PLANO DE RECUPERAÇÃO
APROVAÇÃO
HOMOLOGAÇÃO
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Sumário

1. O princípio da igualdade dos credores não proíbe o estabelecimento de distinções entre eles, apenas proíbe diferenças de tratamento sem fundamento material bastante, sem uma justificação razoável, segundo critérios objectivos relevantes.
2. O plano de recuperação pode admitir o diverso tratamento dos credores, fundada na distinta classificação dos seus créditos, mas deve justificar a situação de desvantagem em que é colocada uma classe de credores.
3. Viola o princípio da igualdade um plano de recuperação obtido exclusivamente à custa dos credores comuns, impondo-lhes um ónus desproporcionado e irrazoável.
4. Tal é o que sucede num plano que prevê o integral pagamento dos credores privilegiados e garantidos, em três anos, e impõe aos credores comuns – que são a maioria – a redução dos seus créditos a 60% e o pagamento em 10 anos, com o primeiro de carência.
5. O artigo 218.º, n.º 1, do CIRE pode ser afastado por disposição expressa do plano em sentido diverso que fixe requisitos mais exigentes para a perda de eficácia do perdão ou da moratória daquele resultantes.
6. Uma cláusula que prevê que o incumprimento do plano de recuperação “não determinará que a moratória e o perdão previstos no plano fiquem sem efeito, ainda que a devedora se encontre em mora, seja declarada insolvente ou recorra a novo PER”, premeia o incumprimento e demonstra a desproporção do sacrifício imposto aos credores comuns: não apenas os seus créditos ficam reduzidos a 60% para sempre, como nem sequer têm uma sanção para o incumprimento.
7. A votação de um plano de recuperação traduz um equilíbrio de interesses entre os credores, que votam a globalidade do plano, e não parte ou partes dele.
8. Logo, o juiz não pode partir do pressuposto que sem a cláusula A ou B, o plano seria aprovado ou rejeitado pelos credores – e daí que lhe caiba, simplesmente, homologar ou não homologar o plano, como resulta expressamente do artigo 17.º-F, n.º 7, do CIRE.
9. Constitui violação não negligenciável de normas procedimentais, a não convocação de um dos credores para as negociações – em especial, o terceiro maior credor da devedora e que consta da lista dos cinco maiores credores apresentada no requerimento inicial.
(Sumário do Relator)

Texto Integral

Sumário: (…)

Acordam os Juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

No Juízo de Competência Genérica de Montemor-o-Novo, (…) – Peças (…) por (…), Lda., intentou processo especial de revitalização.
A Requerente apresentou plano de recuperação, o qual foi apresentado a votação e, contados os votos expressos, considerado aprovado.
A sentença decidiu homologar o plano, mas “julg(ar) ineficaz a cláusula que prevê que as garantias pessoais prestadas sejam modificadas na mesma medida em que seja modificado o crédito garantido, ficando a sua eficácia suspensa enquanto o Plano for cumprido pela Devedora”.

Os credores Banco (…), S.A., Caixa (…), S.A., Banco S. (…), S.A., Banco B. (…), S.A., (…) Banco, S.A., que tinham votado desfavoravelmente o plano, e ainda (…) France EURL, que não chegou a votar o plano, apresentaram recurso dessa sentença.
As questões que colocam nos seus recursos – aqui enunciadas sucintamente, nos termos do artigo 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil – são as seguintes:
- violação não negligenciável do princípio da igualdade previsto no artigo 194.º do CIRE;
- violação não negligenciável da regra prevista no artigo 218.º, n.º 1, do CIRE;
- violação não negligenciável da regra prevista no artigo 217.º, n.º 4, do CIRE;
- se o plano podia ser homologado parcialmente;
- violação não negligenciável da regra prevista no artigo 17.º-D, n.º 1, do CIRE – não convocação para as negociações da credora (…) France EURL.

Na resposta da empresa Requerente, sustenta-se a manutenção do decidido.
Dispensados os vistos, cumpre-nos decidir.

O elenco fáctico a ponderar, que resulta de documentos não impugnados e do acordo das partes, é o seguinte:
1- O plano de recuperação prevê, no seu ponto 3.4, o seguinte:
3.4. PROPOSTA DE PLANO DE PAGAMENTOS AOS CREDORES
Através da análise da relação de créditos reconhecidos do Processo PER, foi possível identificar 4 tipos de credores distintos:
Credores Garantidos;
Credores Privilegiados;
Credores Comuns;
Credores Subordinados;
Dando cumprimento ao disposto na alínea d) do número 1 do artigo 17.º-F do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, como Anexo II junta-se a lista final de credores, divididos entre as categorias de credores acima referidas e com a indicação do respectivo crédito reconhecido.
Os trabalhadores da (…) foram continuamente informados e consultados no âmbito do Processo Especial de Revitalização em curso, não estando previstas quaisquer medidas relativamente ao emprego, designadamente, despedimentos, redução temporária dos períodos normais de trabalho ou suspensão dos contratos de trabalho.
Atenta a categorização dos diferentes tipos de créditos identificados, os planos de pagamentos a apresentar são os seguintes:
a) Pagamento dos créditos privilegiados e garantidos:
Pagamento de 100% do valor do crédito no prazo de 3 anos, contados do final do mês seguinte de Despacho de homologação do plano, perfazendo um total de 36 prestações, iguais e sucessivas, com o valor mínimo de € 25,50, vencendo-se juros sobre o referido crédito à taxa legal, juros esses que serão pagos simultaneamente com as prestações de capital. Não haverá redução de coimas ou custas.
b) Pagamento dos créditos comuns:
Pagamento de 60% do valor do crédito no prazo de 10 anos, contados do trânsito em julgado do Despacho de homologação do plano, com uma carência no pagamento de capital e juros nos primeiros 12 meses (prevê-se que essa carência dure até Junho de 2025, inclusive), perfazendo um total de 108 prestações, iguais e sucessivas, com um valor mínimo de € 25,50, vencendo-se juros sobre o referido crédito à taxa fixa de 3,5% ao ano, juros esses que, não sendo capitalizáveis, serão pagos simultaneamente com as prestações de capital.
As prestações mensais de valor inferior a € 500,00 poderão ser agrupadas e pagas num único pagamento trimestral, efectuado até ao final do primeiro mês do trimestre a que disser respeito.
c) Pagamento dos créditos subordinados:
Perdão total de capital e juros, com extinção dos respectivos créditos.
d) Pagamento dos créditos sob condição:
Assim que se considere verificada a condição associada ao crédito, o pagamento segue o regime da respectiva categoria de créditos, de acordo com o previsto em a) a c) supra.
Cláusulas Adicionais ao Plano de Pagamentos
1. Tratamento igual entre os credores:
O princípio da igualdade entre credores foi tido em plena consideração conforme dispõe o artigo 194.º do CIRE, sem prejuízo das diferenciações que sejam justificadas por razões objectivas.
No que diz respeito às Entidades Públicas, a sua diferenciação face aos credores comuns resulta do escopo prosseguido por estas entidades, bem assim como da natureza dos respectivos créditos.
2. Antecipação/encurtamento de prazos de pagamento:
A (…) poderá antecipar os prazos de pagamento aos credores ou encurtar o plano de pagamentos, caso a situação financeira da sociedade o permita.
3. Cessão de Créditos:
a) A (…) autoriza, irrevogável e incondicionalmente os seus credores bancários a:
i. Negociarem, proporem a venda, alienarem ou cederem a terceiro, total ou parcialmente, os créditos (vencidos ou não vencidos) dos referidos credores detidos sobre a sociedade (…), Lda., emergentes de qualquer facilidade de crédito contratada, bem como a transmissão das garantias e outros acessórios dos créditos, incluindo sem limitar os emergentes de contratos de empréstimo ou de mútuo, contratos abertura de crédito, descobertos de conta de depósitos à ordem (contratados ou não contratados), contratos de locação financeira, contratos de factoring e garantias bancárias prestadas,
e/ou.
ii. Negociarem, proporem a transmissão e transmitirem, sem restrições, a terceiro a sua posição contratual em qualquer contrato de crédito, designadamente nos elencados na anterior subalínea;
b) A (…) autoriza, de forma expressa e sem reservas, os Bancos / Instituições Financeiras, nos termos e para os efeitos previstos no n.º 1 do artigo 79.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro, a revelarem, prestarem ou transmitirem, directa ou indirectamente, aos potenciais cessionários mencionados na alínea anterior, todas e quaisquer informações, contratos, documentos ou o conteúdo, total ou parcial, dos mesmos, independentemente do meio de transmissão, respeitantes às relações creditícias que os créditos bancários mantêm com a (…).
4. Créditos constituídos na pendência do Plano:
Os créditos constituídos na pendência do PER ou da execução plano de recuperação que se destinem a financiar a actividade da (…), disponibilizando-lhe capital para a sua revitalização, terão prioridade sobre os créditos reconhecidos, nos termos do artigo 17.º-H do CIRE, o mesmo se aplicando a garantias prestadas com essa finalidade.
A (…) poderá contrair operações de financiamento durante a execução do plano de recuperação sob a forma de locação financeira, venda de activos e recompra em regime de lease-back, mútuo com hipoteca, entre outras.
5. Incumprimento:
O incumprimento do Plano não determinará que a moratória e o perdão previstos no plano fiquem sem efeito, ainda que a (…) se encontre em mora, seja declarada insolvente ou recorra a novo PER, derrogando-se o disposto nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 218.º do CIRE.
6. Vinculação de terceiros:
Caso o Plano de Recuperação seja homologado, ficam vinculados ao nele exarado, mesmo os credores que não tenham reclamado o seu crédito, não tenham participado nas negociações ou tenham manifestado o seu voto desfavorável ao mesmo.
7. Garantias prestadas:
Tendo presente, por um lado, que a função primacial do plano é a revitalização da devedora e que, por outro lado, parte da dívida desta se encontra garantida através de garantias pessoais (avais) prestados pelos gerentes da devedora (…) e (…), é condição necessária à aprovação do plano que as garantias pessoais prestadas se mantenham em vigor, sendo modificadas na mesma medida em que seja alterado o crédito garantido, ficando no entanto a sua eficácia suspensa enquanto o plano de recuperação for cumprido pela devedora principal, de forma a que sejam concedidos aos actuais gerentes as condições necessárias para que possam dedicar todo o seu tempo à efectiva recuperação da sociedade e com isso permitir o ressarcimento dos créditos aos credores (quanto à admissibilidade da presente cláusula, cfr. Carolina Cunha, Aval e Insolvência, Almedina 2018, págs. 206 e 214-225).
Os garantes gerentes, manifestaram o seu assentimento à presente cláusula de salvaguarda nos termos da declaração junta sob o Anexo III (cfr. artigo 192.º / 2, do CIRE).
Justifica-se a presente salvaguarda, também, atento o facto de a possibilidade de accionamento imediato das garantias pessoais constituídas pelos gerentes (ou seja, o cenário sem aprovação do plano) irá previsivelmente proporcionar aos credores afectados apenas uma pequena parte do valor da dívida, sendo de considerar o mais do que certo cenário de insolvência destes, atentos os montantes envolvidos, ao passo que o cumprimento do plano irá permitir o pagamento de uma quantia bastante superior, ainda que mais tarde e mediante a respectiva remuneração a título de juros.
Mantêm-se em vigor todas as garantias existentes, nomeadamente, para efeitos do n.º 13 do artigo 199.º do CPPT.
8. Execuções pendentes:
Em caso de homologação do plano apresentado, deverão considerar-se extintas, em conformidade com o disposto no n.º 1 do artigo 17.º-E do CIRE, todas as execuções instauradas contra a (…), promovendo-se, de imediato, pelo cancelamento de todas e quaisquer penhoras efectuadas no âmbito desses mesmos processos, apenas não se aplicando a sua extinção relativamente às entidades públicas, designadamente, a Autoridade Tributária – extinguindo-se estas apenas nos termos da LGT, do CPPT e demais legislação aplicável, nestes últimos processos.
9. Redução:
Caso se considere que qualquer estipulação deste plano seja contrária à lei aplicável e, como consequência, o plano seja considerado parcialmente nulo, anulável ou ineficaz, o mesmo será reduzido às suas estipulações válidas e eficazes e manter-se-á em vigor sem as estipulações inválidas e ineficazes se continuar a ser possível cumprir o seu objectivo”.
2- O total de créditos reconhecidos ascende a € 4.336.972,98, sendo € 16.049,76 o valor dos créditos garantidos, € 97.209,00 o valor dos créditos privilegiados e € 3.138.025,38 o valor dos créditos comuns.
3- Tendo sido proferido, em 15.02.2024, o despacho de nomeação de administrador judicial provisório, a devedora remeteu, no dia seguinte, carta registada para a credora (…) France EURL, convidando-a a participar nas negociações para recuperação da empresa;
4- Esta carta foi remetida para um endereço em França e foi devolvida;
5- Antes da apresentação do plano, a devedora não deu conhecimento, por outro meio, a esta credora de estarem a decorrer negociações para recuperação da empresa, e esta não votou o plano;
6- A (…) France EURL, é detentora do terceiro maior crédito comum, e foi identificada pela devedora no seu requerimento inicial na lista dos seus cinco maiores credores.

Aplicando o Direito.
Da violação do princípio da igualdade
De acordo com as Recorrentes, o diferente tratamento que o plano concede aos credores privilegiados e garantidos, por um lado, e aos credores comuns, pelo outro, é injustificado e como tal viola o artigo 194.º do CIRE, não devendo ter sido homologado.
Recorde-se que o plano prevê, quanto aos créditos privilegiados e garantidos, o pagamento de 100% do valor no prazo de 3 anos, enquanto os créditos comuns serão pagos de 60% do valor do crédito no prazo de 10 anos, com uma carência no pagamento de capital e juros nos primeiros 12 meses, vencendo-se juros à taxa fixa de 3,5% ao ano, não capitalizáveis e pagos simultaneamente com as prestações de capital.
A propósito do artigo 194.º do CIRE, Carvalho Fernandes e João Labareda[1] escrevem que o princípio da igualdade dos credores configura-se como uma trave basilar e estruturante na regulação do plano de insolvência, sendo que a sua afectação traduz, por isso, seja qual for a perspectiva, uma violação grave – não negligenciável – das regras aplicáveis. Todavia, a letra da lei procurou acolher de uma forma evidente as duas facetas em que se desdobra o princípio da igualdade, traduzidas na necessidade de tratar igualmente o que é semelhante e de distinguir o que é distinto. Observam ainda que a razão objectiva porventura mais clara que fundamenta a legalidade da diferença de tratamento dos credores será a que assenta na distinta classificação dos créditos, mas, para além disso, dentro da mesma categoria pode haver motivos para destrinçar em função do grau hierárquico dos créditos, e, inclusivamente, a ponderação das circunstâncias de cada situação pode justificar outros alinhamentos, nomeadamente tendo em conta as fontes do crédito.
Em aresto de 22.02.2018, esta Relação de Évora[2] teve a oportunidade de afirmar que o plano de recuperação conducente à revitalização do devedor deve justificar o diferente tratamento concedido aos credores, com indicação das razões objectivas para essa diferença, e que para apreciação do carácter objectivamente justificável da diferenciação de tratamento dos fornecedores relativamente a instituições bancárias, ambos titulares de créditos comuns, impõe-se que conste do plano a concreta vinculação, e em que termos, das instituições bancárias credoras no sentido do apoio financeiro futuro.
No Supremo Tribunal de Justiça também já se escreveu que “naqueles casos em que as instituições bancárias se vinculam a apoiar financeiramente o devedor em certos termos concretos, efectivos e programados (fixados no plano) que denotem, de forma minimamente significativa, a assunção de sacrifícios e de riscos para elas, tal possa constituir um factor justificador de uma diferenciação do regime de satisfação dos créditos no confronto de outros credores. Não assim quando, ao invés, o plano é omisso relativamente a tal, ou quando não mostra que exista qualquer efectiva, concreta e programada vinculação ao apoio financeiro, ou ainda quando em nada se revela na prática a existência de sacrifícios e riscos associados às operações financeiras que tais instituições bancárias se proponham favorecer.”[3]
Em resumo, o princípio da igualdade dos credores não proíbe o estabelecimento de distinções entre eles, apenas proíbe diferenças de tratamento sem fundamento material bastante, sem uma justificação razoável, segundo critérios objectivos relevantes.
No caso dos autos, a distinção operada no plano funda-se, essencialmente, na distinta classificação dos créditos, beneficiando os credores privilegiados e garantidos, cujos créditos serão pagos na totalidade no prazo de 3 anos, enquanto os credores comuns sofrerão uma redução dos seus créditos a 60%, que será pago em 10 anos, com o primeiro de carência.
Porém, o plano não justifica a situação de desvantagem em que são colocados os credores comuns, que representam a maioria dos créditos reconhecidos – € 3.138.025,38 num total de € 4.336.972,98, sendo que a maioria dos credores comuns (€ 2.317.311,54) votou desfavoravelmente o plano – limitando-se a remeter para a norma do artigo 194.º do CIRE, sem fundamentar objectivamente o sacrifício que lhes é imposto, ao contrário do que sucede com os credores privilegiados e garantidos.
Como já se escreveu nesta Relação de Évora – em Acórdão de 22.02.2018 (Proc. n.º 1236/17.0T8STB-A.E2)[4] – viola o princípio da igualdade um plano de recuperação que “é obtido exclusivamente à custa dos credores comuns, numa percentagem de tal modo elevada e com uma dilação temporal quanto ao pagamento do remanescente não sacrificado dos seus créditos, que constitui a imposição de um ónus desproporcionado e irrazoável para com estes credores, que a existência do crédito privilegiado e o interesse do devedor não justificam”.
Como tal, o princípio imperativo da igualdade foi violado e tal constitui violação não negligenciável relativa ao seu conteúdo, relevante para os fins do artigo 215.º do CIRE.
Carvalho Fernandes e João Labareda observam, a propósito, que “normas procedimentais são, pois, todas aquelas que regem a actuação a desenvolver no processo, que incluem os passos que nele devem ser dados até que a assembleia de credores decida sobre as propostas que lhes forem presentes – incluindo, por isso, as relativas à sua própria convocatória e funcionamento – e, bem assim, as relativas ao modo como ele deve ser elaborado e apresentado. Normas relativas ao conteúdo serão, por sua vez, todas as respeitantes às partes dispositivas do plano, mas, além delas, ainda aquelas que fixam os princípios a que ele deve obedecer imperativamente e as que definem os temas que a proposta deve contemplar.”[5]

Da violação da regra prevista no artigo 218.º, n.º 1, do CIRE
O plano proposto prevê, no ponto 5, a propósito do incumprimento, o seguinte: “O incumprimento do Plano não determinará que a moratória e o perdão previstos no plano fiquem sem efeito, ainda que a (…) se encontre em mora, seja declarada insolvente ou recorra a novo PER, derrogando-se o disposto nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 218.º do CIRE.”
A sentença recorrida entendeu que o artigo 218.º, n.º 1, do CIRE pode ser desaplicado se o plano previr expressamente a sua desaplicação – invocando para o efeito a parte inicial da norma, “Salvo disposição expressa do plano de insolvência em sentido diverso…”.
Não cremos que seja essa solução, sob pena de a norma se tornar inútil – bastaria o plano prever o seu afastamento.
Por outro lado, observam Carvalho Fernandes e João Labareda que “a faculdade conferida aos credores de afastar o regime supletivo legal, através de disposição expressa do plano de insolvência, deve considerar-se limitada à fixação de requisitos mais exigentes para a perda de eficácia do perdão ou moratória daquele resultantes mas não para excluir ou limitar as condições mínimas que o preceito prevê para a ineficácia superveniente.”[6]
A imposição de uma cláusula como a constante do ponto 5 do plano, premeia o incumprimento e demonstra a desproporção do sacrifício imposto aos credores comuns: não apenas os seus créditos ficam reduzidos a 60% para sempre, como nem sequer têm uma sanção para o incumprimento.
Quer a devedora cumprisse, quer não, os seus créditos ficariam reduzidos, com o risco de ficarem em desvantagem em relação a futuros credores, cujos créditos não sofrem a mesma redução, e que teriam vantagem num novo plano de recuperação.
Como tal, também esta norma foi violada, e tal constitui violação não negligenciável do conteúdo do plano, obstando à sua homologação, para os fins do artigo 215.º do CIRE.[7]

Da violação da regra prevista no artigo 217.º, n.º 4, do CIRE e da homologação parcial do plano
O plano prevê, no seu ponto 7, quanto às garantias prestadas pelos gerentes, que estas são “modificadas na mesma medida em que seja alterado o crédito garantido, ficando no entanto a sua eficácia suspensa enquanto o plano de recuperação for cumprido pela devedora principal, de forma a que sejam concedidos aos actuais gerentes as condições necessárias para que possam dedicar todo o seu tempo à efectiva recuperação da sociedade e com isso permitir o ressarcimento dos créditos aos credores”.
A sentença conclui que esta cláusula “extravasa o âmbito subjectivo do plano de recuperação, instituído apenas entre a devedora e seus credores”, e as Recorrentes não impugnam essa conclusão, afirmam que tal constitui violação do disposto no artigo 217.º, n.º 4, do CIRE e como tal também obstaria à homologação do plano.
Assim é, e subscrevemos na íntegra o que a propósito se escreveu no Acórdão da Relação de Lisboa de 28.04.2020: “A cláusula inserida no plano que não leva em consideração a natureza jurídica do aval consagrado na LULL, nomeadamente nos seus artigos 30.º, 32.º, 47.º e 77.º, introduzindo dilações temporais quanto à exigibilidade de pagamento aos avalistas, condicionando o direito de acção dos portadores dos títulos cambiários (livranças avalizadas) ao cumprimento do plano (reembolso aprovado nos termos do plano) à revelia daqueles normativos de cariz imperativo, constitui violação não negligenciável do conteúdo do plano determinante da sua não homologação, nos termos dos artigos 215.º e 217.º, n.º 4, do CIRE ex vi dos artigos 17.º-A, n.º 3 e 17.º-F, n.º 7, do mesmo diploma legal.”[8]
Note-se que a votação de um plano de recuperação traduz um equilíbrio de interesses entre os credores, que votam a globalidade do plano, e não parte ou partes dele.
Logo, o juiz não pode partir do pressuposto que sem a cláusula A ou B, o plano seria aprovado ou rejeitado pelos credores – e daí que lhe caiba, simplesmente, homologar ou não homologar o plano, como resulta expressamente do artigo 17.º-F, n.º 7, do CIRE.
Nesta parte, as Recorrentes também têm razão.

Não convocação para as negociações de uma das credoras
A credora (…) France EURL invoca também vícios de procedimento, relativos à sua não convocação para as negociações, violando o disposto no artigo 17.º-D, n.º 1, do CIRE.
Está em causa a detentora do terceiro maior crédito comum, identificada pela devedora logo no seu requerimento inicial na lista dos seus cinco maiores credores, pelo que é incompreensível a sua não convocação.
A circunstância de uma carta registada ter sido devolvida, não justifica que a devedora não tenha adoptado outras iniciativas para obter a convocação desta credora e a sua efectiva participação nas negociações.
Afinal de contas, a dimensão do seu crédito traduz a existência de contactos comerciais intensos, pelo que a devedora não podia deixar de ignorar como contactá-la e comunicar o início do processo de negociações para recuperação da empresa.
A devedora podia e devia ter utilizado todos os meios de comunicação com a sua credora por si conhecidos, e não o tendo feito – ao receber a carta devolvida, nada fez – ocorreu uma violação de procedimento não negligenciável que também impede a homologação do plano.
Em caso semelhante, escreveu-se no Acórdão da Relação de Coimbra de 15.10.2019:
Como é bom de ver, desde logo daqui decorre que se verifica a violação de normas procedimentais, se um dos credores não for convocado para os termos do processo, se não lhe for dado conhecimento da existência do processo, assim, o impedindo de nele participar e, ainda, para mais, como in casu, sucedeu, se tal credor não for indicado como tal e o seu crédito não tiver sido, como não foi, relacionado e depois, a final, com tal fundamento, for declarado como extinto.
Diremos, até, que a não convocação de um credor, para mais conhecido da requerente – como se verifica in casu – para os termos do processo, consistirá na mais grave das violações a nível procedimental.
Efectivamente, a não convocação de um credor, para os termos do processo, assim, o afastando da possibilidade de participar nas respectivas negociações, é a mais grave violação das regras procedimentais e se assim não for considerado, tudo o mais será um minus relativamente a esta situação, deixando de existir, na prática, violações desta natureza.”[9]
Concordando-se com este raciocínio, também por aqui o plano não podia ser homologado.

Decisão.
Destarte, concede-se provimento ao recurso, revoga-se a sentença recorrida e declara-se não homologado o plano de recuperação.
Custas pela Recorrida.
Évora, 05 de Dezembro de 2024
Mário Branco Coelho (relator)
Cristina Dá Mesquita
José Saruga Martins

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[1] In CIRE Anotado, 3.ª ed., págs. 712-713.
[2] Acórdão proferido no Proc. n.º 444/17.9T8STR-A.E1, publicado em www.dgsi.pt.
[3] Acórdão de 24.11.2015, proferido no Proc. n.º 212/14.0TBACN.E1.S1 e publicado no mesmo endereço.
[4] Publicado no endereço da DGSI.
No mesmo sentido, vide o Acórdão da Relação de Coimbra de 12.10.2021 (Proc. n.º 1097/21.5T8LRA.C1), publicado no mesmo local.
[5] Loc. cit., pág. 781.
[6] Loc. cit., em anotação ao dito artigo 218.º.
[7] Neste sentido, vide o Acórdão da Relação do Porto de 14.05.2020 (Proc. n.º 91/18.8T8STS.P1), publicado em www.dgsi.pt.
[8] Acórdão proferido no Proc. n.º 1066/19.5T8VFX.L1-1 e publicado em www.dgsi.pt.
[9] Acórdão proferido no Proc. n.º 1355/19.9T8CBR-A.C1 e publicado em www.dgsi.pt.