A relação de família ou grande proximidade entre o requerente de escusa e outro interveniente processual corre o risco de gerar para o exterior, para os destinatários da justiça, dúvidas sobre a imparcialidade.
Acórdão em conferência na 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:
I – RELATÓRIO
AA, Mmª Juiz Desembargadora na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de ... deduz pedido de escusa, para os autos em referência, invocando:
1º O Recurso n.º 3/20.9T9AND.C1 foi distribuído à signatária, como Relatora.
2.º A Exma Sr.a Dra. BB é mandatária do assistente, CC e subscritora do mencionado Recurso.
3.º É, também, irmã de DD, com quem a Requerente está casada e, por isso, sua "cunhada".
4.º Entre a signatária e BB existe uma relação familiar próxima, com convívios regulares.
5. º Tal relação familiar pode, constituir, no plano das representações da comunidade, um motivo sério e grave susceptível de gerar a desconfiança dos cidadãos quanto à imparcialidade da decisão que a ora requerente viesse a relatar, ainda que esta fosse subscrita por mais dois Desembargadores (o 1.º e 2.º adjuntos) que compõem a conferência, e, nessa mesma medida, gerar desconfiança no sistema da justiça.
7.2 Conforme disposto no artigo 43. ° do Código de Processo Penal, nos n.ºs 1, 2 e 4, o juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando correr o risco de a sua intervenção ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
8.º Assim, em ordem a evitar as dúvidas que possam surgir na imparcialidade da Requerente por via da relação familiar mencionada, entende ser seu dever formular este pedido de escusa.
Termos em que requer, a V. Exas. se dignem deferir a escusa da Requerente a intervir no Recurso em assunto.
Efectuado exame preliminar, foram os autos à conferência, cumprindo decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
O fundamento da escusa é a relação familiar próxima (cunhadas) com convívios regulares, entre a MMª Desembargadora e a mandatária do assistente, subscritora do recurso em apreciação.
Nos termos do art. 43º nº 1 do Código de Processo Penal, “a intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade”. O nº 4 da norma estatui que “o juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos nºs 1 e 2”.
Na síntese perfeita do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5.7.071, dir-se-á que “na legislação ordinária abriu-se mão da regra do juiz natural somente em circunstâncias muito precisas e bem definidas, tidas por sérias e graves, e, como se decidiu já o Supremo Tribunal de Justiça, irrefutavelmente denunciadoras de que o juiz natural deixou de oferecer garantias de imparcialidade e isenção.
Para que possa ser pedida a recusa de juiz, que:
• A sua intervenção no processo corra risco de ser considerada suspeita;
• Por se verificar motivo, sério e grave, do qual ou no qual resulte inequivocamente um estado de forte verosimilhança (desconfiança) sobre a imparcialidade do juiz (propósito de favorecimento de certo sujeito processual em detrimento de outro), a avaliar objectivamente com uma especial exigência;
• Adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
Para que haja um julgamento independente e imparcial, necessário é o que o juiz que a ele proceda possa julgar com independência e imparcialidade, mesmo que não esteja em causa a imparcialidade subjectiva do julgador que importava ao conhecimento do seu pensamento no seu foro íntimo nas circunstâncias dadas e que, aliás, se presume até prova em contrário.
É necessária, na verdade, uma imparcialidade objectiva que dissipe todas as dúvidas ou reservas, pois as aparências podem ter importância, devendo ser concedida a escusa a todo o juiz de quem se possa temer uma falta de imparcialidade, para preservar a confiança que, numa sociedade democrática, os tribunais devem oferecer aos cidadãos”.
A Declaração Universal dos Direitos do Homem de 10.12.19482 consagra, no art. 10º, o direito a um julgamento público e equitativo por um tribunal independente e imparcial.
Também o art. 6º § 1º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem elege a imparcialidade do juiz como princípio fundamental, afirmando o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem que o simples facto de um juiz ter tomado decisões antes do processo não pode justificar, em si, dúvidas quanto à sua imparcialidade. O que conta é a extensão e a natureza das medidas tomadas pelo juiz antes do processo e “decisivo será determinar se as suspeitas têm sustentação objectiva”3.
Em nome da sua imparcialidade, o juiz deve ser escusado não só se for incapaz de decidir a causa com imparcialidade mas também, em nome da transparência dos procedimentos, se puder parecer a um observador razoável (ou cidadão médio) que o juiz não pode ou não consegue decidir imparcialmente4.
Aplicando os princípios supra expostos ao caso dos autos afigura-se fundamental que se procure salvaguardar a imagem de imparcialidade, concedendo a requerida escusa para evitar suspeições sempre possíveis, já que “não é a exigida capacidade de imparcialidade do julgador que importa aqui acautelar, mas antes assegurar para o exterior, para os destinatários da justiça, a comunidade, essa imagem de imparcialidade”5.
Impõe-se, pois, salvaguardar o sistema de justiça e a forma isenta e imparcial como é administrada a justiça num Estado de direito e democrático, para que o cidadão médio continue a ter confiança nos tribunais.
Por esse motivo, a jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça tem decidido deferir pedidos de escusa em que a relação de família ou grande proximidade entre o requerente de escusa e outros intervenientes processuais corra o risco de gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade6.
Quer quem interpõe recursos, quer quem decide os recursos têm posições essenciais no processo, quando está em causa a apreciação de um recurso, havendo que distinguir a posição de cada um deles (assim como de quem responde aos recursos), merecendo uma decisão isenta e imparcial, pelo que é preciso salvaguardar eventuais dúvidas sobre a forma como é administrada a justiça.
O facto de, neste caso, a Desembargadora relatora a quem o recurso foi distribuído ser cunhada da advogada que subscreveu o recurso interposto pelo assistente e pugnou pela sua procedência, iria gerar dúvidas sobre a forma como era administrada a justiça, principalmente se o mesmo viesse a ser no todo ou em parte julgado procedente.
Conclui-se, assim, que neste circunstancialismo se justifica o deferimento do pedido de escusa.
III - DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam nesta Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça, em deferir o pedido de escusa apresentado pela Senhora Juiz Desembargadora AA.
Sem tributação.
Lisboa, 17 de dezembro de 2024
Jorge Raposo (relator)
José Carreto
Carlos Campos Lobo
______
1. Proc. 07P2565, em www.dgsi.pt.
3. “Acórdão do TEDH de 12.3.03 no caso Öcalan c. Turquia, em “Sumários de Jurisprudência do TEDH - 2003”, disponível em www.gddc.pt
4. The Bangalore Principles of Judicial Conduct, 2002 (The Bangalore Draft Code of Judicial Conduct 2001 adopted by the Judicial Group on Strengthening Judicial Integrity, as revised at the Round Table Meeting of Chief Justices held at the Peace Palace, The Hague, November 25-26, 2002).
5. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22.6.05, no proc. 1929/05-3
6. Neste sentido, por último, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 18.4.2022, no proc. 1081/20.6T9EVR-A.E1-A.S1, de 28.9.2023, no proc. 174/21.7TELSB.P1-A.S1, de 7.2.2024, no proc. 566/20.9GCSTS.P1-A.S1, de 21.3.2024, no proc. 231/20.7GBABF.E1-A.S1, de 4.6.2024, no proc. 2/22.6FBPTM.E1-A.S1, de 26.6.2024, no proc. 25/23.8PALGS.E1-A.S1, de 19.9.2024, no proc. 2531/16.1T9GDM.P1-A.S1 e de 5.12.2024, no proc. 184/12.5TELSB-A.S1.