O art.º 73º do RGCO é uma norma especial, que traduz a opção do legislador quanto à restrição do leque das decisões em processos de contraordenação que admitem recurso para o Tribunal da Relação, nas quais não se incluem as decisões que julgaram absolutamente incompetente o Tribunal Judicial de 1ª instância, em razão da matéria, para conhecer de uma execução de uma coima aplicada pela autoridade administrativa em processo contraordenacional.
Esta é a interpretação que melhor se afigura conforme à Constituição da República Portuguesa, designadamente ao disposto no seu art.º 32º, nºs 1 e 10.
“(…) Face ao exposto declaro os os tribunais judiciais absolutamente incompetente, em razão da matéria, para executarem coimas aplicadas por entidades administrativas. (este nosso entendimento mereceu confirmação do Tribunal da relação de Évora – Ac do TRE proferido no processo 319/23.2T9OLH.E1 de 07/11/2023)
A incompetência absoluta em razão da matéria verificada constitui excepção dilatória, de conhecimento oficioso e a todo o tempo, e importa a absolvição do Executado da instância, nos termos do disposto nos artigos 65º, 97º, 98º, 99º e 577º, al. a) do Código de Processo Civil.
Notifique. (…)”
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Não concordando com esta decisão, veio o Ministério Público interpor recurso para este Tribunal da Relação de Évora, pugnando pela revogação do despacho recorrido e formulando as seguintes conclusões:
“1. O presente recurso versa sobre matéria de direito, em concreto o despacho proferido pelo Tribunal a quo, o qual declarou a incompetência absoluta para executar a coima aplicada pela entidade administrativa.
2. O Ministério Público não se pode conformar com tal decisão.
3. O Ministério Público promoveu a execução do remanescente em dívida da coima da entidade administrativa, por não terem sido voluntariamente pagos os valores em dívida por parte do executado.
4. Para o efeito, o Ministério Público submeteu requerimento executivo que deu origem aos presentes autos.
5. Pelo despacho recorrido, o Tribunal a quo decidiu que é absolutamente incompetente em razão da matéria para apreciar a presente acção executiva, considerando que tal competência recai sobre a AT.
6. O mencionado despacho é susceptível de recurso.
7. O legislador não alterou o disposto nos artigos 61.º, 88.º e 89.º, do RCP, mantendo-se a competência para a execução da coima administrativa não paga junto dos Tribunais.
8. Perante a actual redação do artigo 35.º, do RCP, apenas se considera admissível que a AT tenha competência para a execução das custas da entidade administrativa. No que respeita à coima, o legislador não atribuiu essa competência à Autoridade Tributária.
9. Ao julgar que é absolutamente incompetente em razão da matéria para apreciar a acção executiva que deu origem aos presentes autos, com o devido respeito por opinião contrária, o tribunal a quo violou o disposto nos artigos 61.º, 88.º, e 89.º, do RGCO, 35.º, do RCP, e 64.º, do CPC, por força do disposto no artigo 4.º, do CPP.
10. Numa interpretação conforme com o disposto nos artigos antecedentes e demais disposições legais aplicáveis, consideramos que o tribunal recorrido não se poderia declarar materialmente incompetente para proceder à execução da coima, por se verificar que o Juízo de Competência Genérica de …, do Tribunal Judicial da Comarca de …, é territorialmente e materialmente para apreciar a presente acção executiva, devendo os autos prosseguir os seus ulteriores termos.
11. Deve, assim, ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida, determinando-se, consequentemente, que prossiga a presente execução relativamente à coima aplicada pela entidade administrativa.”
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Por despacho datado de 13/06/24, não foi admitido o recurso, por se ter considerado que a decisão não é recorrível.
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Deste despacho apresentou o Ministério Público reclamação, a qual foi atendida e o recurso apresentado admitido, por decisão do Vice-Presidente deste Tribunal da Relação de Évora, datada de 27/09/24.
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O Ministério Público nesta Relação acompanhou a posição já assumida junto da primeira instância.
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2. Fundamentação de Facto
Este recurso vem interposto da seguinte decisão:
“Iniciaram-se os presentes autos executivos com requerimento executivo apresentado pelo Ministério Publico, para cobrança de coima no valor de 97.50€, devida ao Município de ….
Estabelece o actual art.º 35º do Regulamento das custas processuais (após - Lei n.º 27/2019, de 28/03) o seguinte:
1 - Compete à administração tributária, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, promover em execução fiscal a cobrança coerciva das custas, multas não penais e outras sanções pecuniárias fixadas em processo judicial.
2 - Cabe à secretaria do tribunal promover a entrega à administração tributária da certidão de liquidação, por via eletrónica, nos termos a definir por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, juntamente com a decisão transitada em julgado que constitui título executivo quanto às quantias aí discriminadas.
3 - Compete ao Ministério Público promover a execução por custas face a devedores sediados no estrangeiro, nos termos das disposições de direito europeu aplicáveis, mediante a obtenção de título executivo europeu.
4 - A execução por custas de parte processa-se nos termos previstos nos números anteriores quando a parte vencedora seja a Administração Pública, ou quando lhe tiver sido concedido apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo.
5 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, a execução por custas de parte rege-se pelas disposições previstas no artigo 626.º do Código de Processo Civil.
A propósito da alteração legislativa que deu origem à sobre dita norma, pronunciou-se o Ministério Publico no Parecer do Ministério Publico sobre a proposta de Lei nº 149/XIII/4ª GOV enviado em 24.10.2018.
O parecer supra referido sustenta aliás a sua inteira concordância com ser retirada a competência aos tribunais judicias para proceder a cobrança de custas e coimas, manifestando unicamente a sua discordância relativamente a essa competência no que concerne à pena de multa.
Aliás e no que concerne ao disposto no art.º 89º do RGCO também o referido parecer contem menção da alteração que deveria ser feita à referida norma.
É certo que o diploma não contempla essa mesma alteração, no entanto uma interpretação sistemática do diploma (conjugada com a lei geral tributária e o código do procedimento e processo tributário) não pode deixar de considerar que a execução por coimas não cabe aos tribunais, mas antes à autoridade tributária
No âmbito aliás deste parecer, e com o intuito de de facto delimitar as competências do Ministério Publico no âmbito das execuções de origem penal ou contra ordenacional, foi referido que o art.º 148º do C.P.P.T deveria conter uma alínea c) no seu numero 2º, contendo as coimas emitidas por entidades administrativas .
A referida alínea c) limitou-se a custas, multas não penais e sanções pecuniárias em processo judicial.
Porém a norma constante do nº1º, alínea b) da referida norma contempla as coimas aplicadas em decisões e sentenças, onde incluímos obviamente as coimas de entidades administrativas ou as coimas aplicadas em por sentença após recurso de impugnação judicial de decisão administrativa.
É aliás tal facto também referido no 1. Parecer do Ministério Publico n.º 27/2020, de 04-10 que refere o seguinte:
“Cobrança das custas fixada na fase administrativa do processo contraordenacional.
1.ª Na sua versão original, o Regime Geral das Contraordenações remetia a execução das custas para o disposto nos artigos 171.º e seguintes do Código das Custas Judiciais, assim atribuindo ao Ministério Público competência para promover a sua execução junto dos tribunais judiciais (artigo 202.º, n.º 2, daquele Código);
2.ª Esta solução, apesar das inúmeras alterações legislativas que enfrentou, manteve-se quase inalterada até a entrada em vigor da Lei n.º 27/2019, de 28 de março, relativa a aplicação do processo de execução fiscal a cobrança coerciva das custas, multas não penais e outras sanções pecuniárias fixadas em processo judicial;
3.ª Com efeito, considerando a natureza tributária das custas e seguindo o exemplo da jurisdição administrativa e fiscal, o legislador inverteu aquele paradigma, remetendo para a execução fiscal a cobrança coerciva das custas fixadas em processo judicial;
4.ª Para esse efeito, a Lei n.º 27/2019, de 28 de março, alterou o Código de Procedimento e de Processo Tributário que passou a dispor que «Poderão ser igualmente cobradas mediante processo de execução fiscal, nos casos e termos expressamente previstos na lei: [...] Custas, multas não penais e outras sanções pecuniárias fixadas em processo judicial [artigo 148.º, n.º 2, alª c)];
5.ª Bem como o artigo 35.º, n.º 1, do Regulamento das Custas Processuais, que sob a epígrafe «execução», passou a dispor que: «Compete a administração tributária, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, promover em execução fiscal a cobrança coerciva das custas, multas não penais e outras sanções pecuniárias fixadas em processo judicial»;
6.ª Embora nem a Lei n.º 27/2019, de 28 de março, nem as normas que ela alterou, o digam expressamente, deve entender-se que este regime é aplicável as custas fixadas na fase administrativa do processo de mera ordenação social, competindo a Administração Tributária proceder a sua cobrança coerciva;
7.ª Desde logo, porque, continuando o artigo 92.º, n.º 1, do Regime Geral das Contraordenações, a remeter para os preceitos reguladores das custas em processo criminal, será aqui aplicável o disposto no artigo 35.º do Regulamento das Custas;
8.ª Depois, porque, atenta a sua natureza, tais custas estão incluídas no âmbito do artigo 148.º, n.º 1, al.ª a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, segundo o qual o processo de execução fiscal abrange, para além do mais, a cobrança coerciva de taxas, demais contribuições financeiras a favor do Estado, adicionais cumulativamente cobrados, juros e outros encargos legais;
9.ª Em terceiro lugar, porque, em vez de atribuir ao juízo ou tribunal que as tenha proferido competência para executar as decisões relativas a multas, custas e indemnizações previstas na lei processual aplicável, o legislador passou a atribuir-lhe, apenas, competência para a execução das decisões relativas a multas penais e indemnizações previstas na lei processual aplicável(artigo 131.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário);
10.ª Em quarto lugar, porque o legislador restringiu os poderes do Ministério Público, maxime o poder de promover a execução por custas, conferindo-lhe, agora, apenas, competência para promover a execução das penas e das medidas de segurança e, bem assim, a execução por indemnização e mais quantias devidas ao Estado ou a pessoas que lhe incumba representar judicialmente (artigo 469.º do Código de Processo Penal);
11.ª Finalmente, porque o legislador eliminou a referência a execução por custas, que constava do artigo 491.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, passando a mesma a ser da competência exclusiva da Administração Tributária;
12.ª Com estas alterações, para além de ter atribuído a Administração Tributária competência para proceder a cobrança coerciva das custas, o legislador eliminou as normas que antes atribuíam ao Ministério Público competência para promover a sua execução e aos tribunais judiciais competência para a tramitar;
13.ª Desta forma, o artigo 148.º, n.º 1, al.ª a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, passou a incluir a cobrança da taxa de justiça e dos encargos legais, que, por força de disposições legais especiais, antes lhe estava subtraída; e
14.ª Se as entidades administrativas remeterem ao Ministério Público expediente destinado a cobrança de custas fixadas em processo de contraordenação, tal expediente deverá, por mera economia de meios, ser reencaminhado diretamente a Autoridade Tributária, com conhecimento ao remetente.
O parecer supramente citado, descreve a restrição da competência do ministério publico, circunscrevendo-a unicamente a multas penais e indemnizações arbitradas em processo penal.
Não podemos deixar ainda de trazer à colação o seguinte:
O Código de procedimento e processo tributário, no seu art.º 148º, nº1º, alínea b), estatui: “O processo de execução fiscal abrange a cobrança coerciva das seguintes dívidas: b) Coimas e outras sanções pecuniárias fixadas em decisões, sentenças ou acórdãos relativos a contra-ordenações tributárias, salvo quando aplicadas pelos tribunais comuns.
A questão da competência dos tribunais ou da administração tributária para proceder à cobrança de coimas aplicadas por entidades administrativas, tem pois que ser solucionada através de um processo de interpretação, uma vez que, as alterações sugeridas pelo Ministério Publico no parecer de 24.10.2018, relativamente à norma constante do art.º 89º do RGC não sofreram acolhimento na lei.
Nesta interpretação jurídica temos em conta elementos, meios, factores ou critérios que devem utilizar-se harmónica e não isoladamente, socorrendo-nos de elementos lógicos com os quais se tenta determinar o espírito da lei, a sua racionalidade ou a sua lógica.
Estes elementos lógicos agrupam-se em três categorias:
a) elemento histórico que atende à história da lei (trabalhos preparatórios, elementos do preâmbulo ou relatório da lei e occasio legis [circunstâncias sociais ou políticas e económicas em que a lei foi elaborada];
b) o elemento sistemático que indica que as leis se interpretam umas pelas outras porque a ordem jurídica forma um sistema e a norma deve ser tomada como parte de um todo, parte do sistema;
c) elemento racional ou teleológico que leva a atender-se ao fim ou objectivo que a norma visa realizar, qual foi a sua razão de ser (ratio legis).
Aplicando estes elementos à analise da Lei Lei n.º 27/2019, de 28 de Março, a qual se encontra sumariada da seguinte forma: “Aplicação do processo de execução fiscal à cobrança coerciva das custas, multas não penais e outras sanções pecuniárias fixadas em processo judicial, procedendo à sétima alteração à Lei da Organização do Sistema Judiciário, trigésima terceira alteração ao Código de Procedimento e de Processo Tributário, sétima alteração ao Código de Processo Civil, décima terceira alteração ao Regulamento das Custas Processuais, trigésima terceira alteração ao Código de Processo Penal, quarta alteração ao Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade e segunda alteração ao Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro”, conjugando com o parecer do Ministério Publico sobre a proposta de Lei nº 149/XIII/4ª GOV enviado em 24.10.2018, com as referências já mencionadas, bem como o art.º 148º, nº1º alínea b) e nº2º alínea c) do Código do Procedimento e Processo Tributário, entendemos que o legislador quis concentrar na administração tributária toda a cobrança de valores pecuniários, com excepção da quantia relativa à pena de multa ou indemnização arbitrada em processo penal (competência que se mantêm no Ministério Publico), uma vez que estas assumem relevância penal, seja para determinação do cumprimento de condição da suspensão, seja para extinção da pena de multa ou sua conversão em prisão subsidiária.
Face ao exposto declaro os os tribunais judiciais absolutamente incompetente, em razão da matéria, para executarem coimas aplicadas por entidades administrativas. (este nosso entendimento mereceu confirmação do Tribunal da relação de Évora – Ac do TRE proferido no processo 319/23.2T9OLH.E1 de 07/11/2023)
A incompetência absoluta em razão da matéria verificada constitui excepção dilatória, de conhecimento oficioso e a todo o tempo, e importa a absolvição do Executado da instância, nos termos do disposto nos artigos 65º, 97º, 98º, 99º e 577º, al. a) do Código de Processo Civil.
Notifique.
-Existindo alguma penhora nos autos proceda ao seu imediato cancelamento.
- Existindo valores pagos proceda a notificação do executado com informação dos respectivos valores.
- Dê conhecimento à entidade administrativa do presente despacho.
- Remeta os autos à conta.
Mais se consigna que o Tribunal da Relação de Évora tem decidido sucessivamente pela irrecorribilidade do presente despacho.”
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3. Conhecendo de direito
Nos presentes autos, estamos perante o recurso de uma decisão que julgou absolutamente incompetente o Tribunal Judicial de 1ª instância, em razão da matéria, para conhecer de uma execução de uma coima aplicada pela autoridade administrativa em processo contraordenacional, considerando ser competente para o efeito a Administração Tributária.
Antes de se conhecer do mérito do recurso, importa saber se a decisão em apreço é ou não recorrível, sendo que a jurisprudência deste Tribunal da Relação de Évora não tem uma posição unânime sobre a recorribilidade deste tipo de decisões.
Os autos em causa têm por objecto a execução de uma coima, aplicada no âmbito do processo de contraordenação nº …, pelo Município de …, no valor de 97,50 euros, por infração de natureza estradal.
Em face do objecto do processo, dúvidas não podem haver de que o regime jurídico dos recursos aplicável à decisão em apreço é o que resulta do Regime Geral das Contraordenações (RGCO), previsto no DL nº 433/82, de 27/10.
Quanto aos recursos para o Tribunal da Relação no âmbito dos processos de contraordenação, dispõe o art.º 73º, nºs 1 e 2 do RGCO, que:
“1- Pode recorrer-se para a Relação da sentença ou do despacho judicial proferidos nos termos do artigo 64º quando:
a) For aplicada ao arguido uma coima superior a € 249,40;
b) A condenação do arguido abranger sanções acessórias;
c) O arguido for absolvido ou o processo for arquivado em casos em que a autoridade administrativa tenha aplicado uma coima superior a € 249,40 ou em que tal coima tenha sido reclamada pelo Ministério Público;
d) A impugnação judicial for rejeitada;
e) O tribunal decidir através de despacho não obstante o recorrente se ter oposto a tal.
2 - Para além dos casos enunciados no número anterior, poderá a relação, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, aceitar o recurso da sentença quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência.”
No caso dos autos, constata-se desde logo que não estamos em presença de um recurso de uma sentença, nem de um despacho judicial proferido nos termos do art.º 64º do RGCO.
Por outro lado, o recurso em apreço não tem previsão em nenhuma das alíneas do nº 1 da norma citada, nem foi formulado requerimento nos termos do nº 2 da mesma norma.
Diz-nos o art.º 74º, nº 4 do RGCO que o recurso seguirá a tramitação do recurso em processo penal, tendo em conta as especialidades que resultam do RGCO.
Só que este preceito remete expressamente, e apenas, para as normas relativas à forma de tramitação dos recursos previstas no Cód. Proc. Penal, e supletivamente no Cód. Proc. Civil, por via da remissão do art.º 4º daquele diploma.
Quanto à determinação de quais são as decisões recorríveis temos uma norma especial para o efeito que é o art.º 73º do RGCO, onde se estabelece taxativamente quais são as situações em que é admissível o recurso para a Relação das decisões proferidas em processo de contraordenação.
Também não é por via do disposto no art.º 89º, nº 2 do RGCO que se poderá admitir o recurso da decisão em apreço, porquanto o que se prevê nesta norma é que se aplicam à fase processual da execução da coima as disposições do Cód. Proc. Penal relativas à execução da multa, com as necessárias adaptações, designadamente o previsto nos arts.º 491º e 510º e, subsidiariamente, as disposições do Cód. Proc. Civil e do Regulamento das Custas Processuais, nada aí se referindo a propósito da recorribilidade ou irrecorribilidade das decisões.
Da articulação de todas estas normas decorre que não estamos em presença de nenhuma lacuna do RGCO que tenha que ser preenchida através do recurso ao Cód. Proc. Penal, nos termos do art.º 41º, nº 1 do diploma, ou ainda, subsidiariamente, ao Cód. Proc. Civil.
Na verdade, o art.º 73º do RGCO configura uma norma especial, que traduz a opção do legislador quanto à restrição do leque das decisões em processos de contraordenação que admitem recurso para o Tribunal da Relação.
Esta é, aliás, a interpretação que melhor se afigura conforme à Constituição, pois o art.º 32º da CRP, nos seus nºs 1 e 10, estabelece que o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso, enquanto que nos processos de contra-ordenação devem ser apenas assegurados ao arguido os direitos de audiência e de defesa.
E tanto assim é, que se pode ler no preâmbulo do RGCO que foi efectivamente opção do legislador conferir ao direito de ordenação social um estatuto e um enquadramento distintos e autónomos do direito penal, o qual é chamado apenas à integração de lacunas, sempre que o contrário não resulte do próprio diploma, como é manifestamente expresso no seu art.º 41º, nº 1.
Daqui resulta que não se podem importar para o regime jurídico contra-ordenacional as exigências do direito penal, nomeadamente as exigências de recorribilidade das decisões, porque para isso temos a norma expressa do art.º 73º do RGCO.
Não obstante, como se referiu, o Tribunal da Relação de Évora não tem uma posição unânime sobre este assunto.
No sentido da admissibilidade do recurso, por aplicação subsidiária aos processos de contraordenação das normas do Cód. Proc. Penal, vejam-se os acórdãos deste TRE datado de 7/11/2023, proferido no processo nº 319/23.2T9OLH.E1, em que foi relator Carlos Campos Lobo, datado de 7/11/23, proferido no processo nº 107/23.6T9OLH.E1, em que foi relator Jorge Antunes, datado de 20/02/24, proferido no processo nº 45/22.5T9OLH.E1 , em que foi relator Jorge Antunes, e a decisão sumária datada de 5/02/24, proferida no processo nº 154/23.8T9OLH.E1, em que foi relatora Maria Clara Figueiredo, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
No sentido do por nós defendido vejam-se, entre outras, as seguintes decisões, todas disponíveis in www.dgsi.pt:
- decisão sumária datada de 29/11/2023, proferida no processo nº 82/23.1T9OLH.E1, em que foi relator Moreira das Neves: “(…) Os recursos das decisões judiciais proferidas nos processos contraordenacionais são apenas os previstos no artigo 73.º do RGC.
V. Não sendo admissível recurso do despacho judicial em que se declara a incompetência material do Juízo respetivo para a execução da coima de 45€ e das custas que não foram pagas voluntariamente.” (…) salvo em processo penal, inexiste um direito fundamental ao recurso de toda e qualquer decisão jurisdicional, podendo o legislador, nomeadamente em sede contraordenacional restringir esse direito, para garantia de outros valores constitucionais.
Ora o artigo 73.º do RGC serve justamente para separar o que deve ser separado, elencando as decisões dos Juízos de 1.ª instância que são recorríveis para os Tribunais de Relação - não as sendo as demais.
E como se pode ver no extratado artigo 73.º, ali se não prevê o recurso dos despachos jurisdicionais que nesta fase menor do processo (menor apenas por não estar já em causa a condenação ou a absolvição referente ao ilícito) declarem a incompetência absoluta do Tribunal.(…).”
- o voto de vencida de Ana Bacelar ao acórdão deste TRE, datado de 7/11/2023, proferido no processo nº 319/23.2T9OLH.E1, nos seguintes termos:“(…) A decisão judicial que suscita a interposição de recurso pelo Ministério Público nos presentes autos, é de incompetência em razão da matéria, proferida por Senhora Juíza do Tribunal de …. E de afirmação da competência da Autoridade Tributária para o processo executivo.
E esta decisão é insuscetível de recurso.
Desde logo face à previsão do artigo 73.º acabado de transcrever.
Depois, porque em processo contraordenacional não é constitucionalmente imposta a consagração da possibilidade de recurso de todas as decisões judiciais – especialmente no que respeita a decisões não condenatórias, como é o caso presente.
E não decorrendo da Constituição a garantia de um grau de recurso em matéria de processos contraordenacionais declarativos, por maioria de razão se deverá entender não decorrer também tal garantia no que respeita à fase executiva das sanções administrativas. – Cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 508/2016, de 21 de setembro de 2016 e acessível em www.tribunalconstitucional.pt
Entendimento diverso, como é o propugnado no acórdão de que divirjo, permite que numa fase menos importante do processo contraordenacional – a executiva – se confira aos intervenientes processuais direitos [nomeadamente, o de recurso] que a fase processual anterior e predominante não consente.
Entendo, pois, que a decisão de incompetência material supra referida não consente recurso.
E que a decisão a proferir nestes autos, de forma sumária, deveria ser de rejeição do recurso interposto pelo Ministério Público.”;
- acórdão deste TRE, datado de 9/01/24, proferido no processo nº 516/23.0T9OLH.E1, em que foi relatora Fátima Bernardes:“ Não é recorrível o despacho judicial que declara a incompetência do Tribunal, em razão da matéria, para apreciar a execução por coima instaurada pelo Ministério Público - tendo-se considerado caber essa competência à Autoridade Tributária -, decretando a absolvição do executado da instância.”(…) O Tribunal Constitucional, já por diversas vezes, se pronunciou no sentido de não ser inconstitucional a interpretação da norma ínsita no artigo 73º do RGCO, ao estabelecer limites ao direito de recurso (Cf., entre outros, Acórdãos do TC n.º 508/2016, de 21/09/2016, nº 355/2012, de 05/07/2012 e n.º 659/2006, de 28/11/2006, acessíveis in https://www.tribunalconstitucional.pt.) A este propósito escreve-se no Acórdão do TC n.º 508/2016 – estando em causa o recurso de decisões de indeferimento de requerimentos apresentados ao tribunal de 1ª instância, pelos recorrentes, na fase na execução das coimas aplicadas em processos contraordenacionais – «(...) em processo contraordenacional - onde a Constituição não impõe a garantia de um grau de recurso – não é constitucionalmente imposta a consagração da possibilidade de recurso de todas as decisões judiciais – especialmente no que respeita a decisões não condenatórias, como é o caso dos presentes autos. Nesse sentido, aponta, de resto, a letra do n.º 10 do artigo 32.º da Constituição, o qual dispõe que se assegura ao arguido em processos de contraordenação os direitos de audiência e defesa, omitindo qualquer referência a demais sujeitos processuais.
Por estes motivos (...), não decorrendo da Constituição a garantia de um grau de recurso em matéria de processos contraordenacionais declarativos, por maioria de razão se deverá entender não decorrer também tal garantia no que respeita à fase executiva das sanções administrativas.»
Sendo certo que a assinalada orientação do Tribunal Constitucional respeita a situações em que estava em causa o direito ao recurso por parte do arguido/condenado/executado, não existem razões, antes pelo contrário, para que, seja arredada quando se trate de recurso interposto por outro sujeito processual, no caso o Ministério Público.
Entendemos, assim, não ser recorrível o despacho judicial que declara a incompetência do tribunal, em razão da matéria, para apreciar a execução por coima, instaurada pelo Ministério Público – tendo-se considerado caber essa competência à Autoridade Tributária –, decretando a absolvição do executado da instância.
Em face do decidido na 1.ª instância, o Ministério Público poderá, se assim o entender, requerer a remessa do processo executivo à Administração Tributária e se tal acontecer, esta entidade poderá adotar uma de duas posições: aceitar a competência ou declarar também a sua incompetência. Adotando a AT a primeira posição, a situação ficaria ultrapassada. Pelo contrário se a AT recusasse a competência, configurar-se-ia um conflito de jurisdição (cf. artigo 109º, n.º 1, do CPC), também designado, por alguma doutrina, de conflito de função[8], recaindo a competência para dele conhecer, ao presidente do STJ, com a faculdade de delegação nos vice-presidentes (cf. artigo 110º, n.º 1, do CPC e 62º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto – Lei da Organização do Sistema Judiciário), sendo aplicável o regime processual previsto nos artigos 111º a 113º do CPC.(…).”;
- acórdão deste TRE datado de 20/02/24, proferido no processo nº 143/23.2T9OLH.E1, em que foi relatora Fátima Bernardes;
- acórdão deste TRE datado de 27/02/24, proferido no processo nº 313/23.3T9OLH.E1, em que foi relatora Beatriz Borges: “I - Não é recorrível o despacho judicial que declara a incompetência do Tribunal, em razão da matéria, para apreciar a execução por coima instaurada pelo Ministério Público - tendo-se considerado caber essa competência à Autoridade Tributária -, decretando a absolvição do executado da instância.
II - As contraordenações possuem natureza substantiva própria, o seu regime processual é autónomo, os recursos têm, nesse regime, uma previsão restrita e específica, sendo inadequado e incorreto transportar para aí “regimes recursivos” oriundos de outros sistemas normativos (processual penal ou processual civil), para além do mais no contexto da fase executiva da coima.” Da leitura do normativo transcrito emerge desde logo que mesmo na fase judicial (2.ª fase), na qual são concedidas inúmeras garantias processuais ao arguido, este apenas pode interpor recurso da decisão judicial para o Tribunal da Relação, nos casos taxativamente assinalados no artigo 73.º do RGCO.
Surgiria, pois, como desprovido de lógica admitir-se a interposição de recurso na fase executiva de toda e qualquer decisão, quando na fase judicial (por alguns também reportado como “processo contraordenacional declarativo”), muito mais garantística, essa possibilidade se encontra fortemente limitada, designadamente pelo valor da coima.(…)
A interpretação da lei atendendo, ainda, ao mesmo elemento sistemático não se queda por aqui, pois se no processo penal a regra geral é a da recorribilidade das decisões (artigo 399.º do CPP), incluindo as proferidas na “execução por multa”, já no regime contraordenacional a regra é exatamente a inversa, isto é, a da irrecorribilidade das decisões. O recurso só é admissível, como já se deixou assinalado, nas situações excecionais previstas no artigo 73.º do RGCO, sendo por isso logicamente irrecorríveis todas as decisões proferidas na fase da “execução por coima”.(…)
(…) Em suma: as contraordenações possuem natureza substantiva própria, o seu regime processual é autónomo, os recursos têm, nesse regime, uma previsão restrita e específica, sendo inadequado e incorreto transportar para aí “regimes recursivos” oriundos de outros sistemas normativos (processual penal ou processual civil), para além do mais no contexto da fase executiva da coima.(…)”;
- decisão sumária deste TRE datada de 18/11/24, proferida no processo nº 140/23.8T9OLH.E1, em que foi relatora Helena Bolieiro.
No mesmo sentido, foi proferida a decisão sumária, não publicada, datada de 27/09/24, no processo nº 395/22.5T9OLH.E1, em que foi relatora Carla Oliveira.
Em conclusão, entendemos não ser recorrível a decisão judicial em apreço, pelo que deve o recurso interposto pelo Ministério Público ser rejeitado, em conformidade com o previsto nos arts.º 405º, nº 4, 414º, nº 2, 417º, nº 6, alínea b), 420º, nº 1, alínea b) e nº 2 do Cód. Proc. Penal, aplicáveis por remissão do art.º 74º, nº 4 do RGCO.
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4. Decisão
Em face de tudo o exposto, decide-se rejeitar o recurso interposto, não se conhecendo o mesmo.
Sem custas.
Évora, 30/11/24