I- É possível a interposição de recurso de revista normal quando está em causa a não consideração de um facto assente por acordo;
II. Se essa alteração implicar uma reapreciação da questão de direito, deve o Supremo reenviar o processo para a Relação para o proferimento de uma nova decisão de direito que tenha em consideração o novo facto.
Acordam os Juízes da 1ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça:
a) Reconhecer que houve destruição parcial do locado, e não destruição total, e que a reabilitação do prédio é viável, conforme informação camarária;
b) Reconhecer que a Autora, nesta data, pode utilizar plenamente o rés-do-chão da fração “B” para snack-bar, conforme projeto originário;
c) Reconhecer que o contrato de arrendamento celebrado com a Autora em 01.01.2017 mantém-se válido e eficaz, estando suspenso na sua execução, desde 01.07.2018, por impossibilidade temporária de fruição do locado;
d) Proceder à realização das obras de recuperação do prédio identificado no art.º 3.º da p.i., deixando-o em boas condições de utilização;
e) Proceder à reabilitação da fracção autónoma designada pela letra “B”, deixando-a plenamente apta ao exercício da atividade desenvolvida pela Autora;
f) Fixar prazo razoável e suficiente para a conclusão das obras no prédio;
g) Apresentar orçamento para a recuperação do imóvel, atenta a possibilidade da Autora, e caso o montante pago pelo seguro não seja suficiente para a realização das obras, assumir o valor excedente, a ser deduzido na renda mensal, até ao final do contrato de arrendamento;
h) Determinar que os Réus cumpram integralmente o contrato de arrendamento celebrado com a Autora em 01.01.2017, faltando 90 meses para o seu termo;
i) Caso os Réus não queiram proceder à reabilitação do prédio, quando esta é viável e exequível, devem ser condenados a indemnizar a Autora, em valor correspondente às rendas referentes aos 90 meses ainda por cumprir do contrato de arrendamento em causa, ou seja, a quantia de € 117.000,00, acrescida de juros vincendos calculados à taxa legal, desde a citação e até efetivo e integral pagamento.
Alicerçou os seus pedidos alegando, resumidamente:
Em 1/01/2017, celebrou com os Réus (senhorios) um contrato de arrendamento não habitacional, por um prazo de nove anos, visando a exploração de bar com espetáculos de música ao vivo, snack-bar, café e restaurante; no dia 1/7/2018, ocorreu um incêndio que atingiu a parte superior do prédio arrendado; a Camara Municipal de... (Câmara Municipal...), efetuou uma vistoria ao imóvel, e concluiu pela necessidade de remoção dos materiais que ruíram, que o local não reúne as condições mínimas, tendo sido vedado e interdita a sua utilização, com subsequente despacho no sentido de interdição da edificação dos réus (com exceção de uma fração E, não atingida) e a realização de obras de escoramento das fachadas; a posição tomada pela Câmara Municipal... teve como único propósito a proteção do edifício durante a realização do evento anual V… M… e a prevenção dos munícipes e visitantes; nunca houve verdadeira ameaça de derrocada do prédio, o qual ainda hoje continua estável, pelo que a posse administrativa do prédio por parte da referida Câmara Municipal... terminou.
Os Réus continuaram a receber rendas de outras frações, pelo que a Autora tinha expetativa que eles iniciassem as obras de restauro do prédio. A Autora enviou carta registada aos Réus, em 17-09-2018, para os mesmos procederem à realização das obras. A Ré mulher respondeu que no seu entender ocorreu a destruição total do locado, com caducidade do contrato de arrendamento e que não dispunha de dinheiro para proceder à reconstrução do locado. A Autora respondeu sustentando a viabilidade de restauro do prédio e concedendo o prazo de 3 meses para a realização das obras de restauro, mas sem que os réus tenham respondido à mesma. Em 10/12/2018, a pedido da Ré mulher, a Autora entregou-lhe uma via das chaves do locado para que aquela iniciasse a realização de obras no prédio. A Ré continuou a sustentar a caducidade do contrato de arrendamento.
Com a exploração do locado, a Autora obtinha ganhos de cerca de 4.000,00 € mensais, sem que os réus, pretendendo a respetiva indemnização.
Em contestação, os Réus impugnaram parcialmente a factualidade alegada. Alegaram que a fração B, arrendada à Autora, era a própria cobertura do edifício. Após o incêndio, tiveram diversas reuniões com a Câmara Municipal... tendo em vista o licenciamento de obras, que apenas em 13 de Maio de 2019 foram aprovadas para estabilidade e contenção das fachadas, e reconstrução da cobertura, que foram executadas; porém, na sequência de vistoria, seriam necessárias mais obras, que os réus, por falta de meios económicos não fizeram.
Mais alegaram que as obras (ainda não executadas) exigidas pela Câmara Municipal... relacionam-se apenas com a reabilitação da linha arquitetónica ao nível da cobertura, pelo que a fração arrendada apenas necessita de obras de limpeza, pintura de paredes e pavimento, e obras de reparação da instalação elétrica e canalizações, que serão da responsabilidade da Autora.
Por fim, deduziram incidente de intervenção acessória provocada da proprietária do prédio contíguo, CC.
Admitido o incidente, veio o Interveniente CC arguir a exceção de litispendência, referente à ação n.º 1623/20.7..., com fundamento em que, em ambos os casos, se discute idêntica pretensão.
No despacho saneador julgou-se improcedente a exceção da litispendência, identificou-se o objeto do litígio e enunciaram-se os temas da prova.
Foi ordenada a apensação da ação n.º 937/19.3...-B, instaurada pelos aqui Réus contra a aqui Autora, na qual aqueles pediam:
A resolução do contrato de arrendamento celebrado entre os Autores e a Ré;
Seja a Ré (aqui Autora) condenada a pagar aos Autores (aqui Réus) as rendas vincendas a partir desde a data da propositura da ação até entrega da fração livre de pessoas e bens.
A Ré (aqui Autora) sustentou a improcedência dessa ação e invocou a caducidade do arrendamento.
Os Autores (aqui Réus) responderam à excepção.
Foi determinado o alargamento do objecto do litígio.
Realizada audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença, onde se decidiu:
“Quanto à acção principal:
Julga-se parcialmente procedente a ação principal, instaurada por “Suporte Curioso, Unipessoal, Lda.” contra AA e marido, BB, e, em consequência:
1. Condenam-se os Réus a reconhecer que houve destruição parcial, e não destruição total, e que a reabilitação do prédio é viável;
2. Julga-se extinto o pedido de realização de obras de reabilitação do edifício onde se integra a fração locada, por inutilidade superveniente da lide;
3. Condenam-se os Réus a realizar as obras descritas na alínea AAA) da matéria provada, no prazo de 3 (três) meses;
4. Determina-se a suspensão da obrigação do pagamento das rendas pela Autora, desde o incêndio e até à conclusão das obras referidas em 3.;
5. Absolvem-se os Réus dos demais peticionado.
Quanto ao processo apenso (apenso B):
Julga-se totalmente improcedente a acção apensa (apenso B), instaurada por AA e marido, BB, contra “Suporte Curioso, Unipessoal, Lda.”, e, em consequência, absolve-se a Ré do peticionado.”
Inconformados com tal decisão, dela apelaram os Réus, que obtiveram da Relação a seguinte decisão:
“Pelo que fica exposto, no parcial provimento do recurso, acorda-se nesta secção cível da Relação do Porto em revogar a sentença recorrida na parte atinente às obras a realizar pelos Réus [ponto A) 3.] do respetivo dispositivo, que agora se decide serem apenas as relativas ao 1º piso do locado, a saber: Tetos - fornecimento e assentamento de teto falso em soalho; Pavimentos - Remoção do piso cerâmico existente e transporte de entulhos e a vazadouro certificado, incluindo fornecimento e assentamento de novo cerâmico; Paredes -Lavagem de paredes, emassamento e pintura; Caixilharias (portas e janelas) - Recuperação das portas e janelas existentes; Instalação elétrica - Refazer toda a instalação elétrica da fração; Casas de banho - fornecimento e assentamento de louças sanitárias, torneiras e todos os acessórios necessários a um bom acabamento.»
Em tudo o mais se mantém o decidido em 1ª instância.
Custas do recurso a cargo dos Réus, face ao decaimento e à ausência de contra-alegações, na proporção de 1/3.”
Não se conformou a Ré AA que veio interpor recurso de revista, formulando as seguintes conclusões:
“1. Quando haja ofensa de uma disposição expressa que fixe a força de determinado meio de prova, o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa pode ser objeto de recurso de revista
2. A confissão judicial escrita tem força probatória plena contra o confitente.
3. Confessando a arrendatária, confissão que os Recorrentes aceitaram, que não tendo o rés-do-chão da fracção sofrido qualquer dano por consequência do incêndio e que pode continuar a utilizar o mesmo na exploração de um snack-bar, como sempre vinha fazendo, este facto, com interesse relevante para a decisão de direito ,terá de ser dado como provado.
4. Ao indeferir a pretensão dos Recorrentes no sentido de verem aquele facto incluído no elenco dos factos provados, o acórdão recorrido, violando o disposto no artigo 358º n° % do C.Civil, comete erro na apreciação da prova.
5. Deve ser levado ao elenco dos factos provados o que consta da alínea b) dos factos não provados, ou seja: "não obstante o incêndio, a Recorrida pode, no entanto, utilizar o piso térreo para snack bar, como sempre fez"
6. A não realização de obras no locado, só por si, não legitima que o locatário deixe de pagar sob a invocação da exceção de não cumprimento.
De todo o modo;
7. No momento em que a Recorrida deixou de pagar a renda, os Recorrentes não estavam sequer numa situação de incumprimento;
8. Mais ainda quando continuava na posse da fracção arrendada, utilizando, ou podendo utilizar, uma parte da mesma na exploração de um snack-bar;
9. Não sendo a privação do arrendado devida a causa imputável aos Recorrentes a Recorrida teria apenas o direito, nos termos do disposto no artigo 10402 do C.Civil, a uma redução da renda proporcional ao tempo da privação ou diminuição e à extensão desta.
10. Excede os limites impostos pela boa fé excecionar a Recorrida o pagamento do valor total da renda quando continua na posse da fracção e a utilizar o rés-do-chão da mesma na exploração de um snack-bar,
11. A Recorrida sem causa legítima incumpriu o dever de pagara renda.
12. A falta de pagamento da renda constitui fundamento de resolução do contrato.
13. A matéria de facto constante da alínea AAA), na parte em que excede o que já constava da alínea N) foi fixada com violação do princípio do contraditório.
14. Pelo que, nessa parte a decisão quanto à alínea AAA) dos factos provados deve ser anulada.
15. Em matéria de obras em prédios arrendados, a regara geral é caber ao locador a responsabilidade pela execução de todas a sobras de conservação ordinárias ou extraordinárias, (artigo 10742 do C.Civil)
16. No que concerne aos arrendamentos para fins não habitacionais, nada sendo estipulado pelas partes, cabe ao senhorio executar as obras de conservação, considerando-se o arrendatário autorizado a realizar as obras exigidas por lei ou requeridas pelo contrato. (artigo 11115 do C.Civil)
17. É incontornável que, ao subscreverem a cláusula 12^ do contrato, as partes quiseram repartir a responsabilidade pela execução das obras no arrendado.
18. Estando em causa a reparação dos danos causados por um incêndio cuja causa não é imputável aos Recorrentes, numa interpretação atida ao teor literal da cláusula, a mesma seria a cargo da Recorrida.
19. Contudo, nunca foi vontade real dos Recorrentes que as obras de reparação dos danos causados pelo incêndio nas partes comuns do edifício ficassem também a cargo da Recorrida, na permilagem da fracção.
20. Sendo incontroverso que as partes quiseram repartir a responsabilidade pela obras, constando da cláusula que a Recorrida não tem direito a qualquer indemnização pela execução pela execução das obras que lhe compete realizar, o sentido que um declaratário normal posto perante a cláusula retira, é que as obras a cargo da Recorrida terão de ser de entre as que, nos termos da lei, conferem ao arrendatário o direito de ser compensado pelo seu custo.
21. Como também, de entre essas, terão de ser aquelas a cargo dos Recorrentes.
22. E tais obras constam artigos 1074º e 1036º do C. Civil, e artigo 229-A do Dec.-Lei nº DL n.º 157/2006, de 08 de Agosto que institui o regime jurídico das obras em prédios arrendados.
23. Persistindo a dúvida sobre quais as obras que competem a uma e a outra parte, ela terá de ser resolvida segundo o critério estabelecido no artigo 237º do C.Civil: vale o sentido que conduzir ao maior equilíbrio das prestações.
24. O sentido que melhor conduz ao equilíbrio das prestações será o que sempre foi defendido pelos Recorrentes, ou seja, a seu cargo estarão as obras nas partes comuns do edifício, na permilagem da fracção, e a cargo da Recorrida as obras de reparação, manutenção e limpeza nas partes próprias da fracção.
25. Esta solução que é adoptada pela generalidade dos locadores e locatária na generalidade dos contratos de arrendamento para fins não habitacionais;
26. Foi violado o disposto nos artigos 3585, 4282, 10222 e 10402 do C.Civil e artigo 32 do C. P.Civil.
Termos por que ao presente recurso deve ser dado provimento, assim se fazendo JUSTIÇA!”
Não houve contra-alegações.
Cumpre decidir.
A Relação considerou provados os seguintes factos:
“A) A autora é uma sociedade comercial constituída em 29 de Dezembro de 2016 que tem como objeto social a exploração de bar com espetáculos e música ao vivo; snack-bar; café; restaurante; criação, participação em eventos ou espetáculos de animação de rua;
B) Encontra-se inscrito a favor dos réus, na matriz predial urbana da União das freguesias da ... sob o artigo ...09º (anterior artigo ...63º da extinta freguesia da ...) e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ...14 – ..., o prédio urbano denominado ..., sito no Largo ..., em ..., constituído em regime de propriedade horizontal, composto por cinco frações autónomas (A, B, C, D e E);
C) Por contrato de arrendamento não habitacional com prazo certo celebrado em 1 de Janeiro de 2017, pelo prazo de nove anos, com início em 1 de Janeiro de 2017 e termo em 31 de Dezembro de 2025, a autora tomou de arrendamento aos réus, a fração autónoma designada pela letra “B”, sita no prédio identificado em B), destinada a comércio, “correspondente ao 1º andar e águas furtadas, com entrada pelo nº ... do Largo ...”, em ..., conforme doc. 1 junto com a petição, cujo teor se considera reproduzido;
D) De acordo com a respetiva caderneta predial urbana e descrição predial, a fração “B” corresponde a comércio, sendo composta por rés-do-chão e 1º andar, destinado a café/bar, com entrada pelo nº ... da Praça ..., conforme doc. 2 e 3 juntos com a petição, cujo teor se considera reproduzido;
E) O locado identificado em C) e D) foi entregue à autora pelos réus, em 1 de Janeiro de 2017, com a referida composição de rés-do-chão e 1º andar, em bom estado de conservação não padecendo de qualquer vício que impedisse ou dificultasse o exercício da atividade para que se destinava, tendo a autora a utilizado em exclusivo;
F) O contrato referido em C) foi celebrado mediante o pagamento da renda anual de 15.600,00€, dividida em duodécimos de 1.300,00€ cada, as quais foram atempadas e integralmente pagas pela autora aos réus entre Janeiro de 2017 e Junho de 2018 (18 meses), no valor global de 23.400,00€, conforme respetivos recibos de renda, juntos sob doc. 4 a 21 com a petição, cujo teor se considera reproduzido;
G) No dia 1 de Julho de 2018, ocorreu um incêndio, que atingiu a parte superior do prédio identificado em B), tendo danificado as águas furtadas e o telhado (assente em travejamento de madeira), afetando parcialmente a fração B, arrendada à autora;
H) Na sequência do incêndio, porque o prédio em causa está situado no Largo ..., no centro da cidade de ..., onde decorre o evento “V… M…”, que teria início em 1 de Agosto de 2018, foi realizada uma vistoria ao imóvel pela Câmara Municipal de ... em 02.07.2018, tendo sido elaborado o auto de vistoria nº ...54/2018/INT, do qual consta que “o incêndio supra referido destruiu o interior dos pisos superiores das duas edificações, encontrando-se as mesmas em elevado estado de degradação” e “as paredes exteriores que confrontam com a via pública, aparentemente, não apresentam risco de derrocada”, concluindo pela necessidade de remover os materiais que ruíram, bem como os materiais danificados, concluindo que “atualmente, a edificação não reúne as mínimas condições para a sua utilização, pelo que o seu acesso deverá ser totalmente vedado e interditada a sua utilização” (doc. 22 junto com a petição, cujo teor se considera reproduzido);
I) Com base no auto de vistoria referido em H), a Câmara Municipal... determinou que a edificação dos réus fosse vedada e interditada a sua utilização, à exceção da fração autónoma designada pela letra “E” (nº de polícia 19), a qual não sofreu danos provocados pelo fogo, mas apenas infiltrações de água resultantes do combate ao incêndio;
J) A Câmara Municipal... realizou nova vistoria em 26-07-2018, antes do início da “V… M…” (01-08-2018), concluindo pelo agravamento das condições de segurança e instabilidade da fachada confinante com a via pública, entendendo haver “risco de derrocada a qualquer momento” e mantendo a interdição da utilização das edificações;
K) Na sequência do referido em J), foi emitido um parecer jurídico, sobre o qual recaiu despacho da Câmara Municipal..., datado de 27-07-2018, conforme doc. 24 junto com a petição, cujo teor se considera reproduzido, no qual foi, designadamente determinado: (i) a execução de obras de escoramento das fachadas, preservando as mesmas; (ii) a posse administrativa dos imóveis para 28-07-2018, a qual se manteria até à conclusão dos trabalhos; (iii) a aplicação da medida cautelar de interdição da utilização dos edifícios, que se manteria até que se mostrasse segura a utilização dos edifícios, mantendo-se a interdição da edificação dos réus, à exceção da fração autónoma E;
L) Em virtude do referido em G) a K), a autora deixou de ter local para exercer a sua atividade, estando inativa desde 1 de Julho de 2018;
M) O locado (fração B), por força do incêndio, foi atingido ao nível do telhado, composto por estrutura metálica coberta com telha cerâmica, que ruiu, bem como ao nível das águas-furtadas, que ficaram destruídas;
N) Ao nível do 1.º piso, espaço destinado à exploração do bar, mantém-se as quatro paredes e o pavimento, que necessitam apenas de obras de limpeza, pintura de paredes e restauro/limpeza do pavimento em cerâmica, à exceção da parede meeira com o edifício contíguo que necessita de intervenção e a reparação da instalação elétrica e canalizações, mantendo-se intactos os dois lavabos existentes no 1º piso (torneiras, louça sanitária, revestimentos, portas de vidro);
O) Ao nível da entrada, no rés-do-chão - composta por hall, lavabo dos funcionários e espaço amplo -, que a autora destinava a snack-bar e vestíbulo -, não foi atingido pelo incêndio, nem pela infiltração de águas utilizadas no combate ao mesmo;
P) A autora remeteu aos réus, em 17 de Setembro de 2018, rececionada no dia 20 desse mês, carta registada cuja cópia junta sob doc. 25 com a petição se considera reproduzida, da qual consta a interpelação para a necessidade da realização das obras de restauro do locado e para a obrigação do seguro contra incêndios;
Q) Em resposta, a ré mulher remeteu à autora a carta registada datada de 25-09-2018, cuja cópia junta sob doc. 27 com a petição se considera reproduzida, comunicando:
(i) ter ocorrido a destruição total do locado, com caducidade do contrato de arrendamento; (ii) que do capital seguro (150.000,00€), 20.000,00€ foram utilizados para a remoção dos despojos, e o remanescente iria ser aplicado nas obras de cobertura e estruturas de segurança do edifício administrativamente impostas; (iii) não dispor de dinheiro para proceder à reconstrução do locado;
R) A autora remeteu aos réus, em 04-10-2018, rececionada em 09-10-2018, carta registada cuja cópia junta sob doc. 28 com a petição se considera reproduzida, na qual, em síntese, comunicou que (i) tinha havido a destruição parcial e não total do locado; (ii) a viabilidade de restauro do prédio com o capital seguro e a validade do contrato de arrendamento celebrado em 01-01-2017; (iii) concedendo o prazo de três meses para a realização das obras de restauro;
S) Em 10 de Dezembro de 2018, a pedido da ré mulher, a autora entregou-lhe uma via das chaves do locado, para que aquela iniciasse a realização das obras no prédio, conforme declaração subscrita pela ré junta sob doc. 30 com a petição, cujo teor se considera reproduzido;
T) Aquando do referido em S), a ré mulher declarou que iria realizar algumas obras no prédio, designadamente a reconstrução da cobertura;
U) Em 21 de Dezembro de 2018, os réus deram entrada na Câmara Municipal de..., de processo de licenciamento para reabilitação do edifício id. em B);
V) Relativamente ao edifício, os réus tinham celebrado com a Cª de Seguros Ocidental, um contrato de seguro titulado pela apólice nº ...78 com a cobertura de diversos riscos, entre eles, o de incêndio, com um capital de cobertura no 150.000,00€;
W) Os serviços de peritagem da Seguradora fizeram uma vistoria ao prédio, avaliando os custos reconstrução da cobertura e intervenção nas paredes mestras em 173.333,82€ e, sob invocação da regra da proporcionalidade, a seguradora pagou aos réus apenas quantia total de 72.869,41€, conforme doc. 2 junto com a contestação, cujo teor se considera reproduzido;
X) A posse administrativa do prédio dos réus, por parte da Câmara Municipal..., após o término da realização do evento “V… M…”, atualmente já não subsiste;
Y) O incêndio referido na al. G) teve origem no prédio de DD, do qual são arrendatários CC e esposa EE, e a causa do mesmo foi de origem elétrica, propagando-se para o prédio referido em B);
Z) A partir de 1 de Janeiro de 2017, a Autora instalou e passou a explorar a sua atividade na fração identificada em C), destinando-a a exploração de bar;
AA) O prédio dos Réus, onde se integra a fração “B” arrendada à Autora, é um edifício antigo, sito na zona histórica de ...;
BB) Em 08 de Agosto de 2013, os Réus deram de arrendamento a fração “B” à empresa “E...Lda.”;
CC) Em 16 de Setembro de 2013, a “E...Lda.” celebrou com a “EE...Lda.” um contrato de cessão de exploração, por força do qual esta passou a explorar o estabelecimento sito na fração “B”;
DD) Face à falta de pagamento das rendas pela sociedade “E...Lda.”, em 15 de Março de 2015, os Réus celebraram com a sociedade “EE...Lda.” contrato promessa de arrendamento da fração B para fins não habitacionais com prazo certo;
EE) Em 1 de Outubro de 2015, os Réus celebraram com a sociedade “EP...Lda.” contrato de arrendamento da fração B para fins não habitacionais com prazo certo;
FF) Por vicissitudes várias, concretamente, resolução do contrato com a “E...Lda.” e revogação por mútuo acordo do contrato com a “EP...Lda.”, foi celebrado o contrato de arrendamento referido em C) com a Autora, sem nunca o estabelecimento paralisar a sua atividade;
GG) Desde que foi arrendada, a fração “B”, apesar da cessação dos sucessivos contratos de arrendamento e consequente mudança de locatário, nunca foi entregue aos Réus;
HH) O estabelecimento aí instalado nunca paralisou a sua atividade, girando em nome das pessoas que o foram ocupando na qualidade de cessionário da exploração e locatário;
II) O projeto idealizado pela autora e que motivou a celebração do contrato id. em C), assentava na exploração de bar e participação em eventos ou espetáculos realizados anualmente na cidade de ..., designadamente, “Feira Medieval”, “P…” e “I…”, utilizando o hall do rés-do-chão como snack bar aquando da participação nesses eventos;
JJ) As águas furtadas da fração B eram utilizadas pela autora para arrecadação e armazenamento de stocks;
KK) Relativamente ao edifício em questão, os Réus procederam à venda da fração A, em 07/01/2020, pelo preço de € 13.000,00, e da fração D, em 15/05/2020, pelo preço de € 21.300,00;
LL) No edifício em questão, relativamente às demais frações para além da fração B, três delas estão a laborar, nomeadamente o restaurante B..., numa dessas frações, o café C... e a ourivesaria, noutras duas frações correspondentes àquelas que foram vendidas pelos Réus, estando a quarta fracção apta a funcionar;
MM) No ano de 2017, o volume de negócios da Autora ascendeu a € 73.589,60 e no 1.º semestre de 2018, tal volume de negócios foi de € 37.956,08;
NN) Na sequência do incêndio, a Autora não arrendou outro locado para exercer a sua atividade e os Réus não facultaram à Autora qualquer espaço similar ao arrendado, em área e localização, para que a Autora continuasse a exercer a sua atividade, estando por isso impossibilitada de a exercer;
OO) Os Réus são proprietários do edifício onde se integra a fração B (tendo, entretanto, vendido duas dessas frações), da sua casa de habitação e de 7 prédios rústicos, auferindo rendas das frações autónomas arrendadas;
PP) Porque se tratava de um edifício antigo, do ano de 1843, situado no centro histórico da cidade de ..., como condição do licenciamento das obras, a Câmara Municipal exigia que a cobertura fosse executada em conformidade com o que existia antes do incêndio, ou seja, telha marselha assente em travejamento de madeira com três mirantes (mansardas);
QQ) O custo dessas obras ascendia a € 118.000,00;
RR) Desde a data do incêndio, a Autora deixou de pagar as rendas, o mesmo sucedendo, entretanto, com o inquilino de outra fração;
SS) Os Réus apresentaram na Câmara Municipal um projeto (aludido em U)) de obras para estabilidade e contenção das fachadas e reconstrução da cobertura em placa sandwich com acabamento da parte interior em superfície lisa branca;
TT) Em 13 de Maio de 2019, a Câmara Municipal aprovou as obras nos termos da proposta apresentada pelos Réus, prescindindo do travejamento da cobertura em madeira, mas não prescindindo da colocação de telha marselha assente em ripado fixado às placas colocadas na cobertura, e da construção dos três mirantes (mansardas);
UU) Em finais de Junho de 2019, os Réus já tinham procedido à remoção de todos os escombros e detritos e concluído as obras de contenção e estabilização das fachadas e de reconstrução da cobertura;
VV) Em 18 de Julho de 2019, foi feita a vistoria camarária;
WW) Em 23 de Julho de 2019 é elaborado o auto de vistoria que considerou as obras conforme o projeto apresentado, propondo a anulação de todas as medidas de proteção da via pública, bem como a notificação da Ré esposa para impulsionar o processo com vista à execução das obras de reabilitação do edifício, concretamente, a abertura dos 3 mirantes na parte superior da cobertura e colocação da telha marselha para repor a linha arquitetónica que existia antes do incêndio;
XX) As obras exigidas pela Câmara e que ainda não foram executadas nada têm a ver com a funcionalidade do edifício, mas apenas com a reabilitação da sua linha arquitetónica ao nível da cobertura;
YY) Após a conclusão das obras de estabilidade das fachadas e reconstrução da cobertura, ficou definitivamente sanada qualquer possibilidade de infiltração de água e humidade no interior da fração B e debelado qualquer perigo de derrocada da estrutura de segurança do edifício;
ZZ) Em 03 de Dezembro de 2021, os Réus deram entrada de pedido de licenciamento para reconstrução parcial e legalização de alterações introduzidas no edifício coletivo, encontrando-se o projeto em fase de apreciação;
AAA) Em virtude do incêndio, o locado precisa dos seguintes trabalhos/obras no 1.º andar: b.1. Tetos: - fornecimento e assentamento de teto falso em soalho; b.2. Pavimentos: - Remoção do piso cerâmico existente e transporte de entulhos e a vazadouro certificado, incluindo fornecimento e assentamento de novo cerâmico; b.3. Paredes: -Lavagem de paredes, emassamento e pintura; b.4. Caixilharias (portas e janelas): -Recuperação das portas e janelas existentes; b.5. Instalação elétrica: - Refazer toda a instalação elétrica da fração; b.6. Casas de banho: - fornecimento e assentamento de louças sanitárias, torneiras e todos os acessórios necessários a um bom acabamento;
BBB) Para realizar essas obras serão necessários aproximadamente 3 meses;
CCC) Consta da cláusula 12ª do contrato de arrendamento estabelecido entre Autora e Réus: «As obras de conservação do locado são da responsabilidade dos 1ºs Outorgantes e as de manutenção, reparação e limpeza a cargo da 2ª Outorgante, não tendo esta, findo o contrato, direito a qualquer indemnização pela execução das mesmas.»
CCC) Consta da cláusula 12ª do contrato de arrendamento estabelecido entre Autora e Réus: «As obras de conservação do locado são da responsabilidade dos 1ºs Outorgantes e as de manutenção, reparação e limpeza a cargo da 2ª Outorgante, não tendo esta, findo o contrato, direito a qualquer indemnização pela execução das mesmas.”
E considerou não provada a seguinte matéria:
“a) O projecto idealizado pela Autora e que motivou a celebração do contrato id. em C) assentava, também, na exploração de snack-bar no rés-do-chão;
b) Não obstante o incêndio, a Autora pode, no entanto, utilizar o piso térreo para snack-bar, como sempre fez;
c) As águas furtadas e a abertura existente existem apenas para aceder à cobertura do edifício pelo interior do mesmo;
d) A utilização do hall de entrada, pela autora, foi realizada abusivamente, por não ser possível o exercício nesse local de qualquer atividade comercial;
e) Ainda antes da constituição da propriedade horizontal, a Ré esposa havia dado de arrendamento à empresa “E...Lda.” o espaço do edifício que veio a formar a fração “B”;
f) O teto daquele espaço era a própria cobertura do edifício;
g) Nessa altura, com autorização da Ré esposa, a empresa E...Lda. fez obras de beneficiação e decoração no interior da fração B, designadamente a montagem de um teto em pladur com diversos pontos de luz;
h) Foi revogado por mútuo acordo o contrato de arrendamento a pedido da locatária “EE...Lda.” com a condição de ser celebrado novo contrato de arrendamento com a Autora;
i) A Autora é gerida de facto pelos sócios gerentes da empresa EE...Lda.;
j) O sócio gerente da Autora era e é um simples empregado no estabelecimento, sendo a atividade desta gerida de facto por FF e GG;
k) A Autora pagava à sua funcionária FF um salário no valor de € 580,00 mensais;
l) A Autora obtinha ganhos para o seu sócio-gerente que rondavam os € 1.000,00;
m) A Autora obtinha mensalmente ganhos que rondavam os € 4.000,00 (cerca de € 1.000,00 por semana);
n) Os cerca de € 73.000,00 recebidos da Seguradora são suficientes para a reabilitação do prédio e deixar o locado apto à sua finalidade;
o) O custo das obras exigidas pelas Câmara ultrapassava em muito a quantia de € 200.000,00;
p) Os Réus não tinham possibilidades económicas de executar as obras na cobertura e nas paredes mestras em conformidade com o pretendido pela Câmara Municipal;
q) O seu único rendimento era o que provinha das rendas;
r) Por falta de meios económicos, até à data, os Réus não impulsionaram o processo com vista à execução das obras de reabilitação do edifício;
s) Aquando da aceitação da cláusula 12.º do contrato de arrendamento, a vontade real das partes era que os Réus apenas tinham responsabilidade pelas obras de conservação das partes comuns do edifício.”
Do recurso do segmento em que se condenam os Réus a realizar as obras descritas na alínea AAA) da matéria provada, no prazo de 3 meses:
A 1ª instância julgou o pedido de resolução do contrato com base na falta do pagamento das rendas desde Agosto de 2018 improcedente com fundamento no facto de à inquilina/autora assistir motivo justificado para não as pagar, em virtude de os senhorios/réus não terem procedido à realização das obras que lhes competiam fazer ( que eram as necessárias a repor a fracção locada no estado em que se encontrava antes do incêndio corrido 1 de Julho de 2018), para cuja realização tinham sido interpelados em Setembro e Outubro de 2018.
Para considerar que as obras eram de conservação recorreu à definição oferecida pela doutrina ( que as define como aquelas que se destinam a manter o prédio ou fracção arrendada no estado físico que apresentava aquando do arrendamento), ao entendimento da jurisprudência, no sentido de que o locador é obrigado a realizar todas as reparações ou outras despesas essenciais ou indispensáveis para assegurar o gozo da coisa locada, de harmonia com o fim contratual, ao teor da cláusula 12ª e à vontade real das partes que constava da Al. DDD ( que foi, depois, eliminada pela Relação).
Por sua vez, a 2ª instância depois de eliminar o facto que se reportava à vontade real das partes subjacente à consagração da cláusula 12ª , recorreu a outros elementos legais, como o RJUE, ao art. 11º do RAU e à jurisprudência para distinguir as obras de conservação das de manutenção e concluir que as obras de conservação se destinam a “fazer durar ou a repor o prédio com o nível da habitabilidade idêntico aí existente à data das celebração do contrato” , porque “se trata de manter o edifício nas condições existentes à data, incluindo as paredes e as caixilharias que no caso decorrem não do uso do arrendatário mas do incêndio” (sendo que as obras se passaram a reportar apenas ao 1ª andar).
Ou seja: ao contrário do defendido pelo recorrente, a Relação não segue uma linha de fundamentação essencialmente distinta da da 1ª instância. É certo que recorre a outros elementos legais mas o conceito de obras de conservação de que se serve funda-se, igualmente, no entendimento jurisprudencial de que as obras de conservação se destinam a manter ou a repor a fracção arrendada no estado em que se encontrava à data da celebração do contrato. O recurso feito pela Relação a outros elementos legais ( como o RJUE e o RAU) não implica qualquer divergência de fundo; representa apenas o aditamento em reforço de outros fundamentos que não foram considerados em 1ª instância ( cfr. Abrantes Geraldes e outros em CPC anotado, vol. I, 2018, pág. 808), sendo que a falta de referência a elementos doutrinários e, em especial, mencionado em 1ª instância não reflecte, obviamente, qualquer discordância substantiva entre as instâncias em relação ao conceito de obras de conservação.
Onde se nota alguma diferença é nas obras relacionadas com as paredes e as caixilharias mas também aqui a diferença não é substancial, rectius, essencial: a 1ª instância enquadra-as nas obras de conservação, por se destinarem a repor a fracção locada no estado em que se encontrava antes do incêndio; a 2ª instância não discorda, substancialmente, de tal entendimento, mas reforça a argumentação: enquanto as obras de manutenção, reparação e limpeza estão ligadas ao uso do prédio as relativas às paredes e às caixilharias têm na sua origem um incêndio. Ou seja: quer numa perspectiva quer noutra, também as obras necessárias à reposição do locado, relativas às paredes e às caixilharias, são de conservação e estão a cargo do locador.
No que toca à execução das obras de reparação dos danos no interior da fracção, a recorrente Ré ainda alega que houve ofensa de disposição legal nos termos do art. 674º, nº 3 do CPC porque a Autora não alegou como obra necessária o fornecimento e o assentamento do tecto falso e a colocação de louças sanitárias, sendo que da alínea N) não constavam tais obras. Assim, a condenação da Ré recorrente a executar tais obras envolve, ainda, na sua perspectiva, a violação do princípio contraditório.
Porém, esse não é um erro de facto que consubstancie qualquer ofensa enquadrável no art. 674, nº 3 do CPC, representando apenas um erro de julgamento, de que não se pode conhecer, uma vez que existe dupla conforme parcial, relativamente à execução daas obras no 1º andar.
A recorrente propugna também o entendimento de que a responsabilidade pela execução das obras de reparação dos danos causados pelo incêndio no interior do 1º andar deve pertencer à recorridos/arrendatária, mas também aqui se verifica a dupla conformidade decisória, que não é prejudicada pelo facto de se ter alterado a Al. AAA) ( que deixou de considerar as obras do r/c e passou a incluir apenas as obras do 1º andar), uma vez que a Ré recorrente alcançou na Relação uma melhoria relativamente ao resultado declarado pela 1ª instância (Abrantes Geraldes, ob. cit., pág.. 809).
Não se admite, pois, o recurso na parte em que questiona a condenação dos RR. /senhorios a efectuar as obras referidas em AAA).
Do recurso do segmento decisório em que se julga improcedente o pedido de resolução do contrato por falta de pagamento de rendas:
Confirmando a decisão da 1ª instância, a Relação julgou improcedente o pedido de resolução do contrato por falta de pagamento de rendas: por entender que a arrendatária podia excepcionar o pagamento das rendas, com fundamento no facto de a locadora não ter realizado obras de reparação.
No entender dos recorrentes, a decisão da Relação está em oposição com os identificados acórdãos da Relação de Guimarães de 19.11.2020 e do Porto de 14.3.2017, o que integra fundamento para a revista excepcional, ao abrigo do art. 672º, n.º 1 , al. c), suscitando, neste âmbito, a questão da excepção do não cumprimento.
Sucede, porém, que a recorrente suscita previamente a questão do erro na fixação dos factos materiais da causa por ofensa de disposição legal, ou seja, por ter havido acordo relativamente um facto que não foi considerado.
Como se sabe, e tem sido jurisprudência constante, é possível a interposição de recurso de revista normal quando está em causa a não consideração de um facto assente por acordo ( cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, pág. 398).
E quando tal acontece e se verifica, ao mesmo tempo, uma situação de dupla conforme quanto à matéria de direito tem-se entendido que se configura em tais circunstâncias uma cisão do acórdão em dois segmentos um relacionado com a decisão de facto e outro ligado à integração e qualificação jurídica e que se acaso o Supremo revogar ou anular esse segmento do acórdão relativo à matéria de facto, deve determinar o reenvio do processo para a Relação, perdendo nesse caso utilidade a revista excepcional que foi interposta do segmento de direito (cfr. Abrantes Geraldes, ob. cit. páginas 366 a 368 ).
Como assim deverá conhecer-se em primeiro lugar da questão do erro na decisão de facto e só depois apreciar-se o fundamento da revista excepcional.
Em relação à questão de facto, a Relação escreveu:
“Consideram os Réus/Recorrentes que “Porque se trata de matéria de facto confessada, devem os factos constantes das alíneas a) e b) dos factos não provados serem incluídos nos factos provados”.
Já acima deixamos referido ter a própria Autora confessado na petição inicial que “ao nível da entrada, no rés-do-chão - composta por hall, lavabo dos funcionários e espaço amplo -, que a A. destinava a snack-bar e vestíbulo -, não foi atingido pelo incêndio, nem pela infiltração de águas utilizadas no combate ao mesmo” (artigo 46 da PI), reiterando no articulado de resposta apenas os problemas ao nível do 1º piso (cf. os seus artigos 57 a 63).
Porém, é só isso que está confessado. E essa matéria já consta do facto provado em II).
O que agora se pretende tem um maior âmbito. O que resulta da prova produzida é que a exploração de snack-bar no rés-do-chão era uma atividade ocasional (como já consta em II).
O legal representante da Autora referiu no seu depoimento que a exploração do rés-do-chão como snack bar era normalmente só durante as festas (o I…, o P… e a V… M…).
Isto foi corroborado pela testemunha FF, desde logo adiantando que não havia outra forma de entrar no estabelecimento, sem ser pelo rés-do-chão; quando ela estava a explorar o estabelecimento, no rés-do-chão existia um hall de entrada, com 2/3 mesas; na altura dessas festividades, punham lá máquinas de café e passava a funcionava como snack-bar.
Quanto à alínea b), e pelo que se vem dizendo, não podemos considerar que a Autora “sempre fez” a utilização do piso térreo para snack bar. E, não sendo para essa função, mas apenas para entrada e acesso ao 1º piso, resulta inócuo que o rés-do-chão possa ser utilizado, por não ter sido atingido pelo incêndio.
Assim, não se alteram as alíneas a) e b) dos factos não provados.”
Porém, a recorrente/senhoria refere que a autora/arrendatária alegou na petição inicial os seguintes factos, que não foram impugnados:”46º - E ao nível da entrada, no rés-do-chão - composta por hall, lavabo dos funcionários e espaço amplo -, que a A. destinava a snack-bar e vestíbulo -, não foi atingido pelo incêndio, nem pela infiltração de águas utilizadas no combate ao mesmo!; 47º - Existindo nesse piso térreo um balcão, com máquina de café, frigorífico e computador, bem como mesas e cadeiras. 48º - atentos os danos no locado supra descritos, a A. deixou de poder utilizar o 1º piso para bar, p49º - mas pode utilizar o piso térreo para snack-bar, como sempre fez, bem como as empresas que antes de si exploraram o estabelecimento comercial em causa, dado o mesmo se encontrar intacto!”.
Ou seja: foi a autora que alegou que “pode utilizar o piso térreo para snack-bar como sempre fez “.
Argumentou a Relação que, resultando da prova produzida que a exploração de snack-bar no rés-do-chão era uma actividade ocasional (como consta do facto II), não podemos considerar que a Autora “sempre fez” a utilização do piso térreo para snack bar, uma vez que a função deste piso não era para snack-bar mas apenas para entrada e acesso ao 1º piso.
Porém, é a própria A. que alega e, por isso, ficou provado, que destinava o rés-do-chão -composto por hall, lavabo dos funcionários e espaço amplo - a snack-bar e vestíbulo (cfr. art. 46º da petição; al. O)).
Como assim, o facto de II)- que apenas se reporta à utilização do hall- não é impeditivo da prova do facto da al. b) dos factos não provados, de que “não obstante o incêndio a Autora pode utilizar o piso térreo para snack-bar, como sempre fez”, devendo ter-se em atenção, pela conjugação com o facto II), que a utilização do hall não era frequente, pois o hall era apenas utilizado nas festividades assinaladas em II).
Esta alteração, implicando com a questão da excepção do não cumprimento relativamente ao pagamento das rendas, que se prende não com as obras nem com a sua responsabilidade mas com a possibilidade de os recorridos poderem a exercer a actividade do bar no rés-do-chão, deve, assim, determinar o reenvio do processo para a Relação, para nova decisão de direito que tenha em consideração o novo facto.
Como assim, perde utilidade a revista excepcional que foi interposta do segmento de direito relacionado com a resolução do contrato por falta de pagamento de rendas.
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção em :
a) não admitir o recurso de revista normal relativamente ao segmento decisório que condena os Réus à realização de obras;
b) conceder parcialmente a revista normal relativamente ao segmento decisório que julga improcedente o pedido de resolução do contrato, dar como provado o facto da al. b) (dos não provados) e anular o acórdão da Relação, determinando-se o reenvio do processo ao Tribunal da Relação para que profira nova decisão de direito que tenha em consideração o novo facto, agora dado como provado;
c) não admitir o recurso de revista excepcional, por inutilidade do mesmo.
As custas do recurso ficam a cargo dos Réus e da Autora, na proporção de metade para os primeiros e metade para a segunda.
António Magalhães (Relator)
Jorge Arcanjo
Manuel Aguiar Pereira