ACIDENTE DE VIAÇÃO
VALOR DA INDEMNIZAÇÃO
CONTAGEM DOS JUROS DE MORA
Sumário


1 – No contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, a nulidade do contrato de seguro ao abrigo do artigo 43º, nº 1, do RJCS, decorrente da falta de interesse do tomador do seguro/segurado, e a caducidade do contrato emergente da alienação do veículo, estabelecida no artigo 21º, nº 1, do DL nº 291/2007, de 21/08, são inoponíveis ao lesado e ao FGA, enquanto meios de defesa da seguradora previstos no artigo 22º do DL nº 291/2007 e no artigo 147º do RJCS.
2 – Não carece de correção a atribuição da compensação no montante de € 35.000,00 por danos não patrimoniais, a lesado de 18 anos de idade que em consequência de acidente de viação sofreu fraturas e traumatismos, tendo decorrido 114 dias até à consolidação das lesões, com sofrimento físico e psíquico (quantum doloris) mensurado no grau 5 (numa escala de 7 graus de gravidade crescente), que apresenta um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 12,78 pontos, um dano estético de grau 1 e um dano relativo à repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer também de grau 1.
3 – É de manter a indemnização no valor de € 53.000,00, pela repercussão patrimonial do dano biológico ao referido lesado, com 18 anos de idade à data do acidente, desempregado mas com alguma formação profissional como operador de logística, que sofreu lesões que lhe causaram um défice funcional da integridade físico-psíquica de 12,78 pontos, sendo as sequelas impeditivas do exercício da sua atividade profissional habitual, mas compatíveis com a ocupação de um posto de trabalho como rececionista ou auxiliar de apoio administrativo.
4 – Não constando da sentença qualquer elemento que permita concluir que atualizou o valor das indemnizações fixadas por danos patrimoniais, os juros de mora contam-se a partir da data da citação do réu, nos termos do artigo 805º, nº 3, do Código Civil.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório

1.1. AA intentou ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra EMP01... – Companhia de Seguros, SA, BB, CC e Fundo de Garantia Automóvel, pedindo que sejam «os Réus condenados a pagar – na medida da responsabilidade que vier a ser apurada nos presentes autos - a quantia global líquida de € 106.730,00, sem prejuízo da Ampliação do Pedido Indemnizatório, ao abrigo do disposto no artigo 265º., nº. 2, segunda (2ª.) parte, do Código de Processo Civil, relativamente aos danos de natureza patrimonial e não patrimonial, decorrentes da IPP de que o A. vai ficar a padecer; das perdas de rendimento que ocorreram até à entrada no mercado de trabalho; das despesas médicas e medicamentosas que tiver que suportar e de todos os prejuízos que o tenha que despender, tudo acrescido de juros de mora vincendos, contados à taxa legal de 4% ao ano, sendo que relativamente à Ré Seguradora os juros de mora serão contados ao dobro da taxa legal, desde a citação e até efetivo pagamento».
Para o efeito, alegou ter sofrido danos patrimoniais e não patrimoniais em consequência do acidente de viação que descreve, consistente no despiste do veículo com a matrícula ..-..-PD, no qual o Autor seguia como passageiro, segurado pela 1ª Ré, conduzido pelo 2º Réu, tendo como tomadora do seguro e proprietária inscrita a 3ª Ré, demandando o Réu FGA por a seguradora ter invocado a nulidade do contrato de seguro. Imputa a ocorrência do acidente, em 03.11.2019, à conduta ilícita e culposa do 2º Réu.

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A Ré EMP01... contestou, admitindo a emissão da apólice e a participação do sinistro, alegando que a tomadora do seguro nunca foi proprietária do veículo interveniente no acidente, não contratou nenhum seguro com a Ré relativo a esse veículo e nem tinha qualquer interesse na celebração do mesmo. Mais alegou que o veículo foi alienado no dia 30.10.2019, cessando os efeitos do contrato nesse dia. Impugnou ainda a matéria relativa aos danos.
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O Réu FGA também apresentou contestação, impugnando, por desconhecimento, a globalidade dos factos alegados e o valor dos danos, sustentando que deve ser considerada a culpa do Autor, por circular sem cinto de segurança, agravando os danos, em 20-25%, e que a nulidade alegada pela Ré EMP01... não pode ser oposta ao sinistrado nem ao FGA, que deve ser absolvido.
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O Autor respondeu à exceção invocada pela Ré EMP01..., alegando que as nulidades não são oponíveis ao lesado, acrescentando não ser verdade que seguia no veículo sem cinto de segurança, nem resultando de tal circunstancialismo mais lesões, ainda que fosse o caso.
Na fase instrutória da causa, o Autor deduziu ainda incidente de liquidação, fixando os danos biológicos em € 300.000,00 (trezentos mil euros) e aumentando o valor dos danos não patrimoniais para € 125.000,00 (cento e vinte e cinco mil euros).
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1.2. Realizada a audiência final, proferiu-se sentença, decidindo-se:
«(…) julg[ar] a ação parcialmente procedente, por provada, e em consequência conden[ar] o FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL e BB a pagar ao Autor AA a quantia de 88.370 ,00 € (oitenta e oito mil trezentos e oitenta euros), acrescida de juros de mora legais a contar da prolação da sentença até efetivo e integral pagamento.
Conden[ar] ainda os Réus FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL e BB a pagar ao Autor AA as consultas e tratamentos médicos necessários de acompanhamento de Neurologia e Psicologia e a ajuda medicamentosa permanente, do foro neurológico, por prescrição médica de Neurologista e ajustada às necessidades do Autor.
Absolv[er] as Rés EMP01..., COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. e CC, dos pedidos.»
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1.3. Inconformado, o Autor interpôs recurso de apelação da sentença, formulando as seguintes conclusões:
«1.ª – Por mera cautela e dever de patrocínio, vem o presente recurso impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto, apenas num ponto, pois entende que a decisão de primeira instância, neste particular, padece de incorreções de julgamento e insuficiência, atentos os meios probatórios constantes do processo – documentos e depoimentos das testemunhas, que impunham decisão diversa da recorrida, que abaixo melhor se especificará.
2.ª - Da mesma forma, o recorrente não se conforma com a indemnização que lhe foi fixada, quer no que respeita aos danos sofridos, tudo conforme se discriminará infra.
3.ª - É o seguinte ponto da matéria de facto que foi incorretamente julgado:
4. O Autor seguia como passageiro no lugar do meio do banco de trás e foi projetado para a via, por não se encontrar devidamente retido por cinto de segurança.
4.ª - A análise da prova produzida em audiência de julgamento não permite que se conclua como o douto tribunal recorrido deseja.
5.ª - Como bem se refere na sentença recorrida:
Especificamente quanto à ausência de cinto de segurança, atendendo ao facto de ter sido projetado pode concluir-se que este não funcionou devidamente, mas não que o Autor teria, de forma consciente, optado por não o colocar. Apesar de referido nalguns exames, também aí se refere que não tem memória do acidente e ninguém com conhecimento direto – o referido DD ou o militar da GNR (que assinou participação), EE, o afirmaram em julgamento.
O perito também não conseguiu concluir que as lesões foram agravadas pela projeção.
6.º - Consideramos que nenhuma prova foi feita nos presentes autos quanto ao facto do Autor usar ou não o conto de segurança na altura do acidente.
7.ª - Em bom rigor, não se provando o modo de utilização do cinto de segurança, não poderia o Tribunal a quo ter simplesmente concluído que o Autor foi projetado para a via, por não se encontrar devidamente retido por cinto de segurança.
8.ª - Vejamos o depoimento das únicas testemunhas inquiridas a este respeito:
Depoimento de EE, cabo da GNR, com domicílio na Rua ..., ... ..., ... .... Depoimento prestado por videoconferência através do Tribunal Judicial da Maia ficou registado no sistema H@bilus Media Studio no intervalo de tempo
[00:00:00 a 00:01:17], na audiência de 22 de Maio de 2024:
00.14 a 00.25 minutos:
Quando lá cheguei, as vítimas já estavam a ser assistidas, pelo que, a esse respeito (uso do cinto de segurança), nada sei.
Depoimento de DD, amigo do autor e que na altura do acidente ia no lugar do pendura. Depoimento prestado por videoconferência através do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira ficou registado no sistema H@bilus Media Studio no intervalo de tempo [00:00:00 a 00:05:22], na audiência de 22 de Maio de 2024:
03.03 a 03.11 minutos:
Não sei ao certo se ele levava ou não (cinto de segurança) porque eu não reparei;
9.º - Da mesma forma, veja-se a conclusão do perito que também não conseguiu concluir que as lesões foram agravadas pela projeção;
10.º - Em consequência do que vimos de referir a resposta aos factos supra indicados deveria ser a seguinte:
4. O Autor seguia como passageiro no lugar do meio do banco de trás e foi projetado para a via;
11.ª – Cometeu o Tribunal recorrido um erro de julgamento no apuramento da matéria de facto, violando-se, entre outras disposições legais, o disposto do art.º 342.º do Código Civil;
12.ª - Não obstante esta alteração da matéria de facto, o que se sustenta apenas por mero dever de patrocínio, a decisão quanto à responsabilidade deve manter-se.
13.ª - No entanto, e mesmo que não se sufrague este entendimento, então a solução encontrada quanto à responsabilidade seria sempre a mesma, uma vez que não obstante se ter provado que Autor foi projetado para a via, por não se encontrar devidamente retido por cinto de segurança, certo é que não se provou que esse facto tenha concorrido para a produção do resultado.
14.ª - O facto assim provado não torna o autor responsável ou co-responsável pela produção dos danos; Importava que se apurasse que a falta de uso do cinto de segurança naquelas circunstâncias concorreu para os danos verificados, o que não ficou demonstrado;
15.ª - No que respeita à condenação no pagamento da quantia de € 35.000 (trinta e cinco mil euros), a título de danos não patrimoniais arbitrada ao aqui recorrente, este não se conforma com o assim decidido:
16.º - A indemnização assim atribuída parece-nos exígua, face ao seu estado e ao conjunto das sequelas definitivas de que o Autor ficou afectado, precisamente porque o tribunal, tal como revela a sentença, não procedeu, tal como se nos afigura que devia feito, a uma criteriosa “aproximação” ao caso concreto, através da consideração das especiais características da situação para que o Autor se viu atirado em resultado do acidente de viação de que foi vítima;
17.ª - Todas as sequelas dadas como provadas e que aqui se devem considerar integralmente
 transcritas, para todos os efeitos legais, implicam para o Autor um dia-a-dia repleto de dores, de angustias e de sofrimento psicológico.
18.º - Por outro lado e como não poderia deixar de ser, este vastíssimo rol de ferimentos, sequelas físicas e deformações, impuseram e impõem diariamente ao Autor um vasto rol de restrições e “compromissos” com a sua saúde e com a própria sobrevivência e autonomia;
19.ª - As lesões sofridas e dadas como provadas, as sequelas físicas e as dependências que umas e outras geraram para o Autor, já seriam, só por si, suficientes para que o tribunal concluísse, sem qualquer espaço para dúvidas, que o Autor enfrentou dores extremas, e tem pela frente uma vida de dores, transtornos e outros sofrimentos extremos.
20.ª - As sequelas que a Autora apresenta são de tal forma significativas e importantes, que os peritos médicos que avaliaram a sua repercussão concluíram o seguinte:
- A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 24/02/2020. ..............................
- Período de Défice Funcional Temporário Total sendo assim fixável num período de 114 dias............................................................................................................................................................
- Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total sendo assim fixável num período total de 114 dias. .........................................................................................................................
- Quantum Doloris fixável no grau 5/7. .......................................................................................
- Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica fixável em 12 pontos.
- As sequelas descritas são, em termos de Repercussão Permanente na Atividade Profissional, são impeditivas do exercício da sua atividade profissional habitual bem assim como de qualquer outra dentro da sua área de preparação técnico-profissional .................................................................
- Dano Estético Permanente fixável no grau 1 /7. .......................................................................
- Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer fixável no grau 1/7. .............
- Ajudas técnicas permanentes: ajudas medicamentosas; tratamentos médicos regulares referidos anteriormente. ..........................................................................................................................
- Dependências Permanentes de Ajudas: ....................................................................................
- Ajudas medicamentosas (correspondem à necessidade permanente de recurso a medicação regular - ex: analgésicos, antiespasmódicos ou antiepilépticos, sem a qual a vítima não conseguirá ultrapassar as suas dificuldades em termos funcionais e nas situações da vida diária). Neste caso medicação do foro neurológico, a definir por médico assistente de Neurologia. ....................................
- Tratamentos médicos regulares (correspondem à necessidade de recurso regular a tratamentos médicos para evitar um retrocesso ou agravamento das sequelas - ex.: fisioterapia). Neste caso acompanhamento psicológico individual; Medicina Física e de Reabilitação com realização periódica de tratamentos, tendo como objetivos a melhoria da força, muscular, da destreza manual, do equilíbrio e da capacidade de marcha; consulta de Neurologia ..........................................................
21.ª - O autor era ainda uma pessoa jovem – tinha 18 anos, saudável, alegre, cheio de vida.
22.ª - O futuro do autor adivinha-se muito difícil, com recurso a tratamentos, consultas e medicamentos que apenas pretenderão impedir o inevitável agravamento do estado do mesmo. E a vida profissional irremediavelmente comprometida, pois ninguém contrata uma pessoa assim diminuída.
23.ª - Assim sendo, tendo presente todas as considerações acima, em nossa opinião, a indemnização destinada a ressarcir o dano não patrimonial do Autor deverá ser fixada em valor não inferior a EUR 125.000,00, tal como vem peticionado, devendo os juros serem contados a partir da citação.
24.ª - Ao assim não decidir, a sentença recorrida violou, entre outras disposições legais, o disposto nos artigos 483.º, 562.º e 564.º, todos do Código Civil.
25.ª - No que respeita à condenação no pagamento da quantia de 53.000,00 euros a título da atribuição de défice funcional de 12,78 pontos (considerando as lesões neurológicas e dor no ombro), sendo estas sequelas permanentes impeditivas do exercício da sua atividade profissional habitual bem assim como de qualquer outra dentro da sua área de preparação técnico-profissional, também consideramos este montante assim atribuído manifestamente escasso:
26.º - Neste âmbito são valorizáveis, entre os diversos parâmetros de dano:
- o défice funcional, quer temporário, quer permanente e que corresponde a uma afetação da integridade física e/ou psíquica da pessoa, com repercussão nas atividades da vida diária, incluindo as familiares, sociais, de lazer e desportivas), a qual, tendo em conta as sequelas, se fixou em 12,78 pontos;
- que o Autor não está afetado em termos de autonomia e independência;
- as sequelas são impeditivas do exercício da sua atividade profissional habitual bem assim como de qualquer outra dentro da sua área de preparação técnico-profissional, mas compatíveis com o exercício de outras atividades; (sublinhado nosso).
- A idade do Autor à data do acidente - 18 anos - e que não havia notícia de anteriores patologias ou limitações;
- O Autor tem apenas o 7.º ano de escolaridade que terminou com cerca de 14 anos de idade, altura em que integrou o curso de formação profissional de Operador de Logística, tendo frequentado apenas um ano e iniciado a trabalhar aos 16 anos.
- À data do acidente estava desempregado e não tinha uma atividade profissional certa, fazendo pequenos trabalhos ocasionais e informais na função de taqueiro esperando iniciar novo trabalho na mesma área em dezembro de 2019.
- O Autor frequentou o programa de atualização de competências e o seu atual perfil, atendendo à experiência profissional limitada e nível de escolaridade, bem como às limitações físicas, será compatível com a ocupação de um posto de trabalho como rececionista ou auxiliar de apoio administrativo (contínuo).
- A informação estatística da base de dados Pordata, em Portugal, in www.pordata.pt indica que o ordenado base médio mensal dos trabalhadores por conta de outrem no ano em 2019 foi de € 1.100,4;
- A idade da reforma reportada aos 67 anos, com tendência para aumentar e a esperança média de vida que já se situa nos 83 anos para os homens;
- A rentabilização de capital que não passa os 1% ao ano;
27.º - Não há dúvidas de que o A. ficou impossibilitado do exercício da sua profissão habitual e de outra compatível com os seus níveis de conhecimento/formação. Importante salientar aqui o que se refere na sentença recorrida e que resultou da prova produzida em julgamento: Apesar de já ter realizado curso para reabilitação profissional e até ter tentado outra atividade profissional (com a ajuda do irmão, mas que não continuou depois de ter apoio deste), o Autor tem estado desempregado.
28.ª - A compensação deste dano tem como base e fundamento a absoluta restrição, no caso, às possibilidades exercício de uma profissão e de futura mudança, desenvolvimento ou reconversão de emprego pelo lesado, implicando flagrante perda de capacidade de angariação de salários: na verdade, a perda de capacidades funcionais, no caso, vai imediata e totalmente reconduzida ao valor dos rendimentos pecuniários auferidos e a auferir previsivelmente pelo lesado.”
29.ª -. É que, in casu, não obstante a IPP da qual ficou o Autor a padecer não o seja de 100%, nos termos assentes, é-o total e absolutamente incapacitante quanto à profissão habitual exercida pelo lesado e para qualquer outra da sua área de preparação.
30.ª - Neste contexto, não esquecendo, que o autor, ainda muito jovem – 18 anos, tinha potencialidades que lhe auguravam uma evolução profissional positiva, evolução essa que, com a amplitude que poderia ter, está irremediavelmente comprometida, refletindo-se negativamente - mesmo fazendo o autor esforços acrescidos no desempenho da sua atividade, consideramos justo, adequado e proporcional, a fixação da quantia de € 300.000,00 a título de dano biológico acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, a partir da citação e até integral pagamento;
31.ª - Ao assim não decidir, a sentença recorrida violou, entre outras disposições legais, o disposto nos art.ºs 483.º, 562.º e 564.º do Código Civil.
32.ª - Quanto ao cálculo dos juros de mora: O Tribunal recorrido, neste particular, condenou em juros desde a prolação da sentença até efetivo e integral pagamento:
33.ª - Entendemos que os juros de mora se devem fixar a partir da citação, tendo como fundamento, o disposto no art. 805.º, n.º 3, do CC, quando, ao invés, a sentença recorrida os fixou a partir da data da sua prolação.
34.ª - Nesta perspetiva, a questão da contagem dos juros de mora prende-se com a decisão atualizadora da indemnização, mas apenas no que concerne e à indemnização por danos não patrimoniais.
35.ª - No entanto, e mesmo esta indemnização assim fixada, não se vislumbra que a mesma tenha sido atualizada, pelo que a mesma, e as outras vertentes da indemnização fixadas, devem vencer juros desde a citação.
36.ª Ou seja, as indemnizações fixadas, quer de natureza patrimonial quer não patrimonial, não foram objeto de decisão atualizadora (e relativamente aos danos patrimoniais nem o poderiam ser não ser pelo vencimento de juros), por isso os juros de mora devem contar-se a partir da citação.
37.ª - Ao assim não decidir, a sentença recorrida violou, entre outras disposições legais, o disposto no art.º 805.º, n.º 3 do Código Civil.

TERMOS EM QUE, DEVE O PRESENTE RECURSO MERECER PROVIMENTO, SENDO A PRESENTE DECISÃO REVOGADA E CONSEQUENTEMENTE SUBSTITUIDA POR OUTRA NOS MOLDES ACIMA APRESENTADOS, COMO É DE INTEIRA JUSTICA̧!».
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1.4. Também o Réu FGA interpôs recurso de apelação da sentença, aduzindo as seguintes conclusões:
«1. A decisão da matéria de direito não se mostra adequada e conforme à matéria de facto provada e não provada, sendo imperioso concluir pela existência de seguro válido e eficaz à data do acidente e, ainda que assim não se considerasse, o que não se concede, sempre teria o tribunal a quo que tomar em consideração a conduta do autor ao aceitar ser transportado por um condutor que conduzia sob o efeito de cocaína, metabólitos e canabinóides e ao fazer-se transportar no lugar do meio do banco de trás sem colocar cinto de segurança e a sua consequente e notória contribuição para a produção e dimensão dos danos verificados.
2. Resulta da matéria de facto provada bem como do documento do Instituto dos Registos e do Notariado junto aos autos pela ré EMP01... na sua Contestação, que o veículo em apreço se encontrava registado em nome da ré CC à data do sinistro ocorrido em 03.11.2019, sendo que apenas em 05.11.2019 passou o mesmo a estar registado no nome do também réu BB.
3. Resulta provado que o referido veículo tinha sido adquirido pelo réu BB, com recurso a crédito pessoal, mas registado, em julho de 2019, em nome da ré CC, na altura, sua companheira, com quem vivia em comunhão como casal, sendo utilizado por ambos.
4. Considerou o tribunal a quo como não provado que a ré CC era dona e possuidora do veículo à data do acidente e que celebrou seguro com a EMP01....
5. O Tribunal, ao considerar, como considerou, que a ré CC não era dona e legitima possuidora do veículo e que nem tão pouco foi a própria a celebrar o contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel com a ré EMP01..., está a considerar ilidida a presunção de propriedade da viatura de matrícula ..-..-PD resultante do registo.
6. A considerar-se que o proprietário do veículo desde a sua compra em julho de 2019 sempre foi o réu BB e que inclusive não foi a ré CC quem celebrou o contrato de seguro referente àquele veículo (conforme resulta da matéria de facto não provada) – e, portanto, existindo falsas declarações na contratação do seguro ou inexistindo interesse por parte da tomadora de seguro na referida contratação – tais factos não são oponíveis ao lesado e nem tão pouco ao FGA, pelo que sempre que teria que o mesmo ser absolvido da presente ação.
7. O artigo 22.º do Decreto-Lei 291/2007, de 21 de agosto consagra um princípio de tipicidade dos meios de defesa oponíveis pelo segurador - obsta à sua oponibilidade aos lesados e ao FGA, dado que no seu âmbito de previsão material somente admite que sejam opostas as anulabilidades aí previstas (entre as quais não se conta a anulabilidade contemplada no artigo 25.º da LCS) e não as que, como tal, estejam estabelecidas na lei geral.
8. Ainda que se tratasse de um caso de nulidade, é certo que tal nulidade, para ser oponível aos lesados ou ao FGA, deveria ter sido declarada antes do sinistro e não apenas após a ocorrência do acidente - não basta que o facto determinante da invalidade tenha ocorrido antes do acidente, já que é a própria declaração de invalidade que deve ocorrer antes do acidente.
9. A seguradora só pode opor ao lesado a nulidade ou resolução do contrato nos casos em que essa questão havia sido decidida anteriormente ao acidente, não subsistindo as razões para que o lesado pudesse confiar na vigência da apólice de seguro.
10. A transferência da responsabilidade ressarcitória para o FGA de vicissitudes contratuais que ocorrem no momento da formação do contrato de seguro, libertando-se a seguradora, é manifestamente injusto e desadequado pois a seguradora dispõe de amplos meios para averiguar a veracidade das informações que lhe são transmitidas – se assim não procede, isso deve-se a uma opção de gestão da sua inteira responsabilidade e risco.
11. A seguradora não pode transferir para o lesado, máxime para o FGA, as consequências operacionais decorrentes do modelo de organização que livremente adota; nem assumir que os vícios só podem ser descobertos quando ocorrem os acidentes - se assim é, isso fica a dever-se a razões de organização funcional das seguradoras e a elas totalmente imputáveis.
12. A seguradora não pode libertar-se das suas obrigações de escrutínio e controlo das afirmações do tomador do seguro, escudando-se no sancionamento da lei, e transferir a responsabilidade que é sua para o FGA.
13. A tese de inoponibilidade das exceções contratuais, com base em declarações dolosas do tomador do seguro, quer seja quanto ao condutor habitual, quer seja quanto ao objeto do contrato de seguro, quer seja quanto ao proprietário do veículo seguro, ou quanto ao interesse em contratar, consolidou-se, com eco na jurisprudência nacional, mas, e acima de tudo, na jurisprudência do TJUE: Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.12.2002; Acórdão da Relação de Guimarães de 8.10.2003; Acórdão da Relação de Coimbra de 23.11.2004; Acórdão do STJ de 5.3.2015; Acórdão de 20 de Julho de 2017, processo n.º C-287/16; Acórdão de 13 de Outubro de 2021, processo 375/20; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3.11.2016; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 19.01.2023.
14. A anulabilidade do contrato de seguro suscitada pela seguradora é inoponível ao lesado deste acidente de viação - e por inerência ao FGA - assegurando-se, desse modo, o respeito pelo primado do Direito da União e da jurisprudência do TJUE.
15. Sem prescindir, ainda que se considere que não foi ilidida a presunção de propriedade da viatura automóvel de matrícula ..-..-PD, resulta amplamente demonstrado que na data em que a viatura ..-..-PD foi adquirida e registada em nome da ré CC, esta e o réu BB viviam em condições análogas às dos cônjuges, tendo o veículo sido adquirido para transporte de ambos e sendo usado por ambos, tendo apenas sido registado no nome da ré CC pelo facto de o réu BB não se fazer acompanhar do seu Cartão de Cidadão no ato de compra.
16. Ficou demonstrado que não houve uma verdadeira negociação ou venda do veículo, que se manteve na titularidade das mesmas pessoas, apenas formalmente passando a estar registado em nome de outro membro daquele restrito agregado familiar e, sublinhe-se, em data posterior ao acidente.
17. Nada decorre dos autos que permita concluir ter existido, desde o dia ../../2019, qualquer alteração de comportamento dos réus em relação ao veículo que denotem a efetiva mudança do titular do direito de propriedade, pelo contrário resulta que o referido veículo continuou a ser considerado - da mesma forma que já era até à data do acidente – comum a ambos os membros do agregado familiar, mantendo a família a dominialidade prática sobre aquele bem.
18. A subscrição da declaração comummente designada por declaração de venda, desacompanhada de quaisquer outros elementos, designadamente, no que concerne ao exercício de poderes de facto sobre o veículo em causa, é, a nosso ver, insuficiente para concluir que efetivamente o mesmo foi verdadeiramente transmitido. Aliás, no caso em concreto, por diversas vezes aquela declaração já havia sido preenchida, com vista a, na visão de ambos os réus, colocar em “papel” aquilo que para os mesmos já era a realidade, dado que quem pagava a viatura era o réu BB, nenhum destes tendo admitido, em momento algum, que se tenha verificado uma verdadeira venda e transmissão da viatura.
19. É insufragável que não ocorreu a venda ou alienação do veículo de matrícula PD, quer seja em ../../2019 ou noutra data.
20. A alienação como causa de caducidade do contrato de seguro tem aplicabilidade apenas e só no caso de venda a terceiros, falecendo no caso, como o dos autos, em que o veículo se mantém na esfera de disposição de um conjunto restrito de elementos, ou seja, da família constituída por ambos os réus responsáveis civis.
21. O teor da declaração de venda a favor do réu BB não é elemento factual suficiente para permitir concluir pela compra e venda do veículo seguro em data anterior à do sinistro - apesar de indiciar a celebração de um contrato de compra e venda da viatura em referência, não faz prova, por si só, da celebração efetiva do mesmo particularmente nos casos como o presente em que a pessoa que figura no Requerimento como comprador não adquiriu a transmissão efetiva da posse do bem.
22. Provou-se que o veículo se manteve na titularidade das mesmas pessoas, apenas formalmente passando a estar registado em nome de outro membro do casal pelo que deve considerar-se que não existiu uma efetiva alienação do veículo PD em data anterior à do acidente, e que a responsabilidade pelos danos emergentes de acidente de viação, causados a terceiros pelo mesmo, se encontrava transferida para a Seguradora EMP01... através do contrato de seguro n.º ...56.
23. Este mesmo acidente já foi objeto de análise e julgamento na ação n.º 2388/20...., que correu termos no Juízo Central Cível de Guimarães, Juiz ..., em que é autor outro passageiro do veículo em causa, FF, e réus EMP01... – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL, BB e CC, bem como na providência cautelar de Arbitramento de Reparação Provisória n.º 2388/20...., que a antecedeu e correu termos no Juízo Central Cível de Guimarães, Juiz ..., sendo que da referida ação (tal como do procedimento cautelar) resultou a absolvição do FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL por bem se considerar que o contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel titulado pela apólice n.º ...56, celebrado com a EMP01... – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. se encontrava válido e eficaz à data do acidente.
24. O Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, de 20.07.2017, proferido no proc. n.º C-287/16, decidiu que: “O artigo 3.º, n.º 1, da Diretiva 72/166/CEE do Conselho, de 24 de abril de 1972, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade, e o artigo 2.º, n.º 1, da Segunda Diretiva 84/5/CEE do Conselho, de 30 de dezembro de 1983, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional que, em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal, tem por efeito que seja oponível aos terceiros lesados a nulidade de um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, nulidade essa que resulta de falsas declarações iniciais do tomador de seguro sobre a identidade do proprietário e do condutor habitual do veículo em causa ou do facto de que a pessoa por quem ou em nome de quem esse contrato de seguro é celebrado não tinha interesse económico na celebração do referido contrato”.
25. Não é oponível ao Autor qualquer vício decorrente da eventual prestação de declarações inexatas quanto à propriedade ou condutor habitual do veículo de matrícula ..-..-PD ou, ainda, da falta originária de interesse segurável, o mesmo sucedendo com extinção do contrato por falta subsequente de interesse, decorrente da alienação do veículo.
Sem conceder,
26. O Tribunal a quo ignorou o comportamento do próprio autor e a sua flagrante contribuição para a produção e agravamento dos danos por si sofridos.
27. Com relevo para a apreciação desta questão, invocam-se os seguintes factos: (i) o lesado aceitou circular num veículo conduzido por condutor sob o efeito de cocaína, metabolitos e de canabinóides, sendo que o próprio também se encontrava sob o efeito destes agentes, estando todos os ocupantes do veículo a regressar de uma noite de festa em Vigo no qual fizeram o uso conjunto destes estupefacientes; (ii) o lesado circulava no lugar do meio traseiro sem cinto de segurança; (iii) o lesado foi projetado para o exterior do veículo.
28. O grau de exposição voluntária ao risco por parte do autor foi excessivo, superando a gravidade média inerente à conduta de não utilização do cinto de segurança - o que torna este caso especial é a circunstância de o lesado circular num veículo conduzido por condutor que se encontrava sob o efeito de cocaína, metabolitos e de canabinóides, o que era do seu pleno conhecimento dado que todos os ocupantes do veículo regressavam de uma noite de festa no qual fizeram o uso conjunto destes estupefacientes (resulta do Relatório de Urgência de 03.09.2019 junto pelo autor na sua Petição Inicial que o mesmo testou positivo a cocaína e canabinóides); sem cinto de segurança e numa via rodoviária destinada a circulação em grande velocidade.
29. A conjugação destes três elementos representa uma atitude de exposição a um grau de risco superior ao risco médio de não utilização de cinto de segurança, pois o lesado aceitou circular num veículo, em grande velocidade, numa situação de absoluta vulnerabilidade, especialmente atendendo ao lugar que ocupava e à não colocação de cinto de segurança, sujeito a ser vítima, como foi, de projeção para o exterior do mesmo.
30. A violação do artigo 82.º, n.º 1 do Código da Estrada implicou, em concreto, uma contribuição para os danos sofridos.
31. Ora, resultou provado que o Autor seguia como passageiro no lugar do meio do banco de trás e foi projetado para a via, por não se encontrar devidamente retido por cinto de segurança e, por outro lado, não existe qualquer elemento nos autos nem factos provados de onde resulte que a ausência de cinto de segurança se ficou a dever a qualquer mau funcionamento do mesmo, o que constitui uma construção meramente hipotética e fantasiosa.
32. O Tribunal deve considerar esta ausência de colocação de cinto de segurança como uma contribuição do autor para a produção e agravamento dos danos sofridos e a medida da mesma, atenta a particular gravidade do grau de sujeição ao risco, deve ser de 50%.
33. Assim, a não se concluir pela absolvição do FGA com base nos argumentos supra expostos, o que não se concede, sempre a sentença recorrida terá de ser revogada e substituída por outra que conclua pela corresponsabilidade do autor na produção dos danos, na proporção de, pelo menos, 50%, ajustando-se os montantes indemnizatórios em conformidade.
34. A sentença recorrida violou o disposto nos artigos 22.º do Decreto-Lei 291/2007, de 21 de agosto; 7.º do Código do Registo Predial; 29.º do Código do Registo Automóvel e do artigo 570.º do Código Civil.»
*
1.5. Notificado da apelação do Réu FGA, o Autor interpôs recurso subordinando, onde fez constar as seguintes conclusões:
«1.ª – O recorrente FGA, no recurso por si oferecido, concluiu que, atenta a matéria de facto provada e dos documentos juntos aos autos, se deve considerar a existência de seguro válido e eficaz à data do sinistro dada a inoponibilidade ao lesado e ao FGA, das falsas declarações, da falta originária de interesse segurável e da extinção do contrato por falta subsequente de interessa, decorrente de alienação (que no caso daquela sentença, não se verificou provado, no entendimento do FGA.
2.ª - Termina, concluindo que deve o FGA ser absolvido do presente pleito, e condenada a ré EMP01... ao pagamento dos montantes indemnizatórios devidos ao autor.
3.º - Ora, caso venha a ser julgado, total ou parcialmente, procedente o recurso principal interposto pelo FGA, não pode a Ré EMP01... deixar de ser condenada a satisfazer ao Autor a indemnização pelos danos que sofreu, na sua totalidade, o que implicará, nesse caso, a revogação da decisão que absolveu aquela Ré do pedido;
4.ª - Isto apesar de se considerar que a condenação da EMP01... na indemnização que vier a ser fixada é uma consequência inevitável da eventual procedência do recurso interposto pelo FGA.
5.ª - Assim, a condenação da EMP01... nos pedidos formulados deve ser determinada por força da procedência do presente recurso subordinado, ou mesmo, apenas, da procedência do recurso do FGA. (nesse sentido Aco do STJ de 11/03/2010 proferido no processo 697/1999.S1, e Aco do STJ de 09/07/2015, no processo 1776/06.7TBAMT.P1.S1, já acima citados).
6.ª - Deve, assim, no caso de procedência do recurso principal, ser a Ré EMP01... condenadas, em substituição do FGA, no pagamento das indemnizações fixadas na douta sentença, o que, expressamente, se requer.
7.ª - A sentença recorrida, no caso de procedência do recurso principal no que a esta matéria diz respeito, violou o disposto nos artigos 22.º do Decreto-Lei 291/2007, de 21 de agosto; 7.º do Código do Registo Predial; 29.º do Código do Registo Automóvel.
Termos em que deve a douta Sentença recorrida ser revogada e substituída por outra nos termos das conclusões supra citadas.»
*

1.6. A Recorrida EMP01... apresentou, separadamente, contra-alegações relativamente ao recurso interposto pelo Réu FGA, aderindo parcialmente a este recurso (no que concerne às conclusões 26ª a 33ª), e quanto ao recurso subordinado do Autor.
Os recursos foram admitidos.
*
1.7. Questões a decidir
Nas conclusões dos dois recursos independentes e do recurso subordinado, as quais delimitam o seu objeto (artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, 636º e 639º, nº 1, do CPC), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, os respetivos recorrentes suscitam as seguintes questões:
i) Modificação da decisão da matéria de facto quanto ao ponto 4 dos factos provados;
ii) Responsabilidade pelo pagamento das indemnizações ao Autor, caso se conclua pela inoponibilidade da nulidade ou da caducidade do contrato de seguro ao lesado e ao FGA;
iii) Ausência de colocação de cinto de segurança como uma contribuição do Autor para a produção e agravamento dos danos sofridos e a medida da mesma;
iv) Aumento do valor da compensação pelos danos não patrimoniais para o montante de € 125.000,00;
v) Aumento da indemnização da vertente patrimonial do dano biológico para o valor de € 300.000,00;
vi) Modificação dos montantes indemnizatórios em consonância com a resposta à questão iii);
vii) Momento a partir do qual devem ser contados os juros mora.
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II – Fundamentos

2.1. Fundamentação de facto
2.1.1. Na decisão recorrida julgaram-se provados os seguintes factos:
«1. No dia 3 de novembro de 2019, pelas 9:00 horas, ocorreu um despiste na Autoestrada 3, ao quilómetro 25,130, sentido Norte – Sul, em ..., onde foi interveniente o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-PD, de marca ..., modelo ..., na altura conduzido pelo 2.º Réu BB.
2. O condutor, ao descrever uma curva para a direita, estando o piso molhado, perdeu o controlo do veículo batendo nas guardas metálicas do lado direito, e imobilizou-se 150 metros mais à frente, também do lado direito da via, na perpendicular atendendo ao sentido de trânsito, quando embateu na guarda metálica e na barreira acústica aí existente.
3. O condutor conduzia o veículo sob o efeito de cocaína, metabolitos e de canabinóides, tendo sido condenado por sentença transitada em julgado proferida em 25/05/2023, como autor da prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário com agravação, p. e p. pelos artigos 291.º, n.º 1, al. a), 285.º e 294.º, n.º 3, e 69.º, n.º 1, al. a), do Código Penal (este crime em concurso aparente com o crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo artigo 137.º, n.º 1, do Código Penal) e de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelos artigos 148.º, n.ºs 1 e 3 e 69.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, na pena única de 3 (três) anos e 9 (nove) meses de prisão, suspensa no mesmo período, com regime de prova.
4. O Autor seguia como passageiro no lugar do meio do banco de trás e foi projetado para a via, por não se encontrar devidamente retido por cinto de segurança.
5. Do acidente resultaram ainda ferimentos graves para o passageiro FF, a morte do passageiro GG (que seguiam no banco traseiro) e ferimentos leves em DD, que viajava como passageiro no banco frontal.
6. O acidente foi participado à Ré EMP01..., constando da participação que o veículo tinha como proprietário e condutor, o 2.º Réu BB e que estaria seguro na Ré pela apólice de seguro de responsabilidade civil automóvel n.º ...56.
7. O veículo PD tinha sido adquirido pelo 2.º Réu, com recurso a crédito pessoal, mas registado, em julho de 2019, em nome da 3.ª Ré, na altura, sua companheira, com quem vivia em comunhão como casal, sendo utilizado por ambos.
8. Em 10.10.2019 foi emitida a referida apólice, onde consta como tomadora a 3.ª Ré CC, tendo intervindo como mediador HH, que a emitiu na plataforma informática, sem digitalização da documentação daquela, nem tendo sido os elementos em papel recebidos na seguradora, nomeadamente a proposta assinada.
9. Na altura do acidente o casal estava separado e, concordando ambos na mudança de titularidade de registo para o 2.º Réu, a 3.ª Ré assinou declaração de venda, datada de 30 de outubro de 2019, dando aquele entrada do pedido por via informática nesse mesmo dia, pelas 15 horas (com emissão de guia para pagamento até ../../2019 e que foi suportada pelo Réu).
10. O veículo PD encontra-se registado a favor do 2.º Réu desde ../../2019.
11. A 3.ª Ré reclamou junto da Ré EMP01... a 6 de novembro de 2019 de que o veículo PD não lhe pertence e que nunca tinha dado qualquer autorização para fazer qualquer seguro; a Ré EMP01... em 27 de novembro informou a Ré que continuava a proceder a averiguações sobre o contrato de seguro.
12. A Ré EMP01... comunicou ao Autor, a 06/05/2020, a não assunção de responsabilidade no sinistro, por não haver seguro válido.
13. Em consequência do acidente, o Autor foi assistido pelo INEM e no local apresentava-se em ECG < 8 (numa escala de 0 a 15) e com movimentos de descerebração, anisocoria e hipotensão, tendo sido entubado e imobilizado; apresentou resultados positivos para álcool, cocaína e canabinóides.
14. Foi transportado de urgência para o Hospital ..., no ..., apresentando as seguintes lesões:
- traumatismo cranioencefálico – fratura temporoparietal direita com extensão no andar médio do crânio, contusão hemorrágica na região frontal e temporal esquerda e edema cerebral;
- traumatismo da face – fratura do arco zigomático direito;
- traumatismo torácico – fratura do terço médio da clavícula esquerda, fratura dos 1.º e 2.º arcos costais esquerdos e 1.º arco costal direito, contusão pulmonar LSE e enfisema nos músculos intercostais;
- suspeita de pneumonia de aspiração e alterações eletrocardiográficas.
15. Em função da sua situação clínica, no dia seguinte, entubado e algaliado, o autor foi transferido para a unidade de cuidados intensivos dessa unidade hospitalar, onde permaneceu internado e sob vigilância médica e de enfermagem, realizando tratamentos e exames.
16. Durante este período o autor manteve-se inconsciente e com prognóstico muito reservado, com novo episódio de assistolia, tendo realizado Ecodoppler transcraniano, RMN (com retirada de colar cervical) e foi realizada uma traqueostomia a 18 de novembro, com retirada progressiva de ventilador e abertura espontânea dos olhos, ainda sem dirigir olhar.
17. O autor, em ../../2019, foi transferido para o Hospital ... em ... – serviço de Neurologia, onde continuou traqueostimizado (TQ) e com sonda nasogástrica (SNG), recebendo tratamentos médicos e medicamentosos.
18. No dia 2 de dezembro de 2019, o autor foi transferido para o serviço de Medicina Física e de Reabilitação, encontrando-se de olhos abertos, dirigindo o olhar, mas sem cumprir ordens e sem resposta verbal; imobilizado nos membros superiores e submetido a tratamento conservador nas fraturas.
19. Em meados de dezembro de 2019, foi retirada TQ e SNG, tendo sido alimentado oralmente sem disfagia e sujeito a tratamentos de reabilitação, com evolução favorável do quadro neurológico e funcional.
20. Nesta altura, o Autor apresentava um discurso ilógico, vago e incoerente, não sabendo onde estava, nem conhecendo visitas.
21. Durante o internamento o Autor manteve-se com tonturas, mal-estar, dores, estando acamado a maior parte do tempo e dependente de terceiros para se levantar, alimentar e realizar as atividades básicas.
22. No dia 7 de janeiro de 2020, o autor teve alta hospitalar do Hospital ..., tendo sido transferido para o Centro de Reabilitação do Norte, em ..., apresentando-se autónomo na alimentação, mas ainda com necessidade de ajuda mínima de terceira pessoa para tomar banho, para se vestir e nas transferências.
23. Na altura, apresentava-se vígil, colaborante, cumprindo ordens, com discurso mais fluente e adequado, orientado no tempo/espaço e sendo capaz de ler.
24. No CRN o Autor integrou um programa de reabilitação intensivo, adaptado à situação clínica, orientado por médica fisiatra, com apoio de Medicina Interna e englobando cuidados de enfermagem, hidroterapia, terapia ocupacional, nutrição e serviço social.
25. Os objetivos do internamento foram a avaliação neuropsicológica e melhoria das funções cognitivas, melhoria da força muscular global e tolerância ao esforço, melhoria de qualidade no ombro esquerdo, melhoria da funcionalidade do membro superior esquerdo; melhoria do equilíbrio e controle postural em ortostatismo, melhoria da funcionalidade da marcha, melhoria da funcionalidade para os atos de vida diária e medicação de reintegração sociofamiliar (domicílio).
26. Durante este internamento, o autor mostrava-se muito cansado, sonolento, lentificado nas tarefas, com angústia e ansiedade por causa do acidente e do internamento, tendo melhoria significativa global com evolução do quadro neurológico e repercussão funcional.
27. O Autor teve alta hospitalar a 24 de fevereiro de 2020, regressando a casa onde vivia, como vive, na companhia de sua mãe e de um irmão mais novo.
28. O período entre esta data e o acidente (03/11/2019) que corresponde ao internamento de 114 dias, foi fixado como o Défice Funcional Temporário Total em sede de relatórios periciais.
29. A valoração do sofrimento físico e psíquico vivenciado durante este período (Quantum doloris), tendo em conta as lesões resultantes, o período de recuperação funcional, o tipo de traumatismo e os tratamentos efetuados, foi fixado em relatórios periciais no grau 5 numa escala de sete graus de gravidade crescente.
30. As recomendações após a alta eram dar continuidade aos tratamentos de reabilitação (fisioterapia e terapia ocupacional), com estímulo à autonomia e manter medicação – levitracetam, metilgenidato e escitalopram.
31. O Autor já se encontrava autónomo nas atividades básicas, com marcha autónoma e sem limitação, não saindo de casa sozinho, por precaução.
32. O Autor foi seguido em Neurologia, avaliado com défice cognitivo com aparente atingimento dos domínios da linguagem e atenção; e irritabilidade potenciada pela medicação.
33. A 3 de março de 2020, o autor foi sujeito a uma avaliação neuropsicológica, que concluiu pela existência de alterações nos domínios da atenção dividida, velocidade de processamento, cálculo, memória (processo de codificação e evocação espontânea) e funções executivas (iniciativa verbal, planeamento, controlo inibitório e evocação espontânea), destacando-se a alterações disexecutivas e a lentificação de velocidade de processamento, tendo sido proposto treino cognitivo e reabilitação profissional.
34. O Autor não deu continuidade ao programa de reabilitação, tendo sido referenciado para consulta no Centro de Reabilitação ... em outubro de 2020.
35. Aí foi proposto integrar o programa de Recuperação e Atualização de Competências Pessoais e Sociais dirigido a pessoas com lesão cerebral adquirida, com o objetivo de estimular as funções cognitivas que se encontram comprometidas e de promover a reorganização do seu projeto profissional, que tinha início previsto para 18 de janeiro de 2021 e que terminou em outubro de 2021.
36. O Autor sofre de cefaleias, falta de equilíbrio após longos períodos em ortostatismo, sente alterações de memória e mais lentificado, e maior labilidade emocional, ficando mais facilmente irritado.
37. O Autor em virtude de traumatismo crânio encefálico sofrido no acidente, apresenta como sequelas definitivas, alterações de memória e cognitivas e labilidade emocional a qual se atribuiu um Défice Permanente da Integridade Físico-psíquica de 11/12 pontos pelo cap I.3 (Na0308 – perturbação moderada, com manifesta diminuição do nível da eficiência pessoal, social e laboral, de 11 a 40 pontos).
38. Em consequência do acidente, apresenta deformidade da região clavicular com encurtamento de cerca de 2 cm, por consolidação viciosa de fratura, com cavalgamento dos topos, com mobilidade preservada e sem alterações na força muscular, que se fixou num défice de 2 pontos pelo Cap. III Mf1202 (Ombro doloroso até 3).
39. O défice funcional permanente foi fixado em sede de perícias em 12 e 12,78 pontos, sendo as sequelas impeditivas do exercício da sua atividade profissional habitual bem assim como de qualquer outra dentro da sua área de preparação técnico-profissional.
40. Em virtude das lesões sofridas apresenta cicatriz hipocrómica, espessada, localizada na região occipital direita, com 5,5 cm de comprimento e cicatriz rosada, deprimida, localizada na face anterior da região cervical, medindo 2 por 1 cm de maiores dimensões e tumefação no terço médio da clavícula esquerda, tendo-lhe sido fixado no grau 1, numa escala de sete graus de gravidade crescente, como dano estético permanente.
41. Foi fixado no grau 1, numa escala de sete graus de gravidade crescente a repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer decorrente das lesões sofridas, tendo deixado de jogar à bola com os amigos.
42. O Autor continuará a necessitar de ajuda medicamentosa permanente, do foro neurológico, ajustada às necessidades do examinado e por prescrição médica de Neurologista, e de tratamentos médicos regulares de acompanhamento em consultas de Neurologia e Psicologia ajustadas às necessidades do examinado ao longo da evolução do acompanhamento.
43. O Autor nasceu a ../../2001, tendo 18 anos à data do acidente.
44. O Autor era pessoa alegre e sociável, encontrando-se, depois do acidente e em virtude das sequelas, com alterações de humor, mais irritado e mais isolado, em virtude das limitações decorrentes das sequelas do TCE.
45. O Autor terá concluído o 7.º ano de escolaridade com cerca de 14 anos de idade, altura em que integrou o curso de formação profissional de Operador de Logística, tendo frequentado apenas um ano e iniciado a trabalhar aos 16 anos.
46. À data do acidente estava desempregado e não tinha uma atividade profissional certa, fazendo pequenos trabalhos ocasionais e informais na função de taqueiro esperando iniciar novo trabalho na mesma área em dezembro de 2019.
47. O Autor frequentou o programa de atualização de competências e o seu atual perfil, atendendo à experiência profissional limitada e nível de escolaridade, bem como às limitações físicas, será compatível com a ocupação de um posto de trabalho como rececionista ou auxiliar de apoio administrativo (contínuo).
48. Em consequência do presente sinistro, o autor viu danificados e destruídos os seguintes pertences que usava à altura, roupa, sapatos e telemóvel, de valor não concretamente apurado, não superior a 370 € (trezentos e setenta euros).»
*
2.1.2. Factos não provados
O Tribunal a quo julgou não provados os seguintes factos:
«- a 2.ª Ré era dona e possuidora do veículo à data do acidente e que celebrou seguro com a EMP01...;
- que o Autor apresente outras sequelas além das provadas, nomeadamente perturbações visuais, síndrome de stress pós traumático, insónias com o sono agitado, sintomatologia fóbica relativamente à problemática rodoviária, síndrome depressivo prolongado, perturbações de pânico, episódios de dislexia, afetação da líbido sexual; limitação na abdução, flexão, déficit nos últimos graus de rotações do ombro;
- que o Autor tivesse ficado impossibilitado, de forma absoluta e definitiva, de se inserir no mercado de trabalho.»
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2.2. Do objeto dos recursos
2.2.1. Impugnação da decisão da matéria de facto
Segundo especifica na conclusão 3ª das suas alegações, o Autor/Recorrente impugna a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal de 1ª instância no que concerne ao ponto 4 dos factos provados, o qual tem o seguinte teor:
«4. O Autor seguia como passageiro no lugar do meio do banco de trás e foi projetado para a via, por não se encontrar devidamente retido por cinto de segurança.»
O Recorrente sustenta que «nenhuma prova foi feita nos presentes autos quanto ao facto do Autor usar ou não o cinto de segurança na altura do acidente» e que, por isso, a redação do ponto 4 «deveria ser a seguinte:
4. O Autor seguia como passageiro no lugar do meio do banco de trás e foi projetado para a via».
Com vista a poder apreciar a aludida impugnação, procedemos à audição da gravação da audiência final e à análise de tudo quanto consta do processo, em especial os documentos.

O Tribunal a quo motivou a decisão sobre o ponto 4 dos factos provados:
«Especificamente quanto à ausência de cinto de segurança, atendendo ao facto de ter sido projetado pode concluir-se que este não funcionou devidamente, mas não que o Autor teria, de forma consciente, optado por não o colocar. Apesar de referido nalguns exames, também aí se refere que não tem memória do acidente e ninguém com conhecimento direto – o referido DD ou o militar da GNR (que assinou participação), EE, o afirmaram em julgamento.
O perito também não conseguiu concluir que as lesões foram agravadas pela projeção.»
O Recorrente invoca os depoimentos das testemunhas EE e DD. O primeiro, enquanto militar (com a patente de cabo-chefe) da Guarda Nacional Republicana, elaborou a participação de acidente de viação (junta pelo Autor com a petição inicial), enquanto o segundo seguia como passageiro no veículo acidentado, mais exatamente no banco da frente direito, ao lado do condutor.
Nenhuma das duas testemunhas afirmou que o Autor não utilizava (no sentido de “não tinha posto”) o cinto de segurança. A testemunha EE disse que chegou ao local do acidente depois da sua ocorrência, quando as vítimas já se encontravam a ser assistidas, e que nada sabia sobre o uso do cinto de segurança (acrescentando que não tinha qualquer «informação sobre isso»). A testemunha DD afirmou não ter reparado se o Autor «levava ou não» cinto de segurança.
Acresce que o perito médico nenhum elemento relevante trouxe aos autos sobre tal matéria, tendo feito constar do esclarecimento (prestado em 14.02.2024) ao relatório pericial: «Não é possível aferir quanto aos tipos de lesões e gravidade das mesmas que poderiam ter decorrido do uso do cinto durante o evento em estudo ou diferença das mesmas em relação com as que o examinado sofreu».
Nenhum outro meio de prova permite afirmar que o Autor não se encontrava a usar o cinto de segurança no momento da ocorrência do acidente de viação.
Por conseguinte, face à prova produzida, ignora-se se o Autor usava ou não cinto de segurança.
Dito isto, sendo pacífico que o Autor seguia como passageiro no lugar do meio do banco de trás e que foi projetado para a via, desconhece-se a concreta razão para o sucedido, designadamente se isso foi consequência de o Autor não utilizar cinto de segurança ou de um deficiente funcionamento deste («não funcionou devidamente» - expressão utilizada na motivação desta questão factual).
Por conseguinte, o segmento frásico do ponto 4 em que se conclui que o Autor foi projetado para a via «por não se encontrar devidamente retido por cinto de segurança» é suscetível de pelo menos duas interpretações:
a) o Autor não se encontrava «devidamente retido por cinto de segurança» por não usar cinto de segurança no momento do acidente;
b) o Autor usava cinto de segurança, mas este, devido a funcionamento deficiente ou qualquer outra causa, não o reteve aquando do acidente.
Ambas as interpretações são admissíveis, pelo que aquele segmento tem um sentido dúbio e não esclarece a questão factual suscitada pelo Réu Fundo de Garantia Automóvel na sua contestação, em cujo artigo 10º alegara «o referido sinistrado [o Autor] fazia-se transportar no veículo de matrícula ..-..-PD sem utilizar o competente cinto de segurança.»
É de salientar que na motivação da decisão sobre a matéria de facto não se conseguiu dar uma resposta cabal e inequívoca sobre a questão factual relativa «à ausência de cinto de segurança», afirmando-se a apenas que «atendendo ao facto de ter sido projetado pode concluir-se que este não funcionou devidamente, mas não que o Autor teria, de forma consciente, optado por não o colocar».
Apesar de o ponto 4 nada esclarecer sobre o efetivo não uso de cinto de segurança, o Réu Fundo de Garantia Automóvel, nas suas conclusões alega que «o lesado circulava no lugar do meio traseiro sem cinto de segurança» (conclusão 27ª) e a «conduta de não utilização do cinto de segurança» (conclusão 28ª).
Mais, sustenta que «não existe qualquer elemento nos autos nem factos provados de onde resulte que a ausência de cinto de segurança se ficou a dever a qualquer mau funcionamento do mesmo, o que constitui uma construção meramente hipotética e fantasiosa» (conclusão 31ª), concluindo que a Relação «deve considerar esta ausência de colocação de cinto de segurança como uma contribuição do autor para a produção e agravamento dos danos sofridos e a medida da mesma, atenta a particular gravidade do grau de sujeição ao risco, deve ser de 50%.»
A aludida ilação que o Réu FGA retira do ponto 4 parece-nos inadmissível em face da prova produzida, pois nenhuma convicção se consegue adquirir sobre o uso ou não daquele dispositivo de segurança.
Aliás, se consultarmos as fotografias do veículo com a matrícula ..-..-PD, que integram o relatório da empresa que a Ré EMP01... contratou para averiguar as causas e consequências do acidente de viação (documento nº 4 junto com a contestação da Ré seguradora), verificamos que se tratou de um acidente violentíssimo, restando do veículo uma amálgama de componentes do automóvel. Por exemplo, numa das fotografias, é possível observar uma roda dentro do habitáculo, o qual é um conjunto desordenado de peças deformadas. Como se pode ver tanto na participação da GNR como no relatório de averiguação da empresa EMP02..., o motor separou-se do veículo, ficando um numa extrema da faixa de rodagem (o motor na da esquerda, ou seja, junto ao separador central da autoestrada) e o outro na outra extrema (o veículo na da direita, enfaixado na barreira acústica que margina a autoestrada, a danificar o portão de uma habitação aí existente, naturalmente já fora da autoestrada), sendo que a faixa de rodagem tinha 7,40 metros de largura. O acidente consistiu em dois embates sucessivos, dos quais resultaram um morto e dois feridos graves.
Num tal quadro, em que depois de dois embates violentos a elevada velocidade, o veículo ficou no estado que as fotografias bem documentam e até o motor se separou do veículo, por maioria de razão é também admissível a hipótese de a projeção do Autor para o exterior do veículo se ter ficado a dever ao deficiente funcionamento do cinto de segurança ou outra causa, como seja a danificação do elemento que opera a fixação do cinto. Nenhum das duas hipóteses – não uso e deficiente funcionamento – pode ser excluída. Não pode é fazer-se constar da matéria de facto uma conclusão que apoia ambas as teses, mas não responde à questão factual que havia sido alegada na contestação do Réu FGA.
Por isso, procede a impugnação do Recorrente, devendo eliminar-se a parte final do ponto 4 e aditar-se aos factos não provados um ponto correspondente ao alegado pelo Réu FGA no artigo 10º da sua contestação.
Termos em que se decide:
a) Modificar o ponto nº 4 dos factos provados, que passará a ter a seguinte redação:
4. O Autor seguia como passageiro no lugar do meio do banco de trás e foi projetado para a via.
b) Aditar aos factos não provados o seguinte ponto de facto:
- O Autor fazia-se transportar no veículo de matrícula ..-..-PD sem utilizar o competente cinto de segurança.

Dado que a modificação da decisão da matéria de facto se cinge à apontada redação do ponto 4 dos factos provados e ao aditamento de um novo facto à matéria de facto não provada, matéria que é de fácil apreensão, não transcreveremos a totalidade dos factos provados e não provados.
*
2.2.2. Do contrato de seguro
Por não impugnado nos recursos, está assente que o acidente se produziu devido a conduta ilícita e culposa do Réu BB, enquanto condutor do veículo com a matrícula ..-..-PD, e que se verificam os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual como fonte da obrigação de indemnizar o Autor.
O que o Recorrente Fundo de Garantia Automóvel (FGA) impugna é a sua responsabilidade pelo pagamento de indemnizações ao Autor (alegando ainda a contribuição deste para a produção e agravamento dos danos). Sustenta que existe seguro válido e eficaz e que, em todo o caso, são inoponíveis a caducidade e a nulidade/anulabilidade do contrato de seguro ao lesado e ao FGA. O Autor, no âmbito do recurso subordinado, defende a responsabilização da Ré/Recorrida EMP01....
Na sentença concluiu-se que o proprietário do veículo, na data do acidente, era apenas o 2º Réu, por o respetivo direito de propriedade lhe ter sido transmitido pela 3ª Ré no dia 30.10.2019, antes do acidente, pelo que o contrato de seguro celebrado com a Ré EMP01... «encontrava-se caducado à data do acidente, exceção esta que, nos termos do referido artigo 22.º, é oponível aos lesados, impondo-se a absolvição da Ré EMP01....»
Por se ter considerado que inexistia contrato de seguro válido e eficaz que garantisse a responsabilidade civil do 2º Réu, como proprietário e condutor, pelos danos causados a terceiros pelo veículo, com base no artigo 47º do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de agosto, concluiu-se que a responsabilidade pela reparação de tais danos é garantida pelo Fundo de Garantia Automóvel.
Quanto ao 2º Réu, assentou-se na sentença que este seria sempre, a final, responsabilizado pelo acidente, mesmo que o veículo estivesse segurado, uma vez que, deu causa a acidente sob a influência de drogas, atendendo ao direito de regresso previsto no artigo 27º do Decreto-Lei nº 291/2007.

Relevam para a apreciação da indicada questão os seguintes factos:
- O acidente a que se referem os autos ocorreu a 03.11.2019 (resumo do ponto 1);
- O acidente foi participado à Ré EMP01..., constando da participação que o veículo tinha como proprietário e condutor, o 2º Réu BB e que estaria seguro na Ré pela apólice de seguro de responsabilidade civil automóvel nº ...56 (ponto 6);
- O veículo PD tinha sido adquirido pelo 2º Réu, com recurso a crédito pessoal, mas registado, em julho de 2019, em nome da 3ª Ré, na altura, sua companheira, com quem vivia em comunhão como casal, sendo utilizado por ambos (7);
- Em 10.10.2019 foi emitida a referida apólice, onde consta como tomadora a 3ª Ré CC, tendo intervindo como mediador HH, que a emitiu na plataforma informática, sem digitalização da documentação daquela, nem tendo sido os elementos em papel recebidos na seguradora, nomeadamente a proposta assinada (8);
- Na altura do acidente o casal estava separado e, concordando ambos na mudança de titularidade de registo para o 2º Réu, a 3ª Ré assinou declaração de venda, datada de 30.10.2019, dando aquele entrada do pedido por via informática nesse mesmo dia, pelas 15 horas (com emissão de guia para pagamento até ../../2019 e que foi suportada pelo Réu) (9);
- O veículo PD encontra-se registado a favor do 2º Réu desde 05.11.2019 (10);
- A Ré EMP01... comunicou ao Autor, a 06.05.2020, a não assunção de responsabilidade no sinistro, por não haver seguro válido (12).
Há ainda que considerar que foi julgado não provado que «a 2.ª Ré era dona e possuidora do veículo à data do acidente e que celebrou seguro com a EMP01...».

Analisados os factos e o direito aplicável, é para nós perfeitamente claro que ao Autor e, consequentemente, ao Réu Fundo de Garantia Automóvel, demandado com base no disposto no artigo 47º, nº 1, do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de agosto, não é oponível a nulidade/anulabilidade decorrente da eventual falta originária de interesse no seguro por parte da tomadora do seguro ou de qualquer vício decorrente da prestação de declarações inexatas quanto à propriedade ou condutor habitual do veículo com a matrícula ..-..-PD, bem como a cessação dos efeitos do contrato de seguro por força da alegada alienação do veículo seguro e falta subsequente de interesse económico daquela resultante.
Trata-se, aliás, de questão apreciada no acórdão de 10.10.2024, desta mesma 2ª Secção Cível da Relação de Guimarães, proferido no processo 2388/20.8T8GMR.G1 (relatado por Raquel Baptista Tavares)[1], que tem a particularidade de ter incidido sobre o mesmo acidente de viação que é objeto dos nossos autos, sendo apenas o autor diferente – o lesado FF, que seguia como passageiro no banco traseiro do veículo, ao lado do aqui Autor –, assim sumariado:
«I - “A válida celebração de um contrato de seguro exige o preenchimento do requisito do interesse (que se entende comumente ser de natureza económica) na cobertura de um determinado risco”.
II - Assim se compreende que o n.º 1 do artigo 43º do RJCS consagre que o segurado tenha um interesse digno de proteção legal relativamente ao risco coberto, sob pena de nulidade do contrato, e que o n.º 1 do artigo 21º do DL n.º 291/2007, de 21/08 estabeleça que o contrato de seguro cesse os seus efeitos com a alienação do veículo.
III – Assim, a falta de interesse originário determina a nulidade do contrato nos termos do artigo 43.º, n.º 1, do RJCS, e a falta de interesse superveniente determina a cessação dos efeitos (ineficácia) do contrato nos termos do artigo 21.º, n.º 1, do DL n.º 291/2007, de 21/08.
IV. Estando em causa determinar se a nulidade do contrato de seguro ao abrigo do artigo 43.º, n.º 1, do RJCS, ou a sua ineficácia ao abrigo do artigo 21.º, n.º 1, do DL n.º 291/2007, são oponíveis ao lesado, terceiro em relação ao contrato de seguro, é de concluir que a interpretação do direito português em conformidade com o DUE (cfr. Acórdão do TJUE de 20-07-2017), impõe que se considere que, num contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel o requisito legal do interesse, previsto no n.º 1 do artigo 43.º do RJCS (e subjacente ao n.º 1 do art. 21.º do DL n.º 291/2007), se encontra derrogado pela possibilidade de o contrato ser celebrado por terceiro, prevista no n.º 2 do artigo 6.º do DL n.º 291/2007.»

Vejamos o enquadramento jurídico da questão suscitada, considerando o alegado no recurso independente do Réu FGA e no recurso subordinado do Autor, partindo da defesa apresentada pela Ré EMP01... na sua contestação e na apreciação que o Tribunal a quo fez da mesma na sentença.

Conforme decorre do disposto no artigo 4º, nº 1, do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de agosto, toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos corporais ou materiais causados a terceiros por um veículo terrestre a motor para cuja condução seja necessário um título específico e seus reboques, com estacionamento habitual em Portugal, deve, para que esses veículos possam circular, encontrar-se coberta por um seguro que garanta essa responsabilidade, cujos termos são regidos pelo mencionado diploma. Trata-se de um seguro de celebração obrigatória.
No seguro de responsabilidade civil por acidente de viação a seguradora, mediante o pagamento de um prémio e dentro das forças do seguro, garante ao segurado o pagamento da indemnização que a este possa vir a ser exigida por um terceiro, em consequência de danos causados na pessoa deste ou nos seus bens por acidente com determinada viatura automóvel.
O artigo 6º, nºs 1 e 2, do referido diploma, dispõe que «a obrigação de segurar impende sobre o proprietário do veículo, excetuando-se os casos de usufruto, venda com reserva de propriedade e regime de locação financeira, em que a obrigação recai, respetivamente, sobre o usufrutuário, adquirente ou locatário» (nº 1); contudo, «se qualquer outra pessoa celebrar, relativamente ao veículo, contrato de seguro que satisfaça o disposto no presente decreto-lei, fica suprida, enquanto o contrato produzir efeitos, a obrigação das pessoas referidas no número anterior.»
Quanto ao interesse no seguro, socorrendo-nos do regime jurídico do contrato de seguro (RJCS), aprovado pelo Decreto-Lei nº 72/2008, de 16 de abril, dispõe o seu artigo 43º, nº 1, que «o segurado deve ter um interesse digno de proteção legal relativamente ao risco coberto, sob pena de nulidade do contrato
A falta de interesse segurável por parte da pessoa sobre a qual recai a obrigação de segurar pode ser originária ou superveniente. Em qualquer caso, é suscetível de gerar a nulidade do contrato de seguro.
Caso típico de superveniente falta de interesse no seguro de responsabilidade automóvel é precisamente o da alienação do veículo.
É de notar que os artigos 47º, nº 1, e 48º, nº 1, do RJCS, admitem, ao lado do seguro por contra própria, o seguro por conta de outrem. No primeiro, «o contrato tutela o interesse próprio do tomador de seguro», ou seja, o tomador do seguro é também o segurado e o beneficiário do seguro, enquanto no segundo, «o tomador do seguro atua por conta do segurado, determinado ou indeterminado», o mesmo é dizer que o contratante não é o titular do interesse. Por conseguinte, no seguro por conta de outrem, o tomador do seguro não coincide com o segurado que, por sua vez, se identifica com o beneficiário do contrato[2].
Atente-se, contudo, que o próprio Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de agosto, no seu artigo 6º, nº 2, que já tivemos a oportunidade de transcrever o seu teor, contempla a hipótese de o contrato de seguro relativamente ao veículo ser celebrado por terceiro, cuja obrigação de segurar não impenda sobre si e não seja o titular do interesse, ficando com isso suprida a referida obrigação «enquanto o contrato produzir efeitos», o que significa que a lei manda considerar o seguro feito por terceiro, atribuindo-lhe relevância jurídica e, consequentemente, efeitos.
Ainda com relevo para o caso dos autos, temos que, nos termos do artigo 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de agosto, «o contrato de seguro não se transmite em caso de alienação do veículo, cessando os seus efeitos às 24 horas do próprio dia da alienação, salvo se for utilizado pelo tomador do seguro inicial para segurar novo veículo.»
Estabelece este preceito uma causa de cessação dos efeitos do contrato de seguro por caducidade, que opera de forma automática, ipso iure, por efeito da verificação superveniente de um facto jurídico stricto sensu a que a lei associou esse efeito extintivo[3].
Por sua vez, estabelece o artigo 22º do mesmo diploma: «Para além das exclusões ou anulabilidades que sejam estabelecidas no presente decreto-lei, a empresa de seguros apenas pode opor aos lesados a cessação do contrato nos termos do nº 1 do artigo anterior, ou a sua resolução ou nulidade, nos termos legais e regulamentares em vigor, desde que anteriores à data do acidente.»
Finalmente, o artigo 147º, nº 1, do RJCS, dispõe que «o segurador apenas pode opor ao lesado os meios de defesa derivados do contrato de seguro ou de facto do tomador do seguro ou do segurado ocorrido anteriormente ao sinistro», sendo que, para esse efeito, nos termos do seu nº 2, «são nomeadamente oponíveis ao lesado, como meios de defesa do segurador, a invalidade do contrato, as condições contratuais e a cessação do contrato».

Como bem destaca a Recorrida EMP01... nas suas contra-alegações, a defesa que apresentou na contestação centrou-se na questão da validade do contrato de seguro obrigatório referente ao veículo com a matrícula ..-..-PD, em dois pontos essenciais: a nulidade do contrato de seguro fundada na inexistência de interesse da parte do tomador do seguro e a caducidade do contrato de seguro por força da transmissão do direito de propriedade.
Por sua vez, na sentença, o Tribunal a quo considerou mais pertinente a questão de saber se a assinatura e entrega da declaração de venda antes do acidente, configura uma alienação do veículo. Consequentemente, partindo da constatação de que a 3ª Ré tinha sido a proprietária registada e que o veículo era utilizado pelo casal formado com o 2º Réu, «quando este se separou, acordaram que o veículo deveria ser passado para nome do 2º Réu, que suportava o seu empréstimo e que ficou com a posse exclusiva do veículo», tendo a 3ª Ré assinado uma declaração de venda e o 2º Réu entregou-a eletronicamente no dia 30 de outubro, passando o registo para o nome deste, dois dias depois do acidente (o acidente ocorreu no dia 03.11.2019 e o registo foi efetuado a 05.11.2019), concluiu que o aludido acordo, concretizado com a efetiva entrega do documento de registo, «configura uma alienação, ainda que não haja pagamento de preço.»
Por conseguinte, na nossa interpretação, considerou-se ilidida a presunção prevista no artigo 7º do Código do Registo Predial, aplicável aos automóveis, por força do disposto no artigo 29º do Decreto-Lei nº 54/75, de 12 de fevereiro, e que o proprietário do veículo na data do acidente era apenas o 2º Réu, encontrando-se, por isso, o contrato de seguro caducado, concluindo-se que essa exceção é oponível aos lesados.

Posto isto, face à factualidade dada como provada, em especial no seu ponto 7, verifica-se que o veículo foi adquirido pelo 2º Réu em julho de 2019, que era assim o seu verdadeiro proprietário. Apesar de então ter sido adquirido pelo 2º Réu com recurso a crédito pessoal, foi naquela altura registado em nome da 3ª Ré, então sua companheira. O que se operou em 30.10.2019 foi apenas um acordo para fazer coincidir a situação registral com a realidade substantiva. Nessa altura o veículo não foi alienado pela 3ª Ré ao 2º Réu, pois este já era proprietário do mesmo.
Portanto, inequivocamente, deve ser havida por ilidida a aludida presunção resultante do registo (o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define).

Além disso, verifica-se que em 10.10.2019 foi emitida pela Ré a apólice de seguro de responsabilidade civil automóvel nº ...56, onde consta como tomadora a 3ª Ré CC, tendo intervindo como mediador HH, que a emitiu na plataforma informática, sem digitalização da documentação daquela, nem tendo sido os elementos em papel recebidos na seguradora, nomeadamente a proposta assinada. Este último elemento, relativo à emissão pelo mediador da apólice na plataforma informática sem digitalização da documentação e sem recebimento pela seguradora dos elementos em papel, é algo que não pode ser oposto a terceiros, pois a Ré EMP01... é responsável pela sua estrutura administrativa e funcional.
Por conseguinte, objetivamente temos que foi emitida uma apólice de seguro que cobria a responsabilidade civil automóvel relativamente ao veículo PD.
Embora nos pareça óbvio que a Ré EMP01... não demonstrou que a 3ª Ré à data da emissão da apólice, em virtude de viver em comunhão, como casal, com o 2º Réu e de o veículo ser utilizado por ambos, não tinha interesse económico no seguro, vamos partir do princípio, contemplando a hipótese de raciocínio mais extrema, que até se verificaria a aludida falta de interesse por parte da pessoa que na apólice figura como tomadora do seguro e segurada.
Mais, vamos ainda dar por adquirida a caducidade do contrato de seguro por força da transmissão formal do direito de propriedade no dia 30.10.2019, portanto, antes do acidente dos autos.
Nesse enquadramento, teríamos uma falta de interesse, seja ela original (desde logo à data da emissão da apólice) ou superveniente (decorrente da alienação em 30.10.2019). A falta de interesse inicial originaria a nulidade do contrato de seguro ao abrigo do artigo 41º, nº 1, do RJCS. Já a alienação do veículo operada em 30.10.2019, enquanto ato formal de transmissão da propriedade para efeitos de alteração do registo, traduzindo igualmente uma falta de interesse superveniente no seguro por parte da tomadora e segurada, causaria a cessação do contrato de seguro por caducidade, ao abrigo do artigo 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 291/2007.

A questão que subsequentemente se suscita consiste em saber se as referidas nulidade e caducidade (ineficácia) são oponíveis ao lesado e, inerentemente, ao FGA.
Sobre essa matéria há que atentar no acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, de 20.07.2017, proferido no processo nº C-287/16, que decidiu:
«O artigo 3.º. n.º 1, da Directiva 72/166/CEE do Conselho, de 24 e Abril de 1972, relativa à aproximação das legislações dos Estados- Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade, e o artigo 2.º, n.º 1, da Segunda Directiva 84/5/CEE do Conselho, de 30 de Dezembro de 1983, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional que, em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal, tem por efeito que seja oponível aos terceiros lesados a nulidade de um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, nulidade essa que resulta de falsas declarações iniciais do tomador do seguro sobre a identidade do proprietário e do condutor habitual do veículo em causa ou do facto de que a pessoa por quem ou em nome de quem esse contrato de seguro é celebrado não tinha interesse económico na celebração do referido contrato.»
Como se refere no sumário do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 19.01.2023, proferido no processo nº 642/12.1TVPRT.P1.S1 (Maria da Graça Trigo), num caso similar ao dos autos:
«I. A presunção de titularidade do direito resultante da inscrição no registo automóvel reveste a natureza de presunção juris tantum, sendo ilidível mediante prova em contrário (art. 350.º, n.º 2, do CC).
II. A válida celebração do contrato de seguro exige o preenchimento do requisito do interesse (que se entende comumente ser de natureza económica) na cobertura de um determinado risco (art. 43.º, n.º 1, do RJCS).
III. A falta de interesse originária determina a nulidade do contrato nos termos do art. 43.º, n.º 1, do RJCS, vício que, embora não equacionado nos autos, é de conhecimento oficioso (art. 286.º do CC); a falta de interesse superveniente determina a cessação dos efeitos (ineficácia) do contrato nos termos do art. 21.º, n.º 1, do DL n.º 291/2007, de 21/08.
IV. Suscitando-se a questão de saber se a nulidade do contrato de seguro ao abrigo do art. 41.º, n.º 1, do RJCS, ou a sua ineficácia ao abrigo do art. 21.º, n.º 1, do DL n.º 291/2007, são oponíveis aos autores, terceiros lesados em relação ao contrato, verifica-se que a interpretação do direito português em conformidade com o DUE (cfr. Acórdão do TJUE de 20-07-2017), impõe que se considere que, num contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel como o dos autos, o requisito legal do interesse, previsto no n.º 1 do art. 43.º do RJCS (e subjacente ao n.º 1 do art. 21.º do DL n.º 291/2007), se encontra derrogado pela possibilidade de o contrato ser celebrado por terceiro, prevista no n.º 2 do art. 6.º do DL n.º 291/2007.
V. Consequentemente, o facto de se constatar existir uma dissociação entre a tomadora do seguro/segurada e aquele ou aqueles cujo interesse é coberto pelo contrato de seguro, podendo relevar nas relações entre as partes contratantes, não permite seja que se declare oficiosamente a nulidade de tal contrato nos termos do art. 43.º, n.º 1, do RJCS, seja que se declare a cessação dos efeitos do mesmo contrato nos termos do art. 21.º, n.º 1, do DL n.º 291/2007; razão pela qual não há lugar à aplicação de qualquer dos regimes de oponibilidade aos autores lesados dos meios de defesa da seguradora previstos no art. 22.º do DL n.º 291/2007 e no art. 147.º do RJCS.»
Lê-se na fundamentação do aludido aresto o seguinte:
«Prevê-se, pois, a oponibilidade aos lesados, quer da nulidade do contrato, quer da cessação dos seus efeitos nos termos do n.º 1 do art. 21.º do mesmo diploma legal.
Conclusão esta cuja compatibilidade com o Direito da União Europeia em matéria de seguro automóvel obrigatório não pode deixar de ser questionada, atendendo às evidentes consequências de desprotecção para as vítimas de acidentes de viação que a mesma acarreta.
Esta foi a ratio que esteve na origem do pedido de decisão prejudicial (reenvio prejudicial) formulado por este Supremo Tribunal de Justiça no âmbito do Processo n.º 40/10.1TVPRT.P1.S1, que veio a culminar no Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 20 de Julho de 2017, proferido no Processo C‑287/16.
Cumpre considerar a resposta dada pelo TJUE.
Porém, antes de prosseguir, assinale-se que, ainda que a questão formulada no processo de reenvio assentasse no regime de direito português anterior ao regime actualmente vigente, se constata que:
(i) As normas dos arts. 4.º, 6.º, 21.º e 22.º do DL n.º 291/2007 são idênticas, respectivamente, às normas dos arts. 1.º, 2.º, 13.º e 14.º do DL n.º 522/85, de 31 de Dezembro;
(ii) A norma do art. 43.º do RJCS corresponde essencialmente à norma do art. 428.º do Código Comercial.
Assinale-se também que – ainda que, no processo que deu origem ao Acórdão do TJUE de 20-07-2017, estivesse em causa apenas a compatibilidade da oponibilidade aos lesados da nulidade do contrato ao lesado, enquanto nos presentes autos está em causa a oponibilidade aos lesados quer da nulidade quer da ineficácia do contrato de seguro – certo é que, no essencial, o problema da compatibilidade com o DUE é essencialmente o mesmo, encontrando-se, aliás, como vimos, ambas as situações de oponibilidade previstas na mesma norma legal (art. 22.º do DL n.º 291/2007), correspondente ao art. 14.º do DL n.º 522/85.
Feitos estes esclarecimentos, consideremos a fundamentação do Acórdão do TJUE de 20-07-2017, que, pela sua importância, se transcreve na parte relevante:
«Quanto à questão prejudicial
Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 3.°, n.º 1, da Primeira Diretiva, o artigo 2.°, n.º 1, da Segunda Diretiva e o artigo 1.° da Terceira Diretiva devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional que, em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal, tem por efeito que seja oponível aos terceiros lesados a nulidade de um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, nulidade essa que resulta de falsas declarações iniciais do tomador do seguro sobre a identidade do proprietário e do condutor habitual do veículo em causa ou do facto de que a pessoa por quem ou em nome de quem esse contrato de seguro é celebrado não tinha interesse económico na celebração do referido contrato.
Importa recordar que o objetivo da Primeira e da Segunda Diretiva, como resulta do seu preâmbulo, é, por um lado, assegurar a livre circulação tanto dos veículos com estacionamento habitual no território da União Europeia como das pessoas que neles viajam e, por outro, garantir que as vítimas dos acidentes causados por esses veículos receberão tratamento idêntico, independentemente do local do território da União onde o acidente tenha ocorrido (acórdão de 23 de outubro de 2012, Marques Almeida, C‑300/10, EU:C:2012:656, n.º 26 e jurisprudência referida).
Para estes efeitos, o artigo 3.°, n.º 1, da Primeira Diretiva, tal como precisado e completado pela Segunda e Terceira Diretivas, impõe aos Estados‑Membros que assegurem que a responsabilidade civil relativa à circulação de veículos com estacionamento habitual no seu território esteja coberta por um seguro e precisa, nomeadamente, os tipos de danos e os terceiros lesados que esse seguro deve cobrir (acórdão de 1 de dezembro de 2011, Churchill Insurance Company Limited e Evans, C‑442/10, EU:C:2011:799, n.º 28).
No que respeita aos direitos reconhecidos aos terceiros lesados, o artigo 3.°, n.º 1, da Primeira Diretiva opõe‑se a que a companhia de seguros da responsabilidade civil automóvel possa invocar disposições legais ou cláusulas contratuais para recusar indemnizar os terceiros lesados de um acidente causado por um veículo segurado (acórdão de 1 de dezembro de 2011, Churchill Insurance Company Limited e Evans, C‑442/10, EU:C:2011:799, n.º 33 e jurisprudência referida).
O Tribunal de Justiça declarou também que o artigo 2.°, n.º 1, primeiro parágrafo, da Segunda Diretiva mais não faz do que recordar esta obrigação no que respeita às disposições legais ou às cláusulas contratuais de uma apólice de seguro referida neste artigo que excluam da cobertura do seguro de responsabilidade civil automóvel os danos causados aos terceiros lesados em virtude da utilização ou da condução do veículo segurado por pessoas não autorizadas a conduzi‑lo, por pessoas sem carta de condução ou por pessoas que não cumpram as obrigações legais de ordem técnica relativamente ao estado e à segurança do referido veículo (acórdão de 1 de dezembro de 2011, Churchill Insurance Company Limited e Evans, C‑442/10, EU:C:2011:799, n.º 34 e jurisprudência referida).
É certo que, em derrogação a essa obrigação, o artigo 2.°, n.º 1, segundo parágrafo, da Segunda Diretiva prevê que certos lesados poderão não ser indemnizados pela companhia de seguros, tendo em conta a situação que eles próprios tenham criado, a saber, as pessoas que por sua livre vontade se encontravam no veículo causador do sinistro, quando a seguradora prove que sabiam que esse veículo tinha sido furtado. Todavia, e como o Tribunal de Justiça já declarou, o artigo 2.°, n.º 1, primeiro parágrafo, da Segunda Diretiva não pode ser derrogado a não ser nesta situação específica (acórdão de 1 de dezembro de 2011, Churchill Insurance Company Limited e Evans, C‑442/10, EU:C:2011:799, n.º 35).
Por conseguinte, há que considerar que a circunstância de a companhia de seguros ter celebrado esse contrato com base em omissões ou em falsas declarações do tomador do seguro não é suscetível de lhe permitir invocar disposições legais sobre a nulidade do contrato e de a opor ao terceiro lesado para se exonerar da sua obrigação, decorrente do artigo 3.°, n.º 1, da Primeira Diretiva, de o indemnizar por um acidente causado pelo veículo segurado.
O mesmo se pode dizer da circunstância de o tomador do seguro não ser o condutor habitual do veículo.
Com efeito, o Tribunal de Justiça declarou que a circunstância de um veículo ser conduzido por uma pessoa não designada na apólice de seguro desse veículo, tendo especialmente em conta o objetivo de proteção dos lesados de acidentes de circulação prosseguido pela Primeira, Segunda e Terceira Diretivas, não permite considerar que tal veículo não está segurado nos termos do artigo 1.°, n.º 4, terceiro parágrafo, da Segunda Diretiva (acórdão de 1 de dezembro de 2011, Churchill Insurance Company Limited e Evans, C‑442/10, EU:C:2011:799, n.º 40).
Neste contexto, o órgão jurisdicional de reenvio interroga também o Tribunal de Justiça sobre a questão de saber se, no caso de um contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel em vigor e para se subtrair à sua obrigação de indemnizar os terceiros lesados de um acidente causado pelo veículo segurado, uma companhia de seguros tem o direito de invocar uma disposição legal, como o artigo 428.°, § 1.°, do Código Comercial português, que prevê a nulidade de um contrato de seguro, se aquele por quem ou em nome de quem o seguro é feito não tiver interesse económico na celebração desse contrato.
Há que salientar que tal questão diz respeito aos requisitos legais de validade do contrato de seguro, que não são regidos pelo direito da União, mas sim pelo direito dos Estados‑Membros.
No entanto, estes últimos têm a obrigação de garantir que a responsabilidade civil aplicável de acordo com o seu direito nacional esteja coberta por um seguro conforme com as disposições das três diretivas supramencionadas.
Decorre igualmente da jurisprudência do Tribunal de Justiça que os Estados‑Membros devem exercer as suas competências neste domínio, no respeito do direito da União, e que as disposições nacionais que regulam a indemnização devida por sinistros resultantes da circulação de veículos não podem privar a Primeira, Segunda e Terceira Diretivas do seu efeito útil (acórdão de 23 de outubro de 2012, Marques Almeida, C‑300/10, EU:C:2012:656, n.os 30 e 31 e jurisprudência referida).
Ora, como a Comissão Europeia salientou, o direito à indemnização dos lesados do acidente é suscetível de se encontrar afetado pelas condições de validade do contrato de seguro, como as cláusulas gerais previstas no artigo 248.°, § 1.°, e no artigo 249.°, primeiro parágrafo, do Código Comercial português. Assim, tais disposições podem determinar que os terceiros lesados não sejam indemnizados e, por conseguinte, prejudicar o efeito útil das referidas diretivas.
Esta constatação não pode ser posta em causa pela possibilidade de o Fundo de Garantia Automóvel pagar uma indemnização ao lesado. Com efeito, a intervenção do organismo referido no artigo 1.°, n.º 4, da Segunda Diretiva foi concebida como uma medida de último recurso, prevista unicamente para o caso de os danos serem causados por um veículo relativamente ao qual não tenha sido cumprida a obrigação de seguro referida no artigo 3.°, n.º 1, da Primeira Diretiva, isto é, um veículo relativamente ao qual não há contrato de seguro. Essa restrição explica‑se pelo facto de esta disposição, tal como foi recordado no n.º 23 do presente acórdão, obrigar os Estados‑Membros a assegurarem que, sem prejuízo das derrogações previstas no artigo 4.° daquela diretiva, todos os proprietários ou detentores de um veículo com estacionamento habitual no seu território celebrem um contrato com uma companhia de seguros, de modo a garantir, dentro dos limites definidos pelo direito da União, a sua responsabilidade civil resultante do referido veículo (v., neste sentido, acórdão de 11 de julho de 2013, Csonka e o., C‑409/11, EU:C:2013:512, n.os 30 e 31).
Ora, como foi recordado no n.º 29 do presente acórdão, a circunstância de um veículo ser conduzido por uma pessoa não designada na apólice de seguro desse veículo não permite considerar que este não está segurado nos termos do artigo 1.°, n.º 4, terceiro parágrafo, da Segunda Diretiva.
Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder à questão submetida que o artigo 3.°, n.º 1, da Primeira Diretiva e o artigo 2.°, n.º 1, da Segunda Diretiva devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional que, em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal, tem por efeito que seja oponível aos terceiros lesados a nulidade de um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, nulidade essa que resulta de falsas declarações iniciais do tomador do seguro sobre a identidade do proprietário e do condutor habitual do veículo em causa ou do facto de que a pessoa por quem ou em nome de quem esse contrato de seguro é celebrado não tinha interesse económico na celebração do referido contrato.».
(…)
A primeira objecção da Recorrente (alegação de que, no Acórdão do TJUE de 20-07-2017, se discutia a oponibilidade ao lesado da nulidade do contrato de seguro, enquanto no caso sub judice se discute a oponibilidade ao lesado da caducidade do dito contrato) carece inteiramente de razão: por um lado, porque, como se demonstrou supra, no ponto 4. do presente acórdão, no caso dos autos, é convocável a cominação da nulidade do contrato prevista no n.º 1 do art. 43.º do RGCS; por outro lado, porque é de reiterar o supra afirmado: ainda que, no processo que deu origem ao Acórdão do TJUE de 20-07-2017, estivesse em causa apenas a compatibilidade da oponibilidade aos lesados da nulidade do contrato, enquanto nos presentes autos está em causa a oponibilidade aos lesados quer da nulidade quer da ineficácia do contrato de seguro, certo é que, no essencial, o problema da compatibilidade com o DUE é essencialmente o mesmo, encontrando-se, aliás, como vimos, ambas as situações de oponibilidade previstas na mesma norma legal (art. 22.º do DL n.º 291/2007, correspondente ao art. 14.º do DL n.º 522/85) expressamente considerada no referido Acórdão do TJUE. (…)
Consequentemente, e tal como se entendeu a respeito de normas equivalentes do regime anterior ao DL n.º 291/2007 (no acórdão deste Supremo Tribunal de 02-11-2017, proferido no Processo n.º 40/10.1TVPRT.P1.S1, consultável em www.dgsi.pt, no âmbito do qual foi formulado o pedido de decisão prejudicial que vimos referindo), perante aquela decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia, a interpretação do direito português em conformidade com o Direito da União Europeia, impõe que se considere que, num contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel como o dos autos, o requisito legal do interesse, previsto no n.º 1 do art. 43.º do RJCS, e subjacente ao n.º 1 do art. 21.º do DL n.º 291/2007, se encontra derrogado pela possibilidade de o contrato ser celebrado por terceiro, prevista no n.º 2 do art. 6.º do DL n.º 291/2007

Semelhantemente ao decidido no já citado acórdão de 10.10.2024, desta 2ª Secção Cível da Relação de Guimarães, proferido no processo 2388/20.8T8GMR.G1 também a propósito do mesmo acidente de viação, em tudo idêntico ao que agora se encontra aqui em apreciação, exceto quanto ao autor, concluímos pela aplicação ao caso dos autos da orientação definida pelo acórdão do TJUE de 20.07.2017, proferido no processo C-287/16. Aliás, seria destituído de sentido para o cidadão comum que o mesmo acidente de viação, em que só interveio um veículo, merecesse distinta interpretação em dois processos sobre a matéria relativa ao seguro referente a esse veículo, sendo apenas diferentes os lesados; como se uma matéria objetiva fosse passível de diferentes interpretações consoante o lugar onde cada um dos lesados ia sentado no veículo.
Em idêntico sentido ao aqui sustentado, podem consultar-se os acórdãos do STJ de 02.11.2017, processo 40/10.1TVPRT.P1.S1 («As decisões do Tribunal de Justiça, para efeitos de interpretação, vinculam os tribunais internos dos Estados-Membros»; «(…) não vemos como não acompanhar o acórdão recorrido quando entendeu ser de desaplicar o direito interno, por contrário ao direito da União e que a nulidade do contrato de seguro em causa nos autos é inoponível aos lesados e ao FGA.», de 15.11.2017, proc. 549/08.7TBAMR.S1.G1 («I - Num contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel outorgado ao abrigo do DL n.º 522/85, de 31-12, em que o tomador do seguro declarou falsamente ser o proprietário e o condutor habitual do veículo automóvel interveniente no acidente, são inoponíveis ao terceiro lesado os vícios do contrato de seguro invocados pela ré seguradora, quer se entendam como causa de nulidade ou de anulabilidade do contrato nos termos do disposto no arts. 428.º e 429.º do CCom. II - Tal entendimento vai ao encontro da decisão proferida pelo TJUE, no acórdão de 20-07-2017 (processo n.º C-287/16), no seguimento de pedido de reenvio prejudicial formulado pelo STJ no âmbito de um processo em que se discutia idêntica questão.»), e de 20.06.2023, proc. 916/16.2T8GRD.C1.S1 («I - Através do reenvio prejudicial, mecanismo previsto no art. 267º do TFUE, o tribunal nacional pode submeter ao Tribunal de Justiça questões de interpretação ou de validade do Direito da União que sejam relevantes para a boa decisão da causa, pois que lhe compete assegurar o primado, ou seja, dar prevalência ao Direito da União; II - As decisões do Tribunal de Justiça, para efeitos de interpretação, vinculam os tribunais internos dos Estados-Membros») e de 16.01.2024, proc. 52/19.0T8VCT.G1.S1 («(…) estamos perante jurisprudência do TJUE que enfatiza que, apesar de estarmos perante matéria que incide sobre os requisitos de validade do contrato (matéria regulada pelo direito nacional), da obrigação imperativa do direito comunitário no sentido da proteção dos lesados resulta que cumpre aos Estados membros “garantir a coberta por um seguro (…) conforme com as disposições das três diretivas supramencionadas”. E que daí decorre que “as disposições nacionais que regulam a indemnização devida por sinistros resultantes da circulação de veículos não podem privar a primeira, Segunda e Terceira Diretivas do seu efeito útil (acórdão de 23 de outubro de 2012, Marques Almeida, C-300/10, EU:C:2012:656, n.°s 30 e 31 e jurisprudência referida)”»).
Por conseguinte, com fundamento na interpretação do direito nacional em conformidade com o Direito da União Europeia, tal como interpretado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, o recurso do Réu Fundo de Garantia de Automóvel e o recurso subordinado interposto pelo Autor devem ser julgados procedentes quanto a esta específica questão, revogando-se a decisão recorrida na parte em que absolveu a Ré EMP01... do pedido e condenou o Réu FGA no pagamento de indemnizações a favor do Autor, o que implica a absolvição do Réu FGA e a condenação da Ré EMP01... no pagamento das indemnizações, cujo conteúdo e quantitativo apreciaremos infra.
*
2.2.3. Da contribuição do Autor para a produção dos danos ou seu agravamento
O Réu FGA sustentou na sua apelação (conclusões 26ª a 33ª), à qual aderiu a Ré EMP01..., que o Tribunal a quo «ignorou o comportamento do próprio autor e a sua flagrante contribuição para a produção e agravamento dos danos por si sofridos.»
A mencionada tese assenta nas seguintes considerações: «(i) o lesado aceitou circular num veículo conduzido por condutor sob o efeito de cocaína, metabolitos e de canabinóides, sendo que o próprio também se encontrava sob o efeito destes agentes, estando todos os ocupantes do veículo a regressar de uma noite de festa em Vigo no qual fizeram o uso conjunto destes estupefacientes; (ii) o lesado circulava no lugar do meio traseiro sem cinto de segurança; (iii) o lesado foi projetado para o exterior do veículo.»
Como decorre do exposto em 2.2.1., não está demonstrado que o lesado circulava sem cinto de segurança, pelo que não se verifica o ponto ii) da transcrita argumentação.
Depois, estando assente que o Réu BB conduzia o veículo sob o efeito de cocaína, metabolitos e de canabinóides e que foi criminalmente responsabilizado pela sua conduta, nenhum facto provado alude a que o Autor aceitou ou não «circular num veículo conduzido por condutor sob o efeito de cocaína, metabolitos e de canabinóides» ou que todos os ocupantes do veículo «fizeram o uso conjunto destes estupefacientes». Como o Autor apresentou resultado positivo nos testes para álcool, cocaína e canabinóides, pode dar-se por adquirido que consumiu tais substâncias, mas não que as mesmas de alguma forma contribuíram para a produção dos danos sofridos pelo Autor ou o seu agravamento, pois nenhum elemento dos autos o confirma.
Por isso, inexiste qualquer fundamento factual para considerar que o Autor contribuiu para a produção e agravamento dos danos por si sofridos, sendo certo que a projeção do lesado para o exterior do veículo decorreu do acidente e não de uma conduta voluntária do lesado.
Termos em que se julgam improcedentes as conclusões formuladas sobre esta questão.
Em consequência da improcedência desta questão, fica prejudicado o conhecimento da questão identificada em 1.7. como item vi), ou seja, a modificação dos montantes indemnizatórios decorrentes da pretensa contribuição do Autor para a produção e agravamento dos danos.
*
2.2.4. Da indemnização por danos não patrimoniais
A título de danos não patrimoniais, o Tribunal recorrido considerou adequada uma indemnização de € 35.000,00.
Na sua apelação, o Autor defende que a compensação por tais danos deve ser fixada em € 125.000,00.

Vejamos se se justifica o aumento do quantum indemnizatório.
Segundo o nº 1 do artigo 496º do CCiv, são indemnizáveis os danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. A apreciação da gravidade do referido dano, embora tenha de assentar no circunstancialismo concreto envolvente, deve operar sob um critério objetivo, num quadro de exclusão, tanto quanto possível, da subjetividade inerente a alguma particular sensibilidade humana.
Cumprido o critério da gravidade dos danos, o montante da indemnização, nos termos do nº 4 do artigo 496º, deve ser fixado pelo tribunal com recurso à equidade, tendo em atenção as circunstâncias referidas no artigo 494º, ou seja, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso, entre as quais se contam as lesões sofridas e os correspondentes sofrimentos.
Os danos não patrimoniais, por natureza insuscetíveis de avaliação em dinheiro devido a não atingirem bens integrantes do património do lesado, incidem sobre bens como a vida, a saúde, a integridade física, a perfeição física, a beleza, a liberdade, a honra, o bom-nome, a reputação, da afetação dos quais resulta o inerente sofrimento físico e psíquico, o desgosto pela perda, a angústia por ter de viver com uma deformidade ou deficiência, os vexames, a perda de prestígio ou reputação. Na feliz síntese feita no acórdão do STJ de 15.01.2002 (proc. 4048/01 - 2ª Secção), os componentes mais importantes do dano não patrimonial, são os seguintes: o “dano estético” – que simboliza o prejuízo anátomo-funcional associado às deformidades e aleijões que resistiram ao processo de tratamento e recuperação da vítima; o “prejuízo de afirmação social” – dano indiferenciado que respeita à inserção social do lesado, nas suas variadas vertentes (familiar, profissio­nal, sexual, afetiva, recreativa, cultural, cívica); o prejuízo da “saúde geral e da longevidade” – em que avultam o dano da dor e o défice de bem estar, e que valo­riza os danos irreversíveis na saúde e bem estar da vítima e o corte na expectativa de vida; e o “pretium juventutis” – que realça a especificidade da frustração do viver em pleno a chamada primavera da vida; e o “pretium doloris” – que sintetiza as dores físicas e morais sofridas no período de doença e de incapacidade temporária.
Como os interesses cuja lesão desencadeia um dano não patrimonial são infungíveis, não podem ser reintegrados mesmo por equivalente, sendo possível, todavia, em certa medida, compensar o dano mediante satisfações derivadas da utilização do dinheiro, isto é, trata-se de proporcionar ao lesado uma compensação monetária que, de algum modo, alivie os sofrimentos que o facto lesivo lhe provocou, ou lhos faça esquecer. O seu ressarcimento assume, por isso, uma função essencialmente compensatória.
Na concreta determinação do quantitativo da compensação, para evitar soluções demasiadamente marcadas pelo subjetivismo e procurar alcançar uma aplicação tendencialmente uniformizadora – ainda que evolutiva – do direito, devem ser considerados os padrões indemnizatórios geralmente adotados na jurisprudência em casos análogos[4].

Para a fixação do valor da indemnização por danos não patrimoniais, relevam no caso concreto essencialmente os seguintes factos provados:
- O Autor nasceu a ../../2001, tendo 18 anos à data do acidente (43);
- O acidente de viação dos autos ocorreu a 03.11.2019 (1);
 O Autor seguia como passageiro no lugar do meio do banco de trás e foi projetado para a via (4);
- Em consequência do acidente, o Autor foi assistido pelo INEM e no local apresentava-se em ECG<8 (numa escala de 0 a 15) e com movimentos de descerebração, anisocoria e hipotensão, tendo sido entubado e imobilizado; apresentou resultados positivos para álcool, cocaína e canabinóides (13);
- Foi transportado de urgência para o Hospital ..., no ..., apresentando as seguintes lesões: - traumatismo crânio-encefálico – fratura temporoparietal direita com extensão no andar médio do crânio, contusão hemorrágica na região frontal e temporal esquerda e edema cerebral; - traumatismo da face – fratura do arco zigomático direito; - traumatismo torácico – fratura do terço médio da clavícula esquerda, fratura dos 1º e 2º arcos costais esquerdos e 1º arco costal direito, contusão pulmonar LSE e enfisema nos músculos intercostais; - suspeita de pneumonia de aspiração e alterações eletrocardiográficas (14).
- Em função da sua situação clínica, no dia seguinte, entubado e algaliado, o autor foi transferido para a unidade de cuidados intensivos dessa unidade hospitalar, onde permaneceu internado e sob vigilância médica e de enfermagem, realizando tratamentos e exames (15);
- Durante este período o autor manteve-se inconsciente e com prognóstico muito reservado, com novo episódio de assistolia, tendo realizado Ecodoppler transcraniano, RMN (com retirada de colar cervical) e foi realizada uma traqueostomia a 18 de novembro, com retirada progressiva de ventilador e abertura espontânea dos olhos, ainda sem dirigir olhar (16);
- O Autor, em ../../2019, foi transferido para o Hospital ... em ... – serviço de Neurologia, onde continuou traqueostimizado (TQ) e com sonda nasogástrica (SNG), recebendo tratamentos médicos e medicamentosos (17);
- No dia 2 de dezembro de 2019, o Autor foi transferido para o serviço de Medicina Física e de Reabilitação, encontrando-se de olhos abertos, dirigindo o olhar, mas sem cumprir ordens e sem resposta verbal; imobilizado nos membros superiores e submetido a tratamento conservador nas fraturas (18);
- Em meados de dezembro de 2019, foi retirada TQ e SNG, tendo sido alimentado oralmente sem disfagia e sujeito a tratamentos de reabilitação, com evolução favorável do quadro neurológico e funcional (19);
- Nesta altura, o Autor apresentava um discurso ilógico, vago e incoerente, não sabendo onde estava, nem conhecendo visitas (20);
- Durante o internamento o Autor manteve-se com tonturas, mal-estar, dores, estando acamado a maior parte do tempo e dependente de terceiros para se levantar, alimentar e realizar as atividades básicas (21);
- No dia 7 de janeiro de 2020, o autor teve alta hospitalar do Hospital ..., tendo sido transferido para o Centro de Reabilitação do Norte, em ..., apresentando-se autónomo na alimentação, mas ainda com necessidade de ajuda mínima de terceira pessoa para tomar banho, para se vestir e nas transferências (22);
- Na altura, apresentava-se vígil, colaborante, cumprindo ordens, com discurso mais fluente e adequado, orientado no tempo/espaço e sendo capaz de ler (23);
- No CRN o Autor integrou um programa de reabilitação intensivo, adaptado à situação clínica, orientado por médica fisiatra, com apoio de Medicina Interna e englobando cuidados de enfermagem, hidroterapia, terapia ocupacional, nutrição e serviço social (24);
- Os objetivos do internamento foram a avaliação neuropsicológica e melhoria das funções cognitivas, melhoria da força muscular global e tolerância ao esforço, melhoria de qualidade no ombro esquerdo, melhoria da funcionalidade do membro superior esquerdo; melhoria do equilíbrio e controle postural em ortostatismo, melhoria da funcionalidade da marcha, melhoria da funcionalidade para os atos de vida diária e medicação de reintegração sociofamiliar (domicílio) (25);
- Durante este internamento, o autor mostrava-se muito cansado, sonolento, lentificado nas tarefas, com angústia e ansiedade por causa do acidente e do internamento, tendo melhoria significativa global com evolução do quadro neurológico e repercussão funcional (26);
- O Autor teve alta hospitalar a 24 de fevereiro de 2020, regressando a casa onde vivia, como vive, na companhia de sua mãe e de um irmão mais novo (27);
- O período entre esta data e o acidente (03/11/2019) que corresponde ao internamento de 114 dias, foi fixado como o défice funcional temporário total em sede de relatórios periciais (28);
- A valoração do sofrimento físico e psíquico vivenciado durante este período (quantum doloris), tendo em conta as lesões resultantes, o período de recuperação funcional, o tipo de traumatismo e os tratamentos efetuados, foi fixado em relatórios periciais no grau 5 numa escala de sete graus de gravidade crescente (29);
- As recomendações após a alta eram dar continuidade aos tratamentos de reabilitação (fisioterapia e terapia ocupacional), com estímulo à autonomia e manter medicação – levitracetam, metilgenidato e escitalopram (30);
- O Autor já se encontrava autónomo nas atividades básicas, com marcha autónoma e sem limitação, não saindo de casa sozinho, por precaução (31);
- O Autor foi seguido em Neurologia, avaliado com défice cognitivo com aparente atingimento dos domínios da linguagem e atenção; e irritabilidade potenciada pela medicação (32);
- A 3 de março de 2020, o Autor foi sujeito a uma avaliação neuropsicológica, que concluiu pela existência de alterações nos domínios da atenção dividida, velocidade de processamento, cálculo, memória (processo de codificação e evocação espontânea) e funções executivas (iniciativa verbal, planeamento, controlo inibitório e evocação espontânea), destacando-se a alterações disexecutivas e a lentificação de velocidade de processamento, tendo sido proposto treino cognitivo e reabilitação profissional (33);
- O Autor não deu continuidade ao programa de reabilitação, tendo sido referenciado para consulta no Centro de Reabilitação ... em outubro de 2020 (34);
- Aí foi proposto integrar o programa de Recuperação e Atualização de Competências Pessoais e Sociais dirigido a pessoas com lesão cerebral adquirida, com o objetivo de estimular as funções cognitivas que se encontram comprometidas e de promover a reorganização do seu projeto profissional, que tinha início previsto para 18 de janeiro de 2021 e que terminou em outubro de 2021 (35);
- O Autor sofre de cefaleias, falta de equilíbrio após longos períodos em ortostatismo, sente alterações de memória e mais lentificado, e maior labilidade emocional, ficando mais facilmente irritado (36);
- O Autor em virtude de traumatismo crânio-encefálico sofrido no acidente, apresenta como sequelas definitivas, alterações de memória e cognitivas e labilidade emocional a qual se atribuiu um défice permanente da integridade físico-psíquica de 11/12 pontos pelo cap. I.3 (Na0308 – perturbação moderada, com manifesta diminuição do nível da eficiência pessoal, social e laboral, de 11 a 40 pontos) (37);
- Em consequência do acidente, apresenta deformidade da região clavicular com encurtamento de cerca de 2 cm, por consolidação viciosa de fratura, com cavalgamento dos topos, com mobilidade preservada e sem alterações na força muscular, que se fixou num défice de 2 pontos pelo Cap. III Mf1202 (Ombro doloroso até 3) (38);
- O défice funcional permanente foi fixado em sede de perícias em 12 e 12,78 pontos, sendo as sequelas impeditivas do exercício da sua atividade profissional habitual bem assim como de qualquer outra dentro da sua área de preparação técnico-profissional (39);
- Em virtude das lesões sofridas apresenta cicatriz hipocrómica, espessada, localizada na região occipital direita, com 5,5 cm de comprimento e cicatriz rosada, deprimida, localizada na face anterior da região cervical, medindo 2 por 1 cm de maiores dimensões e tumefação no terço médio da clavícula esquerda, tendo-lhe sido fixado no grau 1, numa escala de sete graus de gravidade crescente, como dano estético permanente (40);
- Foi fixado no grau 1, numa escala de sete graus de gravidade crescente a repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer decorrente das lesões sofridas, tendo deixado de jogar à bola com os amigos (41);
- O Autor continuará a necessitar de ajuda medicamentosa permanente, do foro neurológico, ajustada às necessidades do examinado e por prescrição médica de Neurologista, e de tratamentos médicos regulares de acompanhamento em consultas de Neurologia e Psicologia ajustadas às necessidades do examinado ao longo da evolução do acompanhamento (42);
- O Autor era pessoa alegre e sociável, encontrando-se, depois do acidente e em virtude das sequelas, com alterações de humor, mais irritado e mais isolado, em virtude das limitações decorrentes das sequelas do TCE (44);
- O Autor terá concluído o 7º ano de escolaridade com cerca de 14 anos de idade, altura em que integrou o curso de formação profissional de Operador de Logística, tendo frequentado apenas um ano e iniciado a trabalhar aos 16 anos (45).

Reapreciada a situação, entendemos que inexistem razões substanciais para divergir do juízo de equidade formulado pelo Tribunal recorrido.
É certo que o Autor teve elevado sofrimento físico e psíquico durante o período que mediou entre a data do evento (03.11.2019) e a data da consolidação das lesões (24.02.2020), perfazendo um total de 114 dias, fixável no grau 5 (numa escala de 7 graus de gravidade crescente), que o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica é também relevante, por fixável em 12,78 pontos e que no resto da sua vida vai necessitar de ajudas medicamentosas e tratamentos médicos regulares, e confrontar-se com alterações de memória e cognitivas e labilidade emocional, o que representa uma limitação para se realizar como pessoa que deve ser considerada no plano não patrimonial.
Porém, em contrapartida, são diminutos o dano estético, fixado em 1 numa escala cujo máximo é de 7, e o dano relativo à repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer, que é também de grau 1, em idêntica escala. Mais, sem prejuízo da deformidade da região clavicular com encurtamento de cerca de 2 cm, do acidente não resultaram outras consequências físicas, designadamente em termos de força muscular, repercussão sexual, postura, deslocamentos e transferências, comunicação e atos da vida diária.
No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.02.2024 (relator Afonso Henrique), proferido no processo 2859/17.3T8VNG.P1.S1, foi a compensação dos danos não patrimoniais fixada em € 30.000,00 a uma lesada que «sofreu dores intensas aquando do acidente e no período de tratamento, sendo que as dores cervicais persistem, com limitações em relação ao transporte de pesos, passou a ter receio de conduzir, sofre de stress pós-traumático, alterações de humor e irritabilidade fácil, tendo passado a usar medicação ansiolítica», o quantum doloris foi fixado na perícia no grau 4, numa escala de 1 a 7, o dano estético foi fixado no grau 1.
No acórdão do STJ de 06.12.2022 (relator Aguiar Pereira), processo 2517/16.6T8AVR.P1.S1, no qual foi fixada a quantia indemnizatória de € 30.000,00 (trinta mil euros), a uma lesada de 37 anos de idade, com um défice funcional de integridade físico-psíquica de 11 pontos, com sintomatologia ansiosa e depressiva reativa ao acontecimento, sem sequelas físicas definitivas, por agravamento de impacto moderado de anterior quadro psiquiátrico.
Estes dois casos são menos graves do que o do Autor, pelo que se justifica que lhe seja fixada uma compensação de valor superior.
Procedendo agora ao confronto com casos mais graves apreciados em acórdãos recentes do Supremo Tribunal de Justiça, verifica-se que:
- No acórdão do STJ, de 17.09.2024 (relator António Magalhães), proferido no processo 2481/20.7T8BRG.G1.S1, concluiu-se: «Considerando que frequentava o 11º ano de escolaridade, tendo reprovado um ano lectivo em consequência das lesões sofridas, que as lesões de que foi vítima do acidente em 4.6.2017 só atingiram a sua consolidação médico legal em 8.7.2019, período durante o qual foi operada e sujeita a várias sessões de fisioterapia e tratamento fisiátrico, tendo ficado como sequela uma cicatriz cirúrgica a nível da bacia do lado esquerdo com cerca de 20 cm de extensão, que o quantum doloris foi fixado em 5, numa escala crescente de 1 a 7; que a referida cicatriz na mesma escala crescente de 1 a 7, lhe confere um dano estético fixável no grau 4, que tem um prejuízo de afirmação pessoal de 2 (em 5), que as queixas, lesões e sequelas numa escala crescente de 1 a 7 lhe conferem uma repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer fixável no grau 2/7, que as lesões referidas lhe causam uma repercussão permanente na actividade sexual fixável no grau 2/7, que ficou com um défice funcional de 35 pontos, que implicam esforços suplementares e que necessita actualmente e necessitará no futuro de acompanhamento médico periódico nas especialidades médicas de psiquiatria e fisiatria e de realizar tratamento fisiátrico, atribui-se a indemnização por danos não patrimoniais de € 90.000.»
- No acórdão do STJ de 14.05.2024 (Luís Espírito Santo), processo 2736/19.3T8FAR.E1.S1, considerou-se «equitativa a atribuição da compensação no montante de € 50.000,00 (cinquenta mil euros) por danos não patrimoniais, nos termos do artigo 496º, nº 1, do Código Civil, ao A./lesado, de 72 anos de idade, que ao travessar na passadeira destinada aos peões foi colhido por uma viatura automóvel, sendo violentamente projectado no solo e sofrendo luxação do ombro direito, e que, em consequência das sequelas decorrentes das lesões sofridas, registou Défice Funcional Temporário Total de 19 dias; Défice Funcional Temporário Parcial de 948 dias; Repercussão Temporária na Actividade Profissional Total de 930 dias; Repercussão Temporária na Actividade Profissional Parcial de 37 dias; Quantum Doloris no grau 5/7; um Défice Funcional Permanente de Integridade Físico-Psíquica de 20 pontos em 100 (plexopatia braquial direita); Dano Estético Permanente no grau 3/7; e que, neste contexto, deixou de poder utilizar a mão direita para as mais elementares tarefas do dia a dia (escrever, comer, apertar os botões da camisa, apertar e desapertar as calças, lavar dos dentes, pentear-se, manusear o telemóvel ou o comando da televisão), necessitando da ajuda de terceiros para a realização das tarefas diárias básicas, o que acontecerá durante o resto da sua vida; de poder pescar ou caçar, conduzir o seu barco e frequentar actividades associativas e partidárias que antes desenvolvia com habitualidade e prazer; sentindo-se por tudo isto deprimido e muito triste, sem gosto e interesse pela vida, impotente e revoltado, com pesadelos e desânimo constantes, quando antes do atropelamento era uma pessoa activa e dinâmica;
- No acórdão do STJ de 10.04.2024 (relatora Maria Olinda Garcia), processo nº 987/21.0T8GRD.C1.S1, no qual foi fixada a quantia indemnizatória de € 70.000,00 a uma lesada de 45 anos de idade, que sofreu múltiplas fraturas e lesões em consequência do acidente de viação (no tórax, coluna, membros superiores e crânio-encefálicas), foi submetida a intervenção cirúrgica e necessitou de múltiplas consultas médicas e tratamentos, teve um défice funcional temporário total superior a 3 meses e um défice funcional temporário parcial de cerca de 8 meses, sofreu um quantum doloris de nível 5 em 7 e continua a padecer de dores, necessitando de medicação diária, ficou com um dano estético permanente de grau 2 em 7, um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 11,499 pontos, com existência de possível dano futuro, repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer de grau 2 em 7 e que não pode levantar pesos e o exercício da sua atividade profissional exige esforços suplementares;
- No acórdão do STJ de 11.01.2024 (relator Emídio Santos), processo 76/13.0TBTVD.L2.S1, em que se fixou a quantia indemnizatória de € 45.000,00 a uma lesada  de 37 anos, que sofreu quantum doloris avaliado no grau 4, défice funcional da integridade física e psíquica de 9 pontos, consolidação das lesões cerca de três anos após o acidente, durante cerca de um ano a lesada esteve submetida a terapêutica medicamentosa agressiva, por força das lesões desistiu do projeto de ser mãe, deixou de conviver com amigos e de sair com estes, devido às dores que sente, passou a apresentar um quadro de humor depressivo, com episódios de ansiedade, tendo recorrido a apoio psicológico, e deixou de praticar desportos que praticava, nomeadamente corrida e bicicleta;
- No acórdão do STJ de 06.06.2023 (Manuel Capelo), processo 9934/17.2T8SNT.L1.S1, decidiu-se: «É adequada a indemnização de € 50.00,00 por danos não patrimoniais de quem foi atropelado numa passadeira de peões, cujas lesões se consolidaram ao fim de um ano, ficando com quatro cicatrizes; com sofrimento físico e psíquico entre o acidente e a consolidação mensurado como de grau 5 numa escala de 7, cujo défice funciona permanente físico foi fixado em 12 pontos, repercutindo-se as sequelas nas atividades de lazer e convívio social que exercia de forma regular em grau 3 de uma escala de 7 graus de gravidade crescente, com dano estético permanente de grau 3 numa escala de 7, sendo previsível o agravamento da artrose pós-traumática do tornozelo»;
- No acórdão do STJ  de 31.01.2023 (relator Aguiar Pereira), processo 795/20.5T8LRA.C1.S1, no qual foi fixada a quantia indemnizatória de € 45.000,00 a um lesado de 45 anos de idade à data do acidente, que sofreu como sequela definitiva das lesões um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica de 17 pontos, deixando de poder realizar algumas das tarefas habituais que a sua função exige, subir e descer andaimes, tem grandes dificuldades em carregar pesos acima de 5 Kg e não consegue estar de pé durante longos períodos, com marcha claudicante e dor crónica no tornozelo esquerdo, ainda que tais sequelas sejam compatíveis com o exercício da atividade habitual, mas implicando esforços suplementares significativos;
- No acórdão do STJ de 08.11.2022 (relator António Magalhães), processo 2133/16.2T8CTB.C1.S1, no qual foi fixada a quantia indemnizatória de € 70.000,00 a lesado de 39 anos de idade, que sofreu quantum doloris de 6 numa escala de 7, dano estético de 4, repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer de 6 em 7 pontos  (uma vez que, quanto a este índice, ficou privado de continuar a praticar o motociclismo, o que fazia com regularidade, participando em diversas provas, incluindo federadas e, ainda, impossibilitado de praticar desportos que também fazia, como bicicleta BTT, esqui na neve e esqui aquático, tendo ficado, ainda, condicionado no exercício da atividade desportiva de mergulho, que também praticava), foi submetido a cinco intervenções cirúrgicas, com um pós-operatório prolongado (com uma repercussão temporária na atividade profissional total de 870 dias), de continuar a necessitar de medicamentos, consultas e tratamentos no futuro e de continuar padecer de dores;
- No acórdão do STJ de 21.06.2022 (António Magalhães), processo 1991/15.2T8PTM.E1.S1, em que se fixou em € 85.000,00 a indemnização por danos não patrimoniais a um lesado de 30 anos que ficou com um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 39 pontos, um quantum doloris de grau 5, numa escala crescente de 7 graus, um dano estético de grau 3, repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer de grau 4 e consequências permanentes na sua atividade sexual de grau 3:
- No acórdão do STJ de 24.02.2022 (relatora Graça Trigo), processo 1082/19.7T8SNT.L1.S1, foi fixada a quantia indemnizatória de € 50.000,00 a lesado de 39 anos de idade, tendo por base um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 9 pontos e que com elevada probabilidade, as lesões por ele sofridas terão significativa repercussão negativa sobre o desempenho da profissão de serralheiro cujo exercício exige um elevado nível de força e de destreza físicas ao nível dos membros superiores (atingidos pelas lesões).

Estes exemplos, entre os quais figuram situações mais graves e outras menos graves do que a do Autor, permitem, ao fazer a comparação, concluir que o valor fixado pelo Tribunal recorrido a título de compensação devida ao Autor pelos danos de natureza não patrimonial se mostra equilibrado e conforme com os princípios da igualdade e da proporcionalidade, pelo que será de manter o decidido. O valor de € 35.000,00, não diverge ou destoa dos parâmetros e padrões indemnizatórios adotados pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Não pode perder-se de vista que a determinação da compensação por danos não patrimoniais faz-se segundo juízos de equidade assentes numa ponderação casuística, à luz das regras da experiência comum, ou seja, ponderando as particularidades e especificidades do caso concreto. Desde que o julgador se contenha dentro da margem de discricionariedade consentida pela norma que legitima o recurso à equidade, o juízo prudencial e casuístico por ele emitido deve ser mantido. Só em casos em que o critério aplicado se afasta, de modo substancial e injustificado, dos padrões que generalizadamente se entende deverem ser adotados, é que se justifica a alteração.
Daí que tudo ponderado, sem esquecer os padrões da jurisprudência para casos similares, julgamos ser equitativo o montante de € 35.000,00 arbitrado ao Autor na decisão recorrida, tido por atualizado à data da sentença da 1ª instância e a partir da qual acrescem juros de mora até integral pagamento.
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2.2.4. Repercussões patrimoniais do dano biológico
Na sentença fixou-se, «a título de dano biológico na vertente patrimonial, a quantia de 53.000,00€ (cinquenta e três mil euros)».
O Autor, no seu recurso, preconiza o incremento do valor desta indemnização para € 300.000,00.
Está em causa a indemnização devida pelo reflexo patrimonial do dano biológico, na medida em que as sequelas das lesões sofridas no acidente de viação determinaram para o Autor um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 12,78 pontos, sendo as sequelas impeditivas do exercício da sua atividade profissional habitual, bem como de qualquer outra dentro da sua área de preparação técnico-profissional.
A incapacidade que implica perda de capacidade para o exercício de atividades económicas tem expressão patrimonial[5] e por isso constitui um inequívoco dano patrimonial, que se projeta no futuro de quem o sofre.
A nossa lei refere-se ao dano futuro no artigo 564º do CCiv., nos seguintes termos:
«1. O dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão.
2. Na fixação da indemnização pode o tribunal atender aos danos futuros, desde que sejam previsíveis; se não forem determináveis, a fixação da indemnização correspondente será remetida para decisão ulterior».
Como é sabido, em matéria de danos patrimoniais, o princípio geral é o da reconstituição natural, expresso no artigo 562º do CCiv. e, quando esta seja impossível ou inviável (artigo 566º, nº 1, do CCiv.), vale a indemnização em dinheiro, a fixar de acordo com a teoria da diferença, nos termos do artigo 566º, nº 2, do mesmo Código, segundo a qual a indemnização tem como medida, em princípio, a diferença entre a situação patrimonial do lesado na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal (encerramento da discussão em 1ª instância) e a situação hipotética que teria nessa data se não tivesse ocorrido o facto lesivo gerador do dano.
Porém, nos termos do nº 3 do artigo 566º do CCiv., «se não puder ser averiguado o valor exato dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados».
Portanto, a ressarcibilidade dos danos futuros assenta na sua previsibilidade, sendo que a sua determinabilidade ou averiguação do valor exato dos danos já é um problema distinto, para o qual a lei também tem solução.
No nosso entender, em regra é previsível a ocorrência de danos patrimoniais futuros decorrentes de um défice funcional da integridade físico-psíquica, pelo que a tarefa principal do julgador acaba por ser a do apuramento do valor desses danos.
Como se observa no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) de 19.04.2018[6], proferido no processo 196/11.6TCGMR.G2.S1 «a lesão corporal sofrida em consequência de um acidente de viação constitui em si um dano real ou dano-evento, designado por dano biológico, na medida em que afecta a integridade físico-psíquica do lesado, traduzindo-se em ofensa do seu bem “saúde”, dano primário, do qual podem derivar, além de incidências negativas não susceptíveis de avaliação pecuniária, a perda ou a diminuição da capacidade do lesado para o exercício de actividades económicas, como tal susceptíveis de avaliação pecuniária».
Uma incapacidade, desde que não seja em grau despiciendo, dificilmente não gera uma desvantagem para a pessoa que dela sofre. As limitações do corpo ou da mente representam uma perda de aptidão da vítima para se realizar enquanto pessoa nas suas diferentes dimensões e existem sempre, em cada caso concreto, elementos objetivos que nos permitem concretizar, com maior ou menor dificuldade, a expressão patrimonial deste tipo de dano, partindo da avaliação médico-legal. Por isso, o problema não reside propriamente na constatação da existência de uma expressão patrimonial de tal dano, mas sim na definição de critérios que sejam tendencialmente uniformes na quantificação da indemnização a atribuir.
Mais do que tudo, há que tomar uma posição pragmática que não se deixe enredar em discussões axiomáticas sem verdadeira aptidão para resolver os problemas concretos.
Porém, também não podemos deixar de salientar que, segundo o acórdão do STJ de 01.03.2018[7], «a fixação da indemnização por danos patrimoniais resultantes do “dano biológico” não pode seguir a teoria da diferença (art. 566º,2 do CC) como se tais danos fossem determináveis, devendo antes fazer-se segundo juízos de equidade (art. 566º, 3 do CC)». A esse propósito no acórdão do STJ de 06.12.2017, proferido no processo 1509/13.1TVLSB.L1.S1 (relator Manuel Tomé Gomes), refere-se que no caso de dano biológico, «a solução seguida pela jurisprudência do STJ é a de fixar um montante indemnizatório por via da equidade, ao abrigo do disposto no artigo 566º, n.º 3, do CC, em função das circunstâncias concretas de cada caso, segundo os padrões que têm vindo a ser delineados, atentos os graus de gravidade das lesões sofridas e do seu impacto na capacidade económica do lesado, considerando a expectativa de vida activa não confinada à idade-limite para a reforma». Como equidade não significa discricionariedade, devem ser levados em conta os fatores objetivos que o processo revela, os elementos que são acessíveis à generalidade das pessoas e do conhecimento público como é o caso da esperança média de vida, e os montantes indemnizatórios fixados pelos Tribunais superiores para casos semelhantes, dada a necessidade de segurança jurídica, que exige uma tendencial homogeneidade de decisões e rejeita a disparidade aleatória dos valores das indemnizações.

Nesta conformidade, sendo certo que na fixação da indemnização devida pelos reflexos patrimoniais do dano biológico deve ser ponderada a situação global do lesado, no concreto caso dos autos são especialmente relevantes os seguintes factos:
- O acidente de viação dos autos ocorreu a 03.11.2019 (1);
- O Autor nasceu a ../../2001, tendo 18 anos à data do acidente (43);
- O Autor teve alta hospitalar a 24 de fevereiro de 2020 e o período entre esta data e o acidente (03.11.2019), que corresponde ao internamento de 114 dias, foi fixado como como défice funcional temporário total em sede de relatórios periciais (27 e 28);
- As recomendações após a alta eram dar continuidade aos tratamentos de reabilitação (fisioterapia e terapia ocupacional), com estímulo à autonomia e manter medicação – levitracetam, metilgenidato e escitalopram (30);
- O Autor já se encontrava autónomo nas atividades básicas, com marcha autónoma e sem limitação, não saindo de casa sozinho, por precaução (31);
- O Autor foi seguido em neurologia, avaliado com défice cognitivo com aparente atingimento dos domínios da linguagem e atenção; e irritabilidade potenciada pela medicação (32);
- A 3 de março de 2020, o Autor foi sujeito a uma avaliação neuropsicológica, que concluiu pela existência de alterações nos domínios da atenção dividida, velocidade de processamento, cálculo, memória (processo de codificação e evocação espontânea) e funções executivas (iniciativa verbal, planeamento, controlo inibitório e evocação espontânea), destacando-se a alterações disexecutivas e a lentificação de velocidade de processamento, tendo sido proposto treino cognitivo e reabilitação profissional (33);
- O Autor não deu continuidade ao programa de reabilitação, tendo sido referenciado para consulta no Centro de Reabilitação ... em outubro de 2020 (34);
- Aí foi proposto integrar o programa de Recuperação e Atualização de Competências Pessoais e Sociais dirigido a pessoas com lesão cerebral adquirida, com o objetivo de estimular as funções cognitivas que se encontram comprometidas e de promover a reorganização do seu projeto profissional, que tinha início previsto para 18 de janeiro de 2021 e que terminou em outubro de 2021 (35);
- O Autor sofre de cefaleias, falta de equilíbrio após longos períodos em ortostatismo, sente alterações de memória e mais lentificado, e maior labilidade emocional, ficando mais facilmente irritado (36);
- O Autor em virtude de traumatismo crânio encefálico sofrido no acidente, apresenta como sequelas definitivas, alterações de memória e cognitivas e labilidade emocional a qual se atribuiu um défice permanente da integridade físico-psíquica de 11/12 pontos pelo cap. I.3 (Na0308 – perturbação moderada, com manifesta diminuição do nível da eficiência pessoal, social e laboral, de 11 a 40 pontos) (37);
- Em consequência do acidente, apresenta deformidade da região clavicular com encurtamento de cerca de 2 cm, por consolidação viciosa de fratura, com cavalgamento dos topos, com mobilidade preservada e sem alterações na força muscular, que se fixou num défice de 2 pontos pelo Cap. III Mf1202 (Ombro doloroso até 3) (38);
- O défice funcional permanente foi fixado em sede de perícias em 12 e 12,78 pontos, sendo as sequelas impeditivas do exercício da sua atividade profissional habitual bem assim como de qualquer outra dentro da sua área de preparação técnico-profissional (39);
- O Autor continuará a necessitar de ajuda medicamentosa permanente, do foro neurológico, ajustada às necessidades do examinado e por prescrição médica de Neurologista, e de tratamentos médicos regulares de acompanhamento em consultas de Neurologia e Psicologia ajustadas às necessidades do examinado ao longo da evolução do acompanhamento (42);
- O Autor terá concluído o 7º ano de escolaridade com cerca de 14 anos de idade, altura em que integrou o curso de formação profissional de Operador de Logística, tendo frequentado apenas um ano e iniciado a trabalhar aos 16 anos (45);
- À data do acidente estava desempregado e não tinha uma atividade profissional certa, fazendo pequenos trabalhos ocasionais e informais na função de taqueiro esperando iniciar novo trabalho na mesma área em dezembro de 2019 (46);
- O Autor frequentou o programa de atualização de competências e o seu atual perfil, atendendo à experiência profissional limitada e nível de escolaridade, bem como às limitações físicas, será compatível com a ocupação de um posto de trabalho como rececionista ou auxiliar de apoio administrativo (contínuo) (47).

Fruto da sua juventude (18 anos de idade) e das suas poucas qualificações escolares e profissionais, o Autor, à data do acidente, tinha uma experiência profissional muito reduzida e encontrava-se desempregado, tendo apenas a expetativa de iniciar atividade laboral como taqueiro em dezembro de 2019, propósito que se frustrou devido às lesões sofridas no acidente que o impossibilitaram de trabalhar até à data da consolidação das lesões.
No aludido quadro, não é legítimo considerar que o Autor poderia auferir o valor de € 1.100,40, enquanto «ordenado base médio mensal dos trabalhadores por conta de outrem no ano em 2019», como defende nas suas alegações. O que seria de esperar era a sua inserção no mercado de trabalho a auferir o salário mínimo nacional, então de € 600,00. A esperança de vida à nascença, para os homens nascidos em 2001, era de 73,1 anos (dados obtidos em www.pordata.pt), sendo atualmente de 78,4 anos, relevando esta última.
Para aferir da indemnização mais ajustada à situação, importa considerar alguns acórdãos recentes do Supremo Tribunal de Justiça que versam sobre jovens com pouca experiência laboral ou que pura e simplesmente ainda não estavam inseridos no mercado de trabalho à data do acidente. Como se refere no acórdão do STJ de 21.02.2013, «os tribunais não podem nem devem contribuir de nenhuma forma para alimentar a ideia de que neste campo as coisas são mais ou menos aleatórias, vogando ao sabor do acaso ou do arbítrio judicial. Se a justiça, como cremos, tem implícita a ideia de proporção, de medida, de adequação, de relativa previsibilidade, é no âmbito do direito privado e, mais precisamente, na área da responsabilidade civil que a afirmação desses vetores se torna mais premente e necessária, já que eles conduzem em linha reta à efetiva concretização do princípio da igualdade consagrado no artº 13º da Constituição». Portanto, nesta matéria, devem sempre ser consideradas, como referência relativa, as decisões jurisprudenciais mais recentes.
Assim, no acórdão do STJ de 18.01.2018, proferido no processo 223/15.8T8CBR.C1.S1, à lesada, de 22 anos de idade, estudante de enfermagem e com défice funcional permanente de 11% - considerando-se, ainda, que as sequelas de que ficou a padecer, embora compatíveis com a atividade profissional de enfermagem, implicariam esforços acrescidos, e que apresentava algumas limitações físicas para as atividades quotidianas - foi atribuída uma indemnização de € 55.000,00 a título de dano biológico na sua vertente patrimonial.
No acórdão de 10.04.2024 (Maria Olinda Garcia), no proc. 987/21.0T8GRD.C1.S1, considerou-se que «não é desconforme com os referidos padrões a indemnização de 150.000 euros (para indemnizar tanto o dano moral como o dano biológico) atribuída a um jovem de 15 anos, que em consequência do acidente sofreu múltiplas fraturas e lesões, foi alvo de três intervenções cirúrgicas, teve um longo período de convalescença e de recuperação, no qual teve de andar apoiado em canadianas, necessitando de reiterados tratamentos e consultas médicas. Sofreu um quantum doloris de nível 5 em 7. Ficou com um dano estético permanente de grau 2 em 7. Ficou com uma perna mais curta que a outra em 2 centímetros. Passou a padecer de défice funcional permanente da integridade físico-psíquica em 7,317 pontos, com existência de possível dano futuro; sofreu uma repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer de nível 4, uma escala de 7. E ficará com sequelas que implicam esforços acrescidos nas suas atividades habituais.»
Por sua vez, no acórdão de 06.02.2024 (Manuel Aguiar Pereira), proferido no processo 21244/17.0T8PRT.P1.S1, efetuou-se a seguinte valoração: «Tendo o lesado à data do acidente 23 anos de idade e trabalhado anteriormente como cortador de carnes verdes auferindo então salário mensal de cerca de 591,00 euros, considerando a esperança de vida para os homens da sua idade em Portugal e que as lesões sofridas lhe causaram em défice de integridade físico-psíquica de 61 pontos com incapacidade total para o exercício da sua anterior actividade profissional, ainda que sem compromisso do eventual exercício de outras profissões compatíveis com a área da sua preparação técnica que não envolvam a execução de tarefas complexas, o juízo de equidade a formular em relação aos previsíveis danos de natureza patrimonial, nomeadamente por perdas salariais que virá a sofrer no futuro, apontam para o valor de uma indemnização de cerca de 270.000,00 (duzentos e setenta mil euros)».
Este último acórdão tem alguns pontos de contacto com a situação dos autos no que respeita à idade dos lesados (18 e 23 anos – apenas cinco anos de diferença), ao salário e ao facto de as sequelas das lesões impossibilitarem o exercício da anterior atividade laboral, passando a apenas poderem exercer uma atividade compatível com as limitações que atualmente possuem. Bem diferente é o défice funcional de integridade físico-psíquico (12,78 vs. 61,00), o que apesar de tudo permite formular um juízo de proporcionalidade.
Em termos relativos, a quantia de € 53.000,00, fixada a título de indemnização pelo reflexo patrimonial do dano biológico mostra-se conforme com os parâmetros utilizados neste último acórdão do STJ.
Sendo o critério fundamental para a fixação da indemnização a equidade, para o respetivo cálculo, há que ter em conta os seguintes fatores:
- o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 12,78 pontos (em 100) de que o Autor passou a sofrer;
- o salário mínimo nacional era de € 600,00 à data da consolidação médico-legal das lesões (24.02.2020);
- a atual esperança média de vida de 78,4 anos para os indivíduos de sexo masculino (considerando que o fator relevante é a esperança média de vida do lesado e não a sua previsível idade de reforma, uma vez que a afetação da capacidade geral tem repercussões negativas ao longo da vida do lesado, tanto diretas como indiretas), donde decorre que deve ser considerado um período de 60 anos, tendo como termo inicial a data da consolidação das lesões.

Com esses elementos, deve procurar obter-se um valor objetivo que reflita a perda anual de rendimento correspondente ao défice funcional, o que se consegue através do apuramento do rendimento anual com base em 14 salários (incluindo subsídio de férias e subsídio de Natal, a acrescer aos salários auferidos nos 12 meses do ano) e da multiplicação deste pela percentagem do défice funcional da integridade física. De seguida, há que multiplicar o valor anual da perda anual assim apurada pelo número de anos que faltariam até ao fim da esperança de vida do concreto lesado. Finalmente, deve operar-se um desconto, no valor obtido, por a indemnização ser atribuída de uma só vez e de modo antecipado relativamente ao momento em que os rendimentos seriam auferidos.
Fazendo os cálculos, o Autor poderia auferir anualmente a quantia de € 8.400,00 (600 x 14), pelo que a perda de rendimento anual correspondente ao seu défice funcional ascende a € 1.073,52 € (8.400,00 € x 12,78%). Num período de 60 anos essa perda de rendimento seria de € 64.411,20.
A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a entender que no cálculo da indemnização do dano futuro por défice funcional deve operar-se a dedução de uma sua proporção por ocorrer uma antecipação do seu pagamento. Não havendo unanimidade na jurisprudência sobre o quantitativo deste desconto, o mais frequente é corresponder entre um quarto e um quinto do valor correspondente à perda global de rendimentos no período entre a data da consolidação das lesões e o do termo da esperança média de vida.
Operando o desconto de um quinto, obtemos o valor de € 51.528,96 (64.411,20 – 12.882,24). Ponderando o particular circunstancialismo do caso dos autos, designadamente a circunstância de o atual perfil de aptidão laboral do Autor ser «compatível com a ocupação de um posto de trabalho como rececionista ou auxiliar de apoio administrativo (contínuo)», o que redunda numa limitação na sua inserção profissional com reflexos económicos, justifica-se o arredondamento para o valor de € 53.000,00 encontrado na sentença.
Pelo exposto, nesta parte o recurso não procede.
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2.2.5. Dos juros de mora
O Tribunal a quo decidiu condenar alguns dos Réus no pagamento ao Autor da quantia de € 88.370,00 «acrescida de juros de mora legais a contar da prolação da sentença até efetivo e integral pagamento.»
No âmbito do recurso, o Recorrente defende que os juros de mora são devidos desde a citação, com fundamento no «disposto no art. 805.º, n.º 3, do CC».
Alega que «as indemnizações fixadas, quer de natureza patrimonial quer não patrimonial, não foram objeto de decisão atualizadora (e relativamente aos danos patrimoniais nem o poderiam ser [a] não ser pelo vencimento de juros), por isso os juros de mora devem contar-se a partir da citação.»

Como se refere no acórdão do STJ de 14.03.2023 (Isaías Pádua), proferido no processo 11575/18.8T8LSB.L1.S1, «sempre que uma indemnização pecuniária (por danos patrimoniais ou não patrimoniais) fixada provier de responsabilidade civil emergente de facto ilícito ou pelo risco, e ainda que o crédito se mostre ilíquido, a regra é que vence juros de mora a contar da citação do réu para a ação, a não ser que essa indemnização tenha sido objeto de cálculo atualizado à data da prolação da decisão que a fixou, caso então em que sobre ela apenas se vencem juros moratórios a partir dessa decisão atualizadora.»
Tendo presente que a simples mora constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor (art. 804º, nº 1, do CCiv) e que na obrigação pecuniária a indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora (art. 806º, nº 1, do CCiv), a regra geral, constante do artigo 805º, nº 1, do CCiv, é a de que o devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir.
Porém, nos termos do nº 2, al. b), do mesmo artigo 805º, há mora do devedor, independentemente de interpelação, se a obrigação provier de facto ilícito.
Mais, de harmonia com o nº 3 do artigo a que nos vimos referindo, se o crédito for ilíquido e se tratar de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, como sucede no caso dos autos, o devedor constitui-se em mora desde a citação.
Daqui se retira o fundamento para a citada asserção de que a indemnização pecuniária, por danos patrimoniais ou não patrimoniais, proveniente de responsabilidade civil emergente de facto ilícito ou pelo risco, mesmo que o crédito seja ilíquido, vence juros de mora a contar da citação do réu, a menos que tenha sido objeto de cálculo atualizado.
A restrição interpretativa do citado nº 3 do artigo 805º resulta o acórdão de uniformização de jurisprudência (AUJ) nº 4/2002, de 9 de maio 2002, publicado no Diário da República nº 146/2002, Série 1-A, de 27.06.2002, a páginas 5057-50-70, que fixou a seguinte jurisprudência: «Sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objeto de cálculo atualizado, nos termos do nº 2 do artigo 566º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805º, nº 3 (interpretado restritivamente), e 806º, nº 1, também do Código Civil, a partir da decisão atualizadora, e não a partir da citação.»
No apontado AUJ resolveu-se a questão da articulação entre o artigo 566º, nº 2, e o artigo 805º, nº 3, ambos do CCiv. Na primeira norma estabelece-se que o tribunal deve considerar, como ponto de referência, a situação patrimonial do lesado na data mais recente que puder ser atendida, ou seja, o cálculo da indemnização afere-se pela data mais recente que o tribunal puder atender (ao reportar-se a uma data recente é, nesse sentido, atualizadora), enquanto na segunda disposição legal se estabelece que, no caso de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, «o devedor constitui-se em mora desde a citação, a menos que já haja então mora, nos termos da primeira parte deste número.» Recorde-se que, segundo o nº 1 do artigo 806º do CCiv., na obrigação pecuniária, natureza que assume necessariamente a indemnização por danos não patrimoniais, «a indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora.»
No fundo, o juiz não pode arbitrar uma indemnização em dinheiro segundo o critério de cálculo atualizado prescrito no nº 2 do artigo 566º do CCiv e, ao mesmo tempo, declarar que o responsável se encontra em mora pelo pagamento de tal quantia desde a citação, acrescentando-lhe, por isso, juros de mora desde a data da mesma.
Em resumo, o ponto essencial é este: não é admissível a cumulação de juros de mora desde a citação com a atualização da indemnização. De duas, uma: ou a indemnização é atualizada por referência à data da sentença ou não. Se é atualizada, vence juros a contar da data da sentença; se não é atualizada, os juros são contados desde a citação.
Esse regime aplica-se, sem qualquer distinção, quer às indemnizações fixadas por danos presentes/emergentes, quer a indemnizações fixadas por danos futuros (cfr. arts. 562º e segs. e 564º, nº 2, do CCiv).
No caso dos autos está em causa a responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, sendo dela que emergem os montantes indemnizatórios fixados.
Verifica-se que o valor global de € 88.370,00, fixado a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, constitui a soma de três indemnizações parcelares:
a) a quantia de € 370,00, destinada a indemnizar o Autor pela danificação do telemóvel, do calçado e da roupa que vestia no momento do acidente;
b) a quantia de € 53.000,00, enquanto indemnização pelo reflexo patrimonial do dano biológico;
c) a quantia de € 35.000,00, fixada a título de indemnização pelos danos não patrimoniais.

Nenhuma dúvida existe de que a indemnização por danos não patrimoniais foi fixada exclusivamente com recurso à equidade e todos os elementos foram valorados por referência à data do julgamento. No fundo, procedeu-se à ponderação e fixação do valor dos danos não patrimoniais reportado à data em que se decide.
Ora, uma indemnização cujo valor é fixado exclusivamente segundo a equidade resulta dos padrões atuais de justiça do julgador. Deste modo, ainda quando nada se diga, há que entender que tal montante é fixado de forma atualizada[8].
Tendo o valor dessa indemnização sido atualizado por referência à data da prolação da sentença, os juros vencem-se a contar desta e não da data da citação.

As duas outras componentes indemnizatórias, supra identificadas em a) e b), não resultam exclusivamente da equidade.
A primeira resulta de no ponto nº 48 se ter dado como provado que «em consequência do presente sinistro, o autor viu danificados e destruídos os seguintes pertences que usava à altura, roupa, sapatos e telemóvel, de valor não concretamente apurado, não superior a 370 € (trezentos e setenta euros).» Tendo por base que se apurou, através de uma delimitação negativa, que os aludidos bens não tinham um valor superior a € 370,00, que era o limite máximo que os bens podiam valer, arbitrou-se precisamente essa quantia. O facto provado não contém qualquer referência à data relativamente à qual se considerou que os bens não valiam mais de € 370,00. Como incide sobre um facto alegado na petição inicial que se reporta à data do acidente, a mencionada avaliação tem de ser interpretada como referindo-se a tal data. O recurso à equidade circunscreve-se à consideração, para efeitos de fixação da indemnização, do valor máximo que os bens podiam valer à data do acidente e não de um valor inferior.
Por conseguinte, tal decisão não pode ser considerada como atualizadora, sendo certo que não contém qualquer elemento que permita afirmar ter feito tal atualização.

A segunda parcela indemnizatória emerge da circunstância de o Autor apresentar um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 12,78 pontos, de as sequelas das lesões serem impeditivas do exercício da sua atividade profissional habitual ou de outra dentro da sua área de preparação técnico-profissional, podendo ocupar um posto de trabalho como rececionista ou auxiliar de apoio administrativo (contínuo).
No cálculo dessa indemnização foram considerados outros dados objetivos, como sejam a idade do Autor à data da consolidação das lesões, o valor do salário mínimo em tal data e «a esperança média de vida por referência à data de nascimento».
A fixação da indemnização pelas repercussões patrimoniais do dano biológico foi feita com base numa operação aritmética, em que se consideraram os apontados dados, recorrendo-se à equidade para aferir da sua justiça relativa e ponderar as especificidades e particularidades do caso do Autor.
Nenhum elemento constante da decisão recorrida nos permite afirmar que o valor desta indemnização foi atualizado à data da sentença, pois esta é completamente omissa sobre tal matéria.
Repare-se que na sentença apenas consta que «a estas quantias acrescerão juros de mora à taxa legal supletiva desde a prolação desta sentença até efetivo e integral pagamento, ao abrigo do disposto no artigo 805.º, n.º 1 do Código Civil.»
Como a norma invocada na sentença apenas refere que o devedor fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir e a citação é precisamente o ato de referência da interpelação judicial, não é legítimo interpretar o transcrito segmento da decisão recorrida como constituindo uma decisão atualizadora, pois até aponta para a data da interpelação e esta, demonstradamente, efetuou-se através da citação dos Réus.
É de notar que na fixação do valor indemnizatório atrás referido em b) foram apreciados os reflexos negativos patrimoniais que resultam da limitação funcional do Autor e que não está em causa um dano da incapacidade permanente insuscetível de determinar uma perda de rendimentos no exercício da profissão habitual do lesado, ou seja, que apenas exigiria esforços suplementares no seu exercício, caso em que, atentas as caraterísticas desse prejuízo, não é possível a determinação de um valor exato, pelo que a respetiva indemnização, só pode ser arbitrada exclusivamente com recurso a um juízo de equidade (art. 566º, nº 3, do CCiv), ponderando os padrões de indemnização adotados, nos tempos antecedentes mais próximos, pela jurisprudência, em casos análogos.
O caso dos autos é de impossibilidade de exercício da profissão habitual, só podendo o Autor desempenhar outra profissão compatível com a lesão, pelo que essa limitação representa, a nosso ver, uma situação de previsível perda de rendimentos. Por isso, o cálculo da indemnização não se alicerça apenas num puro juízo equitativo, antes parte de elementos objetivos que constituem precisamente a base para o referido cálculo. Um desses elementos objetivos, que reputamos de essencial, é o valor do salário mínimo nacional à data da consolidação das lesões, que ocorreu antes da propositura da ação e da citação, e é sabido que a evolução deste, por via da sua atualização anual, assenta essencialmente na consideração da sua depreciação decorrente da inflação e do aumento do custo de vida. Não se considerou o valor do salário mínimo nacional à data da sentença, pelo que a consideração de um salário inferior àquele que se verificava à data da sentença implica a necessidade de atualização da decisão por via dos juros de mora a contar da citação. No caso dos autos, poderia ocorrer a duplicação que o AUJ nº 4/2002 pretendeu evitar se, por exemplo, a base de cálculo fosse um rendimento no valor nominal do salário mínimo nacional à data da sentença e não o valor deste à data da consolidação das lesões, sendo certo que o Tribunal recorrido até considerou no cálculo a «esperança média de vida por referência à data de nascimento (73,90)» e não a que se verifica atualmente, à data da sentença. Por conseguinte, todos os fatores que a Exma. Juiz da 1ª instância ponderou não são os que apenas agora ocorriam à data da sentença, mas aqueles que já se verificavam aquando da citação da Ré (data da consolidação das lesões, salário, défice funcional, idade, esperança de vida à data de nascimento).
Repare-se que no AUJ nº 4/2002 refere-se que «não é defensável a cumulatividade de juros de mora desde a citação, em conformidade com o disposto no n.º 3 do artigo 805.º com a actualização da indemnização, na medida em que ambas as providências influenciadoras do cálculo da indemnização devida obedecem à mesma finalidade, que consiste em fazer face à erosão do valor da moeda no período compreendido entre a localização no tempo do evento danoso e o da satisfação da obrigação indemnizatória».
Finalmente, não é lícito a esta Relação presumir que na 1ª instância se procedeu à atualização desta indemnização quando da sentença nada consta sobre tal matéria. E, como já salientamos, da interpretação da decisão recorrida não resultam, antes pelo contrário, sinais de ter optado pela atualização do montante indemnizatório fixado pela repercussão patrimonial do dano biológico.
Por isso, não tendo sido atualizado o valor desta parcela indemnizatória, os juros de mora contam-se a partir da citação.
Como se refere no acórdão do STJ de 19.12.2023 (Ana Resende), proferido no processo 100/14.0T8VCT.G1.S1, «se na condenação em juros realizada não tiver havido [recurso] a algum dos critérios utilizados no caso do decurso do tempo, caso da correção monetária ou taxa de inflação, os juros devem ser contabilizados desde a citação do primitivo Réu.»
Também no acórdão do STJ de 01.03.2023 (Luís Espírito Santo), proferido no processo 10849/17.0T8SNT.L1.S1, se entendeu que «relativamente à indemnização que se prende com o ressarcimento de danos de natureza patrimonial (perdas salariais), os respectivos juros contam-se a partir da data da citação da ré seguradora, nos termos gerais do art. 805.º, n.º 3, do CC.»
Termos em que procede parcialmente a apelação.
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III – Decisão

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se:
3.1. Julgar procedente o recurso interposto pelo Réu Fundo de Garantia Automóvel, revogando-se a sentença na parte em que o condenou no pagamento de indemnizações ao Autor, absolvendo-se o mesmo do pedido;
3.2. Julgar procedente o recurso subordinado do Autor, revogando-se a sentença na parte em que absolveu a Ré EMP01... do pedido, e parcialmente procedente o recurso independente do Autor e, em consequência, condenam-se os Réus EMP01... e BB a pagar ao Autor AA a quantia de € 88.370,00 € (oitenta e oito mil trezentos e oitenta euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal aplicável às operações civis, sendo a contar da citação relativamente à quantia de € 53.370,00 (danos patrimoniais) e a partir da prolação da sentença no que concerne à quantia de € 35.000,00 (danos não patrimoniais), até efetivo e integral pagamento, mantendo-se em tudo o mais a sentença.
Quanto a custas (sempre na vertente de custas de parte quanto a todos os recursos, por outras não haver), as da apelação do Réu FGA são a suportar pelo Autor, sem prejuízo do apoio judiciário. As custas do recurso subordinado ficam a cargo da Ré EMP01... e as do recurso independente interposto pelo Autor serão suportadas por este e os Réus BB e EMP01... na proporção do decaimento, sem prejuízo do apoio judiciário concedido ao Autor.
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Guimarães, 05.12.2024
(Acórdão assinado digitalmente)

Joaquim Boavida
Alcides Rodrigues
Carla Maria da Silva Sousa Oliveira


[1] Disponível em www.dgsi.pt, tal como todos os demais citados no presente acórdão.
[2] José Alves de Brito, Lei do Contrato de Seguro anotada, 4ª edição, Almedina, págs. 266 e 268.
[3] Luís Poças, Seguro Automóvel – Oponibilidade de meios de defesa aos lesados, Almedina, pág. 34.
[4] Deve considerar-se preponderante a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, dada a natureza da sua intervenção e a função de uniformização da jurisprudência.
[5] No sentido de ter consequências patrimoniais, suscetíveis de avaliação pecuniária.
[6] Relatado por António Piçarra.
[7] Relatora Maria da Graça Trigo.
[8] Acórdão do STJ de 30.10.2008 (Bettencourt de Faria), proferido no processo nº 08B2662.