RESPONSABILIDADES PARENTAIS
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
MINISTÉRIO PÚBLICO
Sumário

1 – A competência em matéria de responsabilidade parental relativa a uma criança que reside habitualmente na Alemanha à data em que a acção é instaurada cabe, em princípio, aos tribunais alemães, nos termos do n.º 1 do artigo 7.º do Regulamento (UE) 2019/1111 do Conselho, de 25.06.2019.
2 – O Ministério Público deve ser considerado parte processual para o efeito previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea b), do mesmo Regulamento.
(Sumário do Relator)

Texto Integral

Processo n.º 1683/24.1T8STR.E1

Autor/recorrente: (…).

Ré/recorrida: (…).

Pedido:

Alteração do regime de exercício das responsabilidades parentais relativas a (…), nascido em 24.09.2017, por forma a que este, actualmente a residir com a requerida, na Alemanha, passe a residir com o requerente, em Portugal.

Decisão recorrida:

Julgou procedente a excepção dilatória de incompetência internacional do tribunal, arguida pelo Ministério Público.

Conclusões do recurso:

A. As responsabilidades parentais foram reguladas em Portugal.

B. É em Portugal que residem o pai, a avó materna, as tias paternas e maternas do menor (…) que são pilares importantes na vida do menor e que são essenciais à sua boa formação, educação, ao seu desenvolvimento equilibrado e saudável.

C. O menor reside com a mãe há, somente, 9 meses na Alemanha – conforme acordo firmado entre o pai e a mãe e homologado pelo tribunal competente à data – um tribunal português.

D. Não existe da parte da progenitora intenção de permanência na Alemanha, sendo esta alteração exactamente por esta pretender ir residir com o menor para o Quénia.

E. Os escassos elementos, informações à disposição de um tribunal alemão, não são suficientes para acautelar os superiores interesses da criança, relevando para o caso concreto que a mãe já informou o pai que pretende deixar a Alemanha, indo residir para o Quénia.

F. O menor não tem outros familiares na Alemanha, senão a mãe.

G. É incipiente para o menor os laços à cultura alemã e ao país Alemanha.

H. A mãe já informou o pai que a sua função em (…) havia sido extinta e a sua equipa desagregada, razão pela qual se se decidir no sentido da sua incompetência, em virtude da competência internacional do país (Alemanha) onde o menor (por enquanto reside), não se estaria a salvaguardar o superior interesse do menor.

I. Assim, não pode ser interpretado como país de residência habitual, com vida estabilizada, a Alemanha.

J. A requerida não foi ainda citada. Portanto, só depois do douto Tribunal de Santarém informar a parte do seu direito de não aceitar a competência, poderá esta intervir nos autos para expressar a sua concordância ou discordância em relação à competência do douto Tribunal de Santarém, conforme estipula o 10.º, n.º 1, alínea b), do Regulamento (UE) 2019/1111 do Conselho.

K. E só depois dessa discordância poderá o tribunal se declarar incompetente.

L. O conceito de "partes" no processo, conforme estabelecido pelo Regulamento (UE) 2019/1111 e pela jurisprudência do TJUE, deve ser interpretado de forma restritiva.

M. O regulamento visa proteger o interesse superior da criança, mas não deve ser utilizado para restringir a autonomia dos pais na escolha do tribunal competente.

N. O papel do MP é essencial, mas não deve ser confundido com uma posição de "parte" que tenha poder absoluto para invalidar acordos parentais sobre competência judicial.

O. Deverá ser citada a requerida do seu direito de não aceitar a competência, de modo a que esta possa intervir nos autos para expressar a sua concordância ou discordância em relação à competência do douto Tribunal de Santarém.

P. Só posteriormente a este requerimento poderá o douto Tribunal de Santarém se considerar ou não competente para julgar e conhecer o presente processo.

Questão a decidir:

Competência internacional do tribunal a quo.


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As conclusões do recurso assentam em duas ideias fundamentais:

1.ª – Para o efeito previsto no n.º 1 do artigo 7.º do Regulamento (UE) 2019/1111 do Conselho, de 25.06.2019 (doravante designado por Regulamento), não pode considerar-se que o menor tenha a sua residência habitual na Alemanha;

2.ª – Para o efeito previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 10.º do Regulamento, o Ministério Público não é parte no processo; logo, o tribunal apenas poderá declarar-se internacionalmente incompetente se, após ter sido ser citada e informada de que tem o direito de não aceitar a competência, a requerida exercer este direito.

Analisemo-las.

1. De acordo com a petição inicial, o menor reside na Alemanha, com a requerida, desde 25.09.2023. A acção foi proposta em 06.06.2024. Apesar disso, o recorrente afirma que, para o efeito previsto no n.º 1 do artigo 7.º do Regulamento, não pode considerar-se que o menor tenha a sua residência habitual na Alemanha. Porém, nenhuma das razões por ele invocadas sustenta tal afirmação.

O facto de as responsabilidades parentais terem sido reguladas em Portugal nada significa. Essa regulação foi feita em Portugal, mas o menor passou, posteriormente, a residir na Alemanha. Não é por essa regulação ter sido feita em Portugal que o menor se considerará necessariamente residente no nosso país até à maioridade. O menor terá, em cada momento, a sua residência onde se encontrar de forma duradoura e fizer a sua vida com carácter de estabilidade.

O facto de ser em Portugal que residem o recorrente, a avó materna e as tias paternas e maternas também são irrelevantes para a determinação da residência do menor. Encontrando-se o menor na Alemanha desde 25.09.2023, com o progenitor a cuja guarda se encontra, é na Alemanha que ele reside, independentemente do local onde cada um dos restantes familiares vivam.

A duração da permanência do menor na Alemanha é mais que suficiente para que se deva considerar que ele aí reside. De forma alguma poderá considerar-se que o menor aí se encontre pontualmente ou de passagem. Como o tribunal a quo acertadamente salienta, «não se tratou de uma alteração transitória e meramente episódica, sem contornos de continuidade e permanência, que permitisse concluir que a morada da criança permanecia em Portugal».

Com uma permanência tão longa, forçosamente o menor foi recenseado como residente na Alemanha para todos os efeitos aí considerados necessários, nomeadamente para frequentar o sistema de ensino e beneficiar de protecção social. Sendo assim, o menor encontra-se integrado na sociedade alemã, como qualquer outra criança que viva na Alemanha. Não há razão para desvalorizar os laços que o menor haja criado com o meio social em que vive.

Uma hipotética intenção da requerida de ir residir para o Quénia em nada prejudica o facto de o menor residir actualmente na Alemanha.

O mesmo se diga do facto de o único familiar que o menor tem na Alemanha ser a requerida. Decisiva para a determinação da residência do menor é a do progenitor a cuja guarda ele se encontra.

É, pois, fora de dúvida que a residência habitual do menor é na Alemanha, pelo que, nos termos do n.º 1 do artigo 7.º do Regulamento, a competência para a acção de alteração do regime de exercício das responsabilidades parentais relativas àquele cabe, em princípio, aos tribunais alemães.

2. O recorrente sustenta que, para o efeito previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 10.º do Regulamento, o Ministério Público não é parte no processo. Argumenta nos seguintes termos:

- O conceito de partes no processo, conforme estabelecido pelo Regulamento e pela jurisprudência do TJUE, deve ser interpretado de forma restritiva;

- O Regulamento visa proteger o interesse superior da criança, mas não deve ser utilizado para restringir a autonomia dos pais na escolha do tribunal competente, salvo quando essa escolha prejudicar claramente o interesse superior do menor;

- O papel do Ministério Público como defensor do interesse do menor não deve ser confundido com o de uma parte processual equiparada aos pais, com um poder absoluto para invalidar acordos parentais sobre competência judicial.

Nenhuma destas afirmações encontra sustentação nos normativos relevantes para a resolução da questão que o recorrente suscita, sejam eles de natureza comunitária ou nacional. Aliás, o recorrente não cuidou de fundamentar qualquer delas.

A alínea b) do n.º 1 do artigo 10.º do Regulamento refere-se às «partes no processo», mas não define quem tem essa qualidade. Todavia, o considerando 23 do Regulamento lança alguma luz sobre a questão, ao explicitar que, «de acordo com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, qualquer pessoa, que não os pais, que, de acordo com o direito nacional, tenha a capacidade de ser parte de pleno direito num processo instaurado pelos pais, deverá ser considerada parte no processo para efeitos do presente regulamento e, por conseguinte, a oposição dessa parte à escolha do tribunal efetuada pelos pais da criança em causa, depois da data em que o processo foi instaurado, deverá impedir que seja determinada a aceitação do prolongamento da competência por todas as partes no processo a essa data».

Este trecho permite-nos chegar, desde já, a duas conclusões:

1.ª – Inexiste fundamento para interpretar de forma restritiva o conceito de partes no processo para os efeitos estabelecidos no Regulamento. O trecho do considerando 23 que transcrevemos inculca precisamente o contrário, ao prever expressamente que, além dos pais, deverá ser considerada parte no processo qualquer pessoa que, de acordo com o direito interno, tenha a capacidade de ser parte de pleno direito num processo instaurado pelos pais.

2.ª – A amplitude do conceito de parte processual adoptado pelo Regulamento visa, além do mais, possibilitar que, em homenagem ao princípio da prevalência do interesse do menor, outras pessoas ou entidades com competência nesta matéria nos termos do direito interno impeçam a escolha, pelos pais, de uma jurisdição diversa daquela que decorre do n.º 1 do artigo 7.º.

Assim ficam refutados os dois primeiros argumentos que o recorrente apresentou. Analisemos o terceiro.

Como vimos, o Regulamento remete para o direito interno no que concerne à delimitação de quem pode ser parte no processo. Interessa-nos, pois, o que o Direito Português estabelece sobre a qualidade em que o Ministério Público intervém nos processos relativos ao regime do exercício das responsabilidades parentais.

O artigo 4.º, n.º 1, alínea i), do Estatuto do Ministério Público, enumera, entre as atribuições desta magistratura, a de assumir, nos termos da lei, a defesa e a promoção dos direitos e interesses das crianças e jovens. O artigo 9.º, n.º 1, alínea d), do mesmo diploma, estabelece que o Ministério Público tem intervenção principal nos processos quando assume, nos termos da lei, a defesa e a promoção daqueles direitos e interesses. Na mesma linha, o n.º 1 do artigo 17.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível atribui o poder de iniciativa processual ao Ministério Público, a par da criança com idade superior a 12 anos e dos ascendentes, irmãos e representante legal desta.

Ter intervenção principal num processo para nele cumprir um dever de defesa e promoção de direitos e interesses que a lei que põe a seu cargo implica actuar como parte nesse processo. Sendo assim, concluímos que o Ministério Público deverá ser considerado parte processual para o efeito previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea b), do Regulamento. Consequentemente, a sua oposição, já manifestada, a que o processo de alteração do regime de exercício das responsabilidades parentais corra num tribunal português obsta, por si só, à derrogação da regra do n.º 1 do artigo 7.º ao abrigo do disposto no artigo 10.º.

Decorre do exposto que, por aplicação do n.º 1 do artigo 7.º do Regulamento, a competência para a presente acção cabe aos tribunais da Alemanha, sendo o tribunal a quo internacionalmente incompetente. Este último decidiu correctamente, devendo o recurso improceder.


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Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas a cargo do recorrente.

Notifique.


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Sumário: (…)

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Évora, 05.12.2024

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

Isabel de Matos Peixoto Imaginário (1.ª adjunta)

Cristina Dá Mesquita (2.ª adjunta)