ERRO DE JULGAMENTO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Sumário

A reapreciação dos erros de julgamento da matéria de facto em recurso baseia-se num princípio de maior fidedignidade da apreciação da prova em primeira instância, sendo por isso que a lei obriga o recorrente a especificar as provas que impõem decisão diversa da recorrida e não apenas as que permitem ou indiciam uma interpretação diferente daquela a que chegou o tribunal.
Não compete ao tribunal de recurso fazer um segundo julgamento, reapreciando todas as provas de forma completa, mas apenas fiscalizar eventuais erros da decisão da matéria de facto apontados especificamente pelo recorrente, através do reexame da prova, na medida do que se revelar necessário.

Portanto, para que em recurso se possa modificar a decisão de facto tomada em primeira instância, não basta alegar uma interpretação da prova alternativa à do tribunal; é preciso demonstrar que a decisão do tribunal é errada ou implausível ou, ao menos, que a versão dos factos proposta pelo recorrente em alternativa à acolhida na sentença é tão plausível como aquela.

Texto Integral

Acórdão deliberado em Conferência
1. Relatório

1.1. Decisão recorrida

Sentença proferida em 10jul2023, na qual foi condenado o arguido AA, por um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto no artigo 292º nº 1 do CP, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de 8 euros, e na pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados pelo período de 9 meses.

1.2. Recurso, resposta e parecer

1.2.1. O arguido recorreu da sentença condenatória, concluindo assim a motivação:

O presente recurso tem como cerne - al. a) b e c) do n.º 3 do art.º 412.º do C.P.P. - e a medida da escolha e medida da pena aplicada:

1 - O arguido foi submetido ao teste qualitativo de pesquisa de álcool, por aparelho Drager, no Posto da GNR?

2 - O aparelho utilizado deu erro ou apresentou defeito?

3- Que erro?

4 - Esse erro é um erro normal ou é conhecido dos militares da GNR, que operam o aparelho e que conhecem o seu significado?

5 - Sendo que prova, resultante das declarações da Militar da GNR, BB, produzida em Audiência de Discussão e Julgamento ter ocorrido de facto erro na medição realizada pelo aparelho Drager, nos testes realizados pelo arguido, erro esse, desconhecido pelos Militares ali presentes, que esse erro foi reportado ao Senhor Comandante, questiona-se: qual o suporte probatório para dar como provado que o arguido conduzia o seu veículo automóvel sob o efeito do álcool?

Este facto dado como provado, deve ser sentenciado não provado, sobre o qual se impõe uma decisão oposta à adoptada, pelo que, deve ser por este Tribunal, dar tal facto como não provado e em consequência absolvendo-se o arguido.

1.2.2. O Ministério Público respondeu defendendo a improcedência do recurso, em resumo, com os seguintes fundamentos:

- O recorrente baseia-se em que o aparelho Drager com que se procedeu ao teste de álcool no sangue apresentava uma anomalia, razão pela qual não está provado o resultado que este mesmo aparelho apresentou;

- A fundamentação da sentença não resulta unicamente das declarações da

testemunha BB, tendo de ser conjugada com a restante prova produzida, documental e testemunhal;

- A testemunha Furriel CC afirmou perentoriamente que a anomalia apresentada pelo aparelho resultou de uma incorreta utilização por parte do condutor, por este suspender a respiração ou não expirar ar suficiente, após iniciar o citado teste, o que acontece com frequência;

- Não se pode concluir, ao contrário do recorrente, que há erro notório, porquanto, a circunstância de ser dado como provado que o recorrente conduzia com uma taxa de álcool no sangue de 1,634 g/l resulta da análise da prova produzida;

- A matéria de facto foi corretamente dada como provada.

1.2.3. O Ministério Público na Relação emitiu parecer essencialmente concordante com aquela resposta, a cuja argumentação aderiu.

2. Questões a decidir no recurso

O recorrente abriu as conclusões acima transcritas dizendo que o recurso versa também sobre a escolha e medida da pena. Porém, para além de terminar pedindo apenas a absolvição por erro de julgamento da matéria de facto, nem na motivação nem nas conclusões se encontra um único argumento para sustentar a mínima discordância sobre a pena aplicada. Isso significa que a pretensão do recorrente, de ver reapreciada a pena – se não tiver resultado de lapso – carece em absoluto de fundamentação. Por isso, não será aqui tratada.

Do exposto resulta que a única questão a decidir é a de saber se houve erro de julgamento da matéria de facto, quando se deu como provada a taxa de álcool no sangue com que o arguido conduzia.

3. Fundamentação

3.1. Factos provados na sentença recorrida

O tribunal considerou provados os seguintes factos (referem-se apenas os factos relevantes para a tipificação, visto que, não estando em causa a determinação da pena, os factos relativos às circunstâncias pessoais não importam para o objeto do presente recurso):

1. No dia 24/06/2023, cerca das 03:35 horas, o arguido conduziu o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula …, na via pública, na Estrada Nacional …, concelho de …, após ter ingerido bebidas alcoólicas;

2. Nas referidas circunstâncias de tempo, modo e lugar, o arguido apresentava uma taxa de álcool no sangue de, pelo menos, 1,634 gramas por litro (correspondente à TAS registada, de 1,72, após desconto do valor de erro máximo admissível);

3. O arguido bem sabia ou pelo menos admitiu como possível que a qualidade e a quantidade de bebidas alcoólicas que ingeriu até momentos antes de iniciar a condução determinar-lhe-iam uma taxa de álcool no sangue superior a 1,2 g/l mas, ainda assim, não se absteve de conduzir tal veículo em via pública, o que quis e fez, de modo livre, voluntário e consciente da censurabilidade e punibilidade criminal da sua conduta.

3.2. Erro de julgamento da matéria de facto

O recorrente, depois de dizer que visava impugnar a matéria de facto, nos termos previstos no artigo 412º nºs 3 e 4 do CPP, acabou por invocar, também, os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de erro notório na apreciação da prova, previstos no artigo 410º nº 2 als. a) e c), respetivamente.

Porém, trata-se de errada qualificação do vício alegado e do fundamento de recurso. Os vícios do artigo 410º têm de resultar ostensivamente do texto da sentença, por si só ou conjugado com as regras da experiência. São erros fundamentais de raciocínio ou de exposição que a simples leitura de sentença revela. Quando, ao contrário, o que está em causa é uma desconformidade entre a interpretação que o tribunal retirou das provas e a que, na perspetiva de quem recorre, deveria ter retirado, ao ponto de ser necessário reexaminar essas provas para conhecer o recurso, é manifesto que o vício invocado não resulta da mera leitura da decisão e que, consequentemente, não se enquadra nas situações do referido artigo 410º.

O recorrente afirma que a prova produzida em julgamento era insuficiente para o tribunal ter dado os factos como provados. Só que, na al. a) do nº 2 do artigo 410º, o que está em causa não é isso, mas sim os factos provados e não provados serem insuficientes para fundamentar a decisão de direito. Do mesmo modo, afirma que existe uma desconformidade entre a prova analisada e a fundamentação da sentença. Todavia, o erro notório a que se refere a al. c) daquele preceito legal corresponde a um vício de raciocínio ou de exposição ostensivo na sentença e não a uma divergência subjetiva sobre a apreciação da prova.

Fica, assim, nítido que o objeto da controvérsia que temos de decidir é apenas se há erro de julgamento da matéria de facto, impugnável nos termos do artigo 412º nºs 3 e 4 do CPP.

Os requisitos formais de alegação foram observados. O recorrente indicou especificamente o facto que considera mal julgado e as provas que tem por relevantes para sustentar o erro que aponta à decisão recorrida: concretamente, o depoimento de uma testemunha, cujos segmentos relevantes transcreveu e localizou no respetivo registo áudio.

Importa, previamente, definir os limites dos poderes de cognição do tribunal de recurso para alterar a decisão da matéria de facto.

O sistema instituído, de reapreciação dos erros de julgamento em recurso, baseia-se num princípio de maior fidedignidade da apreciação da prova em primeira instância. Por isso é que a lei obriga o recorrente a especificar as provas que impõem decisão diversa da recorrida e não apenas as que permitem ou indiciam uma interpretação diferente daquela a que chegou o tribunal. Essa maior fidedignidade decorre, sobretudo, da regra da imediação, que garante a relação de contacto pessoal e direto entre o julgador e os meios de prova, mas também dos poderes conferidos ao juiz para analisar provas diferentes das apresentadas e para examinar direta e pessoalmente os depoimentos das testemunhas e outras provas, quando posta em confronto com os procedimentos mais limitados do tribunal de recurso, em que a prova é analisada maneira indireta, fragmentada e mediata.

Sendo assim, não compete ao tribunal de recurso fazer um segundo julgamento, reapreciando todas as provas de forma completa, mas apenas fiscalizar eventuais erros da decisão da matéria de facto apontados especificamente pelo recorrente, através do reexame da prova, na medida do que se revelar necessário.

Por outro lado, o julgamento da matéria de facto está sujeito ao princípio da livre apreciação estabelecido no artigo 127º do CPP. A lei concede ao julgador uma ampla margem de discricionariedade para valorar as provas, através de um exame crítico, vinculado a critérios objetivos jurídico-racionais e às regras da lógica, da ciência e da experiência comum, que tem de ser explicitado na fundamentação da sentença.

A formação da convicção positiva sobre a veracidade do facto controvertido, contudo, só é admissível de acordo com aquele princípio se não existirem fatores de dúvida séria. O critério da dúvida razoável, como fator de análise e decisão da prova, limitador do princípio da livre apreciação, significa que a convicção sobre a veracidade do facto incriminatório só é admissível se não existir uma situação objetivamente intransponível de dúvida fundada e motivada na razão; isto é, uma dúvida que o tribunal tenha procurado remover e seja compreensível de acordo com uma avaliação racional e sensata.

Portanto, em resumo, para que em recurso se possa modificar a decisão de facto tomada em primeira instância, não basta alegar uma interpretação da prova alternativa à do tribunal. É preciso demonstrar que a decisão do tribunal é errada ou implausível ou, ao menos, que a versão dos factos proposta pelo recorrente em alternativa à acolhida na sentença é tão plausível como aquela.

Estamos agora em condições de avançar para a análise do caso em apreço.

Diz-se no recurso, resumidamente, que o aparelho de pesquisa de álcool no sangue deu erro várias vezes, sugerindo-se que estava avariado e que o seu resultado não é confiável, não se podendo, em consequência, determinar a taxa de álcool no sangue com que o arguido conduziu com o grau de certeza exigível em processo penal. Chama-se a atenção para o depoimento da testemunha BB, militar da GNR que interveio na ação de fiscalização, que referiu que o aparelho tinha avaria e deu erro várias vezes.

Na motivação da decisão de facto ditada oralmente para a ata verifica-se, em síntese, que o tribunal deu aquele facto como provado com base no depoimento da referida testemunha, que relatou a ação de fiscalização nos termos que constam no auto de notícia e no talão extraído do aparelho de teste, corroborado pelos depoimentos do Guarda DD e da Furriel CC, elementos da GNR que também tiveram intervenção na ação e pela certificação do aparelho. Foi referida a condução do recorrente em contramão na rotunda, a realização do primeiro teste no local, a sua indecisão quanto à realização de contraprova, a condução ao Posto Territorial de …, a nova indecisão neste local e por fim a submissão a novo teste, só concretizado à quarta tentativa.

Verificada a prova oral que se encontra registada, afigura-se-nos óbvio que o recorrente não tem razão. Ao contrário do que alega quando isola os trechos do depoimento da testemunha BB que mais lhe interessam, o que a mesma disse não foi que a máquina estava com anomalia, mas sim que o arguido mostrou dificuldade em soprar e que o erro do aparelho tinha a ver com a forma do sopro. De resto, no próprio recurso se reconhece que esta testemunha nem sequer assistiu à realização do teste, pois encontrava-se noutro local a tratar do expediente. O que a testemunha referiu foi-lhe dito pela Furriel CC que, essa sim, estava junto do recorrente e que foi clara quando disse que o que o aparelho assinalou várias vezes foi inibição ou interrupção de sopro, o que se deve ao utilizador, à forma como realiza o teste, e não á máquina.

Não há, portanto, a mínima dúvida sobre o funcionamento normal do aparelho que, para além do mais, como referido pelo tribunal na motivação, estava certificado e depois daquela ocasião funcionou normalmente inúmeras vezes.

A situação que o recorrente descreve, de dificuldade em realizar um teste de pesquisa de álcool no sangue conclusivo, só pode ter-se ficado a dever à sua falta de vontade. E isso é absolutamente compatível com outros factos que se conhecem. O recorrente fez uma rotunda em contramão, não conseguia decidir-se se queria ou não fazer a contraprova depois do primeiro teste e em julgamento acabou por sugerir não ter a certeza de ter sequer feito qualquer manobra perigosa. Tudo isso mostra que conduzia bastante alcoolizado – como o teste revela – e que procurou iludir o segundo teste, como a experiência comum nos diz ser muito frequente acontecer.

Os argumentos do recurso para pôr em crise o acerto da decisão recorrida são assim improcedentes. Não pode haver dúvida sobre a fidedignidade do resultado do teste de pesquisa de álcool no sangue por uma suposta avalia do aparelho. A explicação alterativa trazida no recurso, visando criar uma dúvida séria, não é plausível nem se adequa minimamente às regras da experiência comum. Das provas indicadas pelo recorrente não resulta que a convicção a que o tribunal chegou e que motivou de forma compreensível seja inverosímil ou sequer duvidosa.

O recurso improcede.

4. Decisão

Pelo exposto, acordamos em julgar improcedente o recurso e em confirmar a sentença recorrida.

Fixa-se em 4 UC a taxa de justiça devida pelo recorrente.

Évora, 3 de dezembro de 2024

Manuel Soares

Jorge Antunes

Laura Maurício