REGIME JURÍDICO DOS SERVIÇOS DE PAGAMENTO E DA MOEDA ELECTRÓNICA
BURLA
OPERAÇÃO DE PAGAMENTO AUTORIZADA
Sumário


1. Para efeitos de aplicação do DL 91/2018, de 12/11 (Regime Jurídico dos Serviços de Pagamento e da Moeda Electrónica), uma operação de pagamento efectuada através de um terminal de pagamento automático e um cartão de débito (vulgo Multibanco) considera-se autorizada desde que o titular voluntariamente introduza o cartão no terminal e digite o seu código secreto.
2. Se o titular efectuou esse pagamento por ter sido vítima de burla, e estar a agir em erro sobre o objecto do negócio (art. 251º CC), isso não torna a operação de pagamento não autorizada, para efeitos do citado DL.
3. Os artigos 114º e 115º desse diploma regem para as situações em que a operação de pagamento não foi autorizada.
4. Para efeitos do disposto no nº 4 do art. 115º do citado DL, considera-se que agiu com negligência grosseira aquele ordenante, que tendo sido levado por uma mulher que não conhecia e com a qual marcou encontro numa rede social, a um estabelecimento que também não conhecia e onde consumiram bebidas, onde se ofereceu para pagar em dinheiro e lhe foi dito que só podia pagar com cartão, introduziu o seu cartão de débito e o seu código secreto pelo menos por duas vezes no terminal automático sem prestar atenção ao valor constante do visor do terminal.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:
 
I- Relatório

AA, divorciado, com o número de identificação civil (NIC) ...05 ..., residente na Rua .... ... ..., ... intentou acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra Banco 1... S.A, com o número de pessoa colectiva e de matrícula ...34, com sede na Avenida ..., ..., ... ...,
peticionando a condenação deste a pagar-lhe a quantia de €5.000,00, acrescido de juros moratórios à taxa legal supletiva, acrescidos de 10%, por força do art 114º, n.º 10 do Decreto-Lei nº 91/2018 de 12/11, calculados desde 17/08/2023, data em que se constituiu em mora (artigo 117º, número 1 do Decreto-Lei nº 91/2018 de 12 de Novembro), até efectivo pagamento, ascendendo os já vencidos em €145,61 ou subsidiariamente à taxa legal, desde a data da citação.
Para tanto alega, em suma, o seguinte: a ré tem como objecto social o exercício da actividade bancária; entre autor e ré foi celebrado um contrato de depósito bancário, tendo-lhe sido disponibilizado um cartão de débito, vulgo multibanco, com o n.º ...22; mais alega que no dia 18.2.2021, o autor deslocou-se a um estabelecimento designado “EMP01... 2”, sito na cidade do Porto, onde consumiu bebidas; quando se preparava para fazer o pagamento, foi convencido pela proprietária do estabelecimento de que só poderia fazer o pagamento por via de TPA, tendo apresentado o seu cartão; foi-lhe apresentado o valor do consumo, de €30,00, tendo inserido o PIN do cartão; posteriormente, tendo a proprietária alegado um funcionamento deficiente do TPS, solicitou ao autor que repetisse esta acção diversas vezes, o que este fez; mais tarde, constatou que efectuou diversos pagamentos numa janela temporal curta, ascendendo a € 5.000,00; neste seguimento, correram os autos n.º 311/19.... no Juiz ... do Juízo Central do Porto da Comarca do Porto, tendo sido proferido acórdão em 25.1.2023, entretanto transitado em julgado, no qual a referida proprietária foi condenada pela prática de um crime de burla informática, p. e p. no art. 221º CP; considera que a ré deveria ter procedido ao bloqueio do cartão de crédito ou contactado o autor, ao constatar diversos pagamentos num curto espaço de tempo; peticiona a devolução do valor da operação, com fundamento no disposto no art 117º,1 do DL 91/2018 de 12/11.

O Banco réu apresentou contestação tendo alegado, em suma, o seguinte: o autor é titular da conta de depósitos à ordem sediada na ré n.º ...01, tendo-lhe sido atribuído o cartão n.º ...22, associado à referida conta; conforme decorre da matéria de facto considerada provada no acórdão proferido nos autos n.º 311/19.... em 25/01/2023, foram realizadas duas operações de pagamento pelo autor que vieram a ser recusadas e uma terceira no valor de € 5.000,00, tendo esse montante sido debitado na predita conta, no dia 18/02/2021, tendo sido usada em proveito pessoal dos arguidos; do teor do referido acórdão, não consta que o autor tenha deduzido pedido de indemnização cível; a ré considera ser totalmente estranha à sequência de eventos acima descrita e que inexiste fundamento para a condenar no pedido; considera ainda ter ocorrido aqui culpa do lesado, nos termos previstos no art 570º do Cód Civil, pelo que considera que a indemnização deve ser reduzida, bem como a excepção peremptória de abuso de direito por parte do autor, na sua modalidade de venire contra factum proprium, nos termos previstos no art 334º CC; termina peticionando a absolvição da acção.

O autor exerceu o contraditório relativamente à excepção de abuso de direito, peticionado a improcedência da mesma.

Teve lugar a audiência de julgamento, com observância do legal formalismo, e a final foi proferida sentença que julgou a acção integralmente procedente e condenou a ré a pagar ao autor a quantia de € 5.000,00, acrescida de juros moratórios à taxa legal supletiva, acrescidos de 10%, calculados desde 17/08/2023, até efectivo pagamento.

Inconformado com esta decisão, o réu Banco 1..., SA dela interpôs recurso, que foi recebido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (arts. 644º,1,a, 645º,1,a, 647º,1 CPC).

Termina com as seguintes conclusões:
1. Como supra se relevou não pode o Banco Recorrente conformar-se com a sentença recorrida.
2. A sentença revidenda abordou as questões jurídicas em causa nos autos, em 2 segmentos.
-Considerou procedente a obrigação de reembolso, por inexistência de negligência grosseira, quer no âmbito do artº 115º, nº 4 do R.J.S.P.M.E., quer por desaplicação da regra do art. 570º do CC.
-Considerou improcedente a EXCEPÇÃO DE ABUSO DE DIREITO, pelo Banco Recorrente invocada.
3. Ora, não pode o Banco Recorrente conformar-se com a predita sentença, nos vários segmentos analisados.
4. A matéria constante no art. 3º dos FACTOS PROVADOS, extraída da matéria de facto, considerada como Provada no Acórdão de 25/01/2023, proferido no processo 311/19...., é por demais esclarecedora do contexto factual no qual o pagamento em causa nos autos foi realizado.
5. Aí, indubitavelmente de posse do seu aludido cartão e pelo Recorrido foram realizadas 2 operações de pagamento recusadas, tal como se encontra descrito a páginas 108 do referido Acórdão, correspondente ao Apenso AG - CASO XXIII, referente ao NUIPC 8155/21.....
6. E, nesse mesmo contexto, pelo Recorrido, de forma consabida, foi realizada e consumada uma operação de pagamento de € 5.000,00, tendo tal montante de € 5.000,00, sido debitado na predita conta D.O. do Recorrido, na mesma data de 18/02/2021, tal como consta do extracto da referida conta.
7. Tendo BB e CC, sido condenadas, quanto aos factos constantes do Apenso AG - CASO XXIII, referente ao NUIPC 8155/21...., em 2 anos de prisão cada uma, sendo, em cúmulo, aplicada uma pena única de 8 anos e 6 meses a BB e de 5 anos e 6 meses a CC, ambas suspensas na sua execução pelo período da condenação, sujeita a regime de prova.
8. Ora, o Banco Recorrente é totalmente alheio aos acontecimentos, nos quais o Recorrido consubstancia a presente acção, tendo dado cumprimento à genuína e autêntica ordem de pagamento recebida.
9. Por autenticação realizada pelo Recorrido, não tendo havido qualquer mau funcionamento ou deficiência nos sistemas informáticos do Banco Recorrente, nos exactos termos das disposições do R.J.S.P.M.E.
10. Sendo alheio a quaisquer vícios da vontade do mesmo Recorrido relativamente aos factos ocorridos no EMP01...… e ás suas expectativas e não sendo o Banco Recorrente tutor financeiro do Recorrido…Não detendo qualquer obrigação de confirmar a bondade dos pagamentos que o mesmo Recorrido faça, ao abrigo do saldo disponível na conta bancária, a que o cartão Multibanco se encontra associado.
12. Inexistindo, pois, qualquer acto ou omissão, por parte do Banco Recorrente, que possa prefigurar a sua responsabilidade civil e que possa determinar obrigação de indemnizar por parte do mesmo Banco.
13. Banco Recorrente esse que cumpriu o dever de diligência a que se encontra adstrito, nos termos do artº 73º e 74º do R.G.I.C.S.F.
14. Pelo que o Banco Recorrente não pode responder pela fraude cometida, sabe-se, por decisão judicial, muito bem por quem…
15. O busílis da questão reside, assim, na qualificação da conduta do Recorrido que contribuiu para a execução da transferência da sua conta bancária como culpa leve ou como negligência grosseira.
16. A mera culpa ou negligência traduz-se na omissão da diligência exigível, tal é o que resulta do disposto no art. 487.º, n.º 2, do Cód. Civil: “A culpa é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso.”
17. Há que ter em conta o considerando 72 da DIRECTIVA (UE) 2015/2366 do PARLAMENTO EUROPEU e do CONSELHO, relativa aos serviços de pagamento no mercado interno, que foi transposta para a ordem jurídica interna portuguesa pelo citado R.J.S.P.M.E. constante do Decreto-Lei n.º 91/2018, de 12 de Novembro, em consonância com o critério estabelecido no n.º 2 do art. 487.º do Cód. Civil quanto à consideração, para efeitos da apreciação da culpa, das circunstâncias de cada caso e dos exemplos aí consignados.
18. O recente Acórdão da Relação de Lisboa de 20/02/2024, fez uma detalhada análise de situações de facto levadas a apreciação dos nossos Tribunais, em que foi apreciado o conceito de NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA, para efeitos da eventual aplicação do artº 115º, nº 4, do R.J.S.P.M.E.
19. Há, pois, que atender ao contexto em que o comportamento do Recorrido teve lugar para se poder formular um juízo sobre o grau da sua negligência.
20. A conduta do Recorrido, no contexto factual da mesma é tudo menos toleravelmente negligente e prefigura, de forma aliás muito impressiva… o conceito de negligência grosseira.
21. E vai, muito além do exemplo dado no citado Considerando 72, da Directiva: “…a negligência grosseira deverá significar mais do que mera negligência, envolvendo uma conduta que revela um grau significativo de imprudência; por exemplo, conservar as credenciais utilizadas para autorizar uma operação de pagamento juntamente com o instrumento de pagamento, num formato que seja aberto e facilmente detectável por terceiros.”
22. Pelo que, nesse sentido e em jeito de conclusão, deve funcionar, pois, a norma do art. 115º, nº 4 do R.J.S.P.M.E. excluindo-se como tal, a responsabilidade do Banco Recorrente quanto à indemnização pretendida.
23. Caso assim não seja entendido, o que apenas como mera hipótese de raciocínio se admite, sem conceder, deverá a questão ser analisada à luz do disposto no artigo 570º do C.C., tendo em conta, que:
-O Recorrido confessa estar na posse do seu cartão multibanco e ter inserido o código correspondente, na operação consumada de pagamento.
-A utilização de tal cartão foi realizada no contexto factual apurado no Acórdão de 25/01/2023, proferido no processo 311/19...., que só por si é esclarecedor do ocorrido…
-O Banco Recorrente é totalmente alheio a todos estes acontecimentos, bem como ao logro financeiro, para além do sexual…em que o Recorrido se envolveu.
24. Nesta perspectiva e tendo em conta a conduta culposa do Recorrido por este
confessada na P.I. e constante da MATÉRIA DE FACTO PROVADA, deve ser verificada a situação de culpa do lesado prevista no artigo 570º do C.C. e ser ponderada pelo Tribunal a exclusão ou pelo menos substancial redução, do dever de indemnizar por parte do Banco Recorrente.
25. O qual cumpriu os deveres a que estava obrigado face ao R.J.S.P.M.E. e designadamente o seu artº 114º.
26. De qualquer forma - sempre por mera cautela de patrocínio e sem conceder quanto a tudo o supra invocado - se dirá que, acaso possa ser considerada a responsabilidade do Banco Recorrente na execução do pagamento em causa nos presentes autos, se não justifica, por outra razão, a atribuição do montante indemnizatório atribuído ao Recorrido, pelo menos de forma integral.
27. Tal como abordado no já citado Acórdão da Relação de Lisboa de 20/02/2024, quanto à aplicabilidade do artº 570º do C.C., mesmo às situações abrangidas pelo R.J.S.P.M.E.
28. Ora, a conduta do Recorrido, para além do conceito de Negligência Grosseira supra abordada prefigura um facto culposo do mesmo Recorrido que, de forma decisiva, concorreu para a produção do dano.
29. Sendo certo que, para apreciação e aplicação do Instituto da Culpa do Lesado, não se exige, de forma diversa ao artº 115º do R.J.S.P.M.E. a NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA, mas sim apenas a MERA CULPA e o grau ou medida da predita conduta na produção do dano.
30. Pelo que, concluindo, acaso possa ser considerada a responsabilidade do Banco Recorrente na execução do pagamento em causa nos presentes autos, se não justifica, por outra razão, a atribuição do montante indemnizatório atribuído ao Recorrido, pelo menos de forma integral.
31. Sem prejuízo da bondade da excursão que a sentença faz sobre tal Excepção, sempre se deverá considerar ilegítimo o exercício do direito por parte do Recorrido, consubstanciando a conduta do mesmo, supra descrita e alegada, como prefiguradora da excepção de abuso de direito, tal como consignado no art. 334º, do C.C.
32. Como se asseverou já em jurisprudência sobre a matéria, “O abuso de direito pressupõe a existência de uma contradição entre o modo ou fim com que o titular exerce o direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito casos em que se excede os limites impostos pela boa fé”. (Ac. STJ, de 28/11/96, CJ, STJ, Ano IV, Tomo III, pg. 118).
33. O abuso de direito pode evidenciar-se nas modalidades de suppressio, de venire contra factum proprium, inalegabilidade formal, tu quoque e de desequilíbrio:
34. Quando a aplicação concreta dos preceitos legais conduzirem a uma conclusão que flagrantemente viole essa consciência jurídica, o instituto do abuso de direito funcionará como “válvula de segurança” do sistema jurídico (Prof. Vaz Serra, ob. Cit., pg. 265).
35. Ora a situação, de facto e juridicamente alegada pelo Recorrido, prefigura e consubstancia uma violação flagrante do princípio da boa-fé e da tutela do fim social e económico dos direitos invocados.
36. Consistindo num claro “venire contra factum proprium”, pois confessando o mesmo Recorrido, de forma expressa, ter sido ludibriado, no contexto factual constante do Acórdão crime já supra-referido, confessou estar de posse do citado cartão multibanco e ter inserido o código respectivo…
37. Vem agora o mesmo Recorrido tentar assacar responsabilidades ao Banco Recorrente, no cumprimento da ordem de pagamento por si, confessadamente, realizada, como se, de alguma forma, o Banco Recorrente tivesse que actuar como Tutor do mesmo Recorrido …
38. Talvez, se o Recorrido não tivesse frequentado sites de encontros… e se deslocado a uma afamada zona da cidade do Porto… a um “bar”, para conhecer as ARGUIDAS, talvez… nada do que se passou teria acontecido!
39. Querer repercutir o logro de natureza sexual e financeira… em que o Recorrido se viu envolvido na esfera jurídica do Banco Recorrente, tal como o fez, consubstancia, claro e inefável ABUSO DE DIREITO, nos termos e para os efeitos do citado artº 334º do C.C.
40. A decisão recorrida violou, por errada interpretação e aplicação as normas constantes dos artigos 103º, 106º, 110º, 113º, 114º, 115º e 117º, do R.J.S.P.M.E., bem como os artº 334º, 487º e 570º, todos do C.C.

O autor apresentou as suas contra-alegações. Termina-as com as seguintes conclusões:

1. Bem andou o Meritíssimo Juiz a quo na douta decisão que proferiu, a qual, como deixamos já afirmado, não nos merece qualquer censura, por se encontrar plenamente alicerçada na factualidade assente, à qual foi efectuada correcta aplicação do direito.
2. Os argumentos usados pelo recorrente carecem de consistência, quer do ponto de vista da interpretação dos factos, quer do ponto de vista da aplicação do direito, como infra se demonstrará.
3. Efectivamente, concorda-se com a forma como o Tribunal a quo apreciou a prova, concordando igualmente com as correctas conclusões jurídicas extraídas das premissas de facto estabelecidas.

DA (ALEGADA) NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA DO RECORRIDO – A INEXISTÊNCIA DE OBRIGAÇÃO DE REEMBOLSO:
4. A responsabilidade do prestador de serviços de pagamento em caso de operação de pagamento não autorizada encontra respaldo no artigo 114.º do DL n.º 91/2018, de 12 de Novembro, que aprova o Regime Jurídico dos serviços de pagamento e da moeda electrónica.
5. O risco inerente à utilização e funcionamento dos serviços de pagamento recai sobre o prestador de serviços, cabendo a este, para se eximir dessa responsabilização, provar que (i) a operação de pagamento foi devidamente autenticada (art.º 113º, nº 1, do Decreto-lei nº 91/2018, de 12.11), (ii) não foi afectada por qualquer avaria técnica ou por outra deficiência relacionada com o serviço de pagamento por si prestado (Artigo 114º, nº 9), mas ainda que (iii) o utilizador dos serviços de pagamento (ordenante) actuou de forma fraudulenta ou incumpriu de forma deliberada uma ou mais das suas obrigações decorrentes do artigo 110º ou que actuou com negligência grosseira (art.º 113º, nº 3 e nº 4) – tudo conforme decidido no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 2024-02-20 (Processo nº 6029/23.3T8LSB.L1-7), de 20 de Fevereiro.
6. Como resulta dos factos dados como provados sob o número 3, alíneas h., i. e j,, não se pode imputar ao Recorrido um comportamento culposo ou grosseiramente negligente, porquanto foi o mesmo induzido em erro.
7. O Recorrido desconhecia o valor real da operação feita por intermédio do beneficiário, já que acreditava que apenas estaria a proceder a um pagamento de € 30,00 e a transacção de € 5.000,00 não se enquadra no, de todo, naquilo que o aqui Recorrido esperava razoavelmente com base no seu consumo naquele estabelecimento.
8. Deste modo, não se encontram preenchidos os pressupostos exigidos para a entidade responsável, aqui Banco Recorrente, se eximir da sua responsabilização pelo risco inerente à utilização e funcionamento dos serviços de pagamento, porquanto não se tratou de uma operação consentida/autenticada pelo Recorrido, nem o mesmo actuou com negligência grosseira, pelo que deve tal argumento necessariamente improceder, mantendo-se a sentença aqui posta em crise.

DO ABUSO DE DIREITO:

9. Pugna o Banco Recorrente pelo exercício ilegítimo do direito por parte do Recorrido, consubstanciado na excepção de abuso de direito, enquanto violação flagrante do princípio da boa-fé e da tutela do fim social e económico dos direitos invocados.
10. O Banco Recorrente integra a (alegada) conduta de abuso de direito do Recorrido na modalidade de “venire contra factum proprium”: o venire, enquanto comportamento contraditório ao factum proprium, é um comportamento negativo porquanto há a criação de uma legítima expectativa de exercício de uma determinada conduta que posteriormente é negada, agindo em abuso de direito.
11. Do comportamento do Recorrido não se deduz uma violação do princípio da confiança, bem pelo contrário, nem tão pouco se verifica no caso concreto um comportamento que seja incongruente da parte do Recorrido, uma vez que ele agiu na expectativa de que o seu dinheiro estaria seguro sob a guarda do Banco Recorrente e que medidas seriam tomadas em caso de serem efectuados movimentos estranhos na sua conta bancária através do seu cartão de débito, como foram.
12. Aliás, do Recorrido não se extrai nenhum comportamento que se mostre contrário ao exercício do seu direito; pelo contrário, o Recorrido interpelou o Banco Recorrente para que se desse início ao processo de accionamento do seguro.
13. Verifica-se, portanto, que o Recorrido não realizou uma acção contraditória, ao invés tomou uma atitude coerente com o exercício do direito do qual é titular e com expressão legal, através do pedido de responsabilização do Banco Recorrente pela sua falta de diligência quanto à segurança do valor que lhe foi confiado, e que lhe seja devolvido o montante peticionado.
14. Nos termos e para os efeitos supramencionados, tem-se que não assiste qualquer razão ao Recorrente, pelo que necessariamente deve este argumento improceder.

II
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635º,3 e 639º,1,3 do Código de Processo Civil, delimitam os poderes de cognição deste Tribunal, sem esquecer as questões que sejam de conhecimento oficioso. Assim, e, considerando as referidas conclusões, as questões a decidir consistem em saber se:
a) tem o autor direito a ser indemnizado pelo réu no montante de € 5.000,00 ao abrigo do DL 91/2018, de 12/11 (Regime Jurídico dos Serviços de Pagamento e da Moeda Electrónica);
b) a pretensão do autor formulada nesta acção configura abuso de direito;

III
A decisão recorrida considerou provados os seguintes factos:
1. A ré exerce a actividade bancária.
2. Entre autor e ré foi celebrado um acordo escrito designado contrato de depósito bancário, a que foi dado o número de conta ...01, tendo ainda sido disponibilizado um cartão de débito com n.º ...22.
3. Resulta da matéria de facto considerada provada no acórdão proferido em 25/01/2023 nos autos de processo comum, Tribunal Colectivo, n.º 311/19...., transitado em julgado, que correram os seus termos no Juízo Central Criminal do Porto - Juiz ... o seguinte:
a) o ofendido AA, nascido em ../../1953, residente em ..., através do site de encontros denominado “...”, conheceu a arguida DD que se apresentou com outro nome;
b) após troca de algumas mensagens, combinaram encontrar-se nesta cidade do Porto, o que veio a concretizar-se no dia 18/02/2021, junto ao ..., sito na Praça ...;
c) por sugestão da arguida CC (“EE”), encaminharam-se para o bar de restauração e bebidas denominado “EMP01...”, sito na Rua ..., ... cuja porta lhes foi aberta pela arguida BB;
d) após consumirem algumas bebidas, pediram a conta, que lhes foi apresentada, no valor de €30,00;
e) o ofendido prestou-se a efectuar o pagamento, com dinheiro;
f) todavia, a arguida BB referiu que não eram aceites pagamentos com dinheiro, sugerindo fosse realizado com cartão multibanco, o que o ofendido acabou por aceitar, apresentando o seu cartão multibanco n.º ...22, associado à sua conta bancária com o nº ...01 domiciliada no Banco 1..., para o efeito;
g) a arguida BB muniu-se do TPA, tendo inscrito um valor que o ofendido teve pelo que era devido pelo consumo realizado e digitou o seu código pessoal e secreto;
h) sob pretexto que a operação não tinha sido realizada com sucesso por deficiente funcionamento do terminal de pagamento, o ofendido repetiu várias vezes a operação de pagamento mediante confirmação do valor (previamente inscrito pela arguida BB) e inserção do seu PIN;
i) o ofendido teve por séria a invocação de deficiente funcionamento do TPA e, por essa razão, acedeu a digitar o seu código na convicção que estava a confirmar o pagamento de um preço de cerca de 30,00 Euros pelo consumo realizado e que a repetição da operação se devia a uma verdadeira deficiência no funcionamento do TPA o que – é certo – por vezes sucede neste tipo de operações em que é usado um TPA;
j) contudo, em vez de efectuar o pagamento da operação consentida, no valor de €30,00, à revelia do ofendido, foram realizadas, com sucesso, operações bancárias a débito mediante utilização do seu cartão multibanco o que não assentira, no valor de €5000,00;
k) os arguidos utilizaram o dinheiro em seu proveito pessoal;
l) os arguidos agiram concertadamente e em conjugada comunhão de esforços, na execução de um plano previamente delineado e por todos aceite;
m) ao levarem o ofendido a digitar, pelo menos uma vez, com sucesso, o código pessoal e secreto de acesso à conta bancária, mediante a criação da falsa ideia que havia uma anomalia na realização da operação, os arguidos estavam cientes que tal não tinha correspondência com a realidade, constituindo um artifício e que, assim, obtinham para si benefício patrimonial indevido proporcionado pela utilização de dados informáticos obtidos através de determinante viciação da vontade do ofendido o que acarretava prejuízo patrimonial para o mesmo;
n) agiram de forma livre, deliberada e consciente bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei;
4. Em consequência dos factos referidos em 3), as arguidas BB e CC foram condenadas pela prática de um crime de burla informática, p. e p. no art 221º,1 CP, tendo-lhes sido aplicada a pena de dois anos de prisão;
5. Perante as operações de débito realizadas repetidamente num curto espaço de tempo, a ré não tomou qualquer medida, não despoletou o bloqueio do cartão de débito nem tão pouco tentou contactar o autor para averiguar se os pagamentos seriam intencionais.
6. No dia 02/08/2023, a ré foi interpelada por via postal, por intermédio de Advogada a proceder ao accionamento do seguro a fim de reembolsar o autor, não tendo a ré respondido.

IV
Conhecendo do recurso.
A matéria de facto provada não foi impugnada por ninguém, pelo que se deveria ter integralmente por assente.
Porém, importa ter presente que uma parte essencial dos factos que constituem a causa de pedir nestes autos não está correctamente definida. O que a sentença recorrida deu como provado nestes autos foi que no acórdão proferido em 25/01/2023 nos autos de processo comum, Tribunal Colectivo, n.º 311/19...., transitado em julgado, que correram os seus termos no Juízo Central Criminal do Porto - Juiz ..., ficou provado o seguinte: e segue-se a descrição dos factos. Salvo melhor opinião, o que deveria ter sido feito era dar como provado nestes autos os mesmos factos descritos nas alíneas a) a n) do ponto 3.
Todavia, colocando a substância acima da forma, e como nenhuma das partes suscitou essa questão, vamos prosseguir no pressuposto que os factos constantes do Acórdão condenatório penal foram provados não só no processo penal supra identificado, mas também nestes autos.
Importa porém fazer duas precisões (art. 662º,1 CPC)
1. A sentença recorrida, ao fazer seus os factos dados como provados no Acórdão penal omitiu um facto que também ali se encontra provado, que é relevante para a decisão desta acção. É que, naquele Acórdão, depois de se referir que foram realizadas com sucesso operações bancárias a débito mediante utilização do seu cartão multibanco o que não assentira, no valor de 5.000,00 Euros, acrescenta-se que “e, para além destas operações realizadas com sucesso, a arguida BB procedeu a outras que, todavia, foram recusadas, conforme quadro que segue: e nesse quadro consta que nesse dia 18.2.2021, pelas 11:27:15 foi feita uma tentativa de pagamento no valor de € 3.000,00, que foi recusado, e no mesmo dia pelas 11:28:43 foi feita outra tentativa de pagamento no valor de € 23,00, que também foi recusado.
2. Por outro lado, a forma como o Tribunal recorrido deixou exposta a matéria de facto pode induzir em erro, num aspecto sensível, o que não se pode manter. Na alínea j) do ponto 3 o Tribunal fez constar que “foram realizadas com sucesso operações (logo, mais do que uma) bancárias a débito, no valor de €5.000,00”. Depois, na alínea m) do mesmo ponto 3 fez constar: “ao levarem o ofendido a digitar, pelo menos uma vez, com sucesso, o código pessoal e secreto de acesso à conta bancária (…)”. E finalmente, no ponto 5 fez constar: “perante as operações de débito realizadas repetidamente num curto espaço de tempo (…)”. Finalmente, em sede de análise crítica da prova, o Tribunal declarou que assentou a sua convicção numa análise crítica de toda a prova produzida tendo valorado, entre outras provas, a documentação constante dos autos.
Da leitura atenta desta factualidade assim dada como provada fica uma dúvida, que não pode ser tolerada: é a de saber, afinal, quantos movimentos a débito é que o autor foi levado a fazer pelas arguidas. Sabemos que o valor que foi transferido da sua conta bancária foi o de € 5.000,00. Mas isso ocorreu num só movimento ? Ou em mais? Da forma como o Tribunal importou os factos provados no processo penal para este processo fica essa dúvida: quando se dá como provado que “ao levarem o ofendido a digitar, pelo menos uma vez, com sucesso, o código pessoal e secreto”, quer dizer que se admite que o valor dos € 5.000,00 pode ter sido transferido de uma só vez. Mas depois nos outros segmentos fica a referência a mais que uma transferência. Felizmente, esta matéria foi objecto de prova documental, a qual não foi impugnada e é incontroversa: o documento 1 junto com a contestação é o extracto da conta bancária do autor junto do Banco réu, e esse documento esclarece a questão: os € 5.000,00 foram transferidos numa só operação electrónica.
Podemos, portanto, afirmar com toda a segurança que ficou provado que no dia 18.2.2021, enquanto esteve no referido estabelecimento comercial, o autor efectuou 3 operações com o terminal Multibanco: duas foram recusadas (€ 3.000,00 e € 23,00), e uma foi efectuada com sucesso (€ 5.000,00).

Podemos passar agora à subsunção dos factos ao Direito positivo:

Começa o Tribunal recorrido por lembrar que estamos no âmbito de aplicação do Decreto-Lei n.º 91/2018, de 12/11 (Regime Jurídico dos Serviços de Pagamento e da Moeda Electrónica). E que o pagamento através de um terminal de TPA é considerado um serviço de pagamento abrangido pelo diploma (art 4º, al c), ii) do citado DL).
É com efeito esta a legislação de onde irá emergir a solução do presente litígio. O DL em causa procede à transposição para o direito interno da Directiva (UE) 2015/2366 do Parlamento Europeu e do Conselho de 25 de Novembro de 2015 relativa aos serviços de pagamento no mercado interno.
O art. 2º define, na alínea jj, que «operação de pagamento baseada num cartão» é um serviço baseado na infra-estrutura e nas regras comerciais de um sistema de pagamento com cartões para efectuar operações de pagamento por meio de cartões, dispositivos ou programas de telecomunicações, digitais ou informáticos, que dá origem a uma operação com cartões de débito ou de crédito. As operações de pagamento baseadas em cartões excluem as operações baseadas noutros tipos de serviços de pagamento”.
“Ordem de pagamento” vem definida na alínea ll) como “uma instrução dada por um ordenante ou por um beneficiário ao seu prestador de serviços de pagamento requerendo a execução de uma operação de pagamento”.

O art. 103º, que rege sobre “consentimento e retirada do consentimento”, dispõe o seguinte:
1- Uma operação de pagamento ou um conjunto de operações de pagamento só se consideram autorizados se o ordenante consentir na sua execução.
2- O consentimento deve ser dado previamente à execução da operação, salvo se for acordado entre o ordenante e o respectivo prestador do serviço de pagamento que o mesmo seja prestado em momento posterior.
3- O consentimento deve ser dado na forma acordada entre o ordenante e o respectivo prestador do serviço de pagamento.
4- O consentimento do ordenante para executar uma operação de pagamento também pode ser dado através do beneficiário ou do prestador de serviços de iniciação de pagamentos.
5- Na falta do consentimento referido nos números anteriores, considera-se que a operação de pagamento não foi autorizada.
6- O consentimento pode ser retirado pelo ordenante em qualquer momento, mas nunca depois do momento de irrevogabilidade estabelecido nos termos do artigo 121.º
7- O consentimento dado à execução de um conjunto de operações de pagamento pode igualmente ser retirado, caso em que qualquer operação de pagamento subsequente deva ser considerada não autorizada.
8- Os procedimentos de comunicação e de retirada do consentimento são acordados entre o ordenante e o prestador ou os prestadores de serviços de pagamento envolvidos.

Saltemos agora para o art. 110º, que define as obrigações do utilizador de serviços de pagamento associadas aos instrumentos de pagamento, nestes termos:
1- O utilizador de serviços de pagamento com direito a utilizar um instrumento de pagamento deve:
a) Utilizar o instrumento de pagamento de acordo com as condições que regem a sua emissão e utilização, as quais têm de ser objectivas, não discriminatórias e proporcionais; e
b) Comunicar, logo que tenha conhecimento dos factos e sem atraso injustificado, ao prestador de serviços de pagamento ou à entidade designada por este último, a perda, o furto, o roubo, a apropriação abusiva ou qualquer utilização não autorizada do instrumento de pagamento.
2- Para efeitos da alínea a) do número anterior, o utilizador de serviços de pagamento deve tomar todas as medidas razoáveis, em especial logo que receber um instrumento de pagamento, para preservar a segurança das suas credenciais de segurança personalizadas.

O art. 111º elenca as obrigações do prestador de serviços de pagamento associadas aos instrumentos de pagamento:
1- O prestador de serviços de pagamento que emite um instrumento de pagamento deve:
a) Assegurar que as credenciais de segurança personalizadas do instrumento de pagamento só sejam acessíveis ao utilizador de serviços de pagamento que tenha direito a utilizar o referido instrumento, sem prejuízo das obrigações do utilizador do serviço de pagamento estabelecidas no artigo anterior;
b) Abster-se de enviar instrumentos de pagamento não solicitados, salvo quando um instrumento deste tipo já entregue ao utilizador de serviços de pagamento deva ser substituído;
c) Garantir a disponibilidade, a todo o momento, de meios adequados para permitir ao utilizador de serviços de pagamento proceder à comunicação prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 110.º ou solicitar o desbloqueio nos termos do n.º 4 do artigo 108.º;
d) Facultar ao utilizador do serviço de pagamento, a pedido deste, os meios necessários para fazer prova, durante 18 meses após a comunicação prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 110.º, de que efectuou essa comunicação ou solicitou o desbloqueio nos termos do n.º 4 do artigo 108.º;
e) Impedir qualquer utilização do instrumento de pagamento logo que a comunicação prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 110.º tenha sido efectuada.
2- O prestador de serviços de pagamento assegura que a comunicação a que se refere a alínea c) do n.º 1 é efectuada a título gratuito, cobrando apenas, e se for caso disso, os custos directamente imputáveis à substituição do instrumento de pagamento.
3- O risco do envio ao utilizador de serviços de pagamento de um instrumento de pagamento ou das respectivas credenciais de segurança personalizadas corre por conta do prestador do serviço de pagamento.

O art. 114º regula a responsabilidade do prestador de serviços de pagamento em caso de operação de pagamento não autorizada, E dispõe:
1- Sem prejuízo do disposto no artigo 112.º, o prestador de serviços de pagamento do ordenante deve reembolsar imediatamente o ordenante do montante da operação de pagamento não autorizada após ter tido conhecimento da operação ou após esta lhe ter sido comunicada e, em todo o caso, o mais tardar até ao final do primeiro dia útil seguinte àquele conhecimento ou comunicação.
2- O prestador de serviços de pagamento do ordenante não está obrigado ao reembolso no prazo previsto no número anterior se tiver motivos razoáveis para suspeitar de actuação fraudulenta do ordenante e comunicar por escrito esses motivos, no prazo indicado no número anterior, às autoridades judiciárias nos termos da lei penal e de processo penal.
3- Sempre que haja lugar ao reembolso do ordenante, o prestador de serviços de pagamento do ordenante deve assegurar que a data-valor do crédito na conta de pagamento do ordenante não é posterior à data em que o montante foi debitado na conta.
4- No caso previsto no número anterior, o prestador de serviços de pagamento do ordenante, se for caso disso, repõe a conta de pagamento debitada na situação em que estaria se a operação de pagamento não autorizada não tivesse sido executada.
(…)
O art. 115º rege para a responsabilidade do ordenante em caso de operação de pagamento não autorizada, nestes termos:
1- Em derrogação do disposto no artigo 114.º, o ordenante pode ser obrigado a suportar as perdas relativas às operações de pagamento não autorizadas resultantes da utilização de um instrumento de pagamento perdido, furtado, roubado ou da apropriação abusiva de um instrumento de pagamento dentro do limite do saldo disponível ou da linha de crédito associada à conta ou ao instrumento de pagamento, até ao máximo de (euro) 50.
2- O disposto no n.º 1 do presente artigo não se aplica caso:
a) A perda, o furto, o roubo ou a apropriação abusiva de um instrumento de pagamento não pudesse ser detectada pelo ordenante antes da realização de um pagamento; ou
b) A perda tiver sido causada por actos ou omissões de um trabalhador, de um agente ou de uma sucursal do prestador de serviços de pagamento, ou de uma entidade à qual as suas actividades tenham sido subcontratadas.
3- O ordenante suporta todas as perdas resultantes de operações de pagamento não autorizadas, se aquelas forem devidas a actuação fraudulenta ou ao incumprimento deliberado de uma ou mais das obrigações previstas no artigo 110.º, caso em que não são aplicáveis os limites referidos no n.º 1.
4- Havendo negligência grosseira do ordenante, este suporta as perdas resultantes de operações de pagamento não autorizadas até ao limite do saldo disponível ou da linha de crédito associada à conta ou ao instrumento de pagamento, ainda que superiores a (euro) 50. (…)

E finalmente, o art. 117º, sob a epígrafe “reembolso de operações de pagamento iniciadas pelo beneficiário ou através deste”, dispõe que:
1- O ordenante tem direito ao reembolso, por parte do respectivo prestador do serviço de pagamento, de uma operação de pagamento autorizada, iniciada pelo beneficiário ou através deste, que já tenha sido executada, caso estejam reunidas as seguintes condições:
a) A autorização não especificar o montante exacto da operação de pagamento no momento em que a autorização foi concedida; e
b) O montante da operação de pagamento exceder o montante que o ordenante poderia razoavelmente esperar com base no seu perfil de despesas anterior, nos termos do seu contrato-quadro e nas circunstâncias específicas do caso.

Ora bem.
O autor veio deduzir a sua pretensão de reembolso invocando este art. 117º,1. Porém, como o Tribunal recorrido disse, bem, esta norma não é aplicável ao caso dos autos, pois a mesma “aplica-se nas situações em que a autorização não especifica o montante exacto da operação de pagamento no momento em que a autorização foi concedida, o que não é o caso”.
Claro que existiu uma razão, óbvia, para que o autor tivesse vindo invocar o art. 117º do Regime Jurídico dos Serviços de Pagamento e da Moeda Electrónica: é que este artigo destina-se às situações em que, como no caso dos autos, existiu uma operação de pagamento autorizada, iniciada pelo beneficiário ou através deste, que foi executada. Simplesmente, não estavam reunidos os restantes requisitos impostos por lei para que o reembolso fosse devido.
De seguida, a sentença recorrida considerou aplicável o regime dos arts. 114º e 115º. Mas aqui já não podemos acompanhá-la. A sentença chegou à conclusão que, “na medida em que resulta dos factos provados que o disponibilizador de TPA induziu o autor em erro, levando-o a despender €5000,00 para pagamento de uma conta de €30,00, alegando a existência de diversos erros com o terminal de TPA, somente poderemos concluir que a ordem de pagamento não foi consentida, visto que o autor queria pagar uma conta de €30,00 e não transferir €5.000,00 (art 103º, n.º 1 e n.º 3 do Decreto-Lei n.º 91/2018); consequentemente, a ré deverá ser responsabilizada, ao abrigo do disposto no art 114º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 91/2018 de 12/11”.
Primeiro, estamos a falar de pagamento feito através de meios electrónicos, melhor dizendo, de um Terminal de Pagamento Automático, vulgo Multibanco. O que podemos ter como certo é que o referido terminal foi passado para as mãos do autor, com um valor monetário exposto no visor, e que o autor lhe introduziu o seu código secreto e carregou no botão para executar a ordem. Isto significa, para todos os efeitos jurídicos, ordenar o pagamento do valor constante do visor. Melhor dizendo, estamos perante uma operação consentida. Isto porque o consentimento, em caso de operação electrónica, resulta da introdução voluntária do código secreto. O que o autor fez. Repare-se que estão respeitados todos os requisitos exigidos pelo art. 103º,1,2, e 3 do citado DL: o consentimento foi dado previamente à execução da operação, e foi dado na forma acordada entre o ordenante e o respectivo prestador do serviço de pagamento, estando em causa um cartão de débito. Assim, não há como fugir à realidade: o autor (ordenante) consentiu na execução daquela operação de pagamento de € 5.000,00.
E os arts. 114º e 115º destinam-se a regular situações em que ocorreu uma operação de pagamento não autorizada. É o que resulta directa e literalmente dos ditos preceitos. No caso destes autos, tal como resulta incontornavelmente da matéria de facto, as operações de pagamento foram autorizadas pelo autor. Mais uma vez, para que não fiquem dúvidas, o autor, num estabelecimento de restauração e bebidas, para pagar algumas bebidas, no valor de €30,00, apresentou o seu cartão multibanco n.º ...22, associado à sua conta bancária com o nº ...01 domiciliada no Banco 1..., para o efeito; foi-lhe apresentado o terminal de pagamento automático (vulgo multibanco), no qual estava inscrito um valor que o autor teve pelo que era devido pelo consumo realizado e digitou o seu código pessoal e secreto; sob pretexto que a operação não tinha sido realizada com sucesso por deficiente funcionamento do terminal de pagamento, o autor repetiu outras vezes a operação de pagamento mediante confirmação do valor (previamente inscrito pela proprietária) e inserção do seu PIN; resultado: foi realizada, com sucesso, uma operação bancária a débito na conta do autor, mediante utilização do seu cartão multibanco, no valor de €5000,00.
Fica assim afastada a aplicação dos artigos 114º e 115º do RJSPME.
Claro que nós sabemos mais: sabemos que o autor foi vítima de um crime de burla, pelo qual as duas arguidas supra-referidas foram condenadas em penas de prisão efectiva. O que significa que o autor agiu em erro sobre a operação que efectivamente ordenou, erro esse motivado pelo dolo das supra-referidas senhoras, e que não fora esse erro e ele não teria querido ordenar o referido pagamento (arts. 251º e 253º CC).
Mas isto não tem qualquer relevância para a presente acção, movida contra o Banco 1..., e não, recorde-se, contra aquelas ditas senhoras. A causa de pedir desta acção foi decalcada sobre o RJSPME, mormente o seu artigo 117º. Mas nem esse, nem o art. 115º, dão cobertura à pretensão do autor.

E ainda podemos dizer mais.
Se fosse de considerar aplicável ao caso dos autos o regime do art. 115º RJSPME, e, repetimos, não é, ainda assim não poderíamos concordar com a sentença recorrida, na medida em que sempre seria aplicável o disposto no art. 115º,4, porque a actuação do autor, tal como descrita na matéria de facto provada preenche o conceito de negligência grosseira.
Como se diz no Acórdão TRL de 24 de Janeiro de 2022 (Micaela Sousa), “para a correcta interpretação da norma há que ter presente que a negligência grosseira difere da falta de diligência ordinária ou culpa leve. Não basta a falta de cuidado que o bonus pater familae teria, ou seja, aquela atenção que um utilizador cuidadoso teria, dentro das circunstâncias do caso concreto. Exige-se um nível de falta de cuidado mais elevado, um desleixo inadmissível para qualquer pessoa colocada naquela situação – cf. Miguel Pestana de Vasconcelos, op. cit., pág. 202; cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31-01-2019, processo n.º 2344/16.0T8PNF.P1.S1 – “[…] em sede de culpabilidade do agente, é costume distinguir três formas de culpa, a saber: Culpa lata, grave ou grosseira, consistente na inobservância da diligência mínima adoptada até pelos homens medianamente negligentes; - Culpa leve, substanciada no incumprimento dos deveres de diligência do homem normalmente diligente; e - Culpa levíssima, traduzida na inobservância da diligência adoptada pelos homens especialmente diligentes. […] o Prof. Inocêncio Galvão Telles […] acrescenta: -“Quer a culpa grave (que também se diz culpa lata) quer a culpa leve correspondem a condutas de que uma pessoa normalmente diligente – o “bonus pater familias” – se absteria. A diferença entre elas está em que a primeira só por uma pessoa particularmente negligente se mostra susceptível de ser cometida.”
Não esquecer que, como escreve António Menezes Cordeiro, Código Civil Comentado, II – Das Obrigações em Geral, CIDP 2021, pág. 426, “o bom pai de família é uma bitola abstracta de diligência. Deve ser preenchida caso a caso e situação a situação: a diligência exigível a um banqueiro, a um canalizador, a um músico ou a um bailarino são distintas. Há que ponderar a exigência do cargo, a preparação requerida e as consequências de falhas.”
Ora, sabemos que a operação automática que o autor ordenou naquele dia supra referido levou à transferência da conta do autor para a conta das arguidas de € 5.000,00. Necessariamente que esse valor apareceu no visor do terminal antes e durante o momento em que o autor lhe pegou para introduzir o código secreto. E se mesmo assim o autor autorizou a operação é porque não prestou atenção ao valor indicado no visor. Em qualquer sítio do mundo civilizado, esta conduta representa uma violação do dever de diligência, logo, o autor comportou-se de forma obviamente negligente. Mas sabemos que é exigido mais que isso; a conduta em causa tem de revelar um grau significativo de imprudência, aquele grau que deixaria um bonus pater familias chocado.
Ora, salvo melhor opinião, esse grau elevado de negligência esteve presente neste caso concreto. Uma coisa é usar um cartão de débito no estabelecimento de um comerciante que já se conhece há anos, como numa farmácia ou num restaurante, e com quem se tem uma excelente relação, e aí, introduzir o código sem prestar atenção ao valor constante do visor. Aí seria claramente negligência, mas não grosseira. A  situação dos autos é bem diferente disso. O Autor conheceu a arguida DD, que se apresentou com outro nome, através de um “site” de encontros online. Após troca de mensagens, combinaram encontrar-se na cidade do Porto no dia 18/02/2021, e por sugestão da arguida, encaminharam-se para o bar de restauração e bebidas denominado »EMP01.... Foi apresentada ao autor uma conta de €30,00; assim que a dona do estabelecimento se recusou a receber o pagamento em dinheiro vivo e sugeriu o uso do cartão multibanco, o autor deveria ter ficado imediatamente de sobreaviso, porque tal indicação não faz o menor sentido. E mesmo assim, num estabelecimento que não conhecia, acompanhado de uma mulher que também não conhecia a não ser da forma que ficou descrita, o autor introduziu o seu código secreto no terminal multibanco pelo menos 3 vezes, das quais sabemos que duas operações foram recusadas, e uma foi concretizada, no valor de € 5.000,00. Ou seja, a única explicação aceitável para o sucedido é que o autor não olhou sequer para o visor quando introduziu o código secreto e autorizou o pagamento dos € 5.000,00, pois se tivesse olhado teria visto esse valor exposto, e não teria com toda a probabilidade introduzido o código. Nestas circunstâncias, naquele local e com desconhecidas, esta conduta só pode ser descrita como negligência grosseira.
Ainda podemos dizer mais. Esta falta clamorosa de cuidado por parte do autor não ocorreu apenas uma vez, mas pelo menos duas: uma, quando a operação automática foi mesmo realizada e os € 5.000,00 saíram da conta do autor. A outra, quando foi feita a tentativa de pagamento no valor de € 3.000,00, operação que foi recusada.
Ou seja, temos de acreditar que pelo menos por duas vezes, no contexto já descrito, o autor não olhou sequer para o visor do terminal de pagamento automático quando introduziu o seu código secreto e autorizou a operação.
Este comportamento tem de ser qualificado como negligência grosseira.

Assim, estamos já em condições de afirmar que assiste inteira razão ao recorrente, quando refere não ter havido qualquer mau funcionamento ou deficiência nos sistemas informáticos do Banco Recorrente, nos exactos termos das disposições do R.J.S.P.M.E. (…) sendo alheio a quaisquer vícios da vontade do mesmo Recorrido relativamente aos factos ocorridos no EMP01...… .
Em resumo, pelo autor, “de posse do seu aludido cartão foram realizadas duas operações de pagamento recusadas, tal como se encontra descrito a páginas 108 do referido Acórdão, correspondente ao Apenso AG - Caso XXIII, referente ao NUIPC 8155/21..... E, nesse mesmo contexto, pelo A., de forma consabida, foi realizada e consumada uma operação de pagamento de € 5.000,00.
Assim, não assiste razão ao autor, quando afirmou “que a ré deveria ter procedido ao bloqueio do cartão de crédito ou contactado o autor, ao constatar diversos pagamentos num curto espaço de tempo”. É que não houve diversos pagamentos: houve só um, e duas tentativas de pagamento não autorizadas.
Do teor do referido Acórdão, não consta que o autor haja deduzido pedido de indemnização contra qualquer das aludidas arguidas. Mas essa seria a solução óbvia, a que recorreram grande parte dos outros ofendidos, como resulta do referido Acórdão.
Acrescenta o réu, “o Banco R. é totalmente alheio aos acontecimentos, nos quais o A. consubstancia a presente acção, tendo dado cumprimento à genuína e autêntica ordem de pagamento recebida do A”.
E ainda: “a responsabilidade civil vem fixada no artigo 483º do C.C., sendo que nenhum dos pressupostos da mesma responsabilidade podem ser imputáveis ao Banco R. Designadamente quanto ao facto, ilicitude, culpa e nexo de causalidade”.
E tais afirmações são absolutamente correctas.
A situação do autor cabe em pleno na previsão dos artigos 129º do Código Penal e 71º do Código de Processo Penal: “a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil”; “o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei”.
A causa de pedir que o autor apresentou, baseada no Regime Jurídico dos Serviços de Pagamento e da Moeda Electrónica, não sustenta o pedido que formulou.
Perante esta solução, torna-se inútil apreciar a questão ao abuso de direito.
A consequência é a improcedência da acção. E a procedência do recurso.

V- DECISÃO

Por todo o exposto, este Tribunal da Relação de Guimarães decide julgar o recurso procedente, e em consequência revoga a sentença recorrida, absolvendo o réu dos pedidos formulados pelo autor.

Custas pelo recorrido.  

Data: 5.12.2024 

Relator
(Afonso Cabral de Andrade)
1º Adjunto (Raquel G. C. Batista Tavares)
2º Adjunto (Ana Cristina A. O. Duarte)