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QUALIFICAÇÃO OU NÃO DA RELAÇÃO COMO LABORAL
VALOR INDICATIVO DOS ELEMENTOS
MINISTRO DO CULTO DE UMA ASSOCIAÇÃO RELIGIOSA
Sumário
I - Os diversos elementos que, segundo critérios de normalidade, poderiam apontar para a existência de uma relação jurídica de trabalho subordinado, fazendo prevalecer essa qualificação sobre modalidades de contrato afins (retribuição, regime fiscal e de segurança social, vinculação a horário de trabalho e execução da prestação de trabalho em certo local), não tem qualquer valor indicativo quando se constate que as partes não quiseram estabelecer entre si qualquer relação de tipo contratual. II - Está nesse caso, o ministro do culto de uma associação religiosa que aceitou exercer o seu ministério de acordo com os fins religiosos que lhes são propostos pela respectiva confissão, integrando-se na sua estrutura organizativa, e cujos elementos de vinculação no exercício da actividade derivam de um regime estatutário, e não de uma relação contratual.
(Da responsabilidade do Relator (retirado do acórdão do STJ de 16-04-2004, transcrito no acórdão))
Texto Integral
Proc. n.º 2650/23.8T8AVR.P1
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto
I. Relatório
AA, com domicílio na Tv. ..., ..., patrocinado por mandatário oficioso, e litigando com apoio judiciário na modalidade de isenção do pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo, bem como nomeação de patrono e dispensa do pagamento dos respectivos honorários, veio intentar a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, contra a União Portuguesa ..., com sede na Rua ..., Lisboa.
Formula os seguintes pedidos:
a) ser declarada a ilicitude do despedimento operado pela sociedade R. com todas as suas consequências legais;
b) seja Aplicado o regime previsto no artigo 74º do Código de Processo do Trabalho – a condenação ultra ou extra petita – por mera cautela de patrocínio;
c) ser a R. condenada a pagar ao A. as seguintes quantias:
- 5.634,1€ (cinco mil seiscentos e trinta e quatro euros e um cêntimo) relativos à retribuição do meses de março, abril, maio, junho e julho de 2023;
- os salários de tramitação devidos desde o despedimento até ao trânsito em julgado da decisão dos presentes autos que declare a ilicitude do despedimento (art. 390º CT);
- 1126,82 € (cento e trinta euros) relativos à remuneração dos 30 dias que antecederam a propositura da acção;
- indemnização a que se refere o art. 391º do Código do Trabalho, cabendo ao tribunal determinar o seu montante, em 45 dias de retribuição base e diuturnidades por cada ano completo ou fracção de antiguidade, atendendo ao valor da retribuição e ao grau de ilicitude decorrente da ordenação estabelecida no artigo 381º;
- 615,00 € (duzentos e sessenta euros) relativos à remuneração de 12 dias de férias não gozadas setembro de 2022 até fevereiro de 2023;
- aos proporcionais de férias subsídio de férias e de Natal, relativo ao tempo trabalhado prestado pelo Autor;
- 15.400,00 € (quinze mil e quatrocentos euros) devidos a título de ajudas de custo;
- O valor de juros de mora vencidos;
- Os juros de mora vincendos;
- 30.0000 a título de indemnização por todos os danos, patrimoniais e não patrimoniais causados, acrescida de juros vencidos e vincendos até efectivo e integral pagamento;
- No pagamento de sanção pecuniária compulsória, à taxa diária de 500,00 € (quinhentos euros) por cada dia em que não se realize de modo total e perfeito o cumprimento pontual do que vier a ser sentenciado;
- ser ainda a Ré condenada a pagar as custas processuais.
Alega em síntese que: O autor foi admitido, por tempo indeterminado, ao serviço da ré a 14 Setembro de 2018 para sob as ordens, direcção e fiscalização daquela exercer as funções inerentes à categoria profissional Ministro do culto/Pastor, em ...; Obrigando-se a trabalhar seis dias por semana; Cumprindo um horário de trabalho; E auferindo um salário de 1.126,82 €, acrescido de ajudas de custo de 1.000,00 € para pagamento de renda e veículo automóvel; o autor foi destacado para ...; encontra-se em falta o relativo a 10 meses, que não foram pagas as “ajudas de custo”; no dia 20/02/2023, a ré comunicou ao autor que, a partir desse dia, não tinham mais trabalho para ele, pelo que deveria cessar atividade; o Autor ficou muito mal visto perante os seus fiéis, pois a ré e os seus representantes inventaram “desculpas” para o afastamento do autor, criando um descrédito profissional de altos funcionários da Igreja, social e familiar, o que causou ao mesmo profunda tristeza e desilusão para além de um enorme transtorno financeiro, obrigando o Autor a recorrer a apoios sociais, para dar resposta às suas necessidades básicas.
Realizou-se audiência das partes, não se tendo logrado obter conciliação destas.
A ré veio contestar alegando em síntese que não existia qualquer relação laboral com o autor.
Foi proferido despacho saneador, dispensada a realização de audiência prévia e a condensação do processo.
Foi fixado à acção o valor de € 52.775,92.
Procedeu-se à audiência de discussão e julgamento, com gravação da prova testemunhal nela produzida.
Foi proferida sentença, com fixação da matéria de facto provada e não provada, decidindo-se a final “julgar a acção parcialmente procedente e, em consequência:
I. Declarar que o A. foi ilicitamente despedido pela R..
II. Condenar a R. a pagar ao A.:
a) Indemnização pela ilicitude do despedimento, nos termos do art. 391º, nºs 1 e 2 do Cód. do Trabalho, no valor actual de € 5.728,66 (cinco mil, setecentos e vinte e oito euros e sessenta e seis cêntimos).
b) As retribuições que o A. deixou de auferir por causa do despedimento, desde 13 de Junho de 2023, até ao trânsito em julgado da sentença, no valor actual de € 10.960,78 (dez mil, novecentos e sessenta euros e setenta e oito cêntimos), com desconto dos montantes que tenha porventura recebido no mesmo período de tempo ou venha a receber, a título de subsídio de desemprego, que caberá à R. entregar à Segurança Social.
c) Juros de mora à taxa legal (actualmente de 4%) sobre as referidas quantias, até efectivo e integral pagamento, contabilizados desde presente data, no que se refere à al. a), e desde a data de vencimento de cada uma das retribuições intercalares, quanto à al. b).
III. No mais, absolver a R. do pedido.”
Inconformada interpôs a ré o presente recurso de apelação, concluindo:
1. Houve, por parte do Tribunal a quo, erro na apreciação e valorização e enquadramento legal dos factos dados como provados e errada interpretação e aplicação ao caso concreto das normas do art. 11º, art. 12º nº 1, alíneas a), b) e d), art. 381º, al. c), ex vi do art. 393º nº 1, art. 381º – cfr. arts. 389º nº 1, als. a) e b) e 391º, nºs 1, 2 e 3, todos do Cód. do Trabalho, aprovado pela Lei nº 7/2009, de 12/02, e não fez a melhor interpretação dos artigos da Constituição da República Portuguesa e da Lei da Liberdade Religiosa, aprovada pela Lei nº 16/2001, de 22 de junho que, nomeadamente, o artigo 41º da Constituição da República Portuguesa e os artigos 3º, arts 4.º, arts. 8º, arts. 9º, art. 10º, arts. 15º nº 1 e 2, arts. 16º, arts. 22º nº 1 alíneas a) e b) e arts. 23º da Lei da Liberdade Religiosa como instrumento de concretização da C.R.P.,
2. A Apelante União Portuguesa ... é a entidade religiosa sob a qual estão organizadas todas as comunidades que constituem a Igreja ... no território português, radicada nos termos da Lei 16/2001, Lei da Liberdade Religiosa, conforme atestado pelo Ministério da Justiça a 9 de Abril de 2007 e registada no Registo Nacional de Pessoas Coletivas Religiosas sob o número 87/...06 e ainda,
3. faz parte da Conferência Geral ..., que tem a sua sede mundial em ...01 ..., ..., ..., nos ..., e com escritórios em ..., ..., na ..., estando a esta vinculada em termos de princípios de fé, missão e regras de funcionamento.
4. o órgão que, nesta Pessoa Coletiva Religiosa atípica, face às restantes, desempenha as funções de Assembleia-Geral típica, tal como definida no Código Civil, é o Conselho Diretor, nomeadamente na sua reunião anual, nos termos do número 3 do artigo 14º dos seus Estatutos.
5. Uma das competências do Conselho Director, prevista no artigo 20º nº 1 alínea 1.3) dos estatutos da Apelante, é precisamente a de “atribuir, suspender ou retirar credenciais e autorizações”.
6. O desempenho da função vocacional de Ministro do Culto é ainda objecto de um regulamento interno designado por Regulamento Interno do Obreiro, que define o tipo de ligação existente entre a Igreja e os seus Ministros do Culto, onde se diz que “(..) O elo de vinculação do MC à União Portuguesa ... reside na livre e expressa manifestação de vontade de cada colaborador de integrar os princípios da Igreja ... (Igreja ...) em todas as facetas do seu viver, dedicando-se completamente à superior prossecução dos objectivos da Igreja .... Assim sendo, este elo terá duração idêntica à da manutenção dos pressupostos em que a mesma reside”.
7. Diz-se ainda, o R.I.O., que “(...) Os Ministros do Culto (MC) ... integram o corpo pastoral e administrativo da União Portuguesa ... pela sua completa e livre aceitação e acordo com os princípios da Igreja .... A sua anuência integral com esses princípios, e a sua consequente prática a todos os níveis da sua vida privada e pública, constituem a base de vinculação do MC com a Organização da Igreja.
8. A Ré/Apelante é uma entidade religiosa que, tem por objeto, a pregação do evangelho eterno de Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, realizar cultos religiosos e instituindo para realizar esse objetivos, uma estrutura hierarquizada de ministros do culto, que são credenciados, de acordo com diversos níveis de responsabilidade, para a prática de determinados atos que se enquadram na difusão da confissão professada.
9. O autor converteu -se, por decisão voluntária e pessoal, à Igreja ... e manifestou o desejo de nela entrar como membro, tendo sido batizado por imersão no rio Jordão, em Israel, pelo seu pai BB, (que também era Ministro do Culto), no dia 06/10/1979,
10. E passando a fazer parte da Igreja ..., pela aceitação que fez dos Princípios Doutrinários que esta professa.
11. Autor encontrava-se a concluir a sua licenciatura e mestrado, na Faculdade de Teologia Adventista ..., em ..., e iniciou junto da Apelante, o Estágio Ministerial, enquanto terminava a tese de mestrado, conforme enunciado no voto 291 de 18/12/2018, transcrito da Ata da Reunião do Conselho Diretor (documento 3 junto com a Contestação.)
12. O Autor, enquanto ministro do culto-estagiário, difundia o culto, dava acompanhamento e apoio religioso aos membros da Igreja a seu cargo, presidia e celebrava cerimónias religiosas, campanhas de evangelização, como ele próprio assumiu na sua Petição inicial.
13. O autor aceitou exercer o ministério pastoral por escolha de Cristo e vocação, pois no Ministério pastoral da Igreja cabe-lhe representar o amor de Deus junto dos membros da Igreja, como colaborador de Deus.
14. o Autor não teve qualquer propósito de celebrar com a Ré/Apelante, um contrato de trabalho, mas antes associar-se à Ré/Apelante para prestar a sua vocação de ministro do culto e assim colaborar na realização dos fins religiosos em que acreditava e que elegeu como objeto da sua ação,
15. por parte da Igreja – aqui Ré/ Apelante, não houve, em momento algum, a ideia de contratar um trabalhador, mas sim de integrar o A. como elemento da sua própria estrutura, para a obra de Deus.
16. Os Regulamentos Internos e Estatutos da ré/ Apelante, traduzem o pensamento e vontade desta aquando da aceitação do estágio vocacional do Autor,
17. As finalidades próprias de cada confissão religiosa, são realizadas, através dos membros dessas confissões que têm a qualidade de pastores, sacerdotes, rabinos, entre outros, e cujo desempenho decorre diretamente das prerrogativas próprias da religião que professam. Estes são os ministros do culto.
18. Não existe uma subordinação jurídica no sentido que esta tem para o direito, pois mais que a ordens ou orientações, o ministro do culto obedece a um chamamento divino, à sua Vocação.
19. A conformação da atividade do ministro do culto, por parte da administração da Ré/Apelante, tem a ver com estrutura e necessidades pastorais da igreja e não com qualquer sentido de eficiência empresarial,
20. Pelo que, a única subordinação que existe entre o Autor e a aqui Apelante, é a subordinação religiosa, decorrente do conselho evangélico de obediência a Deus, aos ensinamentos da Sagrada Escritura e aos princípios doutrinários adventistas, consagrando-se a servir a Igreja ... a nível mundial.
21. Resulta da Lei de Liberdade Religiosa, – Lei nº 16/2001, de 22 de junho, no artigo 15º nºs 1 e 2, cujo princípios gerais têm plena aplicação ao caso, que “ministros do culto são as pessoas como tais consideradas segundo as normas da respectiva igreja ou comunidades religiosa” e a respetiva qualidade “é certificada pelos órgãos competentes da respectiva igreja ou comunidade religiosa, que igualmente credenciam os respetivos ministros para a prática de atos determinados”.
22. De acordo com o artigo 16º nºs 3 e 4, o exercício do ministério é considerado atividade profissional do ministro do culto, quando lhe proporciona meios de sustento” e estes “têm direito às prestações do sistema de segurança social, nos termos da lei, sendo obrigatoriamente inscritos pela igreja ou comunidade religiosa a que pertençam, salvo se exercerem por forma secundária a atividade religiosa e o exercício da atividade principal não religiosa determinar a inscrição obrigatória num regime de segurança social”
23. A lei visa esclarecer que a atividade do ministro do culto é considerada profissional para os fins que aí refere: inscrição na segurança social e obtenção de autorização de residência, quando lhe proporciona meios de subsistência, como é o caso dos autos.
24. A circunstância de ter havido lugar ao pagamento de uma remuneração regular e periódica pela dedicação ao ministério pastoral e às deduções para o regime da segurança social, “não pode ser invocada para qualificar como contrato de trabalho a relação existente entre as partes, pois é certo que esses requisitos são aceites pela própria Lei da Liberdade Religiosa, como sendo inerentes à função religiosa e ao exercício dos atos de culto”.
25. A vocação tem sempre uma caraterística de voluntariedade e, por isso, a atividade desenvolvida não pode qualificar-se como integradora da noção de contrato de trabalho. Qualquer atribuição patrimonial não é retribuição mas, antes, uma demonstração da vida em comunhão. Na relação entre o ministro do culto e a igreja ou comunidade religiosa, o animus contrahendi é vocacionado para a atividade religiosa de modo gracioso e voluntário.
26. Na temática “sub judice” foi já proferido um Acórdão da Relação de Lisboa um Acórdão da Relação do Porto de 13/01/1986, Rec nº 19 214: Col. Jur., 1986, 1º-207, um Acórdão do Tribunal da Relação de Évora (https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/8f8d2b7e72244bca80256879006d6594?CreateDocument) e um Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/f83eef66ec4efcb780256879006bc015?CreateDocument), que, sabiamente, decidiram no sentido ora pugnado.
27. A Constituição da República (C.R.P.) ao consagrar por força do Princípio Constitucional que consagra a “liberdade de consciência, de religião e de culto”, no artigo 41º no nº 4 estabeleceu que, as “igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado e são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto". E consequentemente determina um verdadeiro direito à autodeterminação às confissões religiosas".
28. “O princípio da liberdade de organização e independência das igrejas e confissões religiosas garante a não ingerência do Estado na organização das igrejas e no exercício das suas funções e do culto (art. 41 nº 4, in fine C.R.P.), reconhecendo a sua autonomia estatutária e o ordenamento jurídico consequente, sendo uma das dimensões concretizadoras do princípio constitucional da sua liberdade de organização e independência.
29. “Nos termos do art. 4º da LLR, o Estado português não adota qualquer religião nem se pronuncia sobre questões religiosas, garantindo-se, assim, o princípio da não confessionalidade.
30. O art. 15º LLR escusa-se, a atribuir competências aos ministros do culto, estabelecendo que esses serão as pessoas como tais consideradas segundo as normas da respetiva igreja ou comunidade religiosa, as quais credenciam esses ministros para a prática de atos determinados.
31. A aquisição da qualidade de ministro do culto resulta de preceitos inscritos na normativa interna da confissão religiosa, cuja validade decorre do direito à liberdade religiosa, da não confessionalidade do Estado e da autonomia das confissões religiosas.
32. A pessoa que é investida na qualidade de ministro do culto sabe, de antemão, que abraçou uma tarefa voluntária, vocacional e desprovida de interesse patrimonial.
33. É irrelevante, que o ministro do culto, esteja vinculado a determinadas obrigações, como por exemplo, observância de certas instruções, cumprimento de horários, prestação de contas, adoção de certas práticas, entre outras pois essa vinculação não decorre da subordinação jurídica, mas de uma vinculação hierárquica fruto da estruturação interna da igreja ou comunidade religiosa, estatuída na CRP e na LLR. A observância de certos comandos corresponde a normas institucionais como forma de manter a organização interna. Não é uma verdadeira subordinação jurídica.
34. No âmbito que lhe é conferido, precisamente pela CRP e pela Lei da Liberdade Religiosa e pelos seus Estatutos e regulamentos internos, a Ré decidiu retirar a Autorização de Ministro do Culto-Estagiário ao A., fazendo cessar o seu vínculo vocacional, por este se ter colocado, do ponto de vista desta última, numa posição em que, pelas sua conduta moral e estilo de vida incongruente com tal ministério, deixou de se identificar pessoalmente com as suas finalidades e podia obstruir a realização eficaz da sua missão religiosa.
35. Não existe contrato de trabalho, porque, nem sequer chega a existir qualquer contrato entre as partes, ou seja, entre o ministro do culto e a igreja não é possível individualizar um acordo de vontades, regulado por normas laborais ou civis, em que se harmonizam prestações e contraprestações pois, a aquisição da qualidade de ministro do culto, resulta de preceitos inscritos na normativa interna da confissão religiosa, cuja validade decorre do direito à liberdade religiosa, da não confessionalidade do Estado e da autonomia das confissões religiosas.
36. O Direito do Trabalho não se ocupou de criar um regime especial relativamente aos ministros do culto, tal como o fez para o contrato de trabalho desportivo, para os profissionais da área da cultura, para o serviço doméstico, entre outros, por duas razões: em primeiro lugar, e apesar de todas as suas especificidades particulares, porque não se trata de um vínculo de natureza laboral e, em segundo lugar, porque isso configuraria uma intromissão do Estado no núcleo essencial do direito à liberdade religiosa.
37. ser revogada a sentença recorrida, julgando-se improcedente a ação e absolvendo-se a R. do pedido, nos termos requeridos pela ora recorrente.
Juntou parecer jurídico subscrito pela Exma. Prof. Doutora CC.
O autor alegou, concluindo:
1. O Recurso deveria enunciar especificamente os seus fundamentos, devidamente fundamentado (legalmente), obedecendo ou fazendo-se cumprir os pressupostos legais exigidos, o que não se vislumbra.
2. A recorrente não especifica os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, limita-se a reapreciar a prova produzida em julgamento, não indicando consequentemente, de forma objectiva e detalhada, em relação a cada um de tais pontos, a prova ou provas que, em seu entender, impunham decisão de Direito diversa da recorrida.
3. A Recorrente limita-se a alegar discordância e questionar de forma fragmentada a prova produzida em julgamento.
4. Nada mais são que alegações baseadas na sua própria avaliação e convicção em relação aos referidos meios de prova, sem contrapor, no entanto, qualquer outro meio de prova, e sem atentar à globalidade da prova produzida.
5. Ainda assim, lidos e analisados os segmentos da prova reproduzidos não se extraem motivos objectivos que justifiquem a modificação da sentença e determinem o afastamento do raciocínio lógico desenvolvido pelo tribunal a quo.
6. O tribunal a quo apreciou criticamente a prova, posto que analisou aprofundadamente todos os elementos de prova produzidos, tendo sido claro e exaustivo na análise dos depoimentos prestados em sede de audiência de julgamento, pelas testemunhas, relacionou-os e conjugou-os entre si, indicando e explicitando as razões da credibilidade, ou da falta de credibilidade.
7. In casu, o tribunal a quo apreciou criticamente a prova, fundamentando de forma recta e coerente a sua convicção, pois conforme flui da motivação na sentença, a valoração da prova baseia- se em critérios de objectividade e está em consonância com as regras da experiência comum, não sendo os argumentos aduzidos pelo recorrente idóneos a afastar aquele juízo probatório, nem excluem a valoração da prova efectuada
8. A convicção do Tribunal a quo quanto à matéria de facto provada fundou-se na análise crítica e conjugada da globalidade da prova, quer a que resulta dos autos, como a produzida em sede de audiência de julgamento e com a livre convicção do julgador,
9. Por outro lado, os documentos dos autos com interesse próprio na causa, não foram impugnados, pelo que as declarações apostas nos documentos se afiguraram espontâneas e sinceras, descrevendo o desenrolar dos factos em causa.
10. O que, cremos (Autor e tribunal a quo inclusive), ser perfeitamente, compaginável com todo o desenrolar dos acontecimentos que foi, aliás, descrito nos articulados.
11. Diga-se, ainda, que as testemunhas arroladas, lograram em convencer o Tribunal, prestando depoimentos “limpos” e directos.
12. Na verdade, estas testemunhas demonstraram bastante espontaneidade no seu discurso, o que não mereceu a credibilidade do Tribunal.
13. Donde se entende que a decisão recorrida não padece de nenhum dos vícios apontados pela Recorrente, mostrando-se a arguição de tais vícios infundada.
14. A recorrente incorre, pois, num equívoco ao invocar tais vícios, não se evidenciam pela análise da própria decisão, antes dependem da diferente valoração da prova efectuada pela recorrente em relação à que foi efectuada pelo tribunal.
O Ilustre Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal teve vista nos autos, tendo emitindo parecer no sentido da improcedência do recurso, referindo, nomeadamente: “Em termos teóricos, concordamos com o que é dito e referido pela recorrente e pelo parecer junto. Porém, na prática, entende-se que uma confissão religiosa pode celebrar contratos de trabalho (como p. ex. com um motorista, um administrativo, um segurança, etç.) E, também, com Ministros de Culto, cremos ser possível, como aliás pode confirmar-se com algumas decisões dos nossos tribunais – v. Acs. do TRL, de 15.02.2012, proc. 550/10.0TTFUN.L1-4 (...) e, ainda, de 05.12.2018, proc. 14506/17.9T8LSB.L1-4. Tudo dependerá, salvo melhor opinião, dos factos que se provarem em cada caso concreto. (...) Por isso, só caso a caso é possível concluir (ou não) pela existência de um contrato de trabalho. Ora neste caso deram-se como provados factos mais que suficientes indiciadores da existência de um contrato de trabalho, factos que a Recorrente não impugna.”
A recorrente respondeu ao parecer dele divergindo, referindo que “a ligação entre um Ministro do Culto/Padre com a Igreja é em tudo diferente, para não dizer o oposto, ao de um trabalhador fabril ou de comércio e o empregador, pois estes últimos não precisam de partilhar as mesmas convicções religiosas e espirituais, nem ter a mesma integridade e moral para desempenhar as suas funções.”
O recurso foi admitido, por despacho do relator, no qual se considerou improcedente a pretensão do recorrido de rejeição do mesmo, e colheram-se os vistos legais.
Cumpre decidir.
Como se sabe, o âmbito objectivo dos recursos é definido pelas conclusões do recorrente (artigos 635º, nº 4, e 639º, nº. 1, do CPC, por remissão do art. 87º, nº 1, do CPT), importando assim decidir quais as questões naquelas colocadas, sendo estas, no caso, apenas determinar da correcta aplicação do direito, ou seja, aferir se vigorava um contrato de trabalho entre as partes.
II. Fundamentação de facto
Na sentença recorrida considerou-se que “Provados estão os seguintes factos:
1. A R. é uma entidade religiosa, sob a qual estão organizadas todas as comunidades que constituem a Igreja ... no território português, estando registada no Registo Nacional de Pessoas Colectivas Religiosas.
2. O A. converteu-se, por decisão voluntária e pessoal, à Igreja ....
3. O A. iniciou em 01/09/2018 o estágio pastoral para Ministro de Culto, na cidade ....
4. No âmbito desse estágio, o A. exercia funções que consistiam, nomeadamente, em transmitir a palavra da Igreja ... nos serviços regulares; acompanhar e prestar assistência espiritual e humanitária aos fieis, incluindo serviços fúnebres, unções e apoio domiciliário a idosos; prestar auxílio material aos membros da comunidade, mediante distribuição de alimentos; e elaborar relatórios mensais respeitantes à sua actividade.
5. O A. exercia essas funções em obediência a orientações e directrizes transmitidas pela R. e sob a supervisão da R..
6. De acordo com as indicações da R., o A. exercia tais funções de segunda-feira a sábado, 8 horas por dia, em regra, descansando aos domingos.
7. Essas funções eram desempenhadas pelo A. em instalações tomadas de arrendamento pela R., sitas na Alameda ..., ..., ..., em ..., e também, por vezes, deslocando-se ao domicílio dos fieis ou das pessoas a quem prestava auxílio.
8. No desempenho dessas funções, o A. utilizava instrumentos ou materiais pertencentes à R., nomeadamente o púlpito/tribuna, cadeiras, material de escritório, manuais, quadro de escrita, computador, sistema de som e projector.
9. O A. utilizava também, para exercer as suas funções, um veículo automóvel propriedade da R..
10. Os Ministros do Culto da Igreja ..., obtêm a sua formação Superior Teológica numa das Faculdades de Teologia Adventista.
11. O A. encontrava-se a concluir o mestrado, na Faculdade de Teologia Adventista ..., em ..., preparando a apresentação da sua tese de mestrado, enquanto realizava o estágio ministerial em ....
12. Durante a sua formação na Faculdade de Teologia Adventista ..., e também no decurso do seu estágio, como Ministro de Culto, o A. tinha conhecimento das regras contidas no Regulamento Interno da R..
13. O A. efectuou relatório de auto-avaliação na qualidade de estagiário, com data de 13/12/2020, subscrito também pelo seu orientador de estágio.
14. O estágio do A. foi prolongado no tempo, quer por se terem suscitado dúvidas em aspectos doutrinários, quer devido à dificuldade de acompanhamento mais directo, por causa da pandemia da COVID 19.
15. O A. não terminou o mestrado, porque a tese de mestrado que apresentou foi rejeitada pela Faculdade de Teologia ..., por ter sido considerada plágio de outra tese de mestrado.
16. Perante tal informação, membros do Conselho Director da R., Ministros do Culto DD (Secretário da Associação Ministerial da R., nessa data) e EE (Secretário Executivo da R., nessa data), e FF (Tesoureiro da R., nessa data), deslocaram-se a ..., para confrontar o A. com a informação transmitida pela Faculdade sobre o plágio e consequente rejeição da tese.
17. O A. não reconheceu o plágio, nem se mostrou arrependido.
18. A Comissão de Avaliação Deontológica dos Ministros do Culto convocou o A. para participar e ser ouvido, via “Zoom”, em reunião de avaliação agendada para dia 31/01/2022 – à qual o A. não compareceu.
19. Foi agendada nova reunião da Comissão para o dia 10/02/2022 e novamente enviada convocatória ao A. para participar e ser ouvido, via “Zoom”.
20. Em reunião realizada no dia 10/02/2022, a Comissão Deontológica da R. emitiu parecer no sentido de «não existirem condições de confiança vocacional, para dar continuidade ao vínculo ministerial do estagiário AA.».
21. Em 15/02/2022, o Conselho Director da R. votou por unanimidade «Cessar o vínculo ministerial do estagiário AA, a 31 de agosto de 2022, já com as férias incluídas. Durante os 6 meses seguintes receberá o subsídio previsto no Regulamento Interno do Obreiro.».
22. Posteriormente, ainda em Fevereiro de 2022, foi comunicada ao A. pela Administração da R., a referida decisão do Conselho Director, de cessar o vínculo que o ligava à R., com efeitos a 31 de Agosto de 2022.
23. Nessa sequência, o A. e respectivo agregado deixaram ... e vieram para a zona de ....
24. A R. não instaurou contra o A. procedimento disciplinar.
25. O A. ficou preocupado e triste com a cessação do vínculo, que lhe causou transtorno financeiro.
26. A R. comunicou à Segurança Social, em 06/03/2023, na qualidade de empregadora do A., através do preenchimento e entrega do “Mod. RP 5044/2016 - DGSS”, a cessação do contrato de trabalho com o A., indicando como data da cessação o dia 28/02/2023 e como motivo da cessação “Acordo de revogação não previsto nos nºs 11 a 16”.
27. A R. emitiu em 02/03/2023 declaração com o seguinte teor: «Para os devidos efeitos declara-se que a data comunicada/a comunicar à segurança social no que concerne ao término de vínculo vocacional do Ministro de culto AA, nif ...56..., com a União Portuguesa ... é de 28 de Fevereiro de 2023.».
28. A partir de Setembro de 2018, a R. pagou ao A., por transferência bancária, com contrapartida pelas funções que exercia, uma quantia mensal fixa, sujeita a descontos legais em sede de IRS e Segurança Social, para seu sustento e do respectivo agregado, além de ajudas de custo.
29. No mês de Julho de 2022, a R. processou no recibo de vencimento do A. e pagou-lhe as seguintes quantias ilíquidas, sobre as quais efectuou descontos para efeitos de IRS e Segurança Social: € 982,05 a título de “Vencimento”, € 33,00 a título de “Subsídio de Almoço” e € 139,10, a título de “Subs infantil”, e nos meses de Setembro, Outubro, Novembro e Dezembro de 2022, a R. processou nos recibos de vencimento do A. e pagou-lhe as seguintes quantias ilíquidas, sobre as quais efectuou descontos para efeitos de IRS e Segurança Social: € 965,35 a título de “Vencimento”, € 33,00 a título de “Subsídio de Almoço” e € 139,10, a título de “Subs infantil”.
30. No mês de Novembro de 2022, a R. processou e pagou ao A. a quantia ilíquida de € 1.104,45, a título de “Subsídio Natal”.
31. Em relação ao mês de Janeiro de 2023, a R. processou no recibo de vencimento do A. e pagou-lhe as seguintes quantias ilíquidas, sobre as quais efectuou descontos para efeitos de IRS e Segurança Social: € 984,94 a título de “Vencimento” e € 141,88, a título de “Subs infantil”.
32. Em relação ao mês de Fevereiro de 2023, a R. processou no recibo de vencimento do A. e pagou-lhe as seguintes quantias ilíquidas, sobre as quais efectuou descontos para efeitos de IRS e Segurança Social: € 984,94 a título de “Vencimento”, € 33,00 a título de “Subsídio de Almoço” e € 141,88, a título de “Subs infantil”.
33. A R. declarou à Segurança Social o pagamento ao A., a título de “Remuneração Base”, na qualidade de “trabalhador por conta de outrem”, € 1.104,45 em relação ao mês de Dezembro de 2022 e € 1.126,82 em relação a cada um dos meses de Janeiro e Fevereiro de 2023.
34. A R. tem como órgãos, definidos nos seus Estatutos, a Assembleia-Geral de Comunidades, o Conselho Director e o Conselho Fiscal (também designado estatutariamente por Comissão de Verificação e Finanças).
35. De acordo com os Estatutos da R. – que se encontram juntos a fls. 37 a 48 dos autos –, a Assembleia-Geral de Comunidades é o órgão máximo da R., sendo representativa de todas as comunidades e instituições que a integram.
36. Ainda segundo os Estatutos da R., o Conselho Director da R. tem como competências, além do mais, «Atribuir, suspender ou retirar credenciais e autorizações.».
37. A R. tem um Regulamento Interno – de que figura cópia a fls. 49 a 68 dos autos –, constando do respectivo preâmbulo que «O presente Regulamento Interno (RI) relaciona e estabelece a articulação e o desempenho de funções dos Ministros do Culto (MC) e demais colaboradores vinculados vocacionalmente à União Portuguesa ... (União Portuguesa ...). O elo de vinculação do MC à União Portuguesa ... reside na livre e expressa manifestação de vontade de cada colaborador de integrar os princípios da Igreja ... (Igreja ...) em todas as facetas do seu viver, dedicando-se completamente à superior prossecução dos objectivos da Igreja .... Assim sendo, este elo terá duração idêntica à da manutenção dos pressupostos em que a mesma reside.».
38. Consta também do referido Regulamento, sob a epígrafe “Vinculação”, que «(...) Os (MC) ... integram o corpo pastoral e administrativo da União Portuguesa ... pela sua completa e livre aceitação e acordo com os princípios da Igreja .... A sua anuência integral com esses princípios, e a sua consequente prática a todos os níveis da sua vida privada e pública, constituem a base de vinculação do MC com a Organização da Igreja. A União Portuguesa ... propõe-se, por força dos seus estatutos, a garantir aos seus MC os meios de subsistência pelo seu Conselho Director (CD) considerados necessários ao cabal desempenho da missão que lhes é designada. Tal garantia de meios de subsistência está sempre implícita ao reconhecimento, por Parte da União Portuguesa ... da manutenção satisfatória das condições de vinculação de cada MC ao corpo pastoral ou administrativo da Igreja. Pela abrangência e amplitude da natureza da vinculação dos MC à Igreja ..., as funções eclesiásticas desenvolvidas pelos MC não têm enquadramento em qualquer regime de índole laboral, sendo que o MC representa e se identifica com a própria Igreja que integra. Assim, o labor dos MC não pode estar limitado pela existência ou não de quaisquer horários de trabalho, prémios, incentivos. O MC trabalha por vocação e convicção próprias, dedicando a totalidade do seu tempo e acção à causa da Igreja ..., promovendo com todas as suas capacidades e por todos os meios ao seu alcance, a consecução dos objectivos da Igreja. A acção do MC é, no entanto, superiormente coordenada por instâncias organizacionais da Igreja, as quais cada ministro tem o direito e o dever de conhecer, respeitar, suster, apoiar e integrar. Podendo o MC vir a divergir da anuência e prática estabelecidas pela Igreja, de forma a condicionar a influência que exerce no corpo da Igreja ou a imagem que dela transmite para o exterior, tal divergência anula por si própria a vinculação anteriormente vigente, não podendo o MC invocar a existência de qualquer outro tipo de vinculação. Em tal caso, cujo direito de opção é sempre reconhecido pela Igreja como sendo da exclusiva responsabilidade do MC, o abandono ou a divergência dos princípios desqualifica o MC para a continuidade do exercício de funções.».
39. O ponto 4 do Regulamento, sob a epígrafe “Estágio de Internato – Definido no Working Policy ASD por “Internship”, estabelece, além do mais:
«4.1 Após a conclusão do plano de estudos, e tendo sido chamado pelo CD da União Portuguesa ..., deverá estagiar de acordo com os seguintes parâmetros: 4.1.1. Preferencialmente durante dois anos. 4.1.2 Pastores Autorizados, e Promotores Bíblicos Autorizados, junto de um pastor credenciado. 4.1.2.1 O Promotor Bíblico Autorizado quando oriundo de uma igreja local, deve apresentar carta de recomendação da sua Igreja. 4.1.2.2. Durante o Internato, serão portadores de uma credencial correspondente à sua categoria. (...)».
40. O ponto 7 do Regulamento, sob a epígrafe “Regime de Trabalho”, estabelece, além do mais:
«Gestão do tempo: 7.1.1. Tendo em conta a natureza vocacional do serviço prestado pelo Ministro do Culto, deve este, como gestor do seu tempo, consagrar-se inteiramente aos objectivos que lhe são propostos pela União Portuguesa .... Para além do período normal de oito horas de trabalho, em cinco dias dos seis úteis de cada semana, espera-se dele uma disponibilidade total para assuntos com carácter de urgência ou necessidade imperiosa. 7.1.1.1. Folga Semanal: 7.1.1.1.1. Sem detrimento do ponto anterior é-lhe reconhecido direito de descanso um dia por semana, normalmente a segunda-feira. Quando necessária qualquer alteração, deve disso dar conhecimento ao Director da Região Eclesiástica (RE) a que pertence. (...)».
41. O ponto 10 do Regulamento, sob a epígrafe “Retribuição”, estabelece:
«10.1. Por cada período anual de serviço, o MC receberá uma retribuição constituída por: 10.1.1. Atribuição Fixa Mensal 10.1.1.1.1. Catorze mensalidades iguais, correspondentes ao tecto em que se encontra cada MC, em relação à Atribuição Fixa Mensal (AFM) base votada pelo CD da .... 10.1.1.1.2. Um subsídio de verão, a transferir com a AFM de Julho. 10.1.1.1.3. Um subsídio de Inverno a transferir com a AFM de Novembro. 10.1.1.2. O valor da retribuição mensal a depositar na conta bancária do MC resulta do cálculo da percentagem produto da AFM pela percentagem em que se insere, assim distribuída: 10.1.2. Doze pagamentos mensais a transferir para a sua conta bancária entre o dia 20 e o dia 26 de cada mês, da AFM que lhe foi atribuída, acrescida dos subsídios a que tiver direito e deduzida das Taxas Sociais e Impostos.».
42. O ponto 11 do Regulamento, sob a epígrafe “Ajudas de Custo”, estabelece:
«11.1. Após a aprovação do relatório referente ao mês anterior, serão creditadas as Ajudas de Custo destinadas a cobrir as deslocações de serviço autorizadas e as despesas de relatório aprovadas. 11.2. O valor das ajudas de custo será estabelecido pelo CD da União Portuguesa ..., para cada Ministro do Culto, tendo em conta a área de seque é colocado. 11.3. Entre o dia 1 e 5 de cada mês, será transferido, para a conta bancária do MC, o saldo credor da sua conta corrente.».
43. O ponto 14 do Regulamento, sob a epígrafe “Férias”, estabelece, além do mais: «14.1. Por cada ano completo de serviço, o MC tem direito a gozar o seu período de férias: 14.2. Caso não tenham tido nenhuma interrupção da sua actividade durante o ano anterior, esse período corresponderá a 24 dias úteis. 14.3. Caso tenha ocorrido alguma interrupção no ano anterior, esse período será de 22 dias úteis. 14.4. O Período de férias pretendido deve ser submetido a aprovação até 15 Fevereiro do ano em que será gozado, tendo em conta que um mínimo de 15 dias deverá ser consecutivo. 14.4.1. A aprovação será comunicada até 30 de Março do mesmo ano. (...)»
Não se provaram quaisquer outros factos com relevo para a decisão da causa, de entre os alegados na petição inicial e contestação, nomeadamente:
- Que a R. fixou ao A. um horário de trabalho entre as 09h00 e as 22h00.
- Que o A. auferia um salário mensal ilíquido de € 1.126,82, mais ajudas de custo de € 1.000,00.
- Que em Setembro de 2022, o A. foi colocado na região de ..., por ordem da R., tendo-lhe sido paga a quantia de mil euros para ajudas de custo, continuando a exercer a sua actividade laboral e a ser remunerado;
- Que no dia 20/02/2023, o A. foi «surpreendido verbalmente, quando lhe foi afiançado que a partir desse dia não tinham mais trabalho para ele, pelo que deveria cessar atividade e que depois acertavam as contas.».
- Que a R. não apresentou qualquer justificação para a cessação do vínculo.
- Que o A. ficou muito malvisto perante os seus fiéis, pois a R. e os seus representantes inventaram desculpas para o afastar.
- Que o A. é pessoa extremamente humilde, responsável e respeitado.
- Que o A. não tencionava comunicar à R. que a tese de mestrado que apresentou foi rejeitada pela Faculdade de Teologia ..., por ter sido considerada plágio de outra tese de mestrado.”
III. O Direito
Sobre a questão suscitada no recurso, considerou-se na sentença recorrida:
“Face ao descrito acervo factual, é de concluir pela existência – que se presume, nos termos do art. 12º nº 1, alíneas a), b) e d) – de um vínculo de natureza jurídico-laboral entre o A. e a R..
Presunção essa que a R. não logrou afastar, não obstante as especificidades inerentes à sua condição de entidade religiosa, reconhecida como tal pelo nosso ordenamento jurídico, e à particular natureza das funções exercidas pelo A. ao seu serviço, que integravam uma componente religiosa, e outra de cariz social ou humanitário.
Na verdade, a posição que a R. sustenta na contestação assenta na impossibilidade dogmática de existência de um contrato de trabalho entre entidades religiosas e os seus Pastores de Culto (estagiários ou não), argumentando que a subordinação existente é de natureza meramente religiosa e espiritual, e não de índole laboral, porque uma vez incorporados na R., passam a agir como parte dela. Acrescentando que não se verifica, de igual modo, uma subordinação económica, porque os membros da igreja não têm direito a salário pela sua actividade, mas a uma quantia mensal para o seu sustento económico e para que possa desempenhar condignamente a sua missão, tendo os descontos que efectuou para a Segurança Social sido realizados no âmbito do regime de previdência especial para o clero, previsto no Decreto Regulamentar nº 5/83, de 31 de Janeiro. Citando ainda, em abono do seu entendimento, o princípio constitucional da Liberdade Religiosa, vertido no art. 41º da Constituição da República Portuguesa e, no plano legal, os arts. 3º, 15º nºs 1 e 2 e 22 nº 1, alíneas a) e b), da Lei nº 16/2001, de 22 de Junho (Lei da Liberdade Religiosa).
Com todo o respeito por diferente entendimento, não nos parece, à partida, que seja impossível, quer no plano legal, quer dos princípios, quer da realidade de facto, que se estabeleça um vínculo de natureza jurídico-laboral entre a R., enquanto entidade religiosa, e as pessoas através das quais prossegue os seus desígnios.
É facto que se trata de uma relação com contornos específicos, diferenciados daquilo que é o normal da relação trabalhador/empregador, desde logo porque implica uma vertente de aceitação espiritual e de comunhão com princípios religiosos e de vida, que normalmente está ausente da pura e simples vinculação laboral.
Mas isso não impede, a nosso ver, a sua qualificação como contrato de trabalho, desde que se verifiquem em concreto os pressupostos legalmente previstos – como no caso sucede.
Conclusão que não contende com o princípio da liberdade religiosa, consagrado no art. 41º da Constituição da República Portuguesa, nomeadamente com o direito das igrejas e outras comunidades religiosas serem livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto (cfr. nº 4 do citado artigo, com densificação legal nos arts. 3º, 22º e 23º da Lei nº 16/2001, de 22/06), porque a R. pode organizar como bem entender as relações que mantém com as pessoas que a integram, mas não deixa de estar sujeita a que essas relações sejam qualificadas em conformidade com o que a lei prevê e determina, nomeadamente nos arts 11º e 12º do Cód. do Trabalho.
Sem esquecer que a protecção do trabalho e dos trabalhadores é igualmente merecedora de tutela constitucional, designadamente através do direito ao trabalho e à segurança no emprego, a que se reportam os arts. 53º, 58º e 59º da Constituição da República Portuguesa.
Extraindo-se do disposto no art. 16º nºs 3, 4 e 5 da Lei nº 16/2001, de 22/06, que o A., retirando o seu sustento e do seu agregado das quantias que a R. mensalmente lhe pagava, exercia profissionalmente a sua actividade, devendo ser obrigatoriamente inscrito pela R. na Segurança Social e tendo direito às prestações previstas na respectiva legislação, de acordo com o regime aplicável às situações equiparadas a trabalho por conta de outrem, concretamente no art. 125º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, aprovado pela Lei nº 110/2009, de 16/09, que revogou o Decreto Regulamentar nº 5/83, de 31/01, prestações essas que asseguram a protecção nas eventualidades de invalidez e velhice, e eventualmente também, conforme a modalidade escolhida, em situações de doença, parentalidade, doenças profissionais e morte.
Sendo de notar que a R. comunicou à Segurança Social, em 06/03/2023, na qualidade de empregadora do A., através do preenchimento e entrega da declaração de situação de desemprego (“Mod. RP 5044/2016 - DGSS”), a cessação do contrato de trabalho com o A., indicando como data da cessação o dia 28/02/2023 e como motivo da cessação “Acordo de revogação não previsto nos nºs 11 a 16”.
Essa comunicação – embora errada, quer no que se refere à data, quer quanto ao motivo da cessação – não deixa de significar de algum modo, a assunção pela R. da existência de um contrato de trabalho com o A., que nos presentes autos vem pôr em causa.
Podendo, nessa medida, configurar uma actuação com abuso do direito, nos termos do art. 334º do Cód. Civil, de acordo com o qual “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”, na modalidade de “venire contra factum proprium”, que se caracteriza pelo exercício pelo agente de uma posição jurídica em contradição com uma conduta anterior pelo mesmo assumida.
Em suma, reafirma-se a conclusão de que a relação que vigorou entre A. e R. é qualificável como contrato de trabalho, independentemente do enquadramento que a R. entendeu dar às relações que mantém com os seus Ministros de Culto, expresso no Regulamento Interno que emitiu (constante de fls. 49 a 68 dos autos e parcialmente transcrito nos nºs 37 a 43 dos autos) e do seu conhecimento por parte do A..”
Alega a recorrente:
“9º- O desempenho da função vocacional de Ministro do Culto é ainda objecto de um regulamento interno designado por Regulamento Interno do Obreiro, doravante designado pela sigla R.I.O.; - Doc.2 junto com a contestação.
10º- Sendo que, no R.I.O. se define o tipo de ligação existente entre a Igreja e os seus Ministros do Culto, dizendo que, “(..)O elo de vinculação do MC à União Portuguesa ... reside na livre e expressa manifestação de vontade de cada colaborador de integrar os princípios da Igreja ... (Igreja ...) em todas as facetas do seu viver, dedicando-se completamente à superior prossecução dos objectivos da Igreja .... Assim sendo, este elo terá duração idêntica à da manutenção dos pressupostos em que a mesma reside”. (sublinhado nosso)
11º- Diz -se ainda, no R.I.O., que” (...) Os Ministros do Culto (MC) ... integram o corpo pastoral e administrativo da União Portuguesa ... pela sua completa e livre aceitação e acordo com os princípios da Igreja .... A sua anuência integral com esses princípios, e a sua consequente prática a todos os níveis da sua vida privada e pública, constituem a base de vinculação do MC com a Organização da Igreja”.(sublinhado nosso)
12º- O autor converteu -se, por decisão voluntária e pessoal, à Igreja ... e manifestou o desejo de nela entrar como membro, tendo sido batizado por imersão no rio Jordão, em Israel, pelo seu pai BB, (que também era Ministro do Culto), no dia 06/10/1979,
13º- E passando a fazer parte da Igreja ..., pela aceitação que fez dos Princípios Doutrinários que esta professa.
(...)
16º- Como resulta dos factos apurados e dados como provados e dos Estatutos e Regulamentos Internos da Ré, esta é uma entidade religiosa que tem por objeto a pregação do evangelho eterno de Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, realizar cultos religiosos e instituindo para realizar esse objetivos, uma estrutura hierarquizada de ministros do culto, que são credenciados, de acordo com diversos níveis de responsabilidade, para a prática de determinados atos que se enquadram na difusão da confissão professada.
17º- Ficou provado que, o Autor, enquanto ministro do culto, ainda que estagiário, difundia o culto, dava acompanhamento e apoio religioso aos membros da Igreja a seu cargo, presidia e celebrava cerimónias religiosas, campanhas de evangelização, como ele próprio assumiu na sua Petição inicial.
18º- A relação que existiu entre o Autor e a Ré/Apelante, não é reconduzível a uma mera prestação de atividade intelectual ou manual, embora também seja isso, é muito mais do que isso.
19º- A função eclesiástica desenvolvida pelos ministros do culto, não tem enquadramento em qualquer regime de índole laboral, pois o autor aceitou exercer o ministério pastoral por escolha de Cristo e vocação, pois no Ministério pastoral da Igreja cabe-lhe representar o amor de Deus junto dos membros da Igreja, como colaborador de Deus.
20º-Incorporado assim, na Igreja ..., o Autor passou a agir como parcela dela, sem distinção autonômica, entre a sua pessoa e a daquela Igreja.
21º- É flagrante que o Autor não teve qualquer propósito de celebrar com a Ré/Apelante um contrato de trabalho, mas antes associar-se à Ré/Apelante para prestar a sua vocação de ministro do culto e assim colaborar na realização dos fins religiosos em que acreditava e que elegeu como objeto da sua ação,”
O recorrido limitou-se a defender o julgado.
Nos termos do art. 1152º do Código Civil, contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade intelectual ou manual a outra pessoa, sob a autoridade e direcção desta.
Embora de forma pouco esclarecedora, o art. 11º Código do Trabalho de 2009, define o contrato de trabalho como aquele pelo qual uma pessoa singular se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade a outra ou outras pessoas, no âmbito de organização e sob a autoridade destas. Veja-se de Pedro Romano Martinez, no Código do Trabalho Anotado, 9ª edição, Coimbra: Almedina, 2013, págs. 133-134.
Por isso, a doutrina e a jurisprudência continuam a apontar como elemento caracterizadora do contrato de trabalho a subordinação jurídica, a qual decorre precisamente do poder de direcção que a lei confere à entidade empregadora e a que corresponde um dever de obediência por parte do trabalhador.
Para João Leal Amado, em Contrato de Trabalho, À luz do novo Código do Trabalho, Coimbra: Coimbra Editora, 2009, pág. 55, a subordinação jurídica “decorre do facto de o trabalhador se comprometer a prestar a sua actividade «sob a autoridade e direcção» da entidade empregadora (ou, de acordo com a nova fórmula legal, «no âmbito de organização e sob a autoridade» desta), sendo usual dizer-se que é neste elemento que reside o principal critério de qualificação do contrato de trabalho.”
Mais refere Maria do Rosário Palma Ramalho, no Tratado de Direito do Trabalho, Parte II – Situações Laborais Individuais, 2012, pág. 54, “Quanto ao poder directivo, a sua grande diferença relativamente aos poderes ordenatórios, que se encontram noutros contratos envolvendo a prestação continuada de uma actividade produtiva, está no grau de eficácia das ordens e instruções do empregador, que decorre do facto de serem assistidas pelo poder disciplinar sancionatório – dito de outra forma, embora o mandante, dono da obra ou o dono do negocio tenham um poder instrutório sobre o mandatário, o empreiteiro ou o agente, respectivamente, o desrespeito das suas instruções apenas lhes permite recorrer aos meios comuns de cumprimento coercivo e de ressarcimento dos danos. Assim, na análise das emanações do credor do trabalho, ao abrigo do poder directivo, para efeitos da qualificação do contrato, deverá sempre verificar-se se aquele poder é assistido da tutela disciplinar, uma vez que é esta tutela que constitui o elemento verdadeiramente singular do negócio laboral.”
Em consequência, costumam apontar-se como elementos adjuvantes da caracterização do contrato de trabalho, designadamente os seguintes:
- A natureza da actividade concretamente desenvolvida;
- O carácter duradouro da prestação – o contrato de trabalho é, em regra, de execução continuada;
- O regime da retribuição que é fixada por tempo: meses, semanas, dias ou horas;
- O carácter genérico da prestação ajustada;
- A propriedade dos instrumentos utilizados (em regra pertencentes ao empregador);
- A inexistência de colaboradores dependentes do trabalhador (em termos de subordinação jurídica e/ou económica);
- A incidência do risco da execução da actividade (que recai sobre o empregador);
- Exclusividade da prestação da actividade por conta do empregador e consequente dependência da retribuição por este paga, a que se reporta a chamada «subordinação económica».
É certo que cada um dos indícios apontados tem um valor relativo e, por isso, o juízo a fazer é sempre um juízo de globalidade, a ser formulado com base na totalidade dos elementos de informação disponíveis, a partir de uma maior ou menor correspondência com o conceito-tipo (António Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 14ª edição, 2009, pág. 147, pág. 147).
No dizer de Pedro Romano Martinez, em Direito do Trabalho, Almedina, 2006, págs. 294-295, “justificar-se-ia repensar o critério distintivo entre o contrato de trabalho, como trabalho subordinado, e as figuras afins, onde se inclui o designado trabalho autónomo; todavia, a superação deste critério passaria por uma nova perspectiva do contrato de trabalho. De iure condendo, no actual quadro legal, apesar de criticável, dever-se-á continuar a recorrer ao critério de distinção tradicional. No domínio contratual, por via do princípio da liberdade negocial, é conferida às partes autonomia para conformarem as suas relações contratuais; deste modo, o regime aplicável à actividade que uma pessoa presta a outra depende do acordo das partes. Contudo, tendo em conta o potencial desequilíbrio negocial entre aquele que se oferece para prestar uma actividade e o que pretende beneficiar dessa actividade, estabeleceram-se várias limitações à autonomia privada no contrato de trabalho. Relacionado com estas limitações, torna-se imperioso controlar a qualificação negocial, de molde a evitar que as partes se furtem à aplicação das regras imperativas em matéria laboral. Daí a necessidade de apreciar a licitude da opção das partes pelo trabalho autónomo.”
Foi precisamente a consciência da dificuldade de concretização da apontada subordinação jurídica que levou o legislador a estabelecer no art. 12º, nº 1, do Código do Trabalho, uma “presunção de contrato de trabalho”, estatuindo que presume-se a existência de contrato de trabalho quando, na relação entre a pessoa que presta uma actividade e outra ou outras que dela beneficiam, se verifiquem algumas das seguintes características: a) A actividade seja realizada em local pertencente ao seu beneficiário ou por ele determinado; b) Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertençam ao beneficiário da actividade; c) O prestador de actividade observe horas de início e de termo da prestação, determinadas pelo beneficiário da mesma; d) Seja paga, com determinada periodicidade, uma quantia certa ao prestador de actividade, como contrapartida da mesma; e) O prestador de actividade desempenhe funções de direcção ou chefia na estrutura orgânica da empresa.
Ou como se salienta no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Maio de 2014, processo 517/10.9TTLSB.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt, “Dadas as dificuldades sentidas no desenho de um conceito rígido e absoluto de “subordinação jurídica”, é sobretudo na operacionalização deste elemento contratual (máxime no que tange ao seu momento organizatório) que em regra se recorre ao método indiciário, com base numa “grelha” de tópicos ou índices de qualificação (elementos que exprimem pressupostos, consequências ou aspetos colaterais de certo tipo de vínculo contratual), relativamente aos quais há significativo consenso na doutrina e na jurisprudência, apesar de o seu elenco não ser rígido e de nenhum deles (isoladamente) assumir relevância decisiva, não sendo assim exigível que todos eles apontem no mesmo sentido.”
Entende-se na sentença que, no caso, estamos perante um contrato de trabalho, com fundamento na verificação de vários dos indícios elencados no art. 12º do Código do Trabalho, não tendo a recorrente conseguido ilidir a presunção daí resultante. Entendimento que é sustentado pelo recorrido e pelo Exmo. Procurador Geral Adjunto no seu douto parecer.
Em contrário pronuncia-se a recorrente apoiada no douto parecer que junta, argumentando que o vínculo entre uma congregação religiosa e o seu ministro de culto, nunca pode ser entendido como tendo natureza laboral.
Sem deixar de ter presente que uma entidade religiosa pode celebrar contratos de trabalho, inclusivamente com um seu ministro de culto, em determinadas circunstâncias, como seja para leccionar num colégio seu, conforme bem se salienta na sentença sob recurso e no douto parecer do Exmo. Procurador Geral Adjunto, e se reconhecer, como no parecer jurídico junto pela recorrente, conforme igualmente todos reconhecem, que a relação entre uma associação religiosa e um seu ministro de culto se reveste de especificidades que levantam sérias dificuldades, entendemos assistir razão à recorrente.
A grande referência sobre a matéria, ao nível da jurisprudência, é o acórdão do STJ de 16 de Abril de 2004, processo 04S276, acessível em www.dgsi.pt, no qual se refere:
“Como foi já suficientemente esclarecido pelas instâncias, o que avulta no enunciado definitório do contrato de trabalho, que consta do artigo 1º do Regime Jurídico do Contrato Individual de Trabalho (LCT), é a ideia de subordinação jurídica, que dimana do facto de o trabalhador se encontrar submetido à autoridade e direcção do empregador. No entanto, a subordinação é um conceito-tipo que se determina por um conjunto de características, de tal modo que ela é configurável, perante uma situação concreta, não através de um juízo subsuntivo ou de correspondência unívoca, mas mediante um mero juízo de aproximação, a partir da recolha e identificação de vários indícios externos (MONTEIRO FERNANDES (Direito do Trabalho, 11ª edição, Coimbra, pág. 142; neste sentido, também, entre muitos, os acórdãos 22 de Fevereiro e de 26 de Setembro de 2001, nos Processos nºs 3109/00 e 1809/01).
No elenco dos indícios de subordinação é geralmente dado importante relevo ao “momento organizatório” da subordinação, ou seja, às condições em que se encontra organizada a actividade laboral no âmbito do contrato: a vinculação a horário de trabalho, a execução da prestação em local definido pelo empregador, a existência de controlo externo do modo da prestação, a obediência a ordens, a sujeição à disciplina da empresa. Acrescem elementos relativos à modalidade de retribuição e à propriedade dos instrumentos de trabalho. E são, por fim, referidos indícios de carácter formal, tal como a observância dos regimes fiscal e de segurança social próprios do trabalho por conta de outrem (idem, pág. 143).
Todavia, como se anotou, cada um destes elementos, tomado de per si, reveste-se de patente relatividade. O juízo de aproximação ou semelhança terá de ser formulado no contexto geral, a partir de uma maior ou menor correspondência com o conceito-tipo, podendo suceder que cada um dos referidos índices assumam um sentido significante muito diverso de caso para caso.
Ora, no caso vertente, como bem pondera o Exmo procurador-geral adjunto, estamos perante uma situação factual cujos contornos escapam ao conceito típico de subordinação jurídica, desde logo porque falta um elemento central a qualquer relação jurídica contratual que é o acordo de vontades, expresso ou tácito, no sentido de uma das partes se dispor a prestar a sua actividade, disponibilizando a sua força de trabalho, a favor da outra.
Como resulta com suficiência dos autos, a ré é uma associação religiosa que tem por objecto a realização de cultos religiosos e obras de acção social, e que instituiu para a realização desses fins uma estrutura hierarquizada de ministros do culto, que são credenciados, de acordo com diversos níveis de responsabilidade, para a prática de determinados actos que se enquadram missionação e difusão da confissão professada.
No caso, o autor passou a integrar a associação ré, em 1992, como “Pastor Auxiliar” e foi depois ordenado “Pastor” em cerimónia realizada segundo os ritos da confissão religiosa (ainda que mais tarde tenha vindo a retomar a sua anterior posição de “Pastor Auxiliar”) e subscreveu a declaração transcrita na alínea P) da matéria de facto, em que afirma que se tornou pastor da B “por livre deliberação e espontânea vontade”, que “essa actividade continuará a ser desenvolvida sem visar qualquer vantagem de ordem financeira”, por se tratar “de actividade estritamente religiosa, voltada para os fiéis da B” e que o único compromisso que a Igreja assumiu para com ele foi de orientar a sua actividade pastoral.
Neste enquadramento, parece claro que o autor não teve qualquer propósito de celebrar com a ré um contrato de trabalho, mas antes de associar-se à ré para prestar a sua actividade de ministro do culto, e assim colaborar na realização dos fins religiosos e de assistência e beneficência que a confissão religiosa elegeu como objecto da sua acção.
Os diversos elementos que segundo critérios de normalidade poderiam apontar para a existência de uma relação jurídica de trabalho subordinado, fazendo prevalecer essa qualificação sobre modalidades de contrato afins, como seja o contrato de prestação de serviços, não têm, neste contexto, um qualquer valor indicativo, pela linear razão de que o vínculo que as partes quiseram instituir entre si, pela sua própria natureza, exclui qualquer ligação de tipo contratual.
Conforme decorre da recente Lei de Liberdade Religiosa, aprovada pela Lei nº 16/2001, de 22 de Junho, cujos princípios gerais têm plena aplicação ao caso, “ministros do culto são as pessoas como tais consideradas segundo as normas da respectiva igreja ou comunidade religiosa” e a respectiva qualidade “é certificada pelos órgãos competentes da respectiva igreja ou comunidade religiosa, que igualmente credenciam os respectivos ministros para a prática de actos determinados” (artigo 15º, nºs 1 e 2). Por outro lado, “o exercício do ministério é considerado actividade profissional do ministro do culto quando lhe proporciona meios de sustento” e estes “têm direito às prestações do sistema de segurança social nos termos da lei, sendo obrigatoriamente inscritos pela igreja ou comunidade religiosa a que pertençam, salvo se exercerem por forma secundária a actividade religiosa e o exercício da actividade principal não religiosa determinar a inscrição obrigatória num regime de segurança social” (artigo 16º, nºs 3 e 4).
Comprovando-se que o autor era ministro do culto de uma associação religiosa, a circunstância de ter havido lugar ao pagamento de uma remuneração pela actividade exercida e às deduções para o regime de segurança social, não pode ser invocada para qualificar como contrato de trabalho a relação existente entre partes, quando é certo que esses são requisitos que a própria lei aceita como sendo inerentes à função religiosa e ao exercício dos actos de culto.
Os elementos normalmente indicativos de dependência jurídica não são, pois, mais do que emanações de um regime estatutário que é definido pela comunidade religiosa e é aceite por quem pretende exercer o ministério de acordo com os fins religiosos que lhes são propostos pela respectiva confissão.”
Tal como aconteceu com a situação apreciada no acórdão acabado de transcrever, também aqui se provou, nomeadamente, que consta do Regulamento Interno da recorrente (facto provado 38), sob a epígrafe “Vinculação”, que
«(...) Os (MC) ... integram o corpo pastoral e administrativo da União Portuguesa ... pela sua completa e livre aceitação e acordo com os princípios da Igreja .... A sua anuência integral com esses princípios, e a sua consequente prática a todos os níveis da sua vida privada e pública, constituem a base de vinculação do MC com a Organização da Igreja. A União Portuguesa ... propõe-se, por força dos seus estatutos, a garantir aos seus MC os meios de subsistência pelo seu Conselho Director (CD) considerados necessários ao cabal desempenho da missão que lhes é designada. Tal garantia de meios de subsistência está sempre implícita ao reconhecimento, por Parte da União Portuguesa ... da manutenção satisfatória das condições de vinculação de cada MC ao corpo pastoral ou administrativo da Igreja. Pela abrangência e amplitude da natureza da vinculação dos MC à Igreja ..., as funções eclesiásticas desenvolvidas pelos MC não têm enquadramento em qualquer regime de índole laboral, sendo que o MC representa e se identifica com a própria Igreja que integra. Assim, o labor dos MC não pode estar limitado pela existência ou não de quaisquer horários de trabalho, prémios, incentivos. O MC trabalha por vocação e convicção próprias, dedicando a totalidade do seu tempo e acção à causa da Igreja ..., promovendo com todas as suas capacidades e por todos os meios ao seu alcance, a consecução dos objectivos da Igreja. A acção do MC é, no entanto, superiormente coordenada por instâncias organizacionais da Igreja, as quais cada ministro tem o direito e o dever de conhecer, respeitar, suster, apoiar e integrar. Podendo o MC vir a divergir da anuência e prática estabelecidas pela Igreja, de forma a condicionar a influência que exerce no corpo da Igreja ou a imagem que dela transmite para o exterior, tal divergência anula por si própria a vinculação anteriormente vigente, não podendo o MC invocar a existência de qualquer outro tipo de vinculação. Em tal caso, cujo direito de opção é sempre reconhecido pela Igreja como sendo da exclusiva responsabilidade do MC, o abandono ou a divergência dos princípios desqualifica o MC para a continuidade do exercício de funções.». Veja-se ainda os factos provados 37 e 40.
Como se pode verificar deste ponto do Regulamento Interno da Organização, a vinculação do recorrido, Ministro de Culto da recorrente, afasta-se da concepção do contrato de trabalho, devido ao tipo de relação, que se apresenta como permanente e constante, sem distinção entre período normal de trabalho e tempo de “descanso”, em que um trabalhador está livre para ocupar o seu tempo como bem entenda, que declara “integrar” o corpo pastoral e administrativo da União Portuguesa ... pela sua completa e livre aceitação e acordo com os princípios da Igreja ....
Conforme se refere no douto Parecer junto pela recorrente, citando Jónatas Machado, em El estatuto legal de los ministros de culto en Portugal, Derecho y religión, A liberdade religiosa na relação laboral, Coimbra: Gestlegal, nº 16, 2021, pág. 68 “sobretudo, está em causa uma relação “existencial, espiritual e axiológica”. Ou, como ali se acrescenta, agora citando Milena Rouxinol, em João Leal Amado, Direito do Trabalho: relação individual, 2ª edição, Coimbra: Almedina, 2023, pág. 86, “não poderá qualificar-se como relação laboral aqueles casos em que a atividade, ainda que aparentemente “prestada a outrem, mediante retribuição e de forma subordinada, é levada a cabo como expressão de um credo religioso, exteriorizando-se como ministério de fé de que partilham prestador e o credor, integrados na mesma comunidade”.
Por outro lado, mostram-se ténues os índices de laboralidade apontados na sentença, se enquadrados no Regulamento Interno da recorrente. Independentemente da ambígua terminologia utilizada no mesmo. Assim: a execução do ministério em local de culto arrendado pela recorrente e o uso de instrumentos materiais à mesma pertencentes, são inerente à actividade desenvolvida, que terá que ser realizada em local específico; o recebimento de uma determinada quantia mensal, que é referido ser um meio de subsistência, uma vez que o voluntariado, neste caso, implica uma dedicação exclusiva e a tempo inteiro, não permitindo ao fiel ministro de culto angariar meios de subsistência, pelo que a sua subsistência terá que provir das contribuições dos demais fieis para a congregação; a inexistência de um horário de actividade concreto, uma vez que, como referido a dedicação do ministro de culto à comunidade religiosa que “serve” é total e a tempo integral, sem prejuízo de lhe ser reconhecido o direito a descansar, pelo menos, um dia da semana, mas sempre sem descurar tal obrigação; sendo a sua inscrição na segurança social resultado do estatuído no art. 16º, nº 4, da Lei da Liberdade Religiosa, Lei nº 16/2001, de 22 de Junho, e arts. 122º e seguintes da Lei nº 110/2009, de 16 de Setembro, e não da sua consideração como trabalhador por conta de outrem. Neste sentido, veja-se igualmente o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 12 de Maio de 2016, processo 274/15.2T8TMR.E1, ainda acessível em www.dgsi.pt.
O erro, ou incorrecta configuração da situação nas comunicações com terceiras entidades, como a segurança social, não só não relevam para a qualificação da relação como de natureza laboral, como não se podem considerar como indícios de abuso de direito, ao contrário do que se refere na sentença sob recurso. Neste sentido, veja-se o acórdão desta Secção Social do Tribunal da Relação do Porto de 18 de Setembro de 2023, processo 3423/21.8T8MAI.P1, acessível em www.dgsi.pt, mesmo relator do presente e subscrito igualmente como adjunto pelo aqui segundo adjunto, do qual consta, citando o acórdão desta Secção Social do Tribunal da Relação do Porto de 11 de Outubro de 2010, processo 167/09.2TTLMG.P1, ainda acessível em www.dgsi.pt, “A declaração em questão foi emitida nos termos do disposto no art. 43º do DL 220/2006, destinando-se a ser entregue à Segurança Social com vista a instruir o requerimento de concessão das prestações de desemprego. Trata-se de um documento particular que, ainda que não impugnada a letra e assinatura e fazendo, por isso, prova plena de que o seu autor emitiu a declaração nele inserta (art. 376º, nº 1, CC), não tem, contudo, a força probatória prevista no nº 2 do mesmo, ou seja, não faz prova plena da veracidade dos factos contidos nessa declaração, sendo certo que, como se tem entendido, doutrinal e jurisprudencialmente, carecem de tal força os documentos que tenham como destinatários terceiros, que não a parte que dele pretende beneficiar.”
Por outro lado, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15 de Fevereiro de 2012, processo 550/10.0TTFUN.L1-4, igualmente acessível em www.dgsi.pt, invocado no douto parecer do Ilustre Procurador Geral Adjunto, porquanto o mesmo decidiu com base no abuso de direito da associação religiosa, ou seja, reconhecendo-se que a relação não teria a natureza laboral, considerou-se haver despedimento em virtude de a associação religiosa ter instaurado um processo disciplinar ao seu ministro de culto, com vista ao despedimento, o que foi entendido como reconhecimento da laboralidade, pelo que não poderia depois vir invocar não existir tal tipo de relação. Assim como não tem aqui aplicação o acórdão do mesmo Tribunal da Relação de Lisboa de 5 de Dezembro de 2012, processo 14506/17.9T8LSB.L1-4, ainda acessível em www.dgsi.pt, que aceita a mera possibilidade de existência de contrato de trabalho, em função da alegação e prova dos elementos necessários, o que não se questiona, como se deixou acima referido.
Nestes termos, procede a apelação.
IV. Decisão
Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação, revogando-se a sentença sob recurso, a qual é substituída pelo presente acórdão, absolvendo-se a ré do pedido.
Custas pelo recorrido, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
Porto, 18 de Novembro de 2024
Rui Penha - relator
Germana Ferreira Lopes
Nelson Fernandes