IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
IN DUBIO PRO REO
Sumário

- Não impugna correctamente a matéria de facto o recorrente que se limita a interpretar de forma diferente do Tribunal a quo o que resulta do seu depoimento e do depoimento das testemunhas.
- Não impugna correctamente a matéria de facto o recorrente que, pese embora tenha individualizado os concretos pontos de facto que considera terem sido mal julgados, não individualizou as partes dos depoimentos, seu e das testemunhas inquiridas, que o Tribunal de recurso deveria ouvir.
- Se em audiência de julgamento o Tribunal a quo não procedeu à leitura das declarações prestadas pela arguida e pelas testemunhas em fases anteriores do processo, as quais não serviram para formar a convicção do Tribunal e para fundamentar a decisão recorrida, não podem tais declarações ser consideradas e apreciadas em sede de recurso, em obediência aos princípios do contraditório e da proibição de valoração das provas.
- Para que haja violação do princípio do in dubio pro reo é preciso que, perante uma dúvida inultrapassável sobre factos essenciais para a decisão da causa, o julgador decida em desfavor do arguido.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
1 – Relatório

No processo nº 666/22.0T9ABF do Tribunal Judicial da Comarca de …, Juízo Local Criminal de … - Juiz …, por sentença datada de 13/06/2024, foi a arguida AA condenada pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de difamação agravada, p. e p. pelos arts.º 180º, nº 1 e 184º do Cód. Penal, na pessoa do ofendido BB, professor/membro da comunidade escolar, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de € 12,00, o que perfaz o quantitativo global de € 720,00.

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Inconformada com a decisão condenatória, veio a arguida interpor recurso, pedindo a sua absolvição e formulando as seguintes conclusões:

“1. Compulsada a matéria de facto dada como provada, sobressai o ponto 5, onde o tribunal a quo dá como provado que “No decorrer de tal reunião, a arguida AA dirigiu-se à Directora de Turma CC, referindo-se ao ofendido BB e disse “Esse professor é um tarado sexual” e “um tarado destes não pode dar aulas”.”

2. Entende a Arguida que mal andou o douto Tribunal a quo ao dar como provado tal facto, na medida em que este não vem corroborado com certeza e segurança pela única Testemunha – CC, que, aliás, foi variando no tempo e no processo (Inquérito e Julgamento), as expressões/palavras atribuídas à Arguida, relevando igualmente que, naqueles moldes, a Arguida nega que alguma vez as haja expresso, coerente sendo, a Arguida, no tempo e no processo.

3. Nada permite conferir credibilidade à Testemunha CC, que um diz diz uma coisa, e no outro dia diz outra, tanto que, em sede de Inquérito, diz que a Arguida lhe referiu que “o professor BB era um abusador de crianças e não deveria lecionar e lidar com crianças”, e trazia uma queixa elaborada e assinada pelo seu ex-marido, acrescentando a Testemunha, cfr. auto de Inquirição em sede de Inquérito, que era comum as alunas da escola denunciarem os professores de educação física por toques e comportamentos abusivos, tanto que os professores agora se recusam a apoiar as alunas durante os exercícios de ginástica, e que a Arguida ali foi ter com ela para que falasse com as alunas e descobrir a verdade, e já em sede de Julgamento, aquela mesma Testemunha CC, refere que “ACHA” e “ENTENDEU” (eu acho, pelo menos entendi assim – cfr. depoimento prestado em julgamento) que a expressão proferida pela Arguida foi a de que “esse tarado sexual não pode dar aulas”, acrescentando que foi a primeira vez que ouviu uma queixa deste género contra um professor de educação física, o que muito a surpreendeu e assustou, e que a queixa que a Arguida trazia, e apenas ali foi à escola para a mostrar à Directora de Turma, era, a final, elaborada e assinada pelo Advogado.

4. Havendo uma Queixa pelo Ofendido que desconhece a factualidade, porque não a presenciou, ou teve conhecimento directo, existindo apenas a versão de uma Testemunha, e essa versão sido negada pela Arguida, caberá, sem outros elementos de facto, e sem mais prova, que restar a dúvida e, consequentemente, votar o ponto 5 á categoria de facto dado como não provado.

5. Sem evitar ou fugir da questão, a Arguida explicou que a expressão que proferiu foi “UM PROFESSOR QUE TEM UMA TARA SEXUAL, NÃO PODE DAR AULAS”, não bastando o depoimento da Testemunha CC, aparências ou conjecturas, que se não confundem com factos resultantes da prova em Julgamento, para dar como provado que a Arguida proferiu a expressão constante no ponto 5 da douta Sentença - “5. No decorrer de tal reunião, a arguida AA dirigiu-se à Directora de Turma CC, referindo-se ao ofendido BB e disse “Esse professor é um tarado sexual” pelo que, e à falta de mais, caberia dar aquela factualidade por não provada, e absolver a Arguida.

6. Por outro lado, sabendo-se por não contraposto, que a Arguida adquiriu informação de condutas impróprias da parte do ofendido dirigidas à sua fulha DD, o que foi confirmado pela sua outra filha, e por outras crianças, não espantará, que esta, como qualquer outra mãe, reagisse e procurasse acautelar o bem estar das filhas e das demais colegas, razão pela qual se dirigiu ao sítio certo, à pessoa indicada e no momento apropriado.

7. Não espantará a qualquer cidadão, nem censura poderá ser dirigida a esta mãe, qualquer excesso destinado a fazer cessar a inércia da interlocutora, que se ancorou na amizade, no matrimónio e na descendência para afastar a suspeita de qualquer factualidade transmitida, c com isso recusar aprofundar e intervir no sentido do eventual estancar de qualquer prática possivelmente em curso, defendendo-se que, sem conceder, a Arguida, atuou na defesa das suas filhas e demais colegas, visando afastar uma prática criminosa, em curso ou eminente, o que fez de forma proporcional, necessária e adequada, o que, por preenchidos os respetivos requisitos, sempre o terá feito em legítima defesa, o que afasta a ilicitude do facto.

8. Mais se diga que a Arguida, no confessadamente dito, o fez na convicção plena da sua razão, fundada no relato das suas filhas e corroborado por outras colegas, o que obsta ao preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do tipo de crime de difamação agravada, cumprindo absolver.

9. Devia, pois, e pelo menos em face das dúvidas, mais que razoáveis, ter sido, a Arguida, ora Recorrente, absolvida, e não o tendo sido, violou o douto Tribunal “a quo” o constitucional princípio “in dubio pro reo”, do artigo 32º nº 2 da Constituição da República Portuguesa, e o princípio da livre apreciação da prova, do artigo 127º do Código de Processo Penal, ao condenar a Recorrente sem matéria de facto suficiente, o que, nos termos do disposto nos artigos 410º e 426º do Código de Processo Penal, determina o reenvio do Processo, e violou o disposto nos artigos 40º, 70º e 71 do Código Penal, e o disposto no artigo 51º nº 2 do Código Penal, pelo que merece integral provimento o presente Recurso, havendo, assim, que revogar-se a douta Sentença de Fls, a substituir por Acórdão que absolva a Recorrente, caso se não opte pelo reenvio.”

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O recurso foi admitido com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

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O Ministério Público apresentou resposta ao recurso, pugnando pela sua improcedência e pela manutenção da decisão recorrida e formulando as seguintes conclusões:

“1. Inconformada com a sentença que a condenou na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de €12,00, pela prática de um crime de difamação agravada, p. e p. pelos artigos 180.º, n.º 1 e 184.º, ambos do Código Penal, veio a arguida AA interpor recurso, alegando, em suma, que o Tribunal a quo não devia ter dado como provado o ponto 5 dos factos dados como provados na douta sentença.

2. Apresenta dois argumentos, por um lado faz uma análise comparativa entre as declarações prestadas na fase de inquérito, de instrução e de julgamento por parte das testemunhas e da arguida, atribuindo maior credibilidade àquelas que esta última prestou, por outro lado, entende que a prova consiste unicamente na versão dos factos apresentada pela testemunha CC, versão que foi refutada pela arguida, pelo que o Tribunal a quo devia ter dado como não provado o ponto 5 dos factos dados como provados na douta sentença.

3. Em sede de audiência de discussão de julgamento não foi requerida a leitura das declarações prestadas pela arguida e pelas testemunhas, ao abrigo do disposto nos artigos 356.º e 357.º, do Código de Processo Penal.

4. O objecto de recurso é a decisão proferida e os dados que o juiz decidente possuía, pelo que a arguida/recorrente não pode oferecer outros elementos de prova que não foram considerados na decisão recorrida.

5. No que concerne à prova que alicerçou a decisão do Tribunal em dar como provado o ponto 5 dos factos dados como provados na douta sentença, esta consiste nas declarações das testemunhas BB e CC, bem como nas declarações prestadas pela própria arguida.

6. A testemunha BB, referiu que a Directora de Turma, a professora CC disse-lhe que a arguida havia dito que este “era um tarado e que não tinha condições para estar a dar aulas, que tinha de ser expulso” (gravação 20240521150457_4398664_2870870 - minuto 02:09 a 04:27).

7. A testemunha CC disse que houve uma expressão proferida pela arguida que a marcou, que consistiu no seguinte “um tarado destes não podia dar aulas” (gravação 20240521152701_4398664_2870870 – minuto 08:50 a 09:08).

8. Também a arguida admitiu que proferiu a referida expressão, ainda que de forma condicional, no sentido de que “se ele realmente for um tarado sexual, não pode dar aulas” (gravação 20240521144038_4398664_2870870 - minuto 08:38 a 08:57).

9. Da prova produzida, resulta que a arguida não proferiu a expressão “tarado sexual” de forma genérica e condicional, mas antes que a direcionou a BB.

10. Da prova produzida não se alcança outra ilação que não aquela que consta da douta sentença, pelo que é manifesto que a pretensão da recorrente carece de fundamento e é de rejeitar.”

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Nesta Relação, o Ministério Público emitiu parecer acompanhando a posição assumida na primeira instância e considerando que o recurso deveria ser rejeitado por não conter nas suas conclusões a indicação das normas jurídicas violadas.

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Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 417º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, tendo a recorrente vindo reiterar o já por si alegado e acrescentar que não corresponde à verdade que não tenha indicado as normas jurídicas violadas nas suas conclusões de recurso, como decorre da simples leitura da conclusão nº 9.

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Não obstante a alegação feita pelo Ministério Público junto desta Relação, a verdade é que consta das conclusões do recurso em apreço a indicação das normas jurídicas que a recorrente considera terem sido violadas, pelo que não existe qualquer fundamento para a rejeição liminar do recurso, havendo que se entender que tal alegação do Ministério Público se ficou a dever a lapso manifesto.

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Proferido despacho liminar, teve lugar a conferência.

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2 – Objecto do Recurso

Conforme o previsto no art.º 412º do Cód. Proc. Penal, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do recurso, as quais delimitam as questões a apreciar pelo tribunal ad quem, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cf. neste sentido, Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, vol. III, 1994, pág. 320, Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos Penais”, 9ª ed., 2020, pág. 89 e 113-114, e, entre muitos outros, o acórdão do STJ de 5.12.2007, no Processo nº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt).

Assim sendo, as questões a apreciar no presente recurso consistem em saber se houve:

- erro de julgamento;

- violação do princípio in dubio pro reo;

- actuação da arguida em legítima defesa.

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3- Fundamentação:

3.1. – Fundamentação de Facto

A decisão recorrida considerou provados e não provados os seguintes factos e com a seguinte motivação:

“A) FACTOS PROVADOS

Com relevo para a decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos:

1. O ofendido BB é professor de Educação Física no Agrupamento de Escolas de …, tendo leccionado, no ano lectivo de 2021/2022, a disciplina de Educação Física à turma … do … ano de escolaridade na Escola …, ….

2. No ano letivo de 2021/2022, integrava a turma … do … ano de escolaridade a menor DD.

3. A arguida AA é progenitora e encarregada de educação da aluna DD.

4. Assim, no dia 18 de Fevereiro de 2022 a arguida AA deslocou-se à Escola …, …, tendo reunido com a Directora de Turma, CC, a fim de expor factos relatados pela sua filha sobre alegadas condutas que o ofendido teria praticado para com DD, designadamente que alegadamente colocava as mãos na cintura e no seu rabo e de outras discentes e que “buscava proximidade física” no decorrer das aulas de educação física, bem como que o mesmo lhe havia, alegadamente, dado uma “palmadinha no rabo”.

5. No decorrer de tal reunião, a arguida AA dirigiu-se à Directora de Turma CC, referindo-se ao ofendido BB e disse “Esse professor é um tarado sexual” e “um tarado destes não pode dar aulas”.

6. Em virtude da conduta da arguida o ofendido sentiu-se incomodado, envergonhado e humilhado.

7. A arguida AA bem sabia que as palavras e expressões descritas no ponto 5., ditas à Directora de Turma, referindo-se ao ofendido BB, a exercer funções no Agrupamento de Escolas de …, na Escola …, eram objectivamente ofensivas da honra, competência, honestidade e consideração do ofendido, e que extravasavam o necessário para o relato dos factos que pretendia participar.

8. Mais sabia a arguida que ao dirigir as referidas palavras e expressões (descritas no ponto 5) nos termos descritos, faltava ao respeito devido ao ofendido, enquanto pessoa, bem como e em especial, enquanto professor e membro da comunidade escolar da Escola …, …, no exercício das suas funções e por causa delas, querendo, porém, alcançar tal resultado, o que logrou e quis.

9. A arguida agiu de forma livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

Mais se provou que:

10. A arguida é empresária na área do … e aufere mensalmente a quantia de € 2.000,00;

11. A arguida recebe rendimentos prediais no valor de € 4.000,00 por mês;

12. A arguida tem 4 filhos, sendo duas delas menores e ainda ajuda financeiramente um filho maior de idade;

13. A arguida despende mensalmente € 606,00 por mês com o colégio das filhas, e trimestralmente a quantia de € 340,00 para alimentação no colégio;

14. A arguida regista € 3.500,00 em despesas mensais;

15. A arguida não tem antecedentes criminais;

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B) FACTOS NÃO PROVADOS

Com interesse para a decisão da causa, não resultaram provados os seguintes factos:

-Da Contestação:

a) A expressão proferida em 5) dos factos provados pela arguida foi proferida sem destinatário específico, de forma genérica e sob condição;

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C) MOTIVAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

A convicção do Tribunal relativamente à factualidade descrita formou-se tendo por referência a análise critica e conjugada de todos os elementos probatórios sujeitos ao contraditório em sede de audiência de julgamento.

Em especial, a sua convicção resulta do confronto das declarações da arguida e dos depoimentos prestados pelas testemunhas, ofendidos nos autos e, bem assim, da prova documental existente, que, em conjunto, demonstraram pertinência para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa, de acordo com as regras da experiência comum e a livre convicção do tribunal, nos termos do artigo 127.º do CPP.

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A factualidade descrita nos pontos n.ºs 1, 2 e 3 dos factos provados resulta da queixa apresentada pelo ofendido constante de fls. 3 a 9 e, bem assim, do processo de inquérito que correu termos no agrupamento de escolas onde se insere a escola onde o ofendido dá aulas e onde a filha menor (DD) da arguida frequenta aulas, cfr. fls. 11 a 20.

Tal factualidade foi igualmente corroborada pelas declarações da arguida que, de forma séria e clara, confirmou o circunstancialismo fáctico de ser progenitora da DD e, bem assim o circunstancialismo que a liga ao ofendido, apesar de nunca ter falado com ele.

Atendeu-se igualmente ao depoimento prestado pelo ofendido BB, que relatou ter sido professor de educação física da filha da arguida, de nome DD, na data dos factos.

A factualidade descrita nos pontos n.ºs 4 e 5 dos factos provados extrai-se das declarações da arguida e da prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento.

A arguida declarou, de forma sincera e honesta que, no dia 17-02-2022, quando foi buscar as suas filhas à escola, a sua filha DD relatou que, o seu professor de Educação Física, ora ofendido BB, “tocou-lhe” no refeitório da escola, dando-lhe “uma palmadinha no rabo” e que, nas aulas de Educação Física, “toca sem querer”, “apoia no pino” e “toca no rabo”, a ela e a outras alunas, tendo a sua outra filha, EE (que andava no ….º ano), relatado naquele mesmo momento “que o tinha tido no ….º ano” e que “ele fazia o mesmo”.

Refere ainda a arguida que foi com base naquelas declarações das suas filhas que lhe pareceram sinceras e preocupantes, que se dirigiu no dia seguinte à escola para falar com a directora de turma da filha DD, a professora CC, e que lhe relatou o quadro factual supra descrito e que lhe foi relatado pelas filhas, com o intuito de a mesma “investigar” e “falar com as alunas”. A arguida relatou que a Professora retorquiu à exposição dos factos dizendo que “não era possível” porque o professor “era casado e tem … filhos”, mas que se comprometeu a falar com as alunas sobre o assunto.

Quanto à expressão que dirigiu à directora de turma CC acerca do professor BB, ora ofendido, a arguida admitiu de forma clara que a proferiu, mas que o fez de forma condicional, no sentido de que “se ele realmente for um tarado sexual, não pode dar aulas”, não com o sentido de “acusá-lo” mas sim no sentido de se “fazer averiguações”.

Por último, a arguida confirmou que acabou por apresentar formalmente a queixa dias depois, porquanto a directora de turma acabou por não falar com as alunas e que, aquela queixa deu causa a um processo de inquérito interno na escola, que acabou por ser arquivada, o que é corroborado pela prova documental constante dos autos a fls. 12 a 13 (queixa apresentada) e relatório de inquérito fls. 14 a 19.

Tal factualidade foi parcialmente corroborada pela testemunha CC que confirmou, de forma séria e evidente que, naquele dia e local, a arguida foi à escola para falar consigo e a mesma apresentava uma “queixa formal redigida e assinada contra o Professor de Educação Física e que ia ser enviada por e-mail”, em virtude de uma alegada abordagem física que o mesmo fez à filha da arguida, DD, no dia anterior, referindo a testemunha que lhe foi relatada uma situação de “palmadinha no rabo”, que “tocava de forma imprópria” e que “outras alunas já se teriam queixado” também.

A testemunha relatou que “ficou surpresa” e que disse à arguida “que ia falar com as alunas para saber o que se passou”, contudo, não chegou a falar porque entendeu “que não devia”, pois teria de “ser uma entidade neutra a dar andamento ao processo” e que a arguida “mostrava-se determinada em apresentar a queixa”.

Esta testemunha igualmente confirmou que a arguida proferiu, perante si, a expressão de que “um tarado destes não podia dar aulas”.

Por último, esta testemunha admitiu que, “no próprio dia falou com a coordenadora da escola e informou o professor da queixa”, contudo, não se lembra se foi naquele dia que disse ao ofendido a expressão proferida sobre si pela arguida.

A testemunha BB, ofendido nos autos, confirmou de forma honesta e sincera aquela factualidade, nomeadamente que soube da situação da queixa e da expressão dirigida pela arguida no dia em que esta foi falar com a directora de turma, a testemunha CC e que foi esta que lhe transmitiu o sucedido.

Em especial, esta testemunha relatou que a testemunha CC lhe comunicou que a mãe da aluna, ora arguida, apareceu na escola para fazer uma queixa contra o ofendido e comunicá-la à direcção, que já levava “um documento escrito”, referindo uma alegada situação de “tocar de forma imprópria nas alunas”, e que a arguida tinha se referido a si como “é um professor tarado” e que “não podia para dar aulas”.

Ora, atento ao supra descrito, não há dúvidas que a própria arguida assume que proferiu aquela expressão, confirmando a verbalização da mesma à directora de turma, com o conteúdo que lhe atribui, tendo referindo especificamente por estas as palavras “tarado sexual”.

Por último, a testemunha FF, ex-marido da arguida e pai da filha DD, confirmou, de forma desprendida e honesta, o circunstancialismo fáctico aqui em causa, nomeadamente que a arguida expôs-lhe o que se passou e o que as filhas terão dito sobre o professor e que decidiram transmitir esse problema à escola, tendo sido a arguida que ficou responsável em ir falar com a directora de turma. A testemunha relatou também que “a directora de turma disse que ia falar com crianças e logo dizia algo”, mas que nunca chegou a acontecer, pelo que, a indignação da arguida até era com a directora de turma.

O ponto n.º 6 dos factos provados resultou do depoimento prestado pela testemunha BB, ofendido nos autos, que relatou, de forma sentida e sincera que “nunca mais foi o mesmo professor”, que “já não dá ajudas nem apoio individualizado nas suas aulas” sem a presença de mais pessoas, o que o prejudica no desempenho da sua profissão e que a sua honra, profissionalismo e dignidade enquanto pessoa foram postos em causa e bastante afectados com a situação ocorrida, objecto dos presentes autos.

Os pontos n.ºs 7, 8 e 9 dos factos provados ainda que não tenham sido admitidos pela arguida resultam dos demais factos provados, das regras da experiência comum e da normalidade social.

Com efeito, dado que o dolo pertence à vida interior de cada um, cuja natureza é subjectiva e insusceptível de directa apreensão, a sua prova poderá resultar dos demais factos que se encontram provados e que, de acordo com a experiência comum, revelam os factos internos que integram o elemento intelectual e volitivo do dolo.

Apuradas as circunstâncias concretas da actuação daquela, não há dúvida que a arguida sabia que ao dirigir as expressões constantes do ponto n.º5 dos factos provados à directora de turma, referindo-se ao ofendido, professor a exercer funções numa escola, as mesmas eram objectivamente ofensivas da honra, competência, honestidade e consideração do ofendido, e que extravasavam o necessário para o relato dos factos que pretendia participar, sabendo igualmente que ao dirigir aquelas expressões faltava ao respeito e consideração devida ao ofendido, não só como pessoa mas enquanto professor e membro da comunidade escolar, não se coibindo de actuar como actuou, livre, deliberada e conscientemente.

Quanto aos factos descritos nos pontos n.ºs 10 a 14 dos factos provados, nomeadamente referente às condições sócio-económicas e familiares, os mesmos resultaram das declarações prestadas pela arguida em sede de audiência de julgamento, que, nessa parte, se mostraram sérias e coerentes, merecendo a credibilidade deste Tribunal.

A prova em relação à ausência de antecedentes criminais (ponto n.º 15 dos factos provados) resulta do Certificado de Registo Criminal do arguido junto aos autos a fls. 162v.

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Quanto aos factos não provados não foi feita prova suficientemente cabal, quer documental, quer testemunhal, quer de outra natureza, para demonstrar a sua ocorrência e, em consequência, convencer o Tribunal da existência dos mesmos.

A al. a) dos factos não provados, ainda que a arguida tenha referido que proferiu as expressões constantes do ponto n.º5 dos factos provados de forma condicional, no sentido de que “se ele realmente for um tarado sexual, não pode dar aulas”, não com o sentido de “acusá-lo” mas sim no sentido de se “fazer averiguações”, a prova testemunhal produzida foi clara ao demonstrar que a arguida dirigia-se especificamente ao ofendido.

A testemunha CC afirmou de forma sincera e directa que foi aquela a expressão proferida pela arguida e que não tinha quaisquer dúvidas que a mesma era direcionada e referia-se ao ofendido, não tendo sido dirigida na “condicional”, o que acabou por ser corroborado pelo próprio ofendido que relatou a expressão exacta proferida pela arguida e relatada pela testemunha CC, não tendo dúvidas que aquela expressão se dirigia à sua pessoa.

Ora, atento ao supra descrito, na falta de prova pela arguida nesse sentido, não se poderá dar como provado que aquela expressão foi proferida de forma genérica, sem destinatário e sob condição, uma vez que a mesma foi direcionada para o ofendido, não convencendo este Tribunal que a expressão tenha sido feita num contexto condicional, como a arguida pretende fazer valer.”

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3.2.- Mérito do recurso

Alega a recorrente que houve na decisão em apreço um erro de julgamento, porquanto o Tribunal a quo não podia ter dado como provado que a mesma proferiu as expressões constantes no ponto 5 da matéria de facto dada por provada na sentença recorrida, pois, face às versões contrárias da testemunha CC e da arguida, na dúvida, teria esta última que ser absolvida.

Mais alega que as declarações da testemunha CC em julgamento divergem das que prestou durante o inquérito e que a mesma apenas pretendeu proteger um colega.

Alega ainda que não pode ser condenada, pois agiu em legítima defesa.

Vejamos se lhe assiste razão.

A reapreciação da matéria de facto poderá ser feita no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no art.º 410º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, onde a verificação desses vícios tem que resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, mas sem recurso a quaisquer elementos exteriores, ou através da impugnação ampla da matéria de facto, feita nos termos do art.º 412º, nos 3, 4 e 6 do mesmo diploma, caso em que a apreciação se estende à prova produzida em audiência, dentro dos limites fornecidos pelo recorrente.

No caso dos autos, não foi invocado pela recorrente nenhum dos vícios previstos no art.º 410º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, nem o seu preenchimento resulta da leitura da decisão recorrida, pelo que nada há a dizer quanto a esta matéria. A impugnação ampla da decisão sobre a matéria de facto destina-se a despistar e corrigir determinados erros in judicando ou in procedendo, razão pela qual o art.º 412º, nº 3 do Cód. Proc. Penal impõe ao recorrente a obrigação de indicar: “ a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas.” A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados. A especificação das «concretas provas» implica a indicação do conteúdo do meio de prova ou de obtenção de prova e a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida. Por seu turno, a especificação das provas que devem ser renovadas impõe a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretenda e das razões para crer que aquela renovação permitirá evitar o reenvio do processo previsto no art.º 430º do mesmo diploma. Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência. Havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao que tiver sido consignado na ata, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens das gravações em que fundamenta a impugnação, não bastando a simples remissão para a totalidade de um ou de vários depoimentos, pois são essas passagens concretas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo Tribunal de recurso, como é exigido pelo art.º 412º, nºs 4 e 6 do Cód. Proc. Penal. A este respeito, importa ter em atenção a jurisprudência já fixada pelo STJ, no seu Ac. nº 3/2012, publicado no DR, 1ª série, nº 77, de 18/04/12, no seguinte sentido: «Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações».

Na verdade, o poder de apreciação da prova da 2ª instância não é o mesmo que o atribuído ao juiz do julgamento, não podendo a sua convicção ser arbitrariamente alterada apenas porque um dos intervenientes processuais expressa o seu desacordo quanto à mesma, pois o poder de apreciação da prova do tribunal de recurso não é absoluto, nem se reconduz à realização integral de um novo julgamento da matéria de facto, em substituição do já realizado em 1ª instância.

A reapreciação da prova só determinará uma alteração à matéria de facto provada quando, do reexame realizado dentro das balizas legais, se concluir que os elementos probatórios impõem uma decisão diversa da recorrida.

Neste último caso, havendo duas, ou mais, possíveis soluções de facto, face à prova produzida, se a decisão da primeira instância se mostrar devidamente fundamentada e couber dentro de uma das possíveis soluções, face às regras da experiência comum, é esta que deve prevalecer, mantendo-se intocável e inatacável, porquanto foi proferida em obediência ao previsto nos art.ºs 127º e 374º, nº 2 do Cód. Proc. Penal ( cf., entre outros, o Ac. do TRL de 2/11/21, proferido no processo nº 477/20.8PDAMD.L1-5, em que foi relator Jorge Gonçalves, in www.dgsi.pt.).

Segundo o previsto no art.º 127º do Cód. Proc. Penal, o Tribunal deve fixar a matéria de facto de acordo com as regras da experiência e a livre convicção do julgador, desde que não se esteja perante prova vinculada.

Pese embora o ato de julgar tenha sempre, necessariamente, um lado subjetivo, as regras da experiência, complementadas pelo disposto no art.º 374º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, determinam que aquele acto não possa ser um acto arbitrário ou discricionário.

Verifica-se, pois, que a livre convicção não se confunde com a íntima convicção do julgador, dado que a lei lhe impõe que extraia das provas um convencimento lógico e motivado, devendo a avaliação da prova ser efectuada com sentido de responsabilidade e bom senso.

Em consequência, sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve-se acolher a opção do julgador da 1ª instância, sobretudo porque o mesmo beneficiou da oralidade e da imediação na recolha da prova ( cf., neste sentido, Ac. do STJ de 13/02/08, proferido no processo nº 07P4729, em que foi relator Pires da Graça, in www.dgsi.pt ).

A lei não considera relevante a convicção pessoal de cada um dos intervenientes processuais, no sentido de a mesma se sobrepor à convicção do Tribunal, até porque, se assim fosse, não seria possível existir qualquer decisão final.

O que a lei permite é que, quem entenda que ocorreu um erro de apreciação da prova, o invoque, fundamentadamente, em sede de recurso, para que tal questão possa ser reapreciada por uma nova instância jurisdicional.

Para além de a lei determinar a forma como tal reapreciação deve ser pedida, estabelece também os limites da mesma, ou seja, os poderes de cognição do Tribunal de recurso. Para esse efeito, deve o Tribunal de recurso verificar se os concretos pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa.

Na verdade, como se refere no Ac. do TRL, datado de 26/10/21, proferido no processo nº 510/19.6S5LSB.L1-5, em que foi relator Manuel Advínculo Sequeira, in www.dgsi.pt: «apenas séria discrepância entre o que motivou o tribunal de 1ª instância e aquilo que resulta da prova por declarações prestada, no seu todo e à luz de regras de experiência comum, pode ser de molde a inverter aquela factualidade, impondo, nas palavras da lei, outra decisão (…). As declarações são ainda indissociáveis da atitude e postura de quem as presta, olhares, trejeitos, hesitações, pausas e demais reacções comportamentais às diversas perguntas e questões abordadas, isoladas ou entre si combinadas, bem como a regras de experiência e senso comuns à luz da normalidade dos comportamentos humanos.(…)”

Assim sendo, o que o Tribunal da Relação pode e deve fazer nesta matéria, em sede de recurso, é verificar, ponto por ponto, se os concretos erros de julgamento indicados pelo recorrente, de facto existem e, na afirmativa, proceder à sua correção.

A razão de ser desta forma de funcionamento do instituto do recurso, quanto à reapreciação de matéria de facto, decorre também do princípio da oralidade, o qual implica uma imediação, um contacto direto, pessoal e presencial entre o julgador e os elementos de prova (sejam eles pessoas, coisas, lugares, sons, cheiros, timbre e entoação), que facilita a formação da livre convicção do julgador e que só existe na primeira instância.

A imediação permite que o julgador tenha uma perceção dos elementos de prova muito mais próxima da realidade do que qualquer apreciação posterior, a realizar pelo Tribunal de recurso, mesmo que este se socorra da documentação dos atos da audiência.

A imediação revela-se também de importância fulcral para aferir da credibilidade de um depoimento, pois o seu desenrolar, a posição corporal, os gestos, as hesitações, o tom de voz, o olhar, o embaraço ou o desembaraço e todas as componentes pessoais ligadas ao ato de depor são insuscetíveis de serem registadas, mas ficam na memória de quem realizou o julgamento, são importantes na formação da convicção do julgador e são objetiváveis na fundamentação da decisão, mas não são suscetíveis de documentação para reapreciação em sede de recurso.

Impõe-se, assim, concluir que, nesta matéria, cabe apenas ao Tribunal de recurso verificar se o Tribunal a quo, ao formar a sua convicção, fez um bom uso do princípio de livre apreciação da prova, aferindo da legalidade do caminho prosseguido até se chegar à matéria fáctica dada como provada e não provada, devendo tal apreciação ser feita com base na motivação elaborada pelo Tribunal de primeira instância e na fundamentação da sua escolha, ou seja, no cumprimento do disposto no art.º 374º, nº 2 do Cód. de Proc. Penal.

Para este efeito, como se escreveu no Ac. do TRL datado de 11/03/2021 ( proferido no processo nº 179/19.8JDLSB.L1-9, em que foi relator Abrunhosa de Carvalho, in www.dgsi.pt. ): «O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique «os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado».

E convém referir que quando o tribunal recorrido forma a sua convicção com provas não proibidas por lei, prevalece a convicção do tribunal sobre aquelas que formulem os recorrentes.

Normalmente, os erros de julgamento capazes de conduzir à modificação da matéria de facto pelo tribunal de recurso consistem no seguinte: dar-se como provado um facto com base no depoimento de uma testemunha que nada disse sobre o assunto; dar-se como provado um facto sem que tenha sido produzida qualquer prova sobre o mesmo; dar-se como provado um facto com base no depoimento de testemunha, sem razão de ciência da mesma que permita a referida prova; dar-se como provado um facto com base em prova que se valorou com violação das regras sobre a sua força legal; dar-se como provado um facto com base em depoimento ou declaração, em que a testemunha, o arguido ou o declarante não afirmaram aquilo que na fundamentação se diz que afirmaram; dar-se como provado um facto com base num documento do qual não consta o que se deu como provado; dar-se como provado um facto com recurso à presunção judicial fora das condições em que esta podia operar.»

Sucede que: «O recorrente não impugna de modo processualmente válido a decisão proferida sobre matéria de facto se se limita a procurar abalar a convicção assumida pelo tribunal recorrido, questionando a relevância dada aos depoimentos prestados em audiência.» ( cf. Ac. do TRP datado de 6/10/2010, proferido no processo nº 463/09.9JELSB.P1, em que foi relatora Eduarda Lobo, in www.dgsi.pt).

Em suma, o recorrente que invoca a existência de um erro de julgamento tem que apontar na decisão recorrida os segmentos que impugna e colocá-los em relação com as provas, concretizando as partes da prova gravada que pretende que sejam ouvidas e que sustentam uma decisão diversa, se for o caso, quais os documentos que pretende que sejam reexaminados, bem como quais os outros elementos probatórios que pretende ver reproduzidos, demonstrando a verificação do erro judiciário a que alude.

Foi o que a recorrente não fez no recurso em apreço.

Pese embora tenha individualizado os concretos pontos de facto que considera terem sido mal julgados, o que decorre das alegações da recorrente é que se limita a interpretar de forma diferente sobretudo o que resulta do seu depoimento e do depoimento da testemunha CC, dizendo que o Tribunal a quo não devia ter dado como provados os factos descritos em 5, porquanto dos depoimentos em causa não resulta que as expressões “Esse professor é um tarado sexual” e “um tarado destes não pode dar aulas” tenham pela arguida sido concretamente dirigidas ao ofendido, mas apenas que foram ditas de forma genérica, sem individualizar o destinatário.

Não obstante decorra da argumentação da recorrente que são estes os depoimentos que impunham decisão diversa, a mesma não individualizou as partes dos depoimentos que este Tribunal de recurso deveria ouvir, em desobediência ao exigido pelo art.º 412º, nº 4 do Cód. Proc. Penal.

Por outro lado, alega a recorrente que a testemunha CC não merece credibilidade, porquanto a mesma prestou declarações não exactamente coincidentes em sede de inquérito e de julgamento.

Sucede que, compulsados os autos, não decorre da acta de julgamento, datada de 21/05/24, que o Tribunal a quo tenha procedido à leitura em audiência das declarações prestadas pela arguida e pela testemunha CC em fases anteriores do processo e em conformidade com as exigências constantes dos arts.º 356º e 357º do Cód. Proc. Penal.

Assim sendo, não tendo servido as declarações da arguida e da tetemunha CC prestadas em fases anteriores do processo para formar a convicção do Tribunal a quo e para fundamentar a decisão recorrida, não podem as mesmas ser consideradas e apreciadas em sede de recurso, em obediência aos princípios do contraditório e da proibição de valoração das provas, plasmados nos arts.º 327º, nº 2 e 355º do Cód. Proc. Penal.

Como supra se referiu, a análise da impugnação tem que ser feita por referência à matéria de facto efectivamente provada ou não provada e não àquela outra que o recorrente, colocado numa perspectiva subjectiva, não equidistante, tem para si como sendo a boa solução dos factos e entende que devia ter sido provada, como vem esta recorrente aqui fazer.

No caso sub judice, o Tribunal a quo fundamentou a sua decisão quanto à factualidade julgada provada e não provada nos termos supra transcritos, procedendo a uma análise dos depoimentos prestados pelas testemunhas e pela arguida e esclarecendo em que medida é que cada um deles foi considerado credível ou não, expondo de forma clara as razões que levaram a que se convencesse, ou não, da veracidade dos relatados, e fazendo, para o efeito, apelo às regras da razoabilidade e da experiência comum.

Para a formação da convicção do Tribunal a quo foram sobretudo tidos em conta os depoimentos da arguida e das testemunhas CC, BB e FF.

Ouvidas as declarações da arguida e das referidas testemunhas, resulta das mesmas que a arguida admitiu ter proferido junto da professora CC as expressões “se ele realmente for um tarado sexual, uma pessoa dessas não pode dar aulas”, tendo a testemunha CC declarado que a arguida lhe disse, reportando-se ao professor BB, “um tarado destes não pode dar aulas”.

A testemunha CC acrescentou que as expressões proferidas pela arguida não o foram de modo genérico, nem condicional, mas antes concretamente dirigidas ao professor BB.

Este testemunho também nos pareceu credível, porquanto a testemunha depôs de forma segura e não titubeante ou duvidosa.

Importa também avaliar as declarações da arguida e da testemunha CC no contexto das declarações prestadas pelas outras duas testemunhas e segundo as regras da lógica e da experiência comum.

Nesta conformidade, consideram-se mais credíveis as declarações da testemunha CC, porquanto a mesma referiu que a arguida já trazia consigo uma queixa escrita e assinada por um advogado, em suporte digital, dirigida contra o ofendido BB, o que reforça a convicção de que as expressões em causa foram dirigidas a este último e não em abstrato.

Também a testemunha FF disse, de forma clara e isenta, que a arguida, ainda antes de ir à escola falar com a professora CC, lhe disse que deviam ir fazer queixa do professor à Polícia Judiciária.

Ora, da conjugação destes depoimentos resulta que não faz qualquer sentido a arguida ter proferido as expressões em causa de forma condicional e sem as reportar ao ofendido BB, quando já havia escrito uma queixa contra o mesmo e já tinha dito ao pai das suas filhas que deviam ir fazer queixa do ofendido à Polícia Judiciária.

Daqui decorre que, não obstante a deficiente impugnação, não é possível retirar do depoimento da recorrente e do depoimento destas testemunhas as conclusões que aquela pretende.

Assim sendo, considera-se que a decisão recorrida fez uma correcta apreciação dos meios de prova ao seu dispor, apreciação essa que se acha bem fundamentada e em conformidade com as regras da lógica e da experiência comum, pelo que se impõe julgar improcedente o recurso, neste tocante.

*

Alega também a recorrente que no caso em apreço se mostra violado o princípio in dubio pro reo, porquanto não existe prova suficiente que motive validamente a sua condenação, devendo ser absolvida.

Segundo este princípio, quando o Tribunal fica na dúvida quanto à ocorrência de determinado facto, deve daí retirar a consequência jurídica que mais beneficie o arguido.

Como refere Figueiredo Dias, in “ Direito Processual Penal “, I, pág. 205, a dúvida relevante para este efeito tem que ser uma dúvida razoável, fundada em razões adequadas e não uma qualquer dúvida.

No mesmo sentido se decidiu no Ac. STJ de 5/07/07, proferido no processo nº 07P2279, em que foi relator Simas Santos, in www.dgsi.pt, onde se pode ler que: “Na verdade, o princípio in dubio pro reo, não significa dar relevância às dúvidas que as partes encontram na decisão ou na sua interpretação da factualidade descrita e revelada nos autos, mas é antes uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Mas daqui não resulta que, tendo havido versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser absolvido em obediência a tal princípio. A violação deste princípio pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador, só podendo ser afirmada, quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma evidente, que o tribunal, na dúvida, optou por decidir contra o arguido.”

Verifica-se, assim, que o princípio in dubio pro reo só impede a formação da convicção em caso de dúvida séria e razoável, não relevando perante uma dúvida ligeira, meramente possível ou hipotética.

A dúvida séria deve ser fundamentada, coerente e razoável, impondo a escolha da perspetiva probatória que favorece o acusado, mas apenas quando se mostrem esgotadas todas as operações de análise de toda a prova produzida, apreciada conjugadamente e em conformidade com as máximas da experiência e da lógica, e ainda assim subsista mais do que uma possibilidade de igual verosimilhança e razoabilidade no espírito do julgador.

Para que haja violação do princípio do in dubio pro reo é preciso que, perante uma dúvida inultrapassável sobre factos essenciais para a decisão da causa, o julgador decida em desfavor do arguido.

Sucede que, no caso dos presentes autos tal situação não ocorreu.

Desde logo importa reforçar que não se procedeu a qualquer alteração da matéria de facto fixada pelo Tribunal a quo.

A factualidade apurada fundamentou-se na prova produzida em julgamento e está conforme à mesma, não resultando dessa factualidade qualquer dúvida quanto à responsabilidade criminal da arguida, conforme supra expresso.

Assim sendo, não se tendo apurado a existência de um qualquer erro de julgamento ou da violação do princípio in dubio pro reo, improcede também neste tocante o recurso.

Por último vem a recorrente invocar uma causa de justificação, considerando ter agido em legítima defesa.

De acordo com o disposto no art.º 32º do Cód. Penal, constitui legítima defesa o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro.

Sucede, porém, que não se procedeu a qualquer alteração da matéria de facto apurada pelo Tribunal a quo e que nessa matéria não existem nenhuns factos que possam consubstanciar uma actuação da arguida em situação de legitima defesa, tal como a lei a define.

Não resulta dos factos provados que a arguida estivesse a sofrer alguma agressão e que a sua actuação tenha sido motivada para se defender da mesma.

Em face do exposto, impõe-se julgar totalmente improcedente o presente recurso, não se considerando violadas as normas jurídicas indicadas pela recorrente.

*

4. DECISÃO:

Pelo exposto, acordam as Juízes que integram esta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso apresentado por AA, e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC’s.

Évora, 3 de Dezembro de 2024

(texto elaborado em suporte informático e integralmente revisto pela relatora)

Carla Francisco

(Relatora)

Maria Filomena Soares

Laura Goulart Maurício

(Adjuntas)