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AÇÃO DE ANULAÇÃO DE SENTENÇA ARBITRAL
ADMISSIBILIDADE DA AÇÃO É INDIFERENTE DO VALOR DO PROCESSO OU DA SUCUMBÊNCIA
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Sumário
I - O regime legal aplicável ao processo arbitral prevê dois meios de impugnação da decisão arbitral: o recurso e a ação de anulação. II - Para aferir da admissibilidade da ação de anulação da sentença arbitral revela-se indiferente atender ao valor do processo arbitral ou ao valor da sucumbência, o mesmo sucedendo quanto a saber se as partes estipularam expressamente a possibilidade de recurso na convenção de arbitragem, bastando que venha imputada uma irregularidade ou um vício subsumível em abstrato aos fundamentos expressamente previstos no n.º 3 do artigo 46.º da LAV. III - A invocação de qualquer erro de cálculo, erro material ou tipográfico ou qualquer erro de natureza idêntica, têm como uma das particularidades o regime de arguição perante o Tribunal Arbitral, o mesmo sucedendo relativamente a alguma obscuridade ou ambiguidade da sentença arbitral ou dos seus fundamentos, nos termos do disposto no artigo 45.º, n.ºs 1 a 4 da LAV, o que não foi feito pelo ora impugnante no prazo legalmente previsto. IV - O fundamento de anulação da decisão arbitral previsto no último segmento da al. v) do artigo 46.º, n.º 3 - a), da LAV que estabelece tal possibilidade nos casos em que o Tribunal Arbitral deixou de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar, é equiparável à nulidade a que alude o artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC. V - Não se verifica omissão de pronúncia quando o não conhecimento de questões fique prejudicado pela solução dada a outras.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:
I. Relatório
O Município ... veio instaurar a presente ação de anulação de sentença arbitral, com processo especial, contra AA, requerendo a anulação da sentença arbitral proferida pelo Centro Nacional de Informação e Arbitragem de Conflitos de Consumo (CNIACC) a 31 de dezembro de 2023, no âmbito do processo n.º ...23, em que é requerente AA, na qual foi decidido pelo Senhor Juiz Árbitro julgar a ação procedente e, em consequência, declarar prescrito o direito do requerido ao recebimento dos montantes referentes às faturas em dívida, resultantes do contrato celebrado entre as partes.
No essencial, alega que aquele Tribunal Arbitral infringiu o dever de pronúncia sobre os pedidos formulados pelas partes, maxime não tendo apreciado a exceção de litispendência alegada pelo Impugnante, a qual deveria ter conduzido à absolvição da instância do Impugnante.
A ora ré foi citada por editais.
Procedeu-se à citação do Ministério Público, nos termos aplicáveis do disposto no artigo 21.º, n.º 1 do Código de Processo Civil (CPC).
Em contestação, o Ministério Público suscitou a inadmissibilidade da presente impugnação da decisão arbitral, alegando que a decisão impugnada incide sobre conflito de consumo de valor inferior à alçada do Tribunal Judicial de 1.ª Instância - no caso 89,14 € - sendo que na convenção de arbitragem não foi prevista a possibilidade de recurso.
Solicitou-se ao CNIACC a remessa do processo de arbitragem para instrução da causa, o que foi concretizado.
*
O Tribunal é competente para conhecer da causa em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia.
As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas, encontrando-se devidamente representadas em juízo.
O processo é o próprio e não existem exceções e/ou nulidades que cumpra conhecer.
Não existe prova a produzir, relevando para a apreciação da causa a factualidade que emerge dos próprios autos de processo arbitral.
Nos termos do artigo 46.º, n.º 2, al. e) da LAV, os presentes autos seguem nesta fase a tramitação do recurso de apelação, com as necessárias adaptações, tendo sido colhidos os vistos legais.
II. Delimitação do objeto da ação.
O objeto da presente ação circunscreve-se às seguintes questões:
A) questão prévia: da admissibilidade da presente impugnação da decisão arbitral;
B) se a decisão arbitral em referência enferma de vícios que conduzam à sua anulação, importando neste domínio apreciar se estão verificados e são relevantes os seguintes vícios que vêm suscitados pelo aqui autor: - extemporaneidade da notificação da sentença arbitral; - omissão do dever de pronúncia, designadamente sobre a exceção de litispendência invocada pelo Impugnante.
III. Fundamentação.
1. Os factos
1.1. Os factos, as ocorrências e elementos processuais a considerar na decisão da presente ação são os que já constam do relatório enunciado em I., relevando ainda os seguintes factos que o Tribunal arbitral, após produção de prova em audiência de julgamento (ata de julgamento arbitral de 18 de dezembro de 2023), considerou como provados:
1.1.1. A Requerente celebrou com a Requerida um contrato de fornecimento de água e serviços de saneamento, em 28 de fevereiro de 2022, ao qual foi atribuído o n.º ...81 (cf. doc. a fls. 7).
1.1.2. No decurso da relação contratual a Requerida emitiu e endereçou à Requerente as seguintes faturas:
a) ...02, no valor de €16,43 (dezasseis euros e quarenta e três cêntimos), emitida a ../../2022 e vencida a 11/07/2022;
b) ...30, no valor de €22,47 (vinte e dois euros e quarenta e sete cêntimos), emitida a ../../2022 e vencida a 10/08/2022;
c) ...71, no valor de €18,10 (dezoito euros e dez cêntimos), emitida a ../../2022 e vencida a 12/09/2022;
d) ...25, no valor de €32,14 (trinta e dois euros e catorze cêntimos), emitida a ../../2022 e vencida a 10/10/2022;
1.1.3. A Requerente não liquidou nenhuma das faturas supramencionadas;
1.1.4. A Requerida instaurou contra a Requerente o Processo de Execução Fiscal n.º ...22;
1.1.5. A Requerente foi regularmente citada, no dia ../../2022, por correio simples para o domicílio indicado aquando da celebração do contrato identificado em 1 dos factos provados (cf. doc. a fls. 5);
1.1.6. A Requerente não apresentou oposição no Processo de Execução Fiscal.
1.2. O Tribunal arbitral pronunciou-se na respetiva sentença sobre a matéria de facto não provada, nos seguintes termos:
«Da discussão da causa, não resultaram, com interesse para a demanda, quaisquer factos não provados».
1.3. Com relevo para a apreciação do objeto da presente ação, relevam ainda as seguintes incidências processuais que se consideram devidamente documentadas nos autos, atento o que se pode constatar dos autos do processo arbitral:
1.3.1. A reclamação foi apresentada pela ora ré em de 19-09-2023 no CNIACC com o seguinte pedido: «Face à situação em que se encontra vem pedir que sejam cancelados todos os contratos em seu nome e que não seja levado qualquer montante de penalização. Sem prejuízo a Requerente invoca a prescrição de eventuais valores nos termos do n° 1 do Art. 100 da referida Lei 23/96 de 25/07».
1.3.2. Com a reclamação, a ora requerida apresentou documentos, entre os quais «Declaração de Compromisso Arbitral», datada de 19-09-2023, da qual consta, entre o mais, o seguinte: «Eu, AA residente em (…), requerente no processo de reclamação nº ...23, declaro aceitar que o presente conflito seja submetido à decisão do Tribunal Arbitral e às regras processuais constantes do Regulamento do CNIACC - Centro Nacional de Informação e arbitragem de Conflitos de Consumo (consulta livre no CNIACC ou em www.cniacc.pt)».
1.3.3. O ora autor foi notificado da reclamação apresentada, vindo apresentar contestação, tal como consta do articulado junto a 30-11-2023 do processo de reclamação, que se dá por reproduzido, juntando documentos.
1.3.4. Consta da contestação aludida em 1.3.3., entre o mais, o seguinte: «(…) encontra-se a decorrer, nos serviços de execução fiscal do Demandado, processo de execução fiscal n.º ...22, tendo a Demandante sido citada para o mesmo a ../../2022. 15. Querendo opor-se à cobrança coerciva dos referidos montantes, a Demandante deveria tê-lo feito no âmbito daquele processo, 16. Através de apresentação de Oposição, nos termos do artigo 204.º do Código de Procedimento e Processo Administrativo, conforme indicado na citação. 17. Pelo que não se reconhece a jurisdição deste tribunal, desde logo por se verificar a exceção de litispendência. (…)».
1.3.5. Foi realizada audiência de julgamento Arbitral, conforme ata de 18-12-2023, da qual consta, além do mais, que estiveram presentes o Juiz Árbitro, e através da plataforma Zoom, a requerente e a Ilustre mandatária do ora autor, tendo sido ouvida a reclamante em declarações de parte e proferido o seguinte despacho pelo Juiz Árbitro: «Dou por encerrada a Audiência de julgamento e, oportunamente, será proferida Sentença».
1.3.6. Consta da decisão arbitral, datada de 31-12-2023 e notificada ao ora autor a 09-01-2024, o seguinte segmento com a referência objeto do litígio:
«O objeto do presente litígio visa apurar, nos termos da lei vigente: Apreciar e decidir acerca da exceção de litispendência, bem como a competência do Tribunal Arbitral. Se é devida pela Requerente à Requerida a quantia total de € 89,14 (oitenta e nove euros e catorze cêntimos), apreciando através de uma ação de simples apreciação negativa, pretendendo a Requerente que se declare que não é devedora da quantia em causa (nos termos do artigo 10. n. 3 al. a) do CPC), alegando para o efeito que a dívida se encontra prescrita.
(…)».
1.3.7. Consta da decisão arbitral aludida em 1.3.6., entre o mais, o seguinte segmento:
«4. QUESTÃO PRÉVIA: DA (IN)COMPETÊNCIA MATERIAL DO TRIBUNAL Tendo sido invocada expressamente a exceção dilatória de incompetência material do Tribunal Arbitral, sustentando, no essencial que estando a correr termos o processo de execução fiscal n.º ...22 (para cobrança coerciva da quantia cuja prescrição a Requerente invoca a seu favor), deveria a Requerente ter deduzido oposição à execução e, por essa via, submetido a apreciação do litígio dos presentes autos ao Tribunal Judicial, sendo este o foro competente para o efeito. Foi dada a palavra à Requerente para, querendo, se pronunciar sobre a exceção invocada (cf. art. 30.º n. 1, al. c) da LAV e art. 3.º n. 4 do CPC), tendo esta declarado nada ter a dizer. Apreciando e decidindo, Dispõe o artigo 18.º da Lei n.2 63/2011 de 14 de dezembro - doravante LAV (aplicável à Arbitragem Necessária por força do artigo 1085.º do CPC), que o Tribunal Arbitral: “pode decidir sobre a sua própria competência (...) mediante uma decisão interlocutória ou na sentença sobre o fundo da causa.” A Requerida através dos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento de ... - ... (...) efetua o serviço de captação, tratamento e abastecimento público de água às populações, de saneamento de águas residuais urbanas. No decurso do contrato celebrado entre as partes, a Requerida emitiu diversas faturas que não foram liquidadas. Em consequência, a Requerida moveu uma execução fiscal para cobrança coerciva dos montantes em causa, tendo emitido Aviso de Citação, concretamente em 17 de agosto de 2022, no âmbito do processo de execução fiscal n.º ...22. A Requerente não procedeu ao pagamento da quantia exequenda nem desenvolveu qualquer impulso processual, designadamente oposição à execução. O artigo 1.º n. 1 da LAV determina que: “Desde que por lei especial não esteja submetido exclusivamente aos tribunais do Estado ou a arbitragem necessária, qualquer litígio respeitante a interesses de natureza patrimonial pode ser cometido pelas partes, mediante convenção de arbitragem, à decisão de árbitros.” No mesmo sentido prescreve o artigo 10.º n. 1 do Regulamento do CNIACC: “A submissão do litígio a decisão do Tribunal Arbitral depende da convenção das partes ou de estar sujeito a arbitragem necessária.” Revertendo ao caso dos autos, o atual litígio diz respeito a um conflito de consumo, porquanto o contrato que originou a cobrança dos valores em litígio configura um contrato de consumo, pois subjacente ao pedido da Requerente encontra-se o serviço de fornecimento de água, o que corresponde a um serviço público essencial, nos termos do art.º 1º, n.º 2º, a) da Lei dos Serviços Públicos (aprovada pela Lei n.º 23/96, de 26/07). Ora, como bem ensina JORGE MORAIS CARVALHO E JOANA CAMPOS CARVALHO’: “para responder à questão de saber quando é que estamos perante um litígio de consumo, é necessário perceber qual é o conceito relevante de consumidor paro efeito deste diploma [Lei n.º 23/96, de 26 de junho]”, o qual, não nos sendo oferecido pela própria Lei dos Serviços Públicos Essenciais, podemos e devemos extrair do “diploma base” que regula as relações de consumo, a Lei n.º 24/96, de 31 de julho - Lei de Defesa do Consumidor, na qual no seu artigo 2.º refere que: “Considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios.” Com efeito, a competência deste Tribunal Arbitral afere-se em razão à qualidade da relação contratual controvertida, sendo que, deve estar em causa um litígio de consumo, tal como se refere no artigo 4.º n. 1 do Regulamento do CNIACC: “O Centro promove o resolução de conflitos de consumo (...).“ Esclarece, ainda, o número 2 do mesmo artigo: “Consideram-se conflitos de consumo os que decorrem da aquisição de bens, da prestaçãode serviços ou da transmissão de quaisquer direitos destinados a uso não profissional e fornecidos por pessoa singular ou coletiva, que exerça com caráter profissional uma atividade económica que visa a obtenção de benefícios.” Isto posto, é entendimento do Tribunal que a não dedução, pela aqui Requerente, de oposição no âmbito do processo de execução fiscal n.º ...22, não originou a preclusão do direito daquela de recorrer a outros meios de reação contra o ato de liquidação. Tal como se referiu na Douta Sentença do CIAB - Tribunal Arbitral do Consumo de Braga, proferida no Processo n.º (…): “E, em todo o caso, seguindo de perto a doutrina jurisprudencial do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04.04.2017, no âmbito do Processo n.º 1329/15.9T8VCT.G1. S1, Relator:José Rainho, e do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 16.10.2018, proferido no Processo n.º 158/14.ITBCBR.Cl, Relator: Falcão de Magalhães, ambos disponíveis em http://www.dqsi.pt/, considerando que a oposição à execução fiscal reveste estrutura de ação declarativa autónoma de simples apreciação, a qual obedece à tramitação do processo de impugnação judicial após o despacho liminar (artigo 4.º, n. 2, alínea a) do CPC e artigo 211.º n.º1 do CPPT) e cujo abjeto é definido, na respetivo petição inicial, pelo executado (valendo cada um dos fundamentos materiais invocados como verdadeiras causa de pedir), deve entender-se que o decurso do prazo para oposição, sem que tenho havido lugar à sua dedução, acarretou apenas a extinção de uma faculdade cujo exercício se poderio revelar vantajoso para a executada, mas não importou a produção das consequências desfavoráveis associadas à inobservância de ónus processual - inaplicável no caso - de concentração dos meios de defesa (artigo 573.°, n.º 1 do CPC), mormente o efeito preclusivo da invocação dos fundamentos possíveis de oposição num outro processo, como a presente ação arbitral.” O CNIACC é uma entidade legalmente habilitada a realizar arbitragens voluntárias institucionalizadas. A Requerente solicitou ao CNIACC a resolução do presente litígio, ao abrigo do artigo 14.º- 2 da Lei de Defesa do Consumidor (Lei n.º 24/96, de 31 de julho), segundo o qual “os conflitos de consumo de reduzido valor económico estão sujeitos a arbitragem necessária ou mediação quando, por opção expressa dos consumidores, sejam submetidos à apreciação de tribunal arbitral adstrito aos centros de arbitragem de conflitos de consumo legalmente autorizados”. E ainda, ao abrigo da Lei dos Serviços Públicos (Lei n.º 23/96, de 26 de julho) no seu artigo 15.º n.1 que dispõe: “Os litígios de consumo no âmbito dos serviços públicos essenciais estão sujeitos a arbitragem necessária quando, por opção expressa dos utentes que sejam pessoas singulares, sejam submetidos à apreciação do tribunal arbitral dos centros de arbitragem de conflitos de consumo legalmente autorizados.” Isto posto, está em causa, no presente processo, uma situação de arbitragem necessária, sendo que o termo correto, se diga, será o de “arbitragem potestativa”, pois estamos ante um verdadeiro direito potestativo, que, no caso, sendo exercido pelo consumidor (aqui Requerente) outra alternativa não resta ao profissional (aqui Requerida) senão intervir na arbitragem, sob pena de estar em revelia. Por todo o exposto, o Tribunal é competente para julgar o litígio dos presentes autos, pelo que improcede a exceção dilatória de incompetência material invocada pela Requerida. (…)».
1.3.8. Consta da decisão arbitral aludida em 1.3.6., o seguinte segmento com a referência saneador:
«5. SANEADOR • As Partes têm personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas. • Não há nulidades, exceções ou outras questões de que cumpra oficiosamente conhecer. • Fixa-se em € 89,14 (oitenta e nove euros e catorze cêntimos) o valor da ação. (…)».
1.3.9. No âmbito da respetiva fundamentação de direito fez-se constar da decisão arbitral impugnada, entre o mais, o seguinte:
«(…) Como acima já se aflorou, o presente contrato inclui-se no âmbito dos serviços públicos, pelo que o artigo 1.º n. 2 refere expressamente que se considera um serviço público, al. a): “O Serviço de fornecimento de égua.” Como tal, ao presente contrato aplicam-se as disposições da Lei dos Serviços Públicos (Lei n.º 23/96, de 26 de julho). Resultou provado que a Requerente celebrou com a Requerida o contrato n.º ...81 para prestação do serviço de fornecimento de água e no âmbito desse contrato foram emitidas diversas faturas que nunca chegaram a ser liquidadas. Para cobrança coerciva dos valores em dívida a Requerida moveu contra a Requerente o Processo de Execução Fiscal n.º ...22, que, no entanto, não teve oposição nem participação por qualquer meio, por parte da Requerente. Com a presente ação a Requerente pretende que se declare que não é devedora da quantia em causa, alegando para o efeito que a dívida se encontra prescrita. Apreciando e decidindo, Nos termos do artigo 10.º n. 1 da Lei dos Serviços Públicos, o direito ao recebimento do preço do serviço prestado prescreve no prazo de seis meses após a sua prestação. Também o n. 4 do mesmo preceito legal dispõe que: “O prazo para a propositura da acção ou da injunção pelo prestador de serviços é de seis meses, contados após o prestação do serviço ou do pagamento inicial, consoante os casos.” Tal prazo, está subsidiariamente sujeito às regras gerais do Código Civil, designadamente as que resultam dos artigos 300.º e seguintes. A prescrição é habitualmente a exceção oposta pelo devedor ao credor e, no caso da prescrição, é ela própria um facto constitutivo do direito da Requerente, aqui consumidora/devedora, na medida em que esta é Autora na presente ação e do pedido de reconhecimento do direito de ver declaradas prescritas as dívidas. Por sua vez, caberá à Requerida o ónus da prova dos factos impeditivos desse direito, tal como dispõe o artigo 342.º n. 2 CC. Não obstante ser do entendimento deste Tribunal que a apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a cobrança coerciva, está excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal (conforme prescreve o artigo 4.º n. 4 al. e) da Lei n.º 13/2002, de 19 de fevereiro), o certo é que no âmbito do processo de execução fiscal movido pela Requerida para cobrança coerciva dos valores em dívida, a citação efetuada foi por carta simples, ao (abrigo do artigo 191.º do DL n.º 433/99, de 26 de outubro, que dispõe o seguinte: n. 1 - “Nos processos de execução fiscal cujo quantia exequenda não exceda 500 unidades de conto, o citação efetua-se, mediante via postal simples, aplicando-se-lhe as regras do artigo anterior, com as necessárias adaptações.”), posto que está em causa, conforme doc. a fls. 5, uma quantia exequenda no valor de € 22,17 (vinte e dois euros e dezassete cêntimos), ou seja, inferior a 500 unidades de conta. Com efeito, atendendo ao disposto no artigo 323.º n. 1 do Código Civil, “a prescrição interrompe-se pelo citação ou notificação judicial de qualquer acto que exprima, directa ou indirectamente, a intenção deexercer o direito, seja qual for o processo o que o acto pertence e ainda que o tribunal seja incompetente”. Nos termos do artigo 326.º CC, a interrupção da prescrição inutiliza todo o prazo já decorrido, começando a correr novo prazo após o ato interruptivo. A nova prescrição está sujeita ao prazo da prescrição primitiva, uma vez que a prescrição em apreço é extintiva, pelo que finda a interrupção inicia-se novo prazo prescricional de 6 meses. Assim, o novo prazo de prescrição começa a correr quando passar em julgado a Execução Fiscal movida pela Requerida no âmbito do processo n.º ...22, para o qual foi a Requerente citada (cf. 327.º CC) em ../../2022. Ora, desconhece-se, nos presentes autos, quando transitou em julgado a execução fiscal promovida pela Requerida, muito embora seja possível concluir que já transitou, atenta a falta de oposição da Requerente que conduziu à emissão de certidão de dívida, por parte da Requerida, que atesta o seu efeito executório. Não tendo sido alegado ou demonstrado que tenha havido qualquer outro ato interruptivo, é forçoso concluir que, aquando da apresentação da presente ação (Reclamação Inicial com data de entrada de 19/09/2023), o direito ao recebimento da Requerida relativo à fatura n.º ...02, já se encontra prescrito. Quanto às restantes faturas, a saber: fatura n.º ...30, de julho de 2022; fatura n.º ...71, de agosto e fatura n.º ...25, de setembro de 2022, não há conhecimento de qualquer processo movido contra a Requerente, para cobrança coerciva dos valores em dívida, nem tão pouco foi alegado ou demonstrado que tenha havido qualquer outro ato interruptivo do prazo de prescrição, pelo que, nos termos do artigo 342.º n. 2 CC, não logrou a Requerida provar que se tenha verificado alguma causa de suspensão ou interrupção do direito ao recebimento do preço do serviço prestado. Assim, também relativamente às faturas supra mencionadas os referidos créditos encontram-se prescritos. Em conclusão, estando os valores em dívida prescritos, a Requerente beneficia da faculdade em recusar o cumprimento da prestação, opondo-se, por qualquer modo, ao exercício do direito prescrito, visto que a dívida se converteu numa obrigação natural, conforme os artigos 304.º e 402.º C.C.
(…)».
2. Apreciação sobre o objeto da ação.
2.1. Da admissibilidade da presente impugnação de decisão arbitral.
Em contestação, o Ministério Público suscitou a inadmissibilidade da presente impugnação da decisão arbitral, alegando, em síntese, que a decisão impugnada incide sobre conflito de consumo de valor inferior à alçada do Tribunal Judicial de 1.ª Instância - no caso 89,14 € - sendo que na convenção de arbitragem não foi prevista a possibilidade de recurso.
Conforme decorre dos artigos 39.º, n.º 4, 46.º e 48.º, todos da Lei da Arbitragem Voluntária (LAV), aprovada pela Lei n.º 63/2011, de 14-12, o regime legal aplicável ao processo arbitral prevê dois meios de impugnação da respetiva decisão, para além da oposição à execução de sentença arbitral: o recurso e a ação de anulação.
Assim, em matéria de recursos, o artigo 39.º, n.º 4 da LAV preceitua o seguinte: a sentença que se pronuncie sobre o fundo da causa ou que, sem conhecer deste, ponha termo ao processo arbitral, só é suscetível de recurso para o tribunal estadual competente no caso de as partes terem expressamente previsto tal possibilidade na convenção de arbitragem e desde que a causa não haja sido decidida segundo a equidade ou mediante composição amigável.
Por sua vez, prevê o artigo 46.º, n.º 1 da LAV: salvo se as partes tiverem acordado em sentido diferente, ao abrigo do n.º 4 do artigo 39.º, a impugnação de uma sentença arbitral perante um tribunal estadual só pode revestir a forma de pedido de anulação, nos termos do disposto no presente artigo.
Deste modo, enquanto o recurso da decisão arbitral pressupõe que as partes tenham expressamente previsto tal possibilidade na convenção de arbitragem e desde que a causa não haja sido decidida segundo a equidade ou mediante composição amigável (artigo 39.º, n.º 4, e 59.º, n.º 1, al. e) da LAV), a ação de anulação é irrenunciável (artigo 46.º, n.º 5 da LAV), ainda que circunscrita aos fundamentos expressamente previstos no n.º 3 do artigo 46.º da LAV[1].
Com efeito, «[s]ão diferentes os pedidos feitos aos tribunais estaduais competentes tal como são diferentes os efeitos das decisões que eles proferirão em cada um desses meios de impugnação. No recurso, pede-se (e pode obter-se) a revogação da sentença recorrida e a sua substituição por outra que decida o fundo da causa favoravelmente ao recorrente, ao passo que, no pedido de anulação, só pode obter-se a cassação da sentença impugnada»[2].
No caso, a parte não vem interpor recurso da decisão arbitral, mas antes instaurar ação de anulação da sentença arbitral.
Como tal, para aferir da admissibilidade da presente impugnação revela-se indiferente atender ao valor do processo arbitral ou ao valor da sucumbência, o mesmo sucedendo quanto a saber se as partes estipularam expressamente a possibilidade de recurso na convenção de arbitragem, bastando que venha imputada uma irregularidade ou um vício subsumível em abstrato aos fundamentos expressamente previstos no n.º 3 do artigo 46.º da LAV.
Termos em que, improcede a questão suscitada a propósito da inadmissibilidade da presente ação de impugnação.
2.2. No caso em apreciação importa averiguar se a sentença arbitral em causa - proferida pelo Centro Nacional de Informação e Arbitragem de Conflitos de Consumo (CNIACC) a 31 de dezembro de 2023 - e/ou o correspondente processo arbitral, n.º ...23, enferma/m de vícios e/ou irregularidades que conduzam à anulação daquela decisão.
Neste domínio, prevê o n.º 3 do artigo 46.º da LAV, que a sentença arbitral só pode ser anulada pelo tribunal estadual competente se:
a) A parte que faz o pedido demonstrar que:
i) Uma das partes da convenção de arbitragem estava afetada por uma incapacidade; ou que essa convenção não é válida nos termos da lei a que as partes a sujeitaram ou, na falta de qualquer indicação a este respeito, nos termos da presente lei; ou
ii) Houve no processo violação de alguns dos princípios fundamentais referidos no n.º 1 do artigo 30.º com influência decisiva na resolução do litígio; ou
iii) A sentença se pronunciou sobre um litígio não abrangido pela convenção de arbitragem ou contém decisões que ultrapassam o âmbito desta; ou
iv) A composição do tribunal arbitral ou o processo arbitral não foram conformes com a convenção das partes, a menos que esta convenção contrarie uma disposição da presente lei que as partes não possam derrogar ou, na falta de uma tal convenção, que não foram conformes com a presente lei e, em qualquer dos casos, que essa desconformidade teve influência decisiva na resolução do litígio; ou
v) O tribunal arbitral condenou em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido, conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento ou deixou de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar; ou
vi) A sentença foi proferida com violação dos requisitos estabelecidos nos n.ºs 1 e 3 do artigo 42.º; ou
vii) A sentença foi notificada às partes depois de decorrido o prazo máximo para o efeito fixado de acordo com ao artigo 43.º; ou
b) O tribunal verificar que:
i) O objeto do litígio não é suscetível de ser decidido por arbitragem nos termos do direito português;
ii) O conteúdo da sentença ofende os princípios da ordem pública internacional do Estado português.
Por outro lado, quanto aos poderes conferidos ao tribunal estadual no âmbito do pedido de anulação de decisão arbitral, prevê o n.º 9 do citado artigo 46.º da LAV que «[o] tribunal estadual que anule a sentença arbitral não pode conhecer do mérito da questão ou questões por aquela decididas, devendo tais questões, se alguma das partes o pretender, ser submetidas a outro tribunal arbitral para serem por este decididas».
Resulta, então, do enquadramento legal antes enunciado que o âmbito da presente ação especial de anulação de decisão arbitral não comporta a reapreciação da prova produzida, nem a apreciação de eventual erro de julgamento ou na aplicação do direito, sendo tais questões objeto do recurso a interpor da decisão arbitral, quando admissível, nos termos previstos nos artigos 39.º, n.º 4 e 59.º, n.º 1, al. e) da LAV[3].
Deste modo, na ação de anulação de sentença arbitral apenas cabe ao tribunal competente para o efeito apreciar fundamentos formais de validade da mesma, não comportando a reapreciação da prova produzida, nem a apreciação de eventual erro de julgamento ou na aplicação do direito.
Tal como se salienta no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 21-04-2015[4], «[a] propositura da acção de anulação no tribunal estadual não confere a este órgão jurisdicional o poder de se pronunciar sobre o objecto do litígio. A acção de anulação tem efeitos puramente cassatórios ou rescisórios, não atribuindo competência substitutiva ao tribunal, dado que o objecto da acção é, simplesmente, a decisão arbitral e não a situação material litigada, ela mesma. Caso se verifique um fundamento de anulação, o tribunal estadual deve limitar-se a anular ou a cassar a decisão arbitral, não podendo substituí-la por outra. Essa anulação pode ser meramente parcial se o fundamento da anulação se verificar só relativamente a uma parte ou um objecto da decisão que seja dissociável ou destacável do conjunto. A convenção de arbitragem não caduca com o proferimento, tanto da decisão arbitral como da decisão anulatória, continuando em vigor, no caso de anulação, em relação à controvérsia que foi objecto da decisão anulada, embora pareça - em face da regra de que o poder jurisdicional dos árbitros se extingue com a notificação de depósito da decisão - que se tem de constituir um novo tribunal arbitral (artº 25 da LAV)».
Também a propósito da delimitação dos poderes conferidos à Relação em sede de pedido de anulação de decisão arbitral, refere-se no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20-12-2017[5]: «está vedado a esta Relação emitir juízos sobre a justeza do veredito do tribunal arbitral, seja quanto à decisão de facto seja quanto à aplicação do direito. Sendo certo que cabe ao tribunal arbitral formular livremente a sua convicção, sopesando as provas apresentadas pelas partes, dando a cada uma o relevo que entender que lhe cabe, que pode ser total ou nenhum, assim como às razões e argumentos formulados pelas partes. A fiscalização do acórdão arbitral pelo tribunal estadual nessa perspetiva só seria possível se as partes tivessem salvaguardado a recorribilidade da decisão arbitral quanto ao fundo da causa (n.º 4 do art.º 39.º da LAV)».
Sustenta o impugnante que no âmbito do processo arbitral em referência foi realizada a audiência de discussão e julgamento a 18 de dezembro de 2023, através de meios telemáticos, e posteriormente foi proferida sentença, a qual foi notificada ao Impugnante a 9 de janeiro de 2024 e, portanto, extemporaneamente, atento o disposto no artigo 15.º, n.º 2 do Regulamento do CNIACC, extemporaneidade que invoca para todos os efeitos legais.
O citado artigo 46.º, n.º 3, al. a), vii) da LAV prevê, como um dos fundamentos do pedido de anulação da decisão arbitral, a seguinte circunstância: a sentença foi notificada às partes depois de decorrido o prazo máximo para o efeito fixado de acordo com ao artigo 43.º.
Atenta a pretensa irregularidade genericamente invocada pelo impugnante, poderá relevar para a questão em apreciação a análise do regime estabelecido no artigo 43.º da LAV «Prazo para proferir sentença», o qual prevê o seguinte:
1 - Salvo se as partes, até à aceitação do primeiro árbitro, tiverem acordado prazo diferente, os árbitros devem notificar às partes a sentença final proferida sobre o litígio que por elas lhes foi submetido dentro do prazo de 12 meses a contar da data de aceitação do último árbitro.
2 - Os prazos definidos de acordo com o n.º 1 podem ser livremente prorrogados por acordo das partes ou, em alternativa, por decisão do tribunal arbitral, por uma ou mais vezes, por sucessivos períodos de 12 meses, devendo tais prorrogações ser devidamente fundamentadas. Fica, porém, ressalvada a possibilidade de as partes, de comum acordo, se oporem à prorrogação.
3 - A falta de notificação da sentença final dentro do prazo máximo determinado de acordo com os números anteriores do presente artigo, põe automaticamente termo ao processo arbitral, fazendo também extinguir a competência dos árbitros para julgarem o litígio que lhes fora submetido, sem prejuízo de a convenção de arbitragem manter a sua eficácia, nomeadamente para efeito de com base nela ser constituído novo tribunal arbitral e ter início nova arbitragem.
4 - Os árbitros que injustificadamente obstarem a que a decisão seja proferida dentro do prazo fixado respondem pelos danos causados.
Tal como salienta António Sampaio Caramelo[6] a propósito do fundamento de anulação previsto no artigo 46.º, n.º 3, al. a), vii) da LAV, «[a]s partes são livres, como já eram perante a LAV de 1986, de fixar um ou vários limites temporais para a duração da arbitragem ou - o que vai dar ao mesmo - para a prolação e notificação da sentença que ponha termo àquela. Para o caso de nada se ter convencionado a esse respeito, o nº 1 do art. 43º fixa (supletivamente), o prazo de 12 meses, contado da aceitação do último árbitro, para os árbitros notificarem às partes a sentença proferida sobre o litígio. Este prazo, tal como aquele ou aqueles que as partes tiverem definido por acordo, são, em princípio, prorrogáveis pelos árbitros, de acordo com o previsto no nº 2 do mesmo artigo, isto é, por sucessivos períodos de 12 meses, devendo tais prorrogações ser devidamente fundamentadas.
(…)
Considerando que a arbitragem se baseia no princípio da autonomia das partes, o incumprimento do limite temporal impreterivelmente estabelecido pelas partes ou supletivamente fixado pela lei, implica a extinção do poder jurisdicional por elas conferido aos árbitros, constituindo um fundamento válido para a anulação da sentença proferida após essa data-limite».
Perante este enquadramento, resulta evidente que as questões genericamente suscitadas pelo impugnante a propósito da extemporaneidade da notificação da sentença não são suscetíveis de lograr enquadramento à luz dos fundamentos específicos da anulação da decisão arbitral em referência.
Com efeito, o impugnante remete expressamente para o disposto no artigo 15.º, n.º 2 do Regulamento do CNIACC, o qual não prevê qualquer prazo ou limite temporal para a duração da arbitragem, mas apenas o prazo procedimental, ou ordenador, de 15 dias, a contar da data da realização da audiência, para a notificação às partes da sentença arbitral.
Por conseguinte, atendendo ainda ao disposto no artigo 43.º, n.º 1 da LAV, não se vislumbra qualquer fundamento para anulação da decisão arbitral com base na alegada extemporaneidade da notificação da sentença.
Em sede de impugnação judicial, a ora impugnante vem ainda alegar que, carecendo os ... de personalidade jurídica e judiciária, temos que não podem aqueles Serviços ser parte em ações judiciais, competindo ao Município ... a sua representação em juízo, tanto assim é que a contestação foi apresentada pelo Município, aqui Impugnante, mas, não obstante, o Exmo. Juiz Árbitro do CNIACC identificou erradamente como “Requerido” os Serviços Municipalizados de Água e Saneamento de ....
Porém, a este propósito, o impugnante não retira qualquer consequência, em termos processuais, do que alega, mais se constatando que admite a existência de erro na identificação que consta da sentença relativamente ao requerido, o que, aliás, resulta evidenciado na fundamentação da decisão impugnada, ali se enunciando, entre o mais, que «A Requerida através dos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento de ... - ... (...) efetua o serviço de captação, tratamento e abastecimento público de água às populações, de saneamento de águas residuais urbanas».
Ademais, resulta dos autos que a contestação apresentada pelo Município ... foi admitida e considerada, nessa qualidade, no âmbito do processo arbitral em referência, o que nos remete para um manifesto erro de escrita revelado no contexto ou nas circunstâncias da respetiva fundamentação.
Ora, a invocação de qualquer erro de cálculo, erro material ou tipográfico ou qualquer erro de natureza idêntica, têm como uma das particularidades o regime de arguição perante o Tribunal Arbitral, o mesmo sucedendo relativamente a alguma obscuridade ou ambiguidade da sentença ou dos seus fundamentos, nos termos do disposto no artigo 45.º, n.ºs 1 a 4 da LAV, o que não foi feito pelo impugnante no prazo legalmente previsto.
Como tal, resulta manifesto que tal questão não pode ser suscitada no âmbito da presente impugnação, nem constitui fundamento específico de anulação da decisão arbitral em referência.
Alega a autora que o Tribunal Arbitral infringiu o dever de pronúncia sobre os pedidos formulados pelas partes, maxime não tendo apreciado a exceção de litispendência alegada pelo Impugnante, a qual deveria ter conduzido à absolvição da instância do Impugnante.
O vício invocado pelo impugnante é enquadrável no fundamento de anulação previsto no artigo 46.º, n.º 3, al. a), v) da LAV, nos termos do qual, a sentença arbitral pode ser anulada pelo tribunal estadual competente se, o tribunal arbitral condenou em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido, conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento ou deixou de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar.
No caso em apreciação, não estamos perante sentença proferida com base em acordo das partes, nos termos do artigo 41.º do LAV, sendo então o vício que a autora aponta à decisão arbitral equiparável à nulidade a que alude o artigo 615.º, al. d), do CPC.
Apreciando a questão suscitada, importa considerar que as causas de nulidade da sentença encontram-se previstas no n.º 1 do artigo 615.º do CPC, preceito nos termos do qual é nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
O fundamento da nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, deriva do incumprimento do disposto no artigo 608.º, n.º 2, do mesmo Código, do qual consta o seguinte: «O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras».
Densificando o âmbito da nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, referem Lebre de Freitas-Isabel Alexandre[7]: «[d]evendo o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer (608-2), o não conhecimento de pedido, causa de pedir ou exceção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão constitui nulidade, já não a constituindo a omissão de considerar linhas de fundamentação jurídica, diferentes da da sentença, que as partes hajam invocado (…)».
Nas palavras de Alberto dos Reis[8], «[s]ão, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão».
A par da doutrina, também a jurisprudência que entendemos de sufragar tem vindo a considerar que a referida nulidade só se verifica quando determinada questão colocada ao Tribunal - e relevante para a decisão do litígio por se integrar na causa de pedir ou em alguma exceção invocada - não é objeto de apreciação, não já quando tão só ocorre mera ausência de discussão das “razões” ou dos “argumentos" invocados pelas partes para concluir sobre as questões suscitadas[9].
Em consonância com este entendimento, pronunciou-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 3-10-2017[10], com o seguinte sumário: « (…) II - A nulidade consistente na omissão de pronúncia ou no desrespeito pelo objecto do recurso, em directa conexão com os comandos ínsitos nos arts. 608.º e 609.º do CPC, só se verifica quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões ou pretensõesque devesse apreciar e cuja apreciação lhe foi colocada. III - A expressão «questões» prende-se com as pretensões que os litigantes submetem à apreciação do tribunal e as respectivas causas de pedir e não se confunde com as razões (de facto ou de direito), os argumentos, os fundamentos, os motivos, os juízos de valor ou os pressupostos em que as partes fundam a sua posição na controvérsia».
Neste domínio, importa salientar que o conhecimento de uma questão pode fazer-se tomando posição direta sobre ela, ou resultar de ponderação ou decisão de outra conexa que a envolve ou exclui[11].
Conforme resulta da contestação apresentada pelo ora impugnante à reclamação que deu origem ao processo de arbitragem em referência, as exceções de litispendência e de falta de jurisdição foram suscitadas em conjunto.
Assim, no âmbito da arguição das referidas exceções, o ora impugnante suscitou a falta de jurisdição (ou falta de competência do Centro de Arbitragem) unicamente como consequência da invocada litispendência do processo de arbitragem com o processo de execução fiscal n.º ...22, ainda em curso, argumentando, então, que a demandante apenas podia opor-se à cobrança coerciva dos correspondentes montantes através da apresentação de oposição à execução fiscal e não mediante a reclamação apresentada junto do CNIACC, nos seguintes termos: «(…) encontra-se a decorrer, nos serviços de execução fiscal do Demandado, processo de execução fiscal n.º ...22, tendo a Demandante sido citada para o mesmo a ../../2022. 15. Querendo opor-se à cobrança coerciva dos referidos montantes, a Demandante deveria tê-lo feito no âmbito daquele processo, 16. Através de apresentação de Oposição, nos termos do artigo 204.º do Código de Procedimento e Processo Administrativo, conforme indicado na citação. 17. Pelo que não se reconhece a jurisdição deste tribunal, desde logo por se verificar a exceção de litispendência. (…)».
Tal como decorre do disposto nos artigos 580.º e 581.º do CPC, as exceções da litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa; se a causa se repete estando a anterior ainda em curso, há lugar à litispendência; se a repetição se verifica depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, há lugar à exceção do caso julgado.
Conforme prevê o n.º 2 do artigo 580.º do CPC, tanto a exceção da litispendência como a do caso julgado têm por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior.
Ligada aos institutos da litispendência e do caso julgado surge a figura da preclusão, a qual se reconduz, no direito processual, à perda de um determinado direito de intervenção no processo, por essa intervenção não ter sido objetivada oportunamente, no prazo conferido pela lei[12].
Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-12-2016[13], «[o] princípio da preclusão ou da eventualidade é um dos princípios enformadores do processo civil e o facto de não constar expressamente de nenhum preceito processual civil decorre da formulação da doutrina e encontra acolhimento no instituto da litispendência e do caso julgado - art. 580º, nº2, do Código de Processo Civil - e nos preceitos de onde decorre o postulado da concentração dos meios de alegação dos factos essenciais da causa de pedir e as razões de direito - art. 552º, nº1, d) - e das excepções, quanto à defesa - art. 573º, nº1 do Código de Processo Civil».
No caso, a decisão arbitral impugnada ponderou as questões suscitadas em conjunto pelo ora impugnante, entendendo, entre o mais, que a não dedução, pela aqui reclamante, de oposição no âmbito do processo de execução fiscal n.º ...22, não originou a preclusão do direito daquela de recorrer a outros meios de reação contra o ato de liquidação, designadamente, a invocação dos fundamentos possíveis de oposição no âmbito do processo de arbitragem necessária instaurado pela reclamante, para o qual se considerou competente.
Assim sendo, revela-se manifesto que a decisão impugnada ponderou efetivamente os argumentos invocados pelo ora impugnante no âmbito da contestação apresentada no processo de arbitragem, o que fez em moldes que necessariamente afastam ou excluem a respetiva relevância para fundamentar as exceções de litispendência e de falta de jurisdição, suscitadas em conjunto, tal como decorre da fundamentação da mesma sentença.
Em sede de impugnação, o impugnante vem ainda sustentar que a sentença arbitral em momento algum se pronunciou quer quanto ao pedido formulado pela reclamante de cancelamento dos contratos celebrados entre si e o Município ..., quer quanto à não aplicação de penalizações.
Como se vê, as questões em referência não foram suscitadas no processo de arbitragem pelo ora impugnante, que assim carece de legitimidade para as invocar nesta sede, tanto mais que a reclamante/impugnada não veio impugnar a sentença arbitral.
Ainda assim, também aqui não se vislumbra existir fundamento para o vício que o aqui impugnante aponta à decisão impugnada, porquanto se constata que a falta de apreciação de tais questões decorreu da solução dada à questão da prescrição, também invocada pela reclamante/impugnada.
Como se viu, a sentença arbitral concluiu que, estando os valores em dívida prescritos, a reclamante beneficia da faculdade de recusar o cumprimento da prestação, opondo-se, por qualquer modo, ao exercício do direito prescrito.
Em consequência, a decisão impugnada julgou totalmente procedente a ação, declarando prescrito o direito do ora impugnante ao recebimento dos montantes referentes às faturas em dívida, resultantes do contrato celebrado entre as partes.
Ora, nos termos previstos no artigo 608.º, n.º 2 do CPC, o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Deste modo, não se verifica omissão de pronúncia quando o não conhecimento de questões fique prejudicado pela solução dada a outras[14], conforme sucedeu no caso em apreciação, pelo que a decisão arbitral não pode ser anulada com fundamento em omissão de pronúncia.
Como tal, não se verifica o vício formal previsto no 46.º, n.º 3, al. a), v) da LAV.
Em conformidade, não se mostrando verificados os fundamentos de anulação suscitados pelo autor/impugnante, resta julgar improcedente a presente ação.
IV. Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a presente ação de anulação de sentença arbitral que, em consequência, se mantém na ordem jurídica.
As custas da presente ação são a cargo do autor/impugnante, que nela decaiu, nos termos do disposto no artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC.
Valor da ação: 89,14 €.
Guimarães, 05 de dezembro de 2024
(Acórdão assinado digitalmente)
Paulo Reis (Juiz Desembargador - relator)
António Figueiredo de Almeida (Juiz Desembargador - 1.º adjunto)
Afonso Cabral de Andrade (Juiz Desembargador - 2.º adjunto)
[1] Tratando-se de um elenco fechado ou taxativo de fundamentos de anulação, o pedido de anulação da decisão arbitral terá de ter necessariamente por base um dos fundamentos aí expressamente previstos - neste sentido, cf., por todos, o Ac. TRC de 17-11-2015 (relatora: Maria João Areias), proferido no p. 87/15.1YRCBR, disponível em www.dgsi.pt. [2]Cf. António Sampaio Caramelo, A Impugnação da Sentença Arbitral, 4.ª ed. rev. e aumentada, Coimbra, Almedina, 2023, p. 19 - nota 21. [3]Cf., por todos, o Ac. TRG de 10-04-2014 (relatora: Eva Almeida), proferido no p. 107/13.4YRGMR, disponível em www.dgsi.pt. [4] Relator: Henrique Antunes; p. 3486/12.7TBLRA.C1, disponível em www.dgsi.pt. [5] Relator: Jorge Leal; p. 921/17.1YRLSB-2, disponível em www.dgsi.pt. [6] Obra citada, pgs. 104-105. [7]Cf. José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, 3.ª edição, Coimbra, Almedina, 2017, p. 737. [8]Cf. Alberto dos Reis Código de Processo Civil anotado, Volume V - reimpressão - Coimbra, Coimbra-Editora, 1984, p. 143. [9]Cf. por todos, os Acs. do STJ de 8-11-2016 (relator: Nuno Cameira) - revista n.º 2192/13.0TVLSB.L1. S1- 6.ª Secção; de 21-12-2005 (relator: Pereira da Silva), revista n.º 05B2287; ambos disponíveis em www.dgsi.pt. [10] Ac. do STJ de 3-10-2017 (relator: Alexandre Reis), revista n.º 2200/10.6TVLSB.P1. S1 - 1.ª Secção, Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Secções Cíveis, p. 1, www.stj.pt/wp-content/uploads/2018/01/Civel_2017_10.pdf. [11]Cf. o Ac. do STJ de 6-06-2000 (relator: Ferreira Ramos), revista n.º 00A251, disponível em www.dgsi.pt. [12]Cf. o Ac. do STA de 11-09-2019 (relator: Casimiro Gonçalves), p. 0571/15.7BEMDL 01005/17, disponível em www.dgsi.pt. [13] Relator Fonseca Ramos, p. 1129/09.5TBVRL-H. G1. S2, disponível em www.dgsi.pt. [14] A propósito, cf., por todos, os Acs. do STJ de 29-03-2023 (relator: Mário Belo Morgado) p. 15165/19.0T8LSB.L1. S1; STJ de 08-03-2023 (relator: Ramalho Pinto), p. 5987/19.7T8LSB.L3. S1; ambos disponíveis em www.dgsi.pt.