RECLAMAÇÃO CONTRA DESPACHO QUE NÃO ADMITIR OU RETIVER RECURSO
TRIBUNAL DO TRABALHO
COIMA
Sumário

1 – Sendo aplicada uma coima igual/inferior a 25 UC desacompanhada de condenação em sanção acessória, no regime das contra-ordenações laborais não é admissível recurso, excepto se, sob requerimento do arguido ou do Ministério Público, se afigure que tal é manifestamente necessária à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência.
2 – A admissibilidade de recurso por ser “manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito” (n.º 2 do referido artigo 49.º) apenas se justificará quando o juiz incorre em erro grosseiro, juridicamente insustentável na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos, não se destinando a corrigir eventuais erros de julgamento.
3 – Para ser admitido o recurso ao abrigo do n.º 2 do artigo 49.º do Regime Processual aplicável às Contra-Ordenações Laborais e de Segurança Social, teria o recorrente de fazer preceder tal recurso de requerimento prévio sobre o qual recairia decisão sobre a manifesta melhoria da aplicação do direito ou, no mínimo, indicar no próprio requerimento de interposição da impugnação por via recursal os fundamentos que são susceptíveis de preencher a cláusula geral em causa.
4 – A invocação, em primeira da mão, da questão em sede de reclamação constitui uma questão nova, que obsta à admissão do recurso, dado que tal fundamento tem de ser invocado, sob pena de preclusão, no prazo do recurso.
(Sumário do Relator)

Texto Integral

Processo n.º 4324/22.8T8STB-B.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal – Juízo do Trabalho de Setúbal – J1
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I – Relatório:
“(…), Construções Unipessoal Lda.” veio reclamar do despacho de não admissão do recurso por si interposto, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 405.º do Código de Processo Penal, aplicável ex vi do n.º 4 do artigo 50.º da Lei n.º 107/2009, de 14/09.
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Por sentença datada de 09/10/2023, a arguida foi condenada pela prática de uma contra-ordenação grave, p. e p. pelos artigos 15.º, n.º 7, do Regulamento (CEE) n.º 3821/85, do Conselho de 20 de Dezembro, 25.º, n.º 1, alínea a), e 14, n.º 4, alínea a), e 25.º, n,º 1, alínea a), da Lei n.º 27/2010, de 30 de Agosto, na coima de 20 UC`s.
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Foi interposto recurso dessa decisão.
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O recurso não foi admitido, fundamentando o Tribunal a quo a sua posição na circunstância de ser «não ser admissível o recurso da decisão proferida», em razão do valor da coima aplicada.
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Foi apresentada a presente reclamação, que, na sua parte relevante, sustenta que «o recurso é também admissível, nos termos do n.º 2 do mesmo diploma, quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência».
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II – Dos factos com interesse para a decisão:
Os factos com interesse para a justa decisão do litígio são os que constam do relatório inicial.
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III – Enquadramento jurídico:
Estamos num domínio onde é aplicável quer o Regime Geral das Contra-Ordenações, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, quer o Regime Processual Aplicável às Contra-Ordenações Laborais e de Segurança Social, aprovado pela Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro, e depois actualizado pelas Leis n.ºs 63/2013, de 27 de Agosto e 55/2017, de 17 de Julho.
Do despacho que não admitir ou que retiver o recurso, o recorrente pode reclamar para o presidente do Tribunal a que o recurso se dirige, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 405.º[1] do Código de Processo Penal, por força do disposto nos artigos 60.º[2] do Regime Processual Aplicável às Contra-Ordenações Laborais e de Segurança Social e 32.º[3] do Regime Geral das Contra-Ordenações.
A matéria da recorribilidade é prevista no artigo 49.º[4] do Regime Processual aplicável às Contra-Ordenações Laborais e de Segurança Social, que apenas admite recurso quando for aplicada ao arguido uma coima superior a 25 UC ou valor equivalente, tal como resulta da alínea a) do n.º 1 do preceito em análise.
Isto significa que, em razão do valor, a situação em apreço não admitiria recurso. Ainda assim, ao abrigo do n.º 2 da norma sub judice, o Tribunal poderá aceitar o recurso da decisão quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência.
A admissibilidade de recurso por ser “manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito” (n.º 2 do referido artigo 49.º) apenas se justificará quando o juiz incorre em erro grosseiro, juridicamente insustentável na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos, não se destinando a corrigir eventuais erros de julgamento[5].
A “melhoria da aplicação do direito” pressupõe que se esteja perante uma questão “que seja manifestamente complexa, de difícil resolução, na doutrina e na jurisprudência, e cuja subsunção jurídica imponha um importante e detalhado exercício de exegese, com o objectivo de se vir a obter um consenso quanto à provável interpretação das normas à mesma aplicáveis”, ou seja, uma questão que apresente uma dignidade ou importância que extravase o caso concreto[6].
De facto, este meio excepcional não pode servir para ultrapassar a impossibilidade legal de se aceder ao recurso nos casos em que o valor da coima não o permite. Na verdade, este mecanismo tem carácter excepcional, subjazendo-lhe um interesse mais vasto de ordem pública e não só daquele caso concreto, com vista à estabilidade e coerência do sistema jurídico que deve preconizar soluções que melhor contribuam para a igualdade dos cidadãos perante a lei[7].
Porém, para ser admitido o recurso para melhoria do direito, em processo de contraordenação, teria o recorrente de fazer preceder tal recurso de requerimento prévio sobre o qual recairia decisão sobre a manifesta melhoria da aplicação do direito[8] [9].
Este requerimento não foi feito e, ainda que numa visão menos rígida, por aplicação do princípio da adequação formal, nos circunscrevêssemos ao articulado de recurso, da leitura da referida peça processual resulta que este argumentário não consta da fundamentação.
E, assim, nesse quadro, trata-se de uma questão nova levantada em sede de reclamação e isso é obstáculo à admissão do recurso. Com efeito, tal fundamento tem de ser invocado, sob pena de preclusão, no prazo do recurso[10].
Na lição de Wladimir Brito, a preclusão pode ser causada pelo exercício do acto, que não pode ser renovado. Ou seja, aquele exercício consome o direito de vir a praticar de novo o mesmo acto. Trata-se aqui de uma preclusão consumptiva[11].
As garantias do processo sancionatório que decorrem do n.º 10 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa são aplicáveis ao processo de contra-ordenação quanto aos direitos de audiência e de defesa, mas não comportam necessariamente um direito ao duplo grau de jurisdição.
Efectivamente, no direito das contraordenações rege o princípio da irrecorribilidade das decisões, sendo estas recorríveis apenas nos casos previstos na lei, podendo afirmar-se que as normas em apreço assumem a natureza jurídica das normas excepcionais.
Por conseguinte, mantém-se o despacho reclamado, indeferindo-se a reclamação apresentada.
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IV – Sumário: (…)
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V – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção as considerações expendidas e o quadro legal aplicável, mantém-se o despacho reclamado, não se admitindo o recurso interposto.
Custas a cargo da arguida, fixando a taxa de justiça em 2 Uc´s.
Notifique.
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Processei e revi.
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Évora, 02/12/2024
José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho

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[1] Artigo 405.º (Reclamação contra despacho que não admitir ou que retiver o recurso):
1 - Do despacho que não admitir ou que retiver o recurso, o recorrente pode reclamar para o presidente do tribunal a que o recurso se dirige.
2 - A reclamação é apresentada na secretaria do tribunal recorrido no prazo de 10 dias contados da notificação do despacho que não tiver admitido o recurso ou da data em que o recorrente tiver tido conhecimento da retenção.
3 - No requerimento o reclamante expõe as razões que justificam a admissão ou a subida imediata do recurso e indica os elementos com que pretende instruir a reclamação.
4 - A decisão do presidente do tribunal superior é definitiva quando confirmar o despacho de indeferimento. No caso contrário, não vincula o tribunal de recurso.
[2] Artigo 60.º (Direito subsidiário):
Sempre que o contrário não resulte da presente lei, são aplicáveis, com as devidas adaptações, os preceitos reguladores do processo de contra-ordenação previstos no regime geral das contra-ordenações.
[3] Artigo 32.º (Do direito subsidiário)
Em tudo o que não for contrário à presente lei aplicar-se-ão subsidiariamente, no que respeita à fixação do regime substantivo das contra-ordenações, as normas do Código Penal.
[4] Artigo 49.º (Decisões judiciais que admitem recurso):
1 - Admite-se recurso para o Tribunal da Relação da sentença ou do despacho judicial proferidos nos termos do artigo 39.º, quando:
a) For aplicada ao arguido uma coima superior a 25 UC ou valor equivalente;
b) A condenação do arguido abranger sanções acessórias;
c) O arguido for absolvido ou o processo for arquivado em casos em que a autoridade administrativa competente tenha aplicado uma coima superior a 25 UC ou valor equivalente, ou em que tal coima tenha sido reclamada pelo Ministério Público;
d) A impugnação judicial for rejeitada;
e) O tribunal decidir através de despacho não obstante o recorrente se ter oposto nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 39.º.
2 - Para além dos casos enunciados no número anterior, pode o Tribunal da Relação, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, aceitar o recurso da decisão quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência.
3 - Se a sentença ou o despacho recorrido são relativos a várias infracções ou a vários arguidos e se apenas quanto a alguma das infracções ou a algum dos arguidos se verificam os pressupostos necessários, o recurso sobe com esses limites.
[5] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 25/10/2024, pesquisável em www.dgsi.pt.
[6] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19/12/2023, consultável em www.dgsi.pt.
[7] Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 23/04/2020, acessível em www.dgsi.pt.
[8] Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15/01/2003, disponibilizado em www.dgsi.pt.
[9] Sobre este assunto pode ainda ser consultado Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Regime Geral das Contra-Ordenações à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, página 303 – parágrafos 23 a 26 – a propósito do artigo 73.º, n.º 2, do Regime Geral de Contraordenações e Coimas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, mas que tem redação idêntica ao artigo 49.º, n.º 2, aqui em análise.
[10] Decisão singular do Tribunal da Relação de Coimbra de 21/09/2023, cuja leitura pode ser realizada em www.dgsi.pt.
[11] Wladimir Brito, Teoria Geral do Processo, Almedina, Coimbra, 2019, pág. 302.