Insolvente por Douta Sentença proferida no PROCESSO N.º 10558/17.0T8SNT, processo que corre ainda termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste - Sintra Juízo de Comercio - J1
15. A referida venda foi realizada pelo valor de €190.000,00, livre de ónus ou encargos.
16. A exequente reclamou créditos no referido processo de insolvência - os mesmos créditos que ora reclama - no valor total de €81.423,84, correspondendo €63.476,51 a título de capital e €17.947,33 a título de juros calculados à taxa legal de 4% contados desde 16/05/2010 requerendo que os mesmos fossem verificados e a final graduados, na posição que lhe couber.
17. Tais créditos reclamados pela Exequente foram reconhecidos e graduados como créditos comuns.
18. A exequente, após rateio, recebeu a quantia de €8.769,35 por conta dos créditos reclamados.
19. A exequente remeteu à executada, que recebeu, a carta datada de 28.01.2021, com o seguinte teor:


OUTROS FACTOS

12. É relevante considerar ainda, ao abrigo do disposto no artigo 607.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, aplicável por força do artigo 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, que resulta dos autos, designadamente do teor do documento 8 junto com os embargos da ora apelante, o seguinte:
- Pela AP. 795 de 2015/08/06 mostra-se registada a operação de loteamento, com o seguinte Alvará de loteamento (n.º 12/2012): AUGI – BAIRRO NOSSA SENHORA DOS ENFERMOS, freguesia de ….
- Tal alvará de loteamento inclui os lotes 64 e 65.

CONHECIMENTO DO OBJETO DO RECURSO
Enquadramento legal           
13. O enquadramento legal relevante aplicar para a decisão deste caso é o seguinte:
Artigo 580.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil
1 - As exceções da litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa; se a causa se repete estando a anterior ainda em curso, há lugar à litispendência; se a repetição se verifica depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, há lugar à exceção do caso.
2 - Tanto a exceção da litispendência como a do caso julgado têm por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior.

Artigo 581.º, n.º 1, do Código de Processo Civil
1- Repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.
Artigo 615.º, do Código de Processo Civil
1 - É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.

Artigo 824 do Código Civil
1. A venda em execução transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida.
2. Os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com exceção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em elação a terceiros independentemente de registo.
3. Os direitos de terceiro que caducarem nos termos do número anterior transferem-se para o produto da venda dos respetivos bens.

Artigo 3º, nº 4 da Lei n.º 91/95, de 2/9 (que estabelece o regime de Reconversão das Áreas Urbanas de Génese Ilegal, adiante “Regime Augi”)
4 - São responsáveis pelos encargos com a operação de reconversão os titulares dos prédios abrangidos pela AUGI, sem prejuízo do número seguinte e do direito de regresso sobre queles de quem hajam adquirido”.

Artigo 245, nº 1 do CIRE
1 - A exoneração do devedor importa a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, sem exceção dos que não tenham sido reclamados e verificados, sendo aplicável o disposto no n.º 4 do artigo 217.
*
Artigo 527º, nº 1 do Código de Processo Civil
A decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito.

Nota prévia
14. Na resposta ao recurso, a apelada pede a correção de erro de cálculo da sentença.
15. Erros de cálculo são erros materiais – artigo 614.º, que, a verificarem-se, requerem como meio de reação necessário, a interposição do requerimento de retificação previsto no artigo 614.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil. E a oportunidade para a sua apresentação, forçosamente perante o tribunal autor da decisão, bem como para a retificação de tais erros materiais é a prevista no n.º 2 do artigo 614.º do Código de Processo Civil: antes da subida do recurso que tenha sido interposto da mesma decisão – necessariamente, por erro de procedimento (de diferente natureza) ou por erro de julgamento.
16. Pelo que não se tomará conhecimento da questão.

1. Nulidades decisórias
17. A apelante imputa à decisão os vícios de contradição entre os fundamentos e a decisão e de omissão de pronuncia.
18. Fá-lo, argumentando que a sentença é nula por errada, incompleta ou insuficiente fundamentação. Invoca que o tribunal admite que a exequente já foi, em sede de Insolvência, parcialmente ressarcida e que ali reclamou o crédito que agora reclama, não podendo voltar a fazê-lo neste processo. Além disso, que face à aquisição livre de ónus ou encargos feita pela apelante, não podia o tribunal condená-la a pagar qualquer quantia.
19. Não lhe assiste razão.
20. O artigo 615.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Civil, comina com nulidade a sentença (ou uma decisão – artigo 613.º, n.º 3, do Código de Processo Civil), quando os fundamentos estejam em contradição com a decisão. Trata-se de um vício formal, em sentido lato, traduzido em error in procedendo ou erro de atividade que afeta a validade da sentença, isto é, uma desconformidade formal entre o ato e a exigência legal para a sua produção.
21. Esta nulidade verifica-se sempre que o raciocínio lógico-dedutivo formulado pelo tribunal a quo não encontra o eco correlativo na decisão, que vem a ser diversa daquela que a fundamentação indicaria. Trata-se de um erro lógico-discursivo nos termos do qual o juiz elegeu determinada fundamentação e seguiu um determinado raciocínio, mas decide em colisão com tais pressupostos.
22. Não se confunde com o erro de julgamento, que se verifica quando o juiz decide mal, porque em sentido diverso do que os factos apurados indicariam ou contra lei que lhe imporia solução jurídica diferente. Conforme menciona o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5.2.2020, Rosário Morgado, ECLI:PT:STJ:2020:3294.11.2TBBCL.G1.S1, a nulidade prevista na al. c) do n.º 1 do artigo 615.º  sanciona o vício de contradição formal entre os fundamentos de facto ou de direito e o segmento decisório da sentença.
23. Não é evidentemente a situação do presente caso.
24. A decisão não apresenta qualquer ambiguidade ou ininteligibilidade. A sentença apresenta um raciocínio lógico entre as premissas e a conclusão e os fundamentos são coerentes com a decisão, não evidenciando erros de lógica no discurso.
25. A oposição entre os fundamentos e a decisão da sentença só releva como vício formal, para os efeitos da nulidade cominada na alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, quando se traduzir numa contradição nos seus próprios termos, num dizer e desdizer desprovido de qualquer nexo lógico positivo ou negativo, que não permita sequer ajuizar sobre o seu mérito.
26. Não é o que acontece nestes autos.
27. O argumento da apelante de que o erro de raciocínio radica no facto de ter sido reconhecido o ressarcimento parcial da exequente no processo de insolvência e, não obstante, a apelante dever ainda pagar parte da dívida não integra a apontada nulidade, por não traduzir qualquer desconformidade formal da decisão. Tal solução resulta da interpretação que o tribunal, de forma coerente e consistente, fez do regime legal aplicável. Se foi uma solução correta ou não, é questão a tratar em sede de erro de julgamento.
28. A omissão de pronúncia, também invocada, verifica-se quando o tribunal não resolve todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, de acordo com os ditames do artigo 608.º, do Código de Processo Civil.
29. A omissão de pronúncia cominada com nulidade circunscreve-se às questões/pretensões formuladas de que o tribunal tenha o dever de conhecer para a decisão da causa e de que não haja conhecido, realidade distinta da invocação de um facto ou argumento pela parte sobre os quais o tribunal não se tenha pronunciado, que não integram o conceito de questão a decidir.
30. O facto de o tribunal não ter traduzido na consequência pretendida pela apelante – exoneração total da dívida - a circunstância de que a aquisição do imóvel no processo de insolvência foi livre de ónus e encargos não significa que o tribunal deixou de se pronunciar sobre uma questão que deveria ter  analisado e decidido, mas tão só que a decidiu em sentido diverso do pretendido pela apelante. Inexiste, pois, a apontada nulidade.

2. Caso julgado
31. A apelante invoca exceção de caso julgado, argumentando que a mesma dívida está a ser reclamada neste processo e já foi objeto do processo de insolvência, ali igualmente reclamada pela ora apelada.
32. De acordo com o disposto no artigo 580º, nº 1, Código de Processo Civil, a exceção de caso julgado pressupõe a repetição de uma causa, visando evitar que o Tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior (n.º 2 da aludida norma legal).
33. Há repetição de uma causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir (artigo 581º, nº 1, CPC).
34. A identidade de pedidos é determinada pela pretensão do mesmo efeito jurídico, com a declaração/reconhecimento do mesmo direito subjetivo.
35. A identidade de causa de pedir corresponde à identidade dos factos jurídicos concretos de que emerge a pretensão formulada.
36. A identidade de sujeitos não tem, necessariamente, de reconduzir-se a uma identidade física antes se reportando a uma identidade jurídica no sentido de que os sujeitos, em ambas as ações em confronto, devem ser titulares dos mesmos direitos subjetivos (ou pretenderem ver tal titularidade reconhecida).
37. O confronto do processo de insolvência com o dos autos afasta o caso julgado. Não estamos perante as mesmas partes, desde logo, como se verá adiante, pela natureza ambulatória da dívida.
38. Pelo que, sem mais, improcede este fundamento de recurso.

3. Natureza propter rem e regime AUGI
39. A apelante não questiona o regime legal decorrente da Lei n.º 91/95, de 02 de Setembro (Regime AUGI), ou a natureza propter rem da obrigação em causa. Nem sequer que a dívida tenha sido estabelecida ao abrigo daquele regime ou que esteja vencida e devida à data da instauração da execução. É ainda incontroverso que a apelante era proprietária do imóvel à data da instauração da execução.
40. O reconhecimento desta titularidade afasta, desde logo, a questão de ilegitimidade substantiva invocada pela apelante.
41. Do que discorda a apelante é da conclusão do tribunal de primeira instância de que a dívida não se extinguiu, por força da venda dos bens em processo de insolvência, sendo essa a questão relevante a decidir quanto ao mérito.
42. Não lhe assiste razão, tendo julgado acertadamente o tribunal de primeira instância.

3.1. Obrigação propter rem
43. A questão principal é a de saber, como já referimos, se a obrigação propter rem se extinguiu neste caso, por força da venda em processo de insolvência.
44. É insofismável que a obrigação propter rem subsiste ligada à coisa enquanto não ocorrer uma causa de extinção.
45. Como se diz no Ac. TRP, de 8/9/2020, Pr. 25384/18.0T8PRT-A.P1, nestas obrigações, o sujeito passivo – o devedor – “[é] determinado, não pessoalmente (intuitu personae), mas realmente, isto é, determinado por ser titular de um determinado direito real sobre a coisa, nascendo com a violação e subsistindo, ligada à coisa, enquanto não se verificar uma causa de extinção” –
46. Pinto Duarte, apud referido Ac. TRP, refere que “[m]uitos direitos reais implicam deveres. São os casos, por exemplo, do dever dos comproprietários de contribuírem para as despesas necessárias à conservação ou fruição da coisa comum (art.º 1411, n.º 1), do dever dos condóminos de contribuírem para as despesas necessárias à conservação e à fruição das partes comuns (art.º 1424, n.º 1)[5] e do dever dos usufrutuários de efetuarem as reparações ordinárias e de suportarem as despesas de administração (art.º 1472, n.º 1). Alguns destes deveres são verdadeiras relações jurídicas obrigacionais. Na medida em que as mesmas façam parte do estatuto de um direito real, são chamadas obrigações reais ou obrigações propter rem. As obrigações reais não são direitos reais, mas sim, como dissemos, verdadeiras relações obrigacionais” (ênfase aditada).
47. Henrique Mesquita, em Obrigações Reais e Ónus Reais, Almedina, p. 101 e 102, considera que obrigação propter rem é um vínculo jurídico por virtude do qual uma pessoa, na qualidade de titular de um direito real, fica adstrita para com outra à realização de uma prestação. Estruturalmente é uma verdadeira obrigação.
48. Mas, diz o mesmo autor, pese embora uma verdadeira relação obrigacional em sentido técnico, a fonte em que se estabelece – direito real – confere à obrigação propter rem uma natureza particular que determina a aplicação de um regime próprio com aquele relacionada: e para tal regime é irrelevante se a obrigação deriva diretamente da lei, como é indiscutivelmente a situação deste caso, ou não – cf. obra citada, p. 300.
49. Em conclusão, a obrigação propter rem é uma obrigação à qual se aplica o regime das obrigações em geral. E está sujeita ainda a regime próprio, decorrente da sua natureza particular. O que importa apurar, com relevo para o caso dos autos, é se tal obrigação se extinguiu face à aquisição dos bens pela apelante no âmbito de venda realizada em processo de insolvência.

3.1.1. Extinção das obrigações e obrigações propter rem
50. As obrigações extinguem-se com fundamento legal ou por acordo das partes.
51. São causas de extinção das obrigações previstas no Código Civil, além do cumprimento e dele sucedâneas, a dação; a consignação em depósito; a compensação; a novação; a remissão e a confusão – artigos 837.º a 873.º, do Código Civil.
52. Existem ainda causas não sucedâneas e diretamente dependentes da vontade das partes (unilateral ou consensual), como a revogação, resolução, denúncia, ou a caducidade (criada por acordo das partes- artigo 330.º, do Código Civil).
53. A apelante invoca que a dívida se extinguiu por força do processo de insolvência.
54. É um facto que, fora dos casos que o Código Civil prevê, a extinção das obrigações opera ainda de forma expressa, designadamente, no âmbito do processo de insolvência. Porém, tal acontece apenas quanto a devedores particulares, decorridos que sejam 3 anos de cessão de rendimento, a contar do encerramento do processo de insolvência – artigos 239 e 245.º, do CIRE.
55. No caso das pessoas coletivas insolventes, inexiste qualquer norma que determine a extinção das obrigações.
56. Aliás, à luz do regime geral do processo de insolvência, encerrado o mesmo, “os credores da insolvência poderão exercer os seus direitos contra o devedor sem outras restrições que não as constantes do eventual plano de insolvência e plano de pagamentos e do n.º 1 do artigo 242.º, constituindo para o efeito título executivo a sentença homologatória do plano de pagamentos, bem como a sentença de verificação de créditos ou a decisão proferida em ação de verificação ulterior, em conjugação, se for o caso, com a sentença homologatória do plano de insolvência”; e “os credores da massa podem reclamar do devedor os seus direitos não satisfeitos” (artigo 233.º, n.º 1, als. c) e d), do CIRE).
57. O que significa que as obrigações não se extinguem por efeito da insolvência do devedor.
58. Nem mesmo se o insolvente for uma sociedade comercial, nas situações em que, após o rateio, é extinta, nos termos do artigo 234.º, n.º 3, do CIRE.
59. Nestes casos – de extinção da insolvente -, a dívida deixa apenas de poder ser exigida/cobrada, por desaparecimento do devedor, mas inexiste fundamento legal para a sua extinção, ainda que, como na situação em apreço, tal se traduza na circunstância da ora apelante não poder exercer o direito de regresso.
60. Em conclusão, à luz do regime da extinção das obrigações não encontramos solução que fundamente, como pretende a apelante, a extinção desta dívida por força do processo de insolvência.
3.1.2. Extinção das obrigações propter rem – outro fundamento – extinção por força da venda em processo de insolvência.
61. A apelante argumenta e defende ainda a aplicação do regime do artigo 824.º, n.º 2, do Código Civil, neste caso, por força da venda ocorrida em processo de insolvência.
62. A venda dos bens que integram a massa insolvente segue o regime da venda executiva e integra-se na fase da liquidação do processo de insolvência, prevista nos artigos 156.º e ss, do Cire, que visa a conversão dos bens e direitos que integram o património do devedor insolvente em quantia pecuniária com a qual deverão ser satisfeitos os direitos dos credores de acordo com a priorização reconhecida por decisão judicial. Não sendo possível o pagamento integral, por rateio.
63. Na venda executiva, além dos efeitos obrigacionais e do efeito translativo do bem (artigo 824.º, n.º 1, do Código Civil), produz-se ainda um efeito extintivo, um efeito registral, um efeito repristinatório e um efeito sub-rogatório.
64. O artigo 824.º, n.º 2, do Código Civil refere-se à extinção dos direitos de terceiros sobre os bens vendidos. Este efeito representa a principal diferença entre a venda executiva e a venda negocial, permitindo, por um lado, que o executado rentabilize a venda do bem, diminuindo o sacrifício de património necessário para a realização do pagamento e, por outro, que os credores reclamantes obtenham mais facilmente a satisfação dos seus créditos.
65.A apelante defende que o artigo 824.º, n.º 2, suporta a extinção da obrigação de que a apelada se diz credora, argumentando tratar-se aquela obrigação de um ónus real, designadamente um privilégio creditório (invoca como fundamento para tal, os artigos 3.º, n.º 5 e 27.º do regime AUGI), e que só não foi considerado assim no processo de insolvência, por erro da apelada na reclamação de créditos que ali apresentou.
66. Não lhe assiste razão. Os privilégios creditórios apenas existem por criação de lei (artigo 733.º, do Código Civil) e os invocados preceitos do Regime AUGI não estabelecem qualquer privilégio creditório (respeitam, o artigo 3.º, n.º 5, à responsabilidade solidária de promitentes compradores; e o artigo 27.º à possibilidade de constituição de hipoteca legal para garantia de execução das obras de urbanização).
67. E nem se trata de um qualquer outro ónus real. Segundo Henrique Mesquita na obra citada p. 417, 418, e 421, no ónus real, o bem responde sempre pelo pagamento das prestações em dívida. Tratando-se de relações que se traduzem num gravame especial ou num ónus sobre as coisas, o titular ativo de um ónus real dispõe, em caso de execução, relativamente aos demais credores, de um direito de preferência sobre a coisa onerada.
68. Essa natureza é diversa da das obrigações propter rem, em que o direito de preferência sobre o bem não existe, sendo que a dívida é que se transmite por força da transmissão da coisa.
69. Nessa medida, inexiste fundamento para integrar na letra do artigo 824.º, n.º 2, do Código Civil as obrigações propter rem, por não assumirem a natureza de ónus.
70.Resta saber se estamos perante uma lacuna que requeira solução, designadamente, por aplicação analógica do artigo 824.º, n.º 2, do Código Civil.
71. Em concreto, a questão de saber se este artigo se aplica a direitos foi já discutida a propósito do arrendamento, quer na venda em processo de execução, quer em sede de insolvência. No caso da insolvência, a questão mostra-se resolvida pelo artigo 109.º, n.º 3, do CIRE e AUJ n.º 2/2021, de 5/7/2021, que clarificou que a venda, em sede de processo de insolvência, de imóvel hipotecado, com arrendamento celebrado subsequentemente à hipoteca, não faz caducar os direitos do locatário de harmonia com o preceituado no artigo 109.º, n.º 3 do CIRE, conjugado com o artigo 1057.º do CCivil, sendo inaplicável o disposto no n.º 2 do artigo 824.º do CCivil.
72. Já no caso da venda executiva, as posições e soluções são divergentes, divididas entre as que preconizam ausência de lacuna, à luz do regime especial do artigo 1057.º, do Código Civil, com a consequência de não se extinguir o arrendamento, e as que extinguem o arrendamento por efeito da venda executiva, por aplicação analógica do artigo 824.º, n.º 2 do Código Civil, por verem uma lacuna no regime legal.
73. Justifica-se, neste caso, equacionar se existe lacuna, à luz da circunstância concreta que de novo convocamos, de que a apelante não poderá cobrar a sua dívida pela via do direito de regresso, atenta a extinção da devedora insolvente.
74. Isto é, importa pois averiguar se podemos concluir pela existência de uma falha de disciplina normativa para regular esta situação concreta – aquisição de bem em venda judicial sem possibilidade de direito de regresso contra o anterior proprietário - que convoque a aplicação analógica do artigo 824.º, n.º 2, do Código Civil ao direito da exequente e, dessa forma, este seja considerado extinto por força da venda judicial.
75. Antecipamos que a resposta é negativa.
76. A natureza particular do regime da obrigação propter rem, particularmente na vertente ambulatória que a caracteriza, continua a impor-se como regime especial que afasta a convocação de lacuna, mesmo no quadro concreto de inaplicabilidade da segunda parte do artigo 3.º, n.º 4 do Regime AUGI - a impossibilidade de exercício de direito de regresso.
77. A propósito da natureza ambulatória das obrigações propter rem, Henrique Mesquita, obra citada, p. 316, refere que “[e]sta característica tem sido enunciada com base em razões de índole meramente formal, sem averiguar se os interesses subjacentes à obrigação propter rem recebem, por via deste entendimento, o tratamento mais adequado”.
78. O autor critica os modelos que a preconizam sem limites, defendendo, através de exemplos que enuncia, que no caso das obrigações de dare (como a dos autos) se impõe uma análise casuísta das circunstâncias, devendo equacionar-se a natureza ambulatória particularmente à luz do conhecimento e benefício para o alienante ou adquirente, conforme o caso.
79. Se a natureza ambulatória for um efeito jurídico com o qual o adquirente deveria razoavelmente contar, ou se será ele o beneficiado pela contrapartida decorrente do cumprimento da obrigação em causa, deverá ser reconhecida. Não nos outros casos.
80. Neste caso, a natureza ambulatória não só resulta diretamente da lei, mas é ainda um efeito jurídico com o qual o adquirente deveria razoavelmente contar.
81. Como se aduz no Ac. TRL, de 21/1/2020, Pr. 32/18.2T8LRS-B.L1-7, “no caso das AUGI, as despesas com a regularização da situação dos prédios nelas abrangidos beneficiam apenas e só os proprietários ou comproprietários “atuais”, dado que até que se alcance tal regularização, tais despesas em nada contribuem para o gozo dos mesmos prédios por parte dos anteriores proprietários ou comproprietários. Por outro lado, tais despesas configuram encargos que os adquirentes não podem ignorar, porque decorrem da situação de irregularidade da AUGI na qual se integra o prédio ou fração indivisa que adquirem, cabendo-lhes, por isso precaverem-se no sentido de previamente à aquisição, apurarem se existem contribuições em dívida”.
82. E, na verdade, no presente caso, tratando-se de um bem com uma natureza especial e devidamente publicitada (neste caso concreto, a AUGI estava registada desde 2015 por força da operação de loteamento), não pode deixar de ser conhecida da adquirente – ora apelante - em termos objetivos. Além disso, os encargos associados ao regime AUGI visam a operação de reconversão dos prédios abrangidos pelo regime – Artigo 3.º do Regime legal, com o efeito útil de beneficiar a apelante, enquanto titular do bem à data da reconversão. Finalmente, ao adquirir o imóvel, a apelante não podia deixar de considerar que a probabilidade de existência de dívidas pretéritas era mais que certa, considerando que a aquisição ocorreu no âmbito de processo de insolvência.
83. Não deixamos de notar que a apelante argumenta, no seu recurso, que resulta da prova testemunhal que o preço de aquisição dos lotes na venda judicial já teve em conta a inexistência de tais comparticipações. Porém, nada se demonstrou a esse respeito, nem a apelante impugnou a matéria de facto. Não lhe assiste, nessa medida, razão, sendo tal declaração, aliás, confirmativa de que sabia exatamente que bens adquiria.
84. A apelante tinha elementos que lhe revelassem a existência do vínculo obrigacional. Não é por isso injusto, responsabilizá-la pela dívida, mesmo verificada a impossibilidade prática de direito de regresso.
85. Desta forma, não vemos fundamento para considerar que a este caso não continue a dever aplicar-se a disciplina do artigo 3.º, n.º 4, do Regime AUGI, ainda que a apelante não possa exercer o direito de regresso. E a aplicação do regime especial a esta situação afasta a lacuna, pelo que não há que recorrer analogicamente à aplicação do artigo 824.º, n.º 2, do Código Civil.
86. Em conclusão, o recurso deve ser improcedente.
4. Custas
87. Nos termos do artigo 527.º, do Código de Processo Civil, a apelante deverá suportar as custas (na modalidade de custas de parte), porque vencida, face à decisão proferida na presente apelação.
DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízas deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o presente recurso, confirmando a decisão impugnada.
Custas pela apelante.
O presente acórdão mostra-se assinado e certificado eletronicamente.

Lisboa, 3 de dezembro de 2024
Rute Lopes                          
Mónica Pavão
Alexandra Rocha