I. É na factualidade provada que se encontra a ressonância dos elementos da pluralidade de crimes, do crime continuado ou da única resolução criminosa.
II. O crime de condução sem habilitação legal exige a circulação na via pública e pode prolongar-se no tempo: só deixa de haver unidade criminosa designadamente quando, por decisão do agente ou por razões a ele alheias, por exemplo por intervenção das autoridades, ocorra uma situação de descontinuidade da conduta típica.
III. Por força do princípio da proibição da reformatio in pejus, apesar da unificação das condutas, a pena para o crime unificado não pode ultrapassar o limite de cada pena definida na decisão recorrida para cada um dos crimes, porquanto o tribunal não pode modificar, na sua medida, as sanções constantes da decisão recorrida, em prejuízo do arguido.
IV. São elevadíssimas as necessidades de prevenção geral quanto ao crime de incêndio, pelas nefastas consequências ambientais, económicas e perigo para a vida.
V. Apesar da inserção social, familiar e laboral, não é possível o juízo de prognose positivo subjacente à suspensão da execução da pena quando o arguido pratica factos com a gravidade dos que estão em causa, no período de suspensão da execução de uma anterior pena de prisão, face à necessidade de tutela dos bens jurídicos e prementes exigências de prevenção especial.
Acordam – em conferência – na 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:
I – RELATÓRIO
Nos presentes autos de processo comum com intervenção do Tribunal Colectivo, o arguido AA, solteiro, nascido em ........1992, natural da freguesia de ... e ..., concelho de ..., filho de BB e de CC, residente na Rua ..., ..., atualmente preso preventivamente no Estabelecimento Prisional de ... foi julgado e a final:
1 ─ Absolvido da prática, em autoria material e na forma consumada, de 13 crimes de incêndio florestal, previstos e puníveis pelo artigo 274.º, n.º 1, do Código Penal, que lhe vinham imputados;
2 ─ Condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de incêndio florestal, previsto e punível pelo artigo 274.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de três anos e seis meses de prisão;
3 ─ Condenado pela prática, em autoria material, concurso efetivo e na forma consumada, de onze crimes de condução sem habilitação legal, previstos e puníveis pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro, nas penas parcelares de seis meses de prisão, por cada um dos crimes;
4 ─ Em cúmulo jurídico, condenado na pena única de cinco anos e seis meses de prisão.
1. O Recorrente foi condenado na pena única de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão.
2. A pena aplicada pelo Tribunal a quo é excessiva, atendendo à idade do arguido, ao facto de que está social, familiar e profissionalmente integrado, bem como à ausência de antecedentes, por parte do mesmo, por crimes desta natureza.
3. A condenação em autoria material, concurso efetivo e na forma consumada, de 11 (onze) crimes de condução sem habilitação legal, deveria tê-lo sido na forma continuada, atendendo a estarmos perante uma realização plúrima do mesmo tipo de crime, executado de forma homogénea e no quadro de uma mesma situação exterior: o arguido, de forma absolutamente homogénea, conduzia regularmente, de casa para o trabalho, e para levar a esposa, de e para o trabalho, no âmbito de uma mesma solicitação, que era precisamente o cumprimento dessas obrigações, sempre renovadas, o que diminui consideravelmente a sua culpa.
4. Pelo que tal pena poderia e deveria ser diminuída, aplicando ao crime de incendio uma pena não superior a 2 anos, relembrando que o limite mínimo da pena aplicável é de 1 ano, e aplicando ao crime de condução sem habilitação legal, na forma continuada, uma pena máxima de 1 ano, de acordo com o disposto no art. 79º, do Código Penal.
5. Reduzindo as condenações nos termos supra expostos, estão verificadas as condições para a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do disposto no art. 50º, do código Penal, o que desde já se requer, também atendendo a que arguido é um jovem e está social, familiar e profissionalmente integrado.
6. Seria esta uma oportunidade concedida ao Recorrente de cumprir a pena dentro dos limites de razoabilidade que se impõem atendendo ainda às exigências de prevenção especial adequadas ao caso vertente.
7. A simples censura do facto e uma condenação nos termos supra expostos realizariam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição no caso vertente.
8. Ao decidir aplicar a pena única de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão, o Tribunal “a quo” violou o disposto no artigo 71º do Código Penal, devendo tal normativo ser interpretado no sentido de tal pena dever ser reduzida, por ter sido excessiva face à medida da culpa do agente às das exigências de prevenção e ainda por que a condenação relativa aos 11 (onze) crimes de condução sem habilitação legal, o deveria ter sido na forma continuada.
Nestes termos e nos mais de Direito aplicáveis que V. Exas. doutamente suprirão:
Deve revogar-se a sentença recorrida e substituir-se por uma outra decisão que reduza as condenações nos ternos supra expostos, segundo o prudente arbítrio de V. Exas, e determine a suspensão da execução da pena de prisão, só assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!
Respondeu o Digno Magistrado do Ministério Público, concluindo pela improcedência do recurso, concluindo:
(…)
2 - O objeto de recurso, necessariamente circunscrito às conclusões da motivação, confina-se às seguintes questões jurídico-penais: - Do Crime Continuado; Do Cúmulo Jurídico e da Medida da Pena.
3 - No que respeita à alegação da não consideração do crime continuado, o recorrente, depois de invocar aspetos gerais do seu regime (artigo 30.º, n.º 2, do Código Penal), limita-se a dizer que todos os factos ocorreram quando o recorrente “…conduzia regularmente, de casa para o trabalho, e para levar a esposa, de e para o trabalho, no âmbito de uma mesma solicitação, que era precisamente o cumprimento dessas obrigações, sempre renovadas, o que diminui consideravelmente a sua culpa…”.
4 - Da factualidade dada como provada no acórdão recorrido não advém a enunciação de qualquer condicionalismo exterior ao agente, com que o mesmo se tenha deparado por força do acaso, que tenha facilitado a sua ação, traduzindo uma menor exigibilidade para que o arguido atuasse de forma conforme ao direito.
5 - Inversamente, dimana que o “(…) arguido tinha um carro registado em seu nome que, até ser preso, conduzia diariamente, alternando com o veículo automóvel da sua companheira.” concluindo que “(…) A actuação do arguido nos termos referidos aponta-nos no sentido de uma grande desconformidade com o Direito e com o cumprimento de regras (…).
6 - Inexistem os requisitos previstos pelos n.ºs 2 e 3, do artigo 30.º, do Código Penal, sustentar o oposto seria recompensar quem atua, reiteradamente, como se a atividade delituosa fosse uma profissão.
7 - In casu, as exigências de prevenção geral são elevadas atenta a frequência com que ocorre este tipo de crime na sociedade actual e as suas consequências danosas para o sentimento de segurança para toda a comunidade.
8 - Por outro lado, o tribunal “a quo” teve também na devida conta o dolo directo com que o arguido actuou e a intensidade da culpa demonstrada.
9 - Mostra-se adequada à conduta do arguido, a pena única de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão em que foi condenado, nos termos dos artigos 40.º, 70.º e 71.º, todos do Código Penal.
10 - Nos presentes autos não é possível formular um juízo de prognose favorável à reinserção social do arguido e, como tal, vir a ser suspensa a pena de prisão, caso seja reduzida, por não se verificarem os pressupostos do art.º 50.º do Código Penal.
11 - Assim, porque nada encontramos que nos mereça censura no acórdão ora recorrido, sendo que não violou qualquer norma legal, deve negar-se provimento ao recurso, confirmando-se o mesmo.
Contudo, V. Ex.ªs decidindo farão Justiça!
Concordamos na totalidade com a fundamentação e decisão estribada no teor do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Uniformização de Jurisprudência 5/2017, de 23 de Junho1, no sentido de que «A competência para conhecer do recurso interposto de acórdão do tribunal do júri ou do tribunal coletivo que, em situação de concurso de crimes, tenha aplicado uma pena conjunta superior a cinco anos de prisão, visando apenas o reexame da matéria de direito, pertence ao Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 432.º, n.º 1, alínea c), e n.º 2, do CPP, competindo-lhe também, no âmbito do mesmo recurso, apreciar as questões relativas às penas parcelares englobadas naquela pena, superiores, iguais ou inferiores àquela medida, se impugnadas».
(…)
Os pedidos formulados pelo arguido são todos no sentido da redução das penas aplicadas:
• para uma não superior a 2 anos de prisão, no caso do crime de incêndio;
• para a de 1 ano de prisão para o que entende não serem 11 crimes, mas sim 1 crime continuado de condução sem habilitação legal;
• para, em consequência, pena única não superior a 5 anos de prisão, em cúmulo jurídico;
E, conseguida esta redução, que a pena fique suspensa na sua execução.
(…)
E, na verdade, entendemos que não se justifica qualquer alteração à decisão de 1ª instância, devendo a mesma ser mantida. Na verdade – e pouco acrescentando ao já referido anteriormente na resposta do MºPº - temos que:
- Quanto à pena aplicada pela prática do crime de incêndio:
Sendo certo que o arguido apenas foi condenado pela prática de 1 dos crimes de incêndio pelos quais se encontrava acusado (concretamente pela matéria constante no processo 284/23.6... apensado), certo é igualmente que a pena achada foi a adequada, em nada violando as regras legais aplicáveis para essa escolha.
Estamos perante perigo de elevada gravidade, punível com pena entre 1 e 8 anos de prisão;
O local procurado pelo arguido para a prática dos factos poderia ter levado a que uma vasta área de eucaliptal ardesse, tendo colocado em perigo mato, armazéns e habitações próximas (desconhecendo-se o seu valor, pelo que a atividade não se mostra agravada nos termos do nº 2 do artigo, o que agravaria a pena para a de prisão situada entre 3 e 12 anos), o que apenas foi evitado pela pronta intervenção dos bombeiros e populares;
O arguido estudou a melhor forma de provocar o incêndio, aproveitando a existência de combustíveis finos, mortos e abundantes, constituindo material inflamável, que facilitava a propagação das chamas a todo o espaço envolvente, para mais quando igualmente se aproveitou das condições climatéricas (tempo seco e ventoso) que se faziam sentir e que igualmente facilitavam a propagação do incêndio;
Agiu com elevado grau de culpa, justificando-se uma igualmente elevada censura ético-jurídica;
Não é a primeira vez que o arguido tem contacto com os tribunais, sendo anteriormente condenado pela prática de crimes de ameaça agravado e de violência doméstica, em penas que ficaram suspensas na sua execução, não tendo estas condenações sido suficientes para que deixasse de praticar ilícitos criminais;
No julgamento não prestou declarações, o que, não o podendo prejudicar, igualmente não o pode beneficiar, pois que assim inexiste a possibilidade de se entender pela existência de qualquer arrependimento;
O crime em questão tem vindo a ser cada vez mais frequentemente praticado, com – como refere o acórdão - consequências gravíssimas ao nível de destruição de património e de vidas humanas, o que leva a um sério aumento do sentimento de insegurança por parte da população quanto a este tipo de ilícito, pelo que a punição dos incendiários, mais que nunca, exige ser rigorosa, severa e exemplar, pois que a sociedade não aceita que possa haver tolerância ou complacência para pessoas, que de modo racionalmente inexplicável são capazes de tais atos de indiferença pelo sofrimento alheio, de desrespeito pelas vidas humanas e bens patrimoniais alheios.
Assim sendo, não se vislumbra justificação para este Supremo Tribunal de Justiça alterar a pena concretamente imposta quanto a este crime, situada que foi em medida muito aproximada ao terço inferior da prevista para o crime. (Lembrando que, como foi referido no acórdão deste STJ de 29.02.2024 no processo 122/20.1PAVPV.L1.S1 – Relator – Jorge Reis Bravo -, «Na operação de escrutínio sobre o processo de apreciação da escolha e da medida da pena, em sede de recurso, é pacífico que a intervenção do tribunal superior assume um carácter essencial de “remédio jurídico”, impondo-se, especialmente, identificar incorreções ou erros manifestos atinentes ao processo hermenêutico-aplicativo das normas constitucionais, convencionais e legais mobilizáveis, por parte da instância recorrida. Só nessa medida é legítimo ao tribunal de recurso proceder à alteração do quantum da pena. Assim, não pode proceder-se como se não existisse decisão anteriormente proferida – designadamente, neste caso, a do tribunal de primeira instância –, a qual, tendo respeitado aqueles procedimentos hermenêuticos e aplicativos, não legitima a intervenção do tribunal de recurso em termos de modificar, para mais ou para menos, a medida concreta da(s) pena(s) aplicada(s).».
- Quanto a(s) crime(s) de condução sem habilitação legal:
Pretende o recorrente que as 11 condenações que lhe foram impostas pela prática deste crime se deviam resumir a 1, por se estar apenas perante um crime continuado.
Ora, tal como aludido na resposta do Ministério Público, necessário para se concluir por tal continuação seria que existisse factualidade provada que a sustentasse e isso não sucede. Antes estamos em situação que se pode entender como similar à tratada por este STJ no recente (de 11.01.2024) acórdão proferido no processo 899/22.0JAFUN.L1.S1 (Relator – Vasques Osório), quando ali se entendeu que «No que concerne à conexão subjectiva, cumpre desde logo notar que a lei é omissa quanto ao dolo exigível para o preenchimento da figura. Figueiredo Dias entende ser compatível com a continuação criminosa quer o dolo conjunto – planeamento prévio pelo agente das diversas condutas típicas –, quer o dolo continuado – o agente planeia repetir a conduta caso a ocasião o proporcione –, quer a pluralidade de resoluções, desde que possa afirmar-se a existência de uma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente, assim relevando a posição de Eduardo Correia, e concluindo que a unificação da conduta continuada radica na diminuição da culpa, em nome de uma exigibilidade sensivelmente diminuída (op. cit., pág. 1033).
[…] não está demonstrada, in casu, a existência de uma situação exógena, de uma disposição das coisas para o facto alheia ao agente, facilitadora da repetição da conduta e tornando cada vez menos exigível um comportamento conforme ao direito, pois o que resulta dos factos provados é que foi o arguido quem pensou e criou as condições que entendeu necessárias para obter o resultado pretendido. Consequentemente, não se mostra verificada qualquer diminuição considerável da culpa do agente».
Na verdade, e como havia sido referido na decisão que aquele recurso apreciou, «as circunstâncias exteriores a permitiram a prática, pelo arguido, dos apontados crimes foram por ele conscientemente procuradas e criadas para concretizar a sua intenção criminosa. Como assim, não podem ser consideradas como facilitadoras da sua reiteração criminosa, mas, antes, como uma clara persistência criminosa, que afastam a diminuição da culpa, um dos requisitos essenciais à existência do crime continuado. […] as circunstâncias que permitiram a verificação do crime e a sua “repetição” foram, conscientemente, procuradas e criadas pelo arguido. Foi ele próprio a determinar o cenário, e actuou aperfeiçoando a realidade exterior aos seus desígnios e propósitos e sendo ele a dominá-la, e não esta a dominá-lo. Não há uma circunstância exterior, mas sim uma sua predisposição anterior em a criar e manter».
A este propósito refere Paulo Pinto de Pinto de Albuquerque que “A diminuição sensível da culpa só tem lugar quando a ocasião favorável à prática do crime se repete sem que o agente tenha contribuído para essa repetição. É o que sucede quando o agente depara repetidamente com um meio facilitador da prática do crime, como uma janela ou uma porta aberta. Isto é quando a ocasião se proporciona e não quando ele activamente a provoca. (…) Também não há diminuição sensível da culpa quando o agente engendra ou fabrica o meio apto para realizar o crime (…). Em todos estes casos a culpa pode até ser mais grave, por revelar firmeza e persistência do propósito criminoso” – Comentário do Código Penal, 2ª ed., pág. 162.
Não pode colher - sob pena de se subverter toda a lógica da incriminação penal – a ideia de que o arguido viu diminuída a culpa apenas porque praticou o crime muitas vezes, pois que usava o carro para o trabalho e igualmente para levar a mulher ao trabalho (sendo que esta também possuía uma viatura) e isso constituiria uma única «solicitação» para a prática do crime. Antes o que revela é que o arguido – tal como entendido na decisão recorrida – agia em grande desconformidade com o Direito e o cumprimento de regras.
E, também aqui, não se verifica necessidade de qualquer intervenção corretiva em termos de penas aplicadas.
- Quanto à pena única e suspensão da respetiva execução:
Tendo em conta o referido relativamente às penas aplicadas quanto aos crimes praticados pelo arguido, não se entende – ao contrário do pedido pelo recorrente – que haja necessidade de qualquer correção às penas parcelares aplicadas.
E o mesmo se tem de dizer quanto à achada em sede de cúmulo jurídico, mais uma vez nos parecendo que o tribunal a quo encontrou uma pena adequada ao caso, atentos o mínimo admissível (3 anos e 6 meses) e o máximo passível de ser aplicado (9 anos) de prisão, face ao considerável grau de contrariedade à lei e de indiferença para com valores cuja importância é unanimemente reconhecida a nível comunitário revelada pelo arguido na prática dos crimes, evidenciando uma personalidade desajustada com o dever-ser social e um distanciamento dos valores estruturantes da boa convivência e paz social, para mais quando estes factos foram praticados já depois de ter sido condenado pela prática de ilícitos criminais.
Aliás, mesmo a ser eventualmente reduzida a pena única para medida que o possibilitasse, não se vê que no caso existam elementos que levem a entender pela adequação ao caso de uma pena que fique suspensa na sua execução – inexiste, atento até o facto de o arguido já ter beneficiado deste benefício, não tendo sido isso que o afastou da prática de novos ilícitos – a convicção de que a simples ameaça da prisão realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
- Termos em que, sem necessidade de mais considerações, é parecer do Ministério Público que a decisão recorrida não merece censura, devendo ser integralmente mantida, julgando-se, consequentemente, improcedente o recurso interposto pelo arguido AA.
Não foi apresentada resposta ao Parecer.
II – FUNDAMENTAÇÃO
Recorre-se directamente para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal colectivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos dos nºs 2 e 3 do art 410º do Código de Processo Penal (art. 432º nº 1 al. c) do Código de Processo Penal). Como se referiu supra, por força do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Uniformização de Jurisprudência 5/2017, de 23 de Junho, entende-se que «a competência para conhecer do recurso interposto de acórdão do tribunal do júri ou do tribunal coletivo que, em situação de concurso de crimes, tenha aplicado uma pena conjunta superior a cinco anos de prisão, visando apenas o reexame da matéria de direito, pertence ao Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 432.º, n.º 1, alínea c), e n.º 2, do Código de Processo Penal, competindo-lhe também, no âmbito do mesmo recurso, apreciar as questões relativas às penas parcelares englobadas naquela pena, superiores, iguais ou inferiores àquela medida, se impugnadas».
É jurisprudência constante e pacífica que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
As questões a decidir são:
1. A continuação criminosa no crime de condução sem habilitação legal;
2. A medida das penas;
3. A suspensão da execução da pena.
II. DA AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO RESULTARAM PROVADOS OS SEGUINTES FACTOS:
1. O arguido é trabalhador da ... prestando, à data dos factos, trabalho em ... e V... ..... ......., para DD, a tempo inteiro, com equipamentos e instrumentos deste, sujeito a horário de trabalho previamente determinado por aquele, sob as suas ordens, orientações e instruções, recebendo como contrapartida uma remuneração horária fixa, paga;
2. Todos os dias, o arguido, com recurso ao seu veículo automóvel de matrícula ..-..-FT, marca Fiat Punto, e ao veículo de matrícula ..-BE-.., marca Clio, propriedade da sua companheira EE, dirigia-se para o seu local de trabalho, a hora não concretamente apurada mas, pelo menos, pelas 8 horas, regressando à sua residência, situada na Rua ..., ..., umas vezes após as 17 horas, hora estabelecida para o término do horário de trabalho e outras mais cedo, por volta das 15 ou 16 horas, havendo dias em que saía mais tarde, pelas 19 ou 20 horas deslocando-se, ainda, por vezes, do local onde prestava trabalho para a sua residência, no horário de almoço, em hora não concretamente apurada, mas situada, pelo menos, entre as 11 horas e as 14 horas, o que fez, nomeadamente, nos dias 26, 27, 28 e 31 de julho de 2023 (neste dia à hora de almoço e também ao final da tarde) e nos dias 4, 5, 7, 11, 12 e 16 de agosto de 2023;
3. O arguido é fumador;
Assim,
(…)
NUIPC 284/23.6...
28. No dia ... de ... de 2023, o arguido, em hora não concretamente apurada, situada entre as 7 horas e 51 minutos e as 8 horas e 6 minutos, durante o percurso para o seu local de trabalho, em ..., pegou num cigarro de marca TENNESIE, que continha no seu maço de tabaco, de marca C...., que tinha dentro da viatura de marca Fiat Punto, em que se fazia transportar naquele dia;
29. Posteriormente, colocou o cigarro na boca e acendeu-o com recurso a um isqueiro;
30. De seguida, retirou o filtro do cigarro e colocou as partes inflamáveis de dois fósforos;
31. E, por fim, arremessou-o pela janela do vidro do veículo em que se fazia transportar;
32. O arguido planeou tal forma para a ignição do fogo, sabendo que o cigarro ia ser consumindo e, quando a chama do cigarro chegasse ao material inflamável do fósforo, provocaria o incêndio, momento em que o mesmo já não se encontraria no local;
33. Em consequência da sua conduta, deflagrou um incêndio na zona florestal da Estrada Nacional ..., km 5.6, ..., onde se encontrava vegetação seca, junto à berma da estrada, em local onde existia uma vasta área de eucaliptal, tendo provocado um incêndio, pelas 8 horas e 6 minutos;
34. Nestas circunstâncias ardeu uma área de 50 metros quadrados, não se tendo propagado pela restante vegetação, ali existente, face à pronta intervenção dos bombeiros voluntários que ocorreram ao local;
(…)
39. Neste dia 16 de agosto, o arguido sabia que estava vento e que ao adotar a conduta descrita provocaria um incêndio com alguma dimensão;
40. No dia acima indicado, não estava a chover e o tempo estava quente, existindo risco de incêndio, pois estávamos em pleno Verão;
41. No dia 16 de agosto de 2023, pelas 12 horas e 15 minutos, o arguido, no veículo de matrícula ..-..-FT, tinha, no banco do passageiro, ao lado do condutor, um maço de cigarros, contendo no seu interior 3 cigarros e 1 isqueiro, no chão do banco imediatamente atrás, 7 invólucros de cigarros e, na bolsa lateral, da porta do condutor, 7 paus de fósforo, sem a respetiva parte fulminante;
43. O arguido conhecia as condições meteorológicas (tempo quente e seco) e que existia risco de incêndio, contudo, não se coibiu de atear o cigarro da forma e com as características supra referidas, com o propósito de provocar o incêndio florestal descrito em 28.;
44. O incêndio provocado pelo arguido colocou em perigo mato, armazéns e habitações próximas, a si alheios, de valor não concretamente apurado, o que o arguido quis e representou, os quais apenas não foram consumidos pelo fogo devido à rápida intervenção dos bombeiros e populares;
45. O arguido agiu com a intenção concretizada de atear fogo e provocar o incêndio referido em 28., nos moldes descritos e propagar o mesmo à vegetação existente no local a que ali se aludiu, bem sabendo que o mesmo era caracterizado, também, pela existência de combustíveis finos, mortos e abundantes, constituindo material inflamável, que facilitava a propagação das chamas a todo o espaço florestal envolvente, às habitações e armazéns ali existentes, que não lhe pertenciam, criando perigo da sua destruição, aproveitando, assim, as condições climatéricas favoráveis que se faziam sentir, posto que estava tempo seco, vento e eram reduzidos os níveis de humidade, para melhor lograr o êxito das suas intenções;
46. O arguido quis agir da forma supra descrita, bem sabendo que, naquela altura do ano, lhe estava vedado atear fogo, e que, face às condições climatéricas, os materiais que utilizou e a localização em que ateou, existia forte probabilidade de causar um incêndio que se propagasse e alastrasse;
47. Nas circunstâncias de modo e lugar descritas sob 3., o arguido não era possuidor de qualquer documento que legalmente o habilitasse a conduzir aquele tipo de veículo na via pública, como o fez;
48. O arguido sabia que não podia conduzir veículos automóveis naquelas circunstâncias, pois para tal não se encontrava legalmente habilitado;
49. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente;
50. À data da instauração do presente processo o arguido residia em casa arrendada em ..., com adequadas condições de habitabilidade juntamente com a esposa e a filha do casal, atualmente com 13 meses;
51. A esposa tem um outro filho de 10 anos de idade, que está à guarda do respetivo progenitor, mas que aos fins de semana também integra o referido agregado;
52. O agregado apresentava uma situação económica aparentemente equilibrada, resultante do facto dos elementos que o compõem estarem inseridos a nível laboral, o arguido como ... da construção civil e a companheira como empregada de ...;
53. Em termos profissionais, à data dos factos o arguido desenvolvia atividade profissional de forma regular e empenhada, no setor da construção civil, onde auferia 400 € semanais, tendo iniciado o seu percurso profissional com 17 anos de idade, como ... da construção civil, atividade que tem desenvolvido ao longo dos últimos anos;
54. Ao nível escolar, com um percurso escolar pouco investido, associado ao absentismo e dificuldades no cumprimento de regras, abandonou o sistema de ensino aos 17 anos de idade, durante a frequência de um curso profissional que não concluiu, vindo já em idade adulta a habilitar-se com o 12º ano de escolaridade;
55. O arguido tem um filho de 5 anos de idade, fruto do anterior casamento que reside com a respetiva progenitora, não mantendo contacto com os mesmos;
56. O arguido regista historial de consumos de bebidas alcoólicas desde os 23 anos de idade que inicialmente tinha tendência a minimizar, ainda assim, mostrou-se disponível para aderir ao acompanhamento em consultas de alcoologia, no Serviço de Tratamento de Dependências de ..., no âmbito do processo nº 338/19.3... do Juízo Local de ..., apesar do seu terapeuta de referência ter considerado que o arguido não apresentava um problema aditivo;
57. Ao nível de perspetivas futuras e uma vez em liberdade, o arguido pretende ir para junto da companheira e da filha de ambos e retomar a sua atividade profissional na construção civil;
58. Em meio prisional, o arguido mantém um comportamento de acordo com as regras institucionais, beneficiando regularmente da visita da sua companheira e da irmã e do apoio das mesmas, encontrando-se ativo em termos laborais;
59. O arguido já foi condenado pela prática, em 31.05.2019, de um crime de ameaça agravado, na pena de 80 dias de multa, por sentença de 5.05.2020, transitada em julgado em 2.07.2020;
60. O arguido já foi condenado pela prática, em 1.05.2018, de um crime de violência doméstica contra cônjuge, na pena de 3 anos de prisão, suspensa por igual período e sujeita a regime de prova e na pena acessória de proibição de contactos com a ofendida pelo período de 8 meses, por sentença de 15.07.2020, transitada em julgado em 28.10.2020.
(…)
Pertinente para a questão da verificação de continuação criminosa é o seguinte excerto da “motivação da decisão de facto”:
O Tribunal julgou, ainda, provados os factos que na acusação se mostravam descritos no que se refere à ausência de carta de condução por parte do arguido e à condução pelo mesmo de um dos dois veículos em que se deslocava habitualmente de casa para o trabalho em todos os dias em que ocorreram os incêndios descritos na factualidade provada, por duas vezes distintas em 31 de julho de 2023 (cfr. pontos 2., 3. e 47. a 49. da factualidade provada).
Com efeito, tal não foi em momento algum negado pelo arguido o qual, em primeiro interrogatório judicial de arguido detido, referindo-se ao período de tempo em que ocorreram os incêndios cuja autoria lhe são imputados, afirmou deslocar-se sempre para o trabalho naquele período ao volante de um dos carros de que dispunha, o Fiat Punto que era sua propriedade e o Renault Clio propriedade da sua companheira, tendo acrescentado que na grande parte dos dias de trabalho almoçava na obra em que se encontrasse a trabalhar, dentro do carro.
Estes factos foram, ainda, confirmados pelo patrão do arguido à data dos factos, a testemunha DD, cujo depoimento mereceu credibilidade atenta a espontaneidade e serenidade com que foi prestado.
Sobre a prática dos crimes de condução de automóvel, em via pública, sem habilitação legal, o Tribunal a quo considerou terem sido praticados 11 ilícitos, nos seguintes termos:
No que respeita ao tipo subjetivo, estamos perante um crime necessariamente doloso, exigindo que o agente, apesar de saber que não possui habilitação legal para conduzir veículo com motor na via pública, o tenha querido fazer, tendo consciência de que tal constitui um facto ilícito.
Ora, o arguido atuou com dolo direto em todas as situações referidas em 2. da factualidade provada, na medida em que ao atuar da forma descrita, agiu livre, deliberada e conscientemente, ciente de que não era titular de carta de condução válida e que só podia conduzir um veículo a motor na via pública quem estiver legalmente habilitado para o efeito e, não obstante, quis e levou a cabo tal conduta por 11 vezes, bem sabendo que as mesmas não eram permitidas e eram punidas por lei penal (cfr. pontos 48. e 49. da factualidade provada).
Face ao exposto, cometeu o arguido, em autoria material, onze crimes de condução de automóvel, em via pública, sem habilitação legal, previstos e puníveis pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro, pelo que não pode este Tribunal deixar de o punir por tais crimes.)
Quanto às penas e à determinação da sua medida concreta, o acórdão recorrido ponderou:
Feito, pela forma supra descrita, o enquadramento jurídico-penal das condutas do arguido importa agora determinar a medida da sanção a aplicar-lhe.
O crime de incêndio florestal, previsto e punível pelo artigo 274.º, n.º 1, do Código Penal, é punível com pena de prisão compreendida entre 1 e 8 anos de prisão.
Por sua vez, o crime de condução sem habilitação legal previsto e punível pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro, é punido com pena de prisão até dois anos ou de multa até 240 dias.
Referindo-se a este artigo, diz o acórdão da Relação de Lisboa, de 17.01.19963, que “I - A escolha da pena, nos termos do artigo 70º do Código penal revisto, depende unicamente de considerações de prevenção geral e especial...”.
Segundo Germano Marques da Silva, “o artigo 70º servirá tão-só para afirmar um critério orientador para a escolha das penas, dando o legislador preferência à pena não privativa da liberdade sempre que esta realizar a recuperação social do delinquente e as particulares exigências de prevenção que não imponham a aplicação de pena privativa da liberdade...”4.
A pena de prisão apenas deve lograr aplicação quando todas as restantes medidas se revelem inadequadas, face às necessidades de reprovação e prevenção.
Necessidade, proporcionalidade e adequação são os princípios orientadores que devem presidir à determinação da pena aplicável à violação de um bem jurídico fundamental.
No caso dos presentes autos, deve atender-se a que as exigências de prevenção geral são elevadas, dada a frequência com que a prática deste tipo de ilícito ocorre, contribuindo, em paralelo com outras causas, para o aumento da, já de si elevada, taxa de sinistralidade rodoviária, tornando-se necessária uma crescente consciencialização para os perigos da circulação rodoviária.
Por outro lado, não obstante o arguido não ter averbado no seu registo criminal qualquer condenação anterior pela prática do crime de condução sem habilitação legal, constata-se que o arguido tem um carro em seu nome que, até ser preso, conduzia diariamente, alternando com o veículo automóvel da sua companheira.
A atuação do arguido nos termos referidos aponta-nos no sentido de uma grande desconformidade com o Direito e com o cumprimento de regras, motivo pelo qual se entende que a aplicação ao arguido de uma pena de multa não realiza de forma adequada e suficiente as finalidades de prevenção geral positiva ou de reafirmação contrafáctica das normas violadas e de prevenção especial positiva ou de socialização, devendo o mesmo ser condenado em pena de prisão pela prática dos onze crimes de condução sem habilitação legal.
Feita a opção pela pena de prisão, há que procurar determinar a sua medida concreta, dentro dos limites estabelecidos pela moldura penal aplicável em causa, que tem como limite mínimo 1 mês e como limite máximo 2 anos (cfr. artigos 47.º, n.º 1, do Código Penal e 3.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro).
Tal artigo consagra assim o princípio que representa a pedra de toque do Direito Penal português, o princípio da culpa. Com efeito, segundo tal princípio, toda a pena tem como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta, princípio que encontra desde logo consagração no artigo 13.º do Código Penal, que apenas prevê a punibilidade do facto praticado a título de dolo, ou em casos especialmente previstos na lei, a título negligente.
Na verdade, não só não há pena sem culpa, como é também a culpa que decide a medida da pena (artigos 40.º, n.º 2 e 71.º, n.º 1, do Código Penal).
Quanto à prevenção, a pena tem dois tipos de finalidades: por um lado, uma finalidade de prevenção geral positiva ou de integração, visando a defesa da ordem jurídico-penal tal como é interiorizada pela consciência coletiva (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 8/10/1997, cujo sumário está disponível em www.dgsi.pt) e, por outro lado, a prevenção especial positiva ou de socialização, a qual pressupõe que o arguido sentirá a sua condenação como uma advertência e que não cometerá, no futuro, outro crime5.
Culpa e prevenção ocupam assim papéis primordiais na determinação da medida da pena.
A propósito do papel de ambas, diz o acórdão da Relação de Coimbra de 17/01/19966, “...III - Quanto à culpa, o facto ilícito é prevalentemente decisivo, devendo antes de tudo o mais, ser valorado em função do seu efeito externo (ataque ao objeto em particular, designadamente os danos ocasionados, a extensão dos efeitos produzidos). IV – Quanto à prevenção, constitui um fim, relevando para a determinação da pena necessária, em função da maior ou menor exigência do ponto de vista preventivo, acabando por fornecer, em último termo, a medida de pena....”.
No que ao crime de incêndio se refere, são elevadíssimas as necessidades de prevenção geral considerando o elevado número de incêndios ocorridos em Portugal nos últimos anos, com consequências gravíssimas quer ao nível de destruição de património e de vidas humanas, o que leva a um sério aumento do sentimento de insegurança por parte da população quanto a este tipo de ilícito.
Tal como se deixou referido no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26.10.20227, não podemos “… esquecer que um foco de incêndio depois de ateado, pode resultar num incêndio de proporções catastróficas, como é do conhecimento público. Quantas vezes, uma pequena queimada, ou um simples churrasco, provocam incêndios que devastam centenas largas de hectares, destoem casas, fábricas e causam a norte de pessoas e animais.
Efetivamente depois de ateado o fogo, são várias as circunstâncias que se tornam impossíveis de controlar, designadamente a morfologia do local, e sobretudo as condições atmosféricas e climatéricas.
Como é sabido, basta que subitamente se levante vento, para que um pequeno incêndio se torne incontrolável, Quantas vezes, já vimos nos noticiários, incêndios que se encontram circunscritos, e por alterações súbitas das condições meteorológicas, como por exemplo por efeito do vento, ou das condições de humidade atmosférica, desviam-se noutras direções, avivam-se com intensidade tornam-se novamente incontrolados.
(…)
a punição dos incendiários, mais que nunca, exige ser rigorosa, severa e exemplar. Não é possível, a sociedade não aceita que possa haver tolerância ou complacência para pessoas, que de modo racionalmente inexplicável são capazes de tais atos de indiferença pelo sofrimento alheio, de desrespeito pelas vidas humanas e bens patrimoniais alheios”.
Assim, no caso dos autos, devem atender-se aos seguintes critérios, ao abrigo daquele artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal:
- Atendendo ao modo como o arguido atuou ao dar início ao incêndio ocorrido no dia 16 de agosto de 2023, pelas 8 horas e 6 minutos, e às consequências do mesmo, pois destruiu uma área de 50 metros quadrados, não se tendo propagado pela restante vegetação ali existente, face à pronta intervenção dos bombeiros voluntários que ocorreram ao local, o grau de ilicitude dos factos praticados pelo arguido é muito elevado, pois convém salientar que os resultados deste incêndio só não atingiram outras dimensões e não atingiram bens patrimoniais alheios de valor elevado, porquanto o mesmo foi prontamente combatido pelos bombeiros;
- No que se refere aos crimes de condução de veículo sem habilitação legal o grau de ilicitude é elevado considerando o que resultou provado nos autos no sentido de que o arguido conduz diariamente veículos automóveis sem habilitação legal para tal;
- A culpa do arguido é muito elevada, atendendo nomeadamente ao modo engendrado pelo arguido para dar início ao incêndio, exigindo grande reflexão e premeditação, justificando a conduta do arguido uma censura ético-jurídica elevada já que podia e devia ter agido de outro modo, tendo agido com dolo na sua forma mais intensa - dolo direto, o que igualmente sucedeu quanto aos onze crimes de condução sem habilitação legal que cometeu;
- Ausência de motivo para que o arguido procedesse como procedeu, demonstrando um total desrespeito para com o meio envolvente, património e pessoas que residem muito próximo do local da prática dos factos;
- A ausência de arrependimento e de demonstração da interiorização do desvalor da sua atuação por parte do arguido;
- À data da instauração do presente processo o arguido residia em casa arrendada em ..., com adequadas condições de habitabilidade juntamente com a esposa e a filha do casal, atualmente com 13 meses;
- A esposa tem um outro filho de 10 anos de idade, que está à guarda do respetivo progenitor, mas que aos fins de semana também integra o referido agregado;
- O agregado apresentava uma situação económica aparentemente equilibrada, resultante do facto dos elementos que o compõem estarem inseridos a nível laboral, o arguido como ... da construção civil e a companheira como empregada de...;
- Em termos profissionais, à data dos factos o arguido desenvolvia atividade profissional de forma regular e empenhada, no setor da construção civil, onde auferia 400 euros semanais, tendo iniciado o seu percurso profissional com 17 anos de idade, como ... da construção civil, atividade que tem desenvolvido ao longo dos últimos anos;
- Ao nível escolar, com um percurso escolar pouco investido, associado ao absentismo e dificuldades no cumprimento de regras, abandonou o sistema de ensino aos 17 anos de idade, durante a frequência de um curso profissional que não concluiu, vindo já em idade adulta a habilitar-se com o 12º ano de escolaridade;
- O arguido tem um filho de 5 anos de idade, fruto do anterior casamento que reside com a respetiva progenitora, não mantendo contacto com os mesmos;
- O arguido regista historial de consumos de bebidas alcoólicas desde os 23 anos de idade que inicialmente tinha tendência a minimizar, ainda assim, mostrou-se disponível para aderir ao acompanhamento em consultas de alcoologia, no Serviço de Tratamento de Dependências de ..., no âmbito do processo nº 338/19.3... do Juízo Local de ..., apesar do seu terapeuta de referência ter considerado que o arguido não apresentava um problema aditivo;
- Ao nível de perspetivas futuras e uma vez em liberdade, o arguido pretende ir para junto da esposa e da filha de ambos e retomar a sua atividade profissional na construção civil;
- Em meio prisional, o arguido mantém um comportamento de acordo com as regras institucionais, beneficiando regularmente da visita da sua companheira e da irmã e do apoio das mesmas, encontrando-se ativo em termos laborais;
- O arguido já foi condenado pela prática, em 31.05.2019, de um crime de ameaça agravado, na pena de 80 dias de multa, por sentença de 5.05.2020, transitada em julgado em 2.07.2020;
- O arguido já foi condenado pela prática, em 1.05.2018, de um crime de violência doméstica contra cônjuge, na pena de 3 anos de prisão, suspensa por igual período e sujeita a regime de prova e na pena acessória de proibição de contactos com a ofendida pelo período de 8 meses, por sentença de 15.07.2020, transitada em julgado em 28.10.2020.
- 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão pela prática do de incêndio florestal por que o arguido vai condenado;
- 6 (seis) meses de prisão por cada um dos crimes de condução sem habilitação legal por que vai condenado.
Somando as penas parcelares aplicáveis aos crimes que cometeu, obtém-se o limite superior da moldura penal aplicável: 9 anos de prisão. O limite mínimo é a mais elevada das penas concretamente aplicadas, ou seja, 3 anos e 6 meses de prisão.
Encontrando-se apurada a moldura abstrata, a pena única é determinada de acordo com a parte final do n.˚ 1 do artigo 77.˚ do Código Penal, ou seja, considerando em conjunto, os factos e a personalidade do agente, sendo esta última determinante para a aferição da pena unitária.
Considerando a personalidade do arguido revelada pela gravidade dos factos que praticou e pela forma como os praticou, bem como pelo comportamento por si assumido em audiência de julgamento, reveladora de total ausência de interiorização da gravidade das suas condutas, decide o Tribunal condená-lo na pena única de 5 anos e 6 meses de prisão.
Invoca a Recorrente o disposto no art. 30° nº 2 do Código Penal para sustentar que os factos consubstanciam um crime continuado de condução de veículo sem habilitação legal..
“A realização plúrima do mesmo tipo de crime pode constituir: a) um só crime, se ao longo de toda a realização tiver persistido o dolo ou resolução inicial; b) um só crime na forma continuada, se toda a actuação não obedecer ao mesmo dolo, mas estiver interligado por factores externos que arrastam o agente para a reiteração da conduta; e c) um concurso de infracções, se não se verificar qualquer dos casos anteriores.”8.
De acordo com Eduardo Correia9, verifica-se o concurso efectivo de crimes, se “o comportamento do arguido for susceptível de uma pluralidade de juízos de censura, traduzido por uma pluralidade de resoluções autónomas: de resoluções de cometimento de crimes, no caso de dolo”; ou, como entende Figueiredo Dias10, “pluralidade de resoluções no sentido de nexos finais e pluralidade de violações do próprio dever de cuidado conexionado com um resultado típico concreto”. Por outro lado, existe um único crime se existir “uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua actividade sem ter de renovar o respectivo processo de motivação”11. Já o crime continuado12 integra uma “unidade jurídica construída por sobre uma pluralidade efectiva de crimes”, sendo seu “pressuposto (…) a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito”13.
Assente que está a matéria de facto, a unidade ou pluralidade de resoluções há-de encontrar ressonância na factualidade assente.
Recorde-se que a factualidade objectiva atinente ao crime de condução sem habilitação legal está condensada no facto provado 2, esclarecendo que o único motivo da condução eram as deslocações para o trabalho e o regresso à residência. Também os elementos relativos aos elementos subjectivos da infracção aglomeram todos os episódios de condução. A motivação da decisão de facto (parte transcrita) confirma esse único desígnio para a prática da condução.
Vejamos então.
Factualmente, o Recorrente sustenta que existe uma realização plúrima do mesmo tipo de crime, executado de forma homogénea e no quadro de uma mesma situação exterior que diminui consideravelmente a sua culpa relevante nos termos do art. 30º nº 2 do Código Penal porque “o arguido, de forma absolutamente homogénea, conduzia regularmente, de casa para o trabalho, e para levar a esposa, de e para o trabalho, no âmbito de uma mesma solicitação, que era precisamente o cumprimento dessas obrigações, sempre renovadas”.
É, efectivamente, na factualidade provada que se há-de encontrar a ressonância dos elementos do crime continuado. In casu, a factualidade assente não permite configurar a existência de uma situação exterior com reflexos na diminuição da culpa. Pelo contrário, o que nos é revelado é uma conduta reiterada de desrespeito pelas regras de alguém que não estando habilitado a conduzir, conduzia diariamente, para se deslocar para o trabalho e regressar para casa, ou seja, é o arguido que cria intencionalmente as condições para poder conduzir e fá-lo sempre com a mesma intensidade de culpa.
Não estamos, pois, perante uma situação de crime continuado.
A diminuição sensível da culpa, exigida pelo art. 30º nº 2, só poderá ter lugar quando a ocasião favorável à prática do crime se repete, sem que o agente tenha contribuído para essa repetição, já não quando o agente a provoca, nomeadamente escolhendo o tempo, o local e o modo de execução do crime, como sucede neste caso14.
Assim, não se encontra qualquer “circunstância exógena que diminua consideravelmente a culpa”, como exigido pelo art. 30º nº 2 do Código Penal para que se verifique o crime continuado. Na realidade, se “toda a construção do crime continuado se apoia na diminuição considerável da intensidade da culpa que resulta de uma conformação especial do momento exterior da conduta que concorre para determinar o agente à resolução de renovar a prática do mesmo crime”15, não há nos autos qualquer circunstância que diminua a culpa de forma acentuada16.
Porém, com a factualidade que ficou assente também se torna difícil sustentar, como o acórdão recorrido, a existência de onze crimes de condução sem habilitação legal, não só pela aglutinação de todos os episódios de condução, como também pelo tratamento da intenção do arguido como se fosse uma só (não se afirmando nem decorrendo da factualidade que cada vez que retomava a condução, renovava o seu propósito).
Consequentemente, salvo o devido respeito, o que a factualidade provada demonstra é a existência de um único crime e não um crime continuado como pretende o Recorrente nem um concurso de crimes como considerou o acórdão recorrido.
Desenvolvendo e justificando esta solução, importa reter que «para afirmar uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua actividade sem ter de renovar o respectivo processo de motivação»17.
Neste caso, essa conexão existe porquanto18 existindo uma resolução inicial do arguido mantida ao longo de toda a actuação conduzir veículo, existe um só crime desde o primeiro momento em que o arguido conduz o veículo sem para tal estar habilitado até à altura em que é interceptado pelas autoridades.
Não se verifica um ilícito por cada km percorrido ou por cada vez que o agente sai do carro interrompe a condução e volta a conduzir, ou que conduza outro ou outros veículos. O arguido, e nunca é de mais salientar, actuou com o referido propósito inicialmente formulado e nunca abandonado de conduzir para o trabalho e de regresso a casa (só isso se provou).
“Embora a actuação delituosa não se esgote num acto único e instantâneo e se trata de uma actuação de carácter duradouro, prolongada no tempo, sem prejuízo da unidade do crime, desde que haja uma única resolução a presidir a toda essa actuação, não existe crime continuado, mas um só crime.” (- Ac. do STJ de 8-3-84 BMJ 335-185).
Nem toda separação temporal na actividade do agente importa em pluralidade de resoluções. Há diversos actos separados no tempo, que, no entanto, representam uma só resolução, embora a prática de cada um dos actos obrigue a uma certa manifestação de vontade. Ora esses actos não são mais do que descargas automáticas da resolução inicial.
Exige-se uma unidade de resolução e de propósito, ou seja, que o autor do facto tenha consciência de que com aquela concreta acção lesa e viola um comando jurídico que a proíbe e puna.
Deste modo do exame de toda a factualidade resulta que a actuação do arguido, tem de ser subsumida a u crime.
Com efeito, no plano naturalístico, ele desenvolveu uma única conduta que se prolonga no tempo e que só foi “cortada”, só “terminou” aquando da intercepção pelos agentes da autoridade.
É que o crime ora em apreço é de consunção instantânea, mas só termina quando o agente é interceptado ou cesse voluntariamente essa actuação e dela têm conhecimento as autoridades que têm competência para proceder criminalmente.
Trata-se, para usar a expressão de Eduardo Correia (- Unidade e Pluralidade de Infracções, pag. 23), de um “estado antijurídico”, que, no caso, se mantém.
Como se extrai do exposto, diferente teria sido a situação se se tivesse apurado que o arguido tinha sido abordado pelas autoridades e parado o veículo depois de cada utilização, ou se houvesse uma distância temporal significativa entre cada período temporal, pois que nessa situação teria de se concluir inequivocamente por uma nova resolução criminosa ao retomar a condução19.
O crime de condução sem habilitação legal exige a circulação na via pública e prolonga-se no tempo, por isso, só deixa “de haver unidade criminosa quando, por decisão do agente ou por razões a ele alheias, por exemplo por intervenção das autoridades, ocorra uma situação de descontinuidade da conduta típica nessa medida”20.
Consequentemente, o arguido deve ser condenado por um único crime de condução sem habilitação legal.
Uma nota para afirmar que o art. 402º do Código de Processo Penal consagra o princípio do conhecimento amplo de toda a decisão recorrida e, consequentemente, os poderes de cognição do Tribunal Superior em matéria de indagação e aplicação do direito só são limitados pela proibição da reformatio in pejus21 e, por isso, “pode, em recurso, alterar oficiosamente a qualificação jurídico-penal efectuada pelo tribunal recorrido”22, in casu, sem necessidade de cumprimento do disposto no art. 424º nº 3 do Código de Processo Penal, porquanto a possibilidade de alteração da qualificação jurídica não só é conhecida pelo arguido, ora Recorrente, como foi suscitada por ele no recurso que interpôs e, por isso, estão integralmente asseguradas as garantias de defesa e o princípio do contraditório, constitucionalmente consagrados (nºs 1 e 5 do art. 32º da Constituição da República Portuguesa) 23. Ademais, está em causa uma reformatio in mellius, na linha da pretensão do Recorrente.
Por fim, adianta-se desde já que, por força do princípio da proibição da reformatio in pejus, o arguido, ora Recorrente será condenado numa pena que não pode ultrapassar o limite dos seis meses de prisão definidos na decisão recorrida, porquanto o tribunal não pode modificar, na sua medida, as sanções constantes da decisão recorrida, em prejuízo do arguido (art. 402º do Código de Processo Penal). Na realidade, pese embora o Recorrente tenha proposto uma condenação pelo crime de condução sem habilitação legal, na forma continuada, que sustentou existir, numa pena máxima de 1 ano de prisão, por força do aludido princípio o tribunal de recurso não pode agravar a pena em que foi condenado.
2. A medida das penas
O crime de incêndio praticado pelo Recorrente, previsto no art. 274º nº 1 do Código Penal é punível com pena de prisão de 1 a 8 anos, tendo o tribunal a quo fixado a pena por tal crime em três anos de prisão. O Recorrente limita-se a pugnar pela aplicação de pena não superior a 2 anos.
O crime de condução de veículo, em via pública, sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3º nºs 1 e 2 do Decreto-Lei 2/98 de 3.1. é punível com pena de prisão até dois anos ou multa até 240 dias, tendo o tribunal a quo fixado a pena por cada um dos onze crimes, em seis meses de prisão, sendo esse o limite da pena a aplicar por força do aludido princípio da proibição da reformatio in pejus.
Por fim, o tribunal a quo fixou a pena única em cinco anos e seis meses de prisão que o Recorrente considera excessiva face à medida da culpa e às das exigências de prevenção, atendendo à idade do arguido, à integração social, familiar e profissional e à ausência de antecedentes por crimes desta natureza.
O Recorrente não põe em causa a opção pela pena de prisão nos termos do art. 70º do Código Penal, relativamente aos crimes de condução de veículo, em via pública, sem habilitação legal que preveem em alternativa as penas de prisão ou de multa. Concordamos na íntegra com o acórdão recorrido na sua fundamentação para afastar a opção por pena de multa.
Das conclusões do recurso resulta que o Recorrente se insurge contra as penas parcelares e única que reputa serem exageradas atendendo à idade do arguido, à integração social, familiar e profissional e à ausência de antecedentes por crimes da mesma natureza.
Como decorre da fundamentação da medida das penas transcrita supra, o Tribunal a quo enquadrou devidamente a determinação das penas concretas, no princípio da culpa e nas exigências de prevenção, enfatizando as elevadíssimas necessidades de prevenção geral quanto ao crime de incêndio, aliás em linha com a jurisprudência deste Tribunal24 que também merece a nossa concordância.
Elencou e apreciou todas as circunstâncias pertinentes (com pendor atenuante e agravante) a que alude o nº 2 do art. 71º do Código Penal.
Respeitou como se impunha, os princípios gerais, as operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração dos factores de medida da pena.
Verificada que está o respeito pelos princípios gerais e a correcção das operações de determinação impostas por lei e dos factores de medida da pena, conforme jurisprudência sedimentada deste Tribunal, resta apreciar se nas penas parcelares foram violadas regras da experiência ou se a quantificação é desproporcionada ou excessiva.
Regista-se que relativamente a ambos os crimes, todas as circunstâncias, mormente as referidas pelo Recorrente foram devidamente consideradas. Não pode deixar de se referir que a idade do arguido na data da prática dos factos não tem relevância atenuante (não é abrangido pela Lei 38-A/2023 de 2.8 – perdão de penas e amnistia de infracções) ou agravante, enquanto a ausência de antecedentes criminais por crimes da mesma natureza não mitiga a relevância dos seus antecedentes criminais na medida em que expressam um desrespeito por múltiplos valores comunitários com tutela penal, especialmente, a circunstância de ter praticado os crimes ainda no período de suspensão da execução da pena pela anterior condenação por crime de violência doméstica.
No contexto, a pena pelo crime de condução mostra-se fixada em termos que não justificam a ponderação de uma pena inferior. Tanto assim é que o Recorrente admitia uma pena superior para o crime na forma continuada. Não se olvide que a condução do veículo em 16 de Agosto foi essencial para a prática do crime de incêndio.
Quanto ao crime de incêndio importa ter em atenção as extremas necessidades de prevenção geral de que o acórdão recorrido dá conta e a jurisprudência referida na nota 22 acentua, pelas nefastas consequências ambientais, económicas e perigo para a vida.
A pena fixada em 3 anos e 6 meses de prisão, perto do 1/3 inferior da moldura penal mostra-se adequada e proporcional, atendendo às exigências de prevenção geral e especial, à culpa do arguido e a todas as circunstâncias dos factos.
A pena única terá de ser reapreciada, porquanto face à alteração efectuada, está em causa apenas uma pena de 6 meses por um crime de condução sem habilitação legal e não onze crimes.
Nos termos do art. 77º nº 2 do Código Penal, a pena tem como limite mínimo a pena de três anos e seis meses de prisão e como limite máximo a pena de quatro anos de prisão.
Face ao disposto no art. 77º nº 1, parte final, do Código Penal, na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do arguido.
Atendendo às necessidades de prevenção geral elevadas para ambos os crimes, ao grau de ilicitude dos factos no mesmo patamar, à culpa intensa do arguido, às necessidades de prevenção especial prementes atendendo aos antecedentes criminais e aos hábitos alcoólicos, apesar de uma integração social, familiar e profissional que também merece relevância, uma pena de três anos e nove meses de prisão, fixada entre no ponto intermédio da pena definida nos termos do art. 77º nº 2 do Código Penal, reflecte um justo equilíbrio entre as necessidades de protecção dos bens jurídicos e de reintegração social, tendo em atenção a apreciação conjunta dos factos e da personalidade do arguido.
3. A suspensão da execução da pena
O Recorrente pretende a suspensão da execução da pena de prisão, nos “limites de razoabilidade”, atendendo às exigências de prevenção especial adequadas, à sua juventude e integração social, familiar e profissional.
Quanto à suspensão da execução da pena, como salienta o Supremo Tribunal de Justiça, “pressuposto material básico do instituto da suspensão da execução da pena é a expectativa, objectivamente fundada, de que a simples censura do facto e a ameaça da pena de prisão bastarão para afastar o condenado da criminalidade. Como refere Jescheck, a suspensão da pena pressupõe um prognóstico favorável, consubstanciado na esperança de que o condenado não voltará a delinquir, prognóstico que requer uma valoração global de todas as circunstâncias que possibilitem a formulação de uma conclusão sobre o comportamento futuro do condenado, aí se incluindo a personalidade (inteligência e carácter), a vida anterior (condenações anteriores), as circunstâncias do crime (motivos e fins), a conduta posterior ao crime (arrependimento, reparação do dano) e as circunstâncias pessoais (profissão, família, condição social), e que terá de ser feito tendo em vista exclusivamente considerações de prevenção especial, pondo de parte considerações de prevenção geral”25.
A premência das elevadíssimas exigências de prevenção geral e especial já foi afirmada a propósito da medida das penas.
Quanto às exigências de prevenção especial, não se pode escamotear que o arguido ora Recorrente não é primário (duas condenações anteriores) e praticou os factos no período de suspensão da execução da pena que lhe foi aplicada por crime de violência doméstica. Acresce, para além da gravidade e censurabilidade do crime de incêndio praticado, algumas preocupações em termos de inserção social porquanto, apesar da aparente inserção familiar e laboral, também ficou demonstrado historial de consumos de bebidas alcoólicas desde os 23 anos de idade (facto 56).
Assim, a questão a que urge responder é a de saber se basta a inserção social, familiar e laboral para, sopesando as exigências de prevenção que se elencaram, se emitir o referido juízo de prognose positivo subjacente à suspensão da execução da pena em que foi condenado.
A resposta tem de ser negativa.
Dir-se-á então, por referência a todas as circunstâncias a que alude o supra citado acórdão que a valoração global da personalidade do Recorrente impede que se formule um prognóstico favorável, consubstanciado na esperança de que o condenado não voltará a delinquir. Particularmente relevante é a prática de factos com a gravidade dos que estão em causa, no período de suspensão da execução de uma anterior pena de prisão, revelando assim a sua incapacidade para manter uma conduta conforme ao direito.
Na realidade, “havendo razões sérias para duvidar da capacidade do agente para não repetir a prática de crimes, se for deixado em liberdade, o juízo de prognose deve ser desfavorável e a suspensão negada (…).
“A finalidade político-criminal do instituto da suspensão consiste no afastamento do delinquente da prática de novos crimes ou, dito de outro modo, decisivo é aqui o «conteúdo mínimo» da ideia de socialização, traduzida na «prevenção de reincidência».
“Aliás, o único entendimento consentâneo com as finalidades de aplicação da pena é a tutela de bens jurídicos e, [só] na medida do possível, a reinserção do agente na comunidade, pelo que, em caso algum, a defesa da ordem jurídica pode ser postergada por preocupações de socialização em liberdade”26 (sublinhado nosso).
Como decorre do supra exposto, a necessidade de tutela dos bens jurídicos e, bem assim, as apontadas exigências de prevenção especial que se afiguram prementes, impedem a suspensão da execução da pena.
Neste contexto, não pode a pena de prisão aplicada ao Recorrente ser suspensa na sua execução.
III – DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da 3ª Secção Criminal deste Supremo Tribunal de Justiça em conceder provimento parcial ao recurso interposto pelo arguido AA e, consequentemente:
• Manter a condenação do arguido, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de incêndio florestal, previsto e punível pelo art. 274º nº 1 do Código Penal, na pena de três anos e seis meses de prisão;
• Absolver o arguido de dez crimes de condução sem habilitação legal e condená-lo num único crime de condução sem habilitação legal, previsto e punível pelo art. 3º nºs 1 e 2 do Decreto-Lei 2/98, de 3 de janeiro na pena de 6 meses de prisão
• Operando o cúmulo jurídico, condenar o arguido na pena única de três anos e nove meses de prisão.
• Não suspender a execução da pena de prisão.
Sem custas.
Lisboa, 17 de Dezembro de 2024
Jorge Raposo (relator)
Carlos Campos Lobo
José Careto
_______
1. Diário da República n.º 120/2017, Série I, de 23.6.2017.
2. Excluem-se os factos atinentes aos incêndios em que não se provou a intervenção do arguido.
3. Coletânea de Jurisprudência, 1996, tomo I.
4. Cfr. Germano Marques da Silva, DPP, III, 1999.
5. Cfr. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 1/07/1998, cujo sumário se encontra disponível em www.dgsi.pt
6. Cfr. Coletânea de Jurisprudência, 1996, tomo I, pág. 38.
8. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25.06.86, no BMJ 358, 267..
9. In “Unidade e Pluralidade de Infracções”, Colecção Teses, Almedina, 1983
10. In “Direito Penal - Sumários e Notas das Lições do Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias ao 1º Ano do Curso Complementar de Ciências Jurídicas da Faculdade de Direito de 1975 - 1976”, pags. 101 e segs.
11. Eduardo Correia, Direito Criminal II reimpressão, Almedina, 1971, pg. 202.
12. Figueiredo Dias, em Direito Penal Português, As Consequências do Crime, Aequitas, 1993, pg. 296
13. Eduardo Correia, em Direito Criminal, vol. 2, pg.s 210 e 211.
14. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8.6.2022, no proc. 430/21.4PBPDL.L1.S1.
15. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.4.2013, no proc. 180/05.9JACBR.C1.S1.
16. No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6.7.2022, no proc. 15/20.2PEVIS.C1.S1 afasta-se a continuação criminosa, em caso da prática de condução sem habilitação legal no quadro de actividade de tráfico de estupefacientes porquanto, “a culpa do arguido não se mostra consideravelmente diminuída com a actividade de tráfico de estupefacientes que não é uma situação exterior ao arguido; antes é uma situação proveniente da sua vontade, criada e desenvolvida por sua vontade”.
17. Eduardo Correia, Direito Criminal II reimpressão, Almedina 1968, págs. 202
18. Apud, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 4.11.2009, no proc. 203/08.0GAMMV.C1 (relator João Trindade) em itálico e que adaptámos à situação dos autos
19. Como se disse, a unidade ou pluralidade de resoluções há-de encontrar ressonância na factualidade assente. Por vezes os factos permitem a conclusão da existência de uma nova resolução criminosa. No sentido da existência de dois crimes de condução sem habilitação legal, pronuncia-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.5.2021, proc 1/18.2SOLSB.S1, num quadro factual de separação “no tempo e na localização espacial, em dois episódios de vida autónomos e distintos … com distintas e renovadas intenções criminosas”; no sentido da não unificação da conduta e da existência de tantos crimes de condução sem habilitação legal (21) quantas as vezes que o arguido se propôs iniciar a condução numa situação em que, no âmbito do tráfico de estupefacientes, conduzia para diferentes entregas de estupefacientes a consumidores em ocasiões que se prolongam entre 31.8.2020 e 9.6.2021 e, essencialmente, após duas condenações transitadas em julgado, pela prática do mesmo ilícito, decidiu o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23.11.2022, proc. 543/19.2PALGS.E1.S1.
20. Como se afirma no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Fixação de Jurisprudência 9/2023, de 21 de Setembro publicado no Diário da República 184/2023, Série I de 21.9.2023 a propósito do crime de tráfico de estupefacientes que também pressupõe a possibilidade de uma actividade. Para efeitos da análise do caso concreto considera-se não ser necessário enveredar por uma análise às questões dogmáticas e terminológicas sobre a figura dos crimes habituais, exauridos, de trato sucessivo, de empreendimento, de actividade ou de execução reiterada (cfr. entre outros, o referido acórdão 9/2003, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.4.2016, proc. 657/13.2JAPRT.P1.S1; Helena Moniz, O crime de Trato Sucessivo, Julgar, Abril de 2018; Lobo Moutinho, Da Unidade à pluralidade dos Crimes no Direito Penal Português, UCP, 2005.
21. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15.9.03, no BMJ 429, pg. 501 e de 19.10.2000, no proc. 2803/00-5, em Sumários dos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça –Secções Criminais, Ano 2000, pg. 184 e Simas Santos e Leal-Henriques, “Recursos em Processo Penal”, 6ª ed. 2007, pg.s 79 e 86 a 87.
22. Por último, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4.6.2024 no proc. 263/22.0PQLSB.L1.S1. No mesmo sentido, destacam-se os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 16.12.2021, no proc. 148/12.9TAACN.E1.S1 e de 10.7.2008, no proc. 08P103 (cfr. ainda Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª ed., pg.s 86 e 87.
23. A este propósito, o acórdão do Tribunal Constitucional 394/2022
24. Cfr. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 12.9.2007, 8.11.2018, 15.7.2020, respectivamente nos proc.s 07P2270, 158/17.0GATND.S1, 415/19.0JAVRL.S1.
25. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.3.07, no proc. 06P4813; também o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.6.2020, no proc. 243/19.3JELSB.L1.S1 e de 15.7.2020, no proc. 3325/19.8T8PNF.S1.
26. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.3.03, no proc. 03P612; no mesmo sentido, a fundamentação do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4.6.2014, no proc. 262/13.3PVLSB.L1.S1