I. A livre apreciação da prova pelo tribunal, constitui um processo racional, assente na lógica e limitado por regras legais imperativas (como as respeitantes às proibições de prova (artigos 126.º e 126º CPP), pelo valor especial da prova pericial (artigo 163.º CPP), pelo especial valor probatório de documentos autênticos e autenticados (artigo 169.º CPP), pelas limitações do depoimento indireto, sobre vozes públicas ou convicções pessoais (artigos 129.º e 130.º CPP) e pela proibição de valoração de provas não produzidas na audiência (artigo 355.º CPP).
II. Só o tribunal, órgão jurisdicional impregnado das características de independência, de imparcialidade e da necessária preparação técnica, tem o poder de julgar. Com o contraponto da imperatividade da motivação da sua decisão, nela expondo as razões que estribam os juízos efetuados relativamente aos factos julgados provados e não provados.
III. Daí que o sucesso da arguição de erro de julgamento se não baste com a mera transcrição de depoimentos testemunhais, estribados em conhecimento limitado dos acontecimentos relativos à causalidade relevante, com eles se pretendendo infirmar o juízo escorado em prova pericial, a qual, nos termos da lei, se presume subtraída à livre apreciação do julgador.
BB deduziu contra o arguido/demandado um pedido de indemnização civil, fundado na morte da vítima, sua mãe, por atuação negligente deste, requerendo a respetiva condenação, no pagamento da quantia de 90 000€, a título da perda do direito à vida por banda da falecida e danos não patrimoniais sofridos pelo próprio.
A final o tribunal proferiu sentença, absolvendo o arguido/demandado da prática do crime que lhe fora imputado e do pedido civil contra si deduzido, por considerar inverificado o nexo causal entre a atuação do arguido e o decesso da malograda mãe do demandante.
b) Inconformado com esta decisão, preconizando que «a acusação e o pedido de indemnização civil deveriam proceder, por provados, dela recorre o demandante civil, sustentando no essencial que:
- os factos julgados não provados, alinhados na sentença sob as alíneas A. a E., ao contrário do que foi decidido, estão demonstrados pelas provas produzidas na audiência e documentadas nos autos, designadamente nos depoimentos das testemunhas, relatório pericial e declarações em audiência prestadas pelo perito; pois que «se a prova documental junta aos autos e a prova produzida em audiência de julgamento e gravada digitalmente for devidamente analisada, avaliada e sopesada, se verificará que deveriam ter sido considerados como provados os factos referidos no capítulo anterior. Existindo prova testemunhal e documental que impunha decisão diversa, devendo aqueles factos ter sido julgados como provados, não podendo o Tribunal a quo, ter julgado – como julgou - não provada a factualidade acima referida [119.º e 120.º da motivação];
- o tribunal firmou-se no relatório pericial e esclarecimentos prestados pelo perito na audiência, desconsiderando os depoimentos das testemunhas e demais prova documentada;
- daí que haja «uma deficiência na formação da convicção do tribunal (artigo 127.º)»;
- sendo ademais «patente a suficiência para a decisão da matéria de facto não provada, subsistindo uma vez mais os erros notórios na apreciação da prova, de acordo com a al. c) do n.º 2 do art.º 410.º do CPP»;
- para além de uma falha na gravação dos esclarecimentos prestados pelo perito na audiência, constituindo isso uma nulidade;
- finalmente, se se considerar inexistirem elementos suficientes nos autos que permitam a condenação do arguido, deverá «a douta sentença (2) ser anulada e o processo remetido para novo julgamento, nos termos do art.º 426.º do CPP»!
c) Respondeu o Ministério Público lembrando que o recorrente é apenas parte civil (e não assistente), não tendo legitimidade para se intrometer na matéria penal.
E que não tendo a prova confirmado o nexo causal entre a alegada violação de deveres funcionais (legis artis) por banda do arguido e o resultado morte, a absolvição é apenas o desfecho lógico.
d) Também o arguido respondeu ao recurso, considerando, no essencial, que as provas produzidas não demonstram o nexo causal, pelo que o recurso carece de fundamento.
e) O Ministério Público teve vista nos autos, nada consignando a exigir contraditório.
f) Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, cumpre agora, em conferência, apreciar e decidir.
II – Fundamentação
1. Delimitação do objeto do recurso
O âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 412.º, § 1.º CPP) (3).
As questões a examinar, suscitadas no recurso, pela ordem racionalmente pressuposta na lei adjetiva, são as seguintes: i. Nulidade por preterição da gravação de atos da audiência; ii. Vícios da decisão recorrida (410.º, § 2.º, als. a) e c) CPP); iii. Erro de julgamento da questão de facto.
2. Conhecendo do mérito do recurso
2.0 Nota prévia
O recorrente é meramente parte civil, tendo no âmbito do processo penal legitimidade e interesse em agir cingido à questão civil (artigos 74.º, § 2.º, 400.º, § 3.º e 403.º, § 2.º, al. b) CPP), balizada esta pelo critério da sucumbência, aferido pela relação entre o que se pediu e o que foi decidido. Daí que todas as considerações feitas no recurso em matéria estritamente penal (e são várias) se considerarão não escritas.
2.1 Da nulidade por preterição dos atos da audiência
Alude o recorrente a deficiência da gravação quanto aos esclarecimentos prestados na audiência de julgamento pelo perito nela ouvido, o que a seus olhos constitui nulidade que este Tribunal deverá reconhecer e declarar. Atentemos, pois. A obrigatoriedade da gravação dos atos da audiência tem uma relevância óbvia, no contexto da documentação dos atos e nomeadamente das provas orais produzidas em audiência, nomeadamente para o controlo que pode vir a ser necessário fazer no âmbito de recurso sobre o julgamento da matéria de facto. Razão pela qual a lei comina a falta dessa documentação com nulidade (artigos 363.º e 364.º, § 1.º CPP. Mas neste caso o recorrente não tem razão. Por duas ordens de razões. Em primeiro lugar porque constatando-se algumas deficiências na gravação efetuada, as declarações prestadas são perfeitamente audíveis, ainda que com algum esforço, conforme se comprova ouvindo-as (como fizemos). Em segundo lugar, conforme o Supremo tribunal de Justiça já fixou no acórdão 13/2014, de 3jul2014, a ocorrer circunstância determinativa de tal nulidade, a mesma «deve ser arguida perante o tribunal de 1.ª instância, em requerimento autónomo, no prazo de 10 dias, a contar da data da sessão da audiência em que tiver ocorrido a omissão da documentação ou a deficiente documentação das declarações orais, acrescido do período de tempo que mediar entre o requerimento de cópia da gravação, acompanhado do necessário suporte técnico, e a efetiva satisfação desse pedido pelo funcionário, nos termos do n.º 3 do artigo 101.º do mesmo diploma, sob pena de dever considerar-se sanada.» Em suma: não há deficiência relevante. E mesmo que a houvesse, a nulidade relativa já estaria consolidada, posto que deveria ter sido suscitada perante o tribunal de 1.ª instância, o que não ocorreu, pelo que este fundamento do recurso se mostra manifestamente improcedente.
2.2 Dos vícios da decisão recorrida
O recorrente sustenta padecer a sentença dos vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; e de erro notório na apreciação da prova (artigo 410.º, § 2.º, al. a) e c) CPP).
Fá-lo do seguinte modo: «é patente a suficiência para a decisão da matéria de facto não provada, subsistindo uma vez mais os erros notórios na apreciação da prova, de acordo com a al. c) do n.º 2 do art.º 410.º do CPP» (128.º da motivação); «o recorrente entende que se verifica um manifesto erro na apreciação da prova, de flagrante desconformidade entre os elementos probatórios disponíveis e a decisão do Tribunal recorrido sobre matéria de facto, nos termos do disposto na al. c) do n.º 2 do art.º 410.º do CPP (131.º da motivação); «é patente a suficiência para a decisão da matéria de facto não provada, subsistindo uma vez mais os erros notórios na apreciação da prova, de acordo com a al. c) do n.º 2 do art.º 410.º do CPP (conclusão 36.º); e «o recorrente entende que se verifica um manifesto erro na apreciação da prova, de flagrante desconformidade entre os elementos probatórios disponíveis e a decisão do Tribunal recorrido sobre matéria de facto, nos termos do disposto na al. c) do n.º 2 do art.º 410.º do CPP» (conclusão 41.º)! Entendamo-nos, em primeiro lugar, sobre o que são os vícios da decisão previstos no § 2.º do artigo 410.º do CPP, porquanto parece que o recorrente os confunde com o erro de julgamento, sendo este, coisa distinta. Com efeito, no § 2.º do normativo citado prevê-se que o recurso possa ter por fundamento uma qualquer das hipóteses previstas nas suas três alíneas, «desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só, ou conjugado com as regras da experiência comum.» Porque se cura de vício da decisão (e não de erro de julgamento sobre factos concretos), o seu conhecimento é oficioso, conforme o preceito citado expressamente refere. Respeitam tais vícios àquelas situações em que não é possível tomar uma decisão (ou uma decisão correta e rigorosa) sobre a questão de direito, em razão de a matéria de facto se revelar ostensivamente insuficiente, por se fundar em manifesto erro de apreciação ou quando assentar em premissas que se mostrem contraditórias. Respeitam, pois, tais vícios, à perfeição formal da decisão sobre a matéria de facto, cuja verificação há de necessariamente ser evidenciada pelo próprio texto da decisão recorrida, pois se trata de vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, de tal forma que tornam impossível uma decisão logicamente correta e conforme à lei. Os quais são logo apreensíveis pela simples leitura do respetivo texto, sem recurso a quaisquer elementos externos a ela, impeditivos de bem se decidir tanto ao nível da matéria de facto como de direito.
O Supremo Tribunal de Justiça (4) vem entendendo, uniformemente, que o conceito de insuficiência da matéria de facto provada, significa que os factos apurados e constantes da decisão recorrida são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem - absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. - e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência, vista a sua importância para a decisão.
Quer-se dizer, ocorre quando, da factualidade vertida na decisão sob recurso, se colhe que faltam elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição e decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados ou tenham resultado da discussão. Já relativamente ao erro notório na apreciação da prova, este ocorre quando o tribunal dá como provado ou não provado determinado facto, quando a conclusão lógica seria a contrária, já por ofender princípios ou leis formulados cientificamente, nomeadamente das ciências da natureza e das ciências físicas ou contrariar princípios gerais da experiência comum das pessoas, já por se ter violado ou postergado um princípio ou regra fundamental em matéria de prova. (5) Tendo esse erro ser tão clamoroso que não passa despercebido ao cidadão comum (a um homem médio). Ora, não só o recorrente não aponta onde moram os vícios que alega, como conferindo o texto da decisão recorrida nela os não vislumbramos! O que deveras sucede é que o tribunal fez um juízo sobre o conjunto da prova, do qual o recorrente discorda, na medida em que no seu entendimento, as declarações das testemunhas (conforme em extensa assentada transcreve nas motivações do recurso) contrariam a afirmação categórica do perito, no sentido de não considerar - como é convicção do recorrente - que a decisão do arguido de dar alta à paciente CC e consequente falta de intervenção médica, foi a causa da morte desta. Sucede que daqui não emerge vício da decisão, designadamente nenhum dos assinalados pelo recorrente, porquanto do texto desta, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, não resulta (menos ainda clamorosamente ou com toda a evidência – id est que não passe despercebido ao cidadão comum) conclusão contrária àquela a que chegou o tribunal recorrido Que factos faltam na decisão recorrida para se lograr a solução justa do caso? O recorrente não indica! E que provas foram valorizadas pelo tribunal recorrido contra critérios legalmente fixados ou que estão manifestamente contra as regras da experiência comum? O recorrente também não assinala! Perscrutada a decisão recorrida constata-se que os factos provados (e sobretudo os não provados) sustentam a decisão de direito que se tomou. E não se vê que o tribunal tenha valorado prova proibida, ou contrariado imperativo normativo relativo às provas nem que as valoradas se mostrem contrárias às máximas da experiência comum. Dai que tenha de se concluir pela insubsistência deste fundamento do recurso. Sendo, pois, insubsistente este fundamento do recurso.
3.2 Do erro de julgamento da questão de facto
O recorrente manifesta a sua discordância quanto a todos os pontos da matéria de facto que o tribunal recorrido julgou não provada (als. A. a E.), por entender que o conjunto das provas produzidas, nomeadamente o que foi dito na audiência pelo arguido e pelas testemunhas DD e EE (enfermeiros); e FF (marido da falecida) e BB (filho da falecida), impõe que devam considerar-se provados. Mas não tem razão. Reproduzamos os factos em causa (impugnados pelo recorrente) e a motivação constante da sentença que a eles respeita, para tornar claro o que porventura ainda possa estar turvo. Refere a sentença recorrida que:
«Com relevância para a boa decisão da causa, não se provou que:
A. BB sofreu enfarte do miocárdio associado a miocardite aguda e o desfecho narrado no ponto 13) dos Factos Provados em consequência de falta de intervenção médica.
B. A decisão de dar alta médica a BB nas circunstâncias mencionadas, levada a cabo pelo arguido, colocou aquela em situação de perigo para a sua vida, que se veio a concretizar no respetivo falecimento.
C. A morte de BB foi consequência direta e necessária das omissões por parte do arguido, das precauções e cautelas exigíveis pelas regras de atuação médica.
D.Com a conduta descrita, o arguido impediu que houvesse a possibilidade de intervenção médica eficaz na prevenção ou ultrapassagem do problema cujos sintomas eram detetáveis, levando à morte de BB.
E. O arguido representou a possibilidade de BB ter um enfarte e dele vir a falecer, mas sendo que tal resultado poderia ser evitado, atentos todos os procedimentos de vigilância de que dispunha e as circunstâncias em que se desenrolou o acompanhamento de BB.
(…)
* ã Fundamentação da Matéria de Facto e Exame Crítico da Prova. A convicção do Tribunal assentou na análise crítica da prova produzida, que consistiu: i) nas declarações prestadas pelo arguido; ii) nas declarações prestadas pelas testemunhas FF (viúvo da falecida BB, …, que não conhece o arguido, e, para além de factos diretamente relacionados com os presente autos, nada tem contra este), BB (filho da falecida BB, …, que não conhece o arguido, e, para além de factos diretamente relacionados com os presente autos, nada tem contra este), DD (enfermeiro que exerce essa mesma profissão no …, colega de trabalho e amigo do arguido, com quem já participou em atividade com o escopo de ajudar o país de origem do arguido – … – através do envio de livros e medicamentos, que efetuou a BB a primeira triagem em causa nos autos – no âmbito das suas funções profissionais de enfermeiro –, que nada tem contra a pessoa do arguido), EE (enfermeira que exerce essa mesma profissão no…, que conhece o arguido por ser seu colega de trabalho, que conhecia BB antes da situação em causa nos autos por ser da mesma localidade onde reside, que dentro do … – no âmbito das suas funções profissionais de enfermeira – auxiliou o arguido na situação em causa nos autos, que nada tem contra o arguido), GG (enfermeira que exerce essa mesma profissão no …, que conhece o arguido por ser seu colega de trabalho, que efetuou a BB a segunda triagem em causa no processo – no âmbito das suas funções profissionais de enfermeira –, que nada tem contra o arguido), CHH (enfermeira que exerce essa mesma profissão no …, que conhece o arguido por ser seu colega de trabalho, que no âmbito da situação em causa nestes autos procedeu a manobras de reanimação de BB – na sua qualidade de enfermeira –, que nada tem contra o arguido), II (amigo próximo de BB, com quem inclusive partilha habitação na urbe de … – no … – e com quem já foi sócio no âmbito de uma loja …, que não conhece o arguido, nada tendo contra este), JJ (amiga próxima de BB, que o considera como seu “melhor amigo”, que não conhece o arguido, nada tendo contra este) e KK (amiga próxima de BB, que não conhece o arguido, nada tendo contra este); iii) nas declarações do Senhor Perito Ls [Médico de Medicina Geral e Familiar com Competência em Geriatria, Professor Doutor na Faculdade de Medicina da Universidade do…, que no âmbito do exercício da sua profissão elaborou Relatório Pericial Ordem dos Médicos junto ao processo a fls. 115 a 118, “vide”, também Ref.ª CITIUS n.º …, de 06.06.2022, que não conhece o arguido a não ser da situação em causa nos autos, nada tendo contra este]; iv) no teor do conspecto documental constante dos autos [do qual se destaca: Boletim de Informação Clínica (de fl. 3); Certificado de Óbito n.º 1006651962 (de fls. 16 e 17); Registos Clínicos (de fls. 42 a 59) ; Boletim de Admissão ao Serviço de Urgência de … (de fls. 95 e 95 verso); Assento de Nascimento n.º 5835 do ano de 2009 (de fls. 178 e 179); Assento de Casamento n.º 3334 do ano de 2014 (de fls. 180 e 181); Assento de Óbito n.º 246 do ano de 2019 (de fl. 182); TMenu – Identificação Civil (Pesquisa por nome) (de fls. 183 e 184); Documento junto em audiência de discussão e julgamento (“vide”, Ref.ª CITIUS n.º 34236535, de 27.02.2024); bem como CRC atual do arguido junto ao processo (cfr. Ref.ª CITIUS n.º 2740406, de 30.04.2024)]; e v) na prova pericial realizada [consubstanciada em: Relatório de Autópsia Médico – Legal (de fls. 26 a 30); Análise Histológica (de fls. 32 e 32 verso); Relatório de Autópsia Médico – Legal (de fls. 66 e 66 verso); e Relatório Pericial Ordem dos Médicos (de fls. 115 a 118)]; sobre os quais todas as dúvidas foram esclarecidas em audiência, tudo devidamente apreciado com base nas regras da experiência comum (cfr. artigo 127.º, do CPP).
A convicção do Tribunal formou-se de forma algo previsível e evidente, perante toda a prova produzida em julgamento, afigurando-se de elementar evidência que os factos tenham sido dados como provados (e não provados) nos moldes consignados supra, razão pela qual se não aborda a temática da motivação da matéria de facto de forma exaustiva e/ou minuciosa, pronunciando-se o Tribunal outrossim em moldes mais genéricos. Vejamos.
(…)
No que respeita à matéria dos pontos A) a E), a convicção negativa do Tribunal ficou a dever-se à prova do seu contrário, como se passa de imediato a explicar. Foi para tal fundamental o teor do Relatório Pericial da Ordem dos Médicos (de fls. 115 a 118), em conjugação com a audição do Senhor Perito que o elaborou, que ouvido em audiência o explicou de forma objetiva, com emoções consentâneas com a informação fornecida, encontrando-se o Tribunal esclarecido quanto a essa prova. Efetivamente a tomada de posição do Tribunal de não considerar provado que foi a decisão do arguido de dar alta à paciente BB e consequente falta de intervenção médica a causa da morte, teve por base o aludido Relatório, elaborado pelo referido perito, Médico de Medicina Geral e Familiar com Competência em Geriatria, Professor Doutor da Faculdade de Medicina da Universidade …, que prestou esclarecimentos em audiência de discussão e julgamento.
A forma técnico-científica como tal parecer se encontra elaborado, as comprovadas habilitações e conhecimentos técnicos de medicina do seu autor, e as declarações que prestou em audiência, no âmbito das quais, e sempre que tal se mostrou necessário, conseguiu explicar as conclusões a que chegou de forma absolutamente percetível mesmo a leigos em medicina, revelou a sua seriedade, ponderação, amplos conhecimentos e experiência na matéria, o que levou o Tribunal a conceder-lhe total credibilidade. De tal parecer e declarações resulta de forma inequívoca que BB teve um enfarte de miocárdio associado a miocardite aguda, o que foi causa direta da sua morte, mas que tal resultado não era evitável se tivesse sido outra a conduta do arguido.
Deixando claro que a conduta do arguido foi violadora do que impunham nessas circunstâncias as “leges artis” médicas, mas simultaneamente que, mesmo se ao invés de ter sido dada alta a BB, esta permanecesse internada, com vigilância hospitalar adicional, monotorização e procedimentos considerados medicamente adequados (nomeadamente, realização de novas análises) (6), tal não era suficiente para, naquele caso concreto, evitar ou sequer diminuir o risco da morte, que veio a acontecer em consequência direta do enfarte de miocárdio associado a miocardite aguda que a paciente sofreu.
Tudo conforme ilustram os seguintes excertos retirados do parecer: “A morte da doente foi provocada por tamponamento cardíaco por rutura da parede ventricular no contexto de miocardite e eventual necrose miocárdica. Perante o contexto em que a doente se apresentou no atendimento de 05/08/2019 este diagnóstico não estava estabelecido de forma definitiva, mas era possível entre os diagnósticos diferenciais, o que deveria ter levado a uma orientação distinta da que foi estabelecida. A evolução que se seguiu à alta hospitalar poderia ter sido verificada mesmo que a doente tivesse permanecido sob observação no SUB … ou sido referenciado a centro especializado de cardiologia.” (Negrito e sublinhado nosso.) “A Medicina não é uma ciência exata e o médico não pode garantir um resultado final, mas apenas o rigor na sequência de procedimentos que segue baseado no conjunto de informações disponíveis a cada momento. Não é possível assegurar que procedimentos diferentes tivessem um desfecho diferente, mas neste caso concreto não foram seguidos os procedimentos conforme às boas práticas.”
Por outro lado, estas conclusões periciais não foram colocadas em causa pelos demais meios de prova trazidos ao processo, já que nenhuma outra prova de cariz técnico científico comparável foi produzida.»
A motivação extratada torna clara a sem razão do recorrente. Comecemos por lembrar que a arguição de erro de julgamento não se basta com o facto de o recorrente, com base na sua análise e ponderação sobre as provas, ter formado uma convicção diversa do tribunal. Nem ainda que alguma testemunha tenha referido algo que ele tenha interpretado como contrário ao que o tribunal considerou provado.
Acrescendo que contrariamente ao que subjaz à argumentação do recorrente, a livre apreciação da prova nada tem de «mecânico» nem de «aritmético», sendo um processo racional, assente na lógica e limitado por regras legais imperativas (desde logo pelas proibições de prova – artigo 126.º CPP; mas também pelo especial valor da prova pericial – artigo 163.º CPP; pelas limitações impostas ao depoimento indireto, sobre vozes públicas ou convicções pessoais – artigos 129.º e 130.º CPP; ou pelo especial valor probatório de documentos autênticos e autenticados – artigo 169.º CPP; e pela proibição de valoração de provas não produzidas na audiência – artigo 355.º CPP).
A decisão judicial é necessariamente motivada (7) (e logo passível de controlo - artigo 374.º, § 2.º CPP), sendo esta uma exigência essencial numa sociedade democrática. E o ato de julgar é exclusivo do tribunal, órgão jurisdicional impregnado das características de independência, de imparcialidade e da necessária preparação técnica. A ser doutra forma sempre «estaríamos perante uma inversão da posição dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar, pela convicção dos que esperam a decisão.» (8)
Daí que a crítica à convicção firmada pelo tribunal a quo, sustentada na livre apreciação da prova e nas regras da experiência ou, como sucede neste caso, na avaliação feita com base na prova pericial, não pode ter sucesso se alicerçada apenas na transcrição de depoimentos testemunhais, para mais sem indicação concreta do erro de julgamento (de onde emerge o erro cometido; e que prova[s] concreta[s] impõem decisão diversa – artigo 412.º, § 3.º CPP).
O recorrente não identifica a morada do erro de julgamento que pretende invocar! Limita-se a pedir a este Tribunal que faça um novo julgamento, mas agora apenas com base em transcrições de declarações testemunhais, sem imediação nem oralidade! Clamando que na avaliação das transcrições dos depoimentos testemunhais, se infirme o juízo escorado em prova pericial, a qual, nos termos da lei, se presume subtraída à livre apreciação do julgador (artigo 163.º CPP)!
Como bem refere a sentença recorrida, no passo que se deixou transcrito, é inequívoca a conclusão pericial de que «BB teve um enfarte de miocárdio associado a miocardite aguda, o que foi causa direta da sua morte». E que «tal resultado não era evitável se tivesse sido outra a conduta do arguido.»
Conforme igualmente refere a sentença recorrida, «as conclusões periciais não foram colocadas em causa pelos demais meios de prova trazidos ao processo, já que nenhuma outra prova de cariz técnico científico comparável foi produzida.»
Sendo, pois, inequívoca a inexistência de nexo causal entre a atuação (na circunstância a alegada omissão) concreta do arguido e o resultado verificado, que foi a morte de BB. Nada havendo, pois, a alterar ao julgamento efetuado relativamente à matéria de facto impugnada. Em suma: nenhuma das provas indicadas pelo recorrente (ou a conjugação destas) impõe que se altere o julgamento da decisão de facto relativamente a qualquer dos segmentos indicados pelo recorrente. Não se mostrando, pois, o recurso, merecedor de provimento.
III – Dispositivo
Destarte e por todo o exposto, acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
a) Negar provimento ao recurso e, em consequência, manter integralmente a sentença recorrida.
b) Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC’s.
c) Notifique-se.
Évora, 3 de dezembro de 2024
J. F. Moreira das Neves (relator)
Jorge Antunes
Carla Oliveira
..............................................................................................................
1 A utilização da expressão ordinal (1.º Juízo, 2.º Juízo, etc.) por referência ao nomen juris do Juízo tem o condão de não desrespeitar a lei nem gerar qualquer confusão, mantendo uma terminologia «amigável», conhecida (estabelecida) e sobretudo ajustada à saudável distinção entre o órgão e o seu titular, sendo por isso preferível (artigos 81.º LOSJ e 12.º RLOSJ).
2 Na peça do recorrente, por lapso, consta: «douta sentença condenatória.
3 Cf. acórdão do STJ n.º 7/95, de 19/10/1995 (Fixação de Jurisprudência), publicado no DR, I-A, de 28/12/1995.
4 Cf. acórdão STJ, de 3jul2002, proc. 1748/02-5.ª, citado no CPP, Notas e Comentários, Vinício A. P. Ribeiro, 3.ª ed., 2020, Quid Juris, p. 979.
5 Neste sentido, cf. acórdão STJ, de 29out2015, proc. nº 230/10.7JAAVR.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt,
6 Neste âmbito, veja-se, nomeadamente o seguinte trecho do aludido parecer:
«O resultado do eletrocardiograma num contexto de dor torácica conforme descrita no processo clínico é suspeito para diagnóstico de doença cardíaca, ainda que pouco específico de enfarte agudo do miocárdio. A negatividade das análises das enzimas cardíacas (troponina, mioglobina e CK) na fase em que foram realizadas deveria ter levado a reavaliação seriada conforme as orientações internacionais da Sociedade Europeia de Cardiologia de 2015, atualizadas em 2020, e do Colégio Americano de Cardiologia em conjunto com a Associação Americana do Coração de 2014. A periodicidade dessa avaliação varia de acordo com as orientações seguidas, mas deverá situar-se entre 1 e 3 horas para a primeira avaliação e até às 6 horas para decisão final sobre o diagnóstico e orientação.» (Negrito e sublinhado nosso.)
7 A motivação das decisões judiciais é a outra face do sistema da livre convicção, sendo uma aquisição também da revolução liberal, imposta em França por édito de 7 de maio de 1788 para as decisões em processo criminal e mais tarde estendido a toda a jurisdição (cf. Voltaire, Diccionnaire Philosophique, - in Ouvres Philosophiques, Arvensa, 2020); John Gilissen, Introçpodução histórica ao direito, 2.ª ed., 1995, Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 395/396.
8 Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 198/2004, de 24mar 2004, Cons. Rui Moura Ramos, disponível em www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos