I – As nulidades da sentença (leia-se aqui despacho) previstas no artigo 615.º do CPC sancionam vícios formais, de procedimento – errore in procedendo - e não patologias que eventualmente traduzam erros judiciais – error in judicando, sendo que: no primeiro segmento da alínea c) do n.º 1 está em causa um vício estrutural da decisão, por contradição entre as suas premissas, de facto e/ou de direito, e a conclusão, de tal modo que este deveria seguir um resultado diverso; a primeira parte da alínea d) do n.º 1, está em correlação com os limites da atividade de conhecimento do tribunal estabelecidos no artigo 608.º, n.º 2, do CPC, só se verificando quando o juiz deixe de conhecer questões temáticas centrais, importando não confundir questões com factos, argumentos, razões ou considerações.
II - No domínio do processo emergente de acidente de trabalho existe um dever de conhecimento oficioso, por estar em causa a aplicação de preceitos inderrogáveis – em que, como se sabe, a condenação pode ser em quantidade superior ao pedido, ou em objeto diverso dele (artigo 74.º do CPT) -, tratando-se de matéria subtraída à disponibilidade das partes (artigo 12.º da NLAT).
III - O direito do trabalhador, vítima de acidente de trabalho, à “justa reparação” tem assento no artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição da República Portuguesa (cfr. ainda os artigos 283.º, n.º 1, do CT, o artigo 78.º da NLAT e o artigo 127.º, n.º 1, do CPT), pelo que, tratando-se de direitos indisponíveis, o montante devido pela reparação do acidente é de conhecimento oficioso, devendo o juiz fixá-lo de acordo com as normas legais aplicáveis aos factos provados, independentemente do enquadramento jurídico que as partes tenham efetuado e dos valores peticionados.
IV - O laudo pericial, não tem força vinculativa obrigatória, estando sujeito à livre apreciação do julgador (artigos 389º do CC e 489º do CPC), sem prejuízo, todavia, de a eventual divergência dever ser devidamente fundamentada em outros elementos probatórios que, por si ou conjugadamente com as regras da experiência comum, levem a conclusão contrária por se tratar de matéria em que o juiz não dispõe dos necessários conhecimentos técnico-científicos.
V - Apresentando-se o laudo pericial da junta médica como claro, congruente, objetivo e fundamentado, permitindo captar as razões e o processo lógico que conduziu às respostas e resultado a que chegou, é perfeitamente razoável e adequado que o Tribunal a quo entendesse que os autos reuniam as condições necessárias para tomar decisão quanto à natureza e fixação da incapacidade na sua livre convicção e, bem assim, que sustentasse tal decisão com apelo na respetiva fundamentação ao laudo pericial por junta médica.
VI – A noção de retribuição para efeitos de acidente de trabalho, tal como resulta da NLAT, mais concretamente do seu artigo 71.º, é distinta e mais ampla do que a noção de retribuição que resulta do Código do Trabalho e que se acha consagrada no seu artigo 258.º
VII – O conceito de retribuição para efeitos do cálculo das prestações devidas aos sinistrados ou beneficiários no âmbito da reparação devida por acidente de trabalho abrange todas as prestações recebidas com caráter de regularidade, desde que não se destinem a compensar o sinistrado por custos aleatórios.
VIII – São custos aleatórios os que tenham subjacente um acontecimento incerto, os que tenham subjacente um acontecimento incerto, sujeito às incertezas do acaso, casual, fortuito, imprevisível. O que vale por dizer que não só o montante deve ser suscetível de variar, como também a causa que lhe está subjacente deve ter alguma incerteza ou imprevisibilidade.
IX - Face à noção do artigo 71.º da NLAT não é suficiente para excluir do conceito de retribuição para efeitos de acidente de trabalho invocar apenas que a prestação regular se destina a cobrir custos, havendo que provar igualmente – ónus da prova que cabe ao empregador (ou segurador) – que tais custos são aleatórios.
(elaborado pela sua relatora nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil (cfr. artigo 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho) – com apelo (em parte) aos sumários dos Acórdãos citados nas matérias sumariadas nos pontos VI a IX)
Origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – Juízo do Trabalho de ...
Relatora: Germana Ferreira Lopes
1º Adjunto: António Luís Carvalhão
2º Adjunto: Rui Manuel Barata Penha
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:
I - RELATÓRIO
Os autos respeitam a uma ação declarativa de condenação, sob a forma de processo especial, emergente de acidente de trabalho, em que é autor AA e rés A..., SA. (Seguradora) e B... SAD (Entidade Empregadora), que se iniciou com base numa participação efetuada pelo sinistrado por acidente de trabalho ocorrido em 10-10-2021.
Na sequência de tal participação, na fase conciliatória dos autos, foi determinada a notificação da Seguradora e da Entidade Empregadora para juntarem a documentação melhor identificada no despacho refª citius 119480907.
Por requerimento refª citius 12431371, veio a Seguradora juntar, para além do mais, o seguinte (fls. 12 a 30 dos autos):
- Cópia da apólice de contrato de seguro a prémio fixo n.º ...03 ...01;
- Boletim de exame/boletim clínico do sinistrado, de 19-10-2021, dos serviços clínicos da Seguradora, com atribuição de ITA até 9-11-2021, constando das observações/justificação transferência o seguinte: “Justificação da Incapacidade: Refere traumatismo facial em jogo de desportivo (jogador do B...) em 10 de outubro de 2021. Foi operado no H.S.João a fractura do malar à direita (redução do gancho) em 14 de outubro. Actualmente equimose residual malar e palpebrar inferior direita. Retira ponto de sutura. Para cuidados locais. Recomendo não fazer exercício físico 2 semanas e depois mais 2 sem contactos. ITA (…). – fls. 18 verso e 19 dos autos;
- Boletim de exame/alta do sinistrado, de 9-11-2021, dos serviços clínicos da Seguradora, com atribuição de alta sem incapacidade (Alta SI), constando das observações o seguinte: “Sem dismorfias ou assimetrias. Refere alteração da sensibilidade do infra-orbitrário direito quando pressiona a zona de saída” – fls. 14 verso dos autos.
Por requerimento refª citius 12498100, veio a Entidade Empregadora B... SAD juntar aos autos quatro recibos de vencimento do sinistrado, mais precisamente os recibos de agosto a novembro de 2021 – fls. 31 a 35 dos autos.
Em 4-10-2022, teve lugar a tentativa de conciliação da fase conciliatória do processo, conforme auto de não conciliação refª citius 123720202, que se mostra junto com a respetiva subscrição a fls. 49 a 52 dos autos .
Desse auto consta o seguinte (transcrição[1]):
“Auto de não conciliação
Presentes:
O Mandatário do sinistrado com poderes especiais: Dr.º BB (…)
Entidade Responsável: A...-Companhia de Seguros, SA (…), representada por Dr.º (…)
Representante da Entidade Patronal: Dr.ª CC, com substabelecimento com reserva que junta neste acto.
Iniciada a diligência pelo mandatário do sinistrado foi dito que no dia 10-10-2021, cerca das 16:50 horas, em ..., foi vítima de acidente de trabalho, quando, com a categoria profissional de jogador de futebol, mediante a retribuição anual liquida de € 2.500,00 x 14 meses, acrescido de € 11.070,34 de outras remunerações trabalhava sob as ordens, direção e fiscalização de B... S A D, cuja responsabilidade infortunística se encontrava transferida para a A... - Companhia de Seguros, S.A, através de contrato de seguro titulado pela apólice nº ...03, na modalidade de prémio fixo; que o acidente consistiu em, ter levado uma cabeçada do guarda-redes, tendo perdido o conhecimento, resultando traumatismo da face, lesões e incapacidades descritas no relatório de perícia de avaliação do dano corporal de fls 37 a 39; que o Ex.mo Perito do GML de Entre Douro e Vouga fixou a consolidação médico-legal das suas lesões no dia 09-11-2021 e lhe arbitrou um coeficiente de desvalorização de 1,00%, a título de IPP, com o qual NÃO CONCORDA, uma vez que entende ser portador de uma IPP de pelo menos 5,00% de acordo com o relatório médico junto aos autos a fls. 6; que despendeu a quantia de € 25,00 em despesas de transporte, com as suas deslocações obrigatórias ao aludido Gabinete Médico-Legal e a este Juízo do Trabalho de ....
Em face do exposto, RECLAMA o capital de remição de uma pensão anual e vitalícia com base na IPP que lhe vier a ser definida em sede de junta médica.
Reclama também os respetivos juros de mora, à taxa legal (4,00%), contados a partir do vencimento das prestações e até efetivo e integral pagamento
Seguidamente, pelo representante da Seguradora foi dito que a sua representada aceita a existência do acidente e a sua caracterização como de trabalho, o nexo de causalidade entre o mesmo e as lesões sofridas, a categoria profissional .
Apenas aceita a transferência da responsabilidade infortunística, nos termos da citada apólice de seguro, em função da retribuição anual ilíquida de € 35.000,00 (€ 2.500,00 x 14 meses).
Todavia, não concorda com o coeficiente de desvalorização arbitrado ao sinistrado pelo Exmo Perito do Gabinete Médico-Legal e Forense de Entre Douro e Vouga, dado entender que ele se encontra curado sem qualquer desvalorização.
Consequentemente, nada aceita pagar ao sinistrado a título de capital de remição ou a qualquer outro título.
Seguidamente, pela mandataria da empregadora foi dito que a sua representada aceita a existência do acidente e a sua caracterização como de trabalho, o nexo de causalidade entre o mesmo e as lesões sofridas, e a categoria profissional.
Não concorda com o valor peticionado de retribuição pelo sinistrado uma vez que entende que tem na sua totalidade o valor transferido para a seguradora, nos termos da citada apólice de seguro, em função da retribuição anual ilíquida de € 35.000,00.
Também não concorda com o coeficiente de desvalorização arbitrado ao sinistrado pelo Exmo Perito do Gabinete Médico-Legal e Forense de Entre Douro e Vouga, dado entender que ele se encontra curado sem qualquer desvalorização.
Consequentemente, nada aceita pagar ao sinistrado a título de capital de remição nem a qualquer outro título.
Nesta altura, pela Exma Procuradora da República, foi proferido o seguinte
DESPACHO:
Atentas as posições assumidas pelas partes e sendo as mesmas capazes, dou esta diligência por encerrada e aquelas por NÃO CONCILIADAS, determinando que os autos aguardem, por 20 dias, a apresentação de petição inicial por parte do sinistrado, de harmonia com as disposições conjugadas dos arts 117º nº 1 al. a) 119º nº 1 do CPT. Notifique.
Seguidamente, foram os presentes notificados.”
AA (adiante Autor) apresentou petição inicial, dando assim início à fase contenciosa do processo, demandando as Rés A...-Companhia de Seguros, SA (adiante 1.ª Ré Seguradora) e B..., SAD (adiante 2.ª Ré Entidade Empregadora).
Na petição inicial o Autor concluiu nos seguintes termos:
“ Termos em que se requer, a V.ª Ex.ª, se digne julgar provada, e procedente, a pretensão do Autor/Sinistrado e, em consequência e na medida das respectivas responsabilidades, devem as Rés ser condenadas a:
A) Pagar uma pensão anual e vitalícia, no valor que resultar da consideração do salário invocado (€ 42.721,78) e do grau de desvalorização que lhe vier a ser reconhecido na sequência da junta médica a que for submetido conforme requerimento abaixo formulado;
B) Pagar a quantia de € 25,00 a título de transportes para comparência a actos judiciais, bem como com os que tiver que suportar para se apresentar na junta médica a realizar, a serem pagos pelas Rés;
C) Juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa anual de 4%, desde a data do respectivo vencimento até integral pagamento.”
Alegou, em síntese, que: é praticante desportivo profissional da modalidade de futebol; no âmbito da sua profissão, celebrou em 19-08-2021 com a 2ª Ré Entidade Empregadora um contrato individual de trabalho que juntou sob doc. 1 (fls. 72 verso a 74 dos autos); para a época desportiva que aqui interessa (época 2021/2022), na 3ª cláusula do contrato de trabalho (doc. 1) estipula que o Autor receberia da 2ª Ré como contrapartida pelo seu trabalho remuneração global líquida de € 35.000,00, a ser paga em 11 prestações mensais, iguais e sucessivas de € 3.182,00 cada, a primeira das quais a ser paga até 5-09 e as restantes 10 no mesmo dia dos meses imediatamente subsequentes; esta remuneração global líquida de € 35.000,00, a ser paga em 11 prestações mensais, iguais e sucessivas de € 3.182,00 correspondia à quantia anual ilíquida de € 42.721,78 (onde já se incluía o subsídio de alimentação), tudo conforme recibos de vencimento do Sinistrado nessa época desportiva 2021/2022 (sendo que a 2ª Ré apenas juntou os recibos de agosto, setembro, outubro e novembro de 2021 (doc. 2); em cumprimento do contrato de trabalho constante do doc. 1, na época desportiva 2021/2022 e como contraprestação pelo trabalho prestado, o Autor recebeu da 2.ª Ré quantia anual ilíquida de € 42.721,78 correspondente aos € 35.000,00 líquidos acordados no contrato de trabalho; a Entidade Patronal tinha a sua responsabilidade infortunística parcialmente transferida para a 1.ª Ré Seguradora, através de contrato de seguro pela remuneração anual de € 35.000,00; no dia 10-10-2021, foi vítima de um acidente quando trabalhava sob as ordens, direção e fiscalização da 2.ª Entidade Empregadora, que consistiu em ter levado uma cabeçada do guarda-redes, tendo perdido o conhecimento, resultando traumatismo da face, com fratura do complexo zigomático-malar direito, conforme relatório de perícia de avaliação de dano corporal da fase conciliatória e relatório de alta do Centro Hospitalar e Universitário de São João que junta como doc. 3; não concorda com o coeficiente de IPP de 1% atribuído no exame médico no GML de Entre Douro e Vouga, pois entende que às sequelas resultantes do acidente e das cirurgias realizadas corresponde uma IPP de pelo menos 5%, conforme relatório médico que junta; em transportes para comparência a atos judiciais gastou € 25,00.
Defendeu que o conceito de retribuição, para efeitos de acidente de trabalho, se alarga a todas as prestações recebidas com caráter de regularidade, mesmo que estas, face à lei geral, não revistam natureza retributiva e desde que não se destinem a compensar o sinistrado por custos aleatórios. Mais defendeu que a reparação do acidente em apreço recai sobre as Rés, pois a Entidade Patronal, em desobediência ao imposto pelo artigo 79.º da Lei n.º 98/2009 de 4-09, não tinha a totalidade da sua responsabilidade infortunística transferida para a 1.ª Ré Seguradora.
Requereu a realização de junta médica da especialidade de cirurgia máxilo-facial. Mais requereu a notificação da 2.ª Ré Entidade Empregadora para juntar aos autos cópia dos recibos de vencimento do Sinistrado respeitantes aos meses de dezembro de 2021 até junho de 2022, para completar os 11 recibos de vencimento.
Citada, a 1.ª Ré Seguradora apresentou contestação, dizendo que mantém integralmente a posição assumida na tentativa de conciliação realizada na fase conciliatória, pugnando pela improcedência da ação e respetiva absolvição do pedido.
Invocou, no essencial, que: o contrato de seguro de acidentes de trabalho celebrado entre as Rés foi celebrado na tipologia de prémio fixo, sendo que a retribuição informada foi de € 2.500,00, pelo que a retribuição ilíquida anual total transferida foi de € 35.000,00; o Sinistrado ficou curado sem qualquer desvalorização.
Requereu a realização de exame por junta médica.
Citada, a 2.ª Ré Entidade Empregadora contestou, reiterando a posição assumida na tentativa de conciliação da fase conciliatória, pugnando pela improcedência da ação e respetiva absolvição do pedido.
Não reconheceu a IPP atribuída no relatório do exame médico do GML, nem a IPP invocada pelo Autor, referindo que transferiu para a 1.ª Ré Seguradora a responsabilidade emergente de acidentes de trabalho, na sua totalidade, em função da retribuição anual de € 35.000,00.
Requereu a realização de perícia por junta médica.
Foi proferido despacho saneador (refª citius 125221276), no qual se afirmou inexistirem nulidades, exceções ou questões prévias de que cumprisse conhecer.
Na identificada decisão foi enunciada a matéria assente nos termos do artigo 131.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo do Trabalho, identificado o objeto do litígio e enunciados os temas de prova.
Na decisão em referência foi ainda determinado o desdobramento do processo, com a organização do apenso para fixação da incapacidade.
Foi apresentada reclamação pela 2.ª Ré Entidade Empregadora no que respeita à alínea F) dos factos assentes, que foi atendida, conforme despacho refª citius 125901175 que determinou fosse eliminado do facto assente sob a alínea F) o termo “parcialmente”. Nesse mesmo despacho, foi determinada a notificação da 2.ª Ré Entidade Empregadora para juntar os documentos solicitados pelo Autor.
Por requerimento refª citius 14213803, a 2.ª Ré Entidade Empregadora juntou os recibos de vencimento do Autor de dezembro de 2021 a junho de 2022 (fls. 127 a 130 dos autos).
Foi organizado apenso de fixação de incapacidade (apenso A), no qual depois de realizada a junta médica, foi proferida decisão nos termos do artigo 140.º, n.º 2, do CPC, na qual se considerou demonstrado que o Autor padece das sequelas descritas no auto de junta médica e se decidiu fixar em 4% a incapacidade permanente parcial de que o Autor está afetado em consequência do acidente dos autos – refª citius 127838524 de 12-06-2023 do apenso A.
Foi designado o dia 28-06-2023 para a realização da audiência de julgamento, sendo que nessa sessão de julgamento, finda a inquirição da testemunha DD, o Ilustre Mandatário do Autor apresentou um requerimento, constando da respetiva ata refª citius 128152106, nessa matéria, o seguinte:
“Finda a inquirição supra, foi requerida e concedida a palavra ao Ilustre Mandatário do sinistrado, que no seu uso formulou um requerimento (ampliação do pedido) que se encontra gravado em suporte digital/CD, no contador de 00:00:01 a 00:06:15, em pista com a sua identificação que foi gravado em suporte digital no contador de 00:00:01 a 00:06:15, em pista.
Dada a palavra ao Ilustre Mandatário da Seguradora, que no seu uso respondeu ao requerimento (nada a opôr) que se encontra gravado em suporte digital/CD, no contador de 00:00:01 a 00:00:02, em pista com a sua identificação.
DESPACHO
Concede-se o prazo de 10 dias à Ré Empregadora para contestar nos termos do artº. 28º, nº 4 do CPT.
(…)”
Ouvido o requerimento efetuado pelo Ilustre Mandatário do Autor, gravado na sessão de 28-06-2023, verifica-se que no mesmo o Autor referiu requerer por apelo ao artigo 265.º, n.º 2, do Código de Processo Civil a ampliação do seu pedido em termos de que na remuneração anual bruta que deverá servir de cálculo para a reparação do acidente dos autos fossem também integradas as quantias previstas nos n.ºs 7, 6 e 4 da cláusula 3ª do contrato de trabalho junto com a p.i. como doc. 1.
Por requerimento refª citius 14822878, veio a 2.ª Ré Entidade Empregadora pronunciar-se sobre o requerimento apresentado pelo Autor, no sentido do seu indeferimento, por intempestivo ou, caso assim, não se entendesse, ser o mesmo improcedente.
Foi proferido o despacho refª citius 128822832, datado de 4-09-2023, com o seguinte teor (trans:
“O autor veio requerer a ampliação do pedido em sede de audiência de discussão e julgamento alegando, em síntese, que, nos termos contratuais, o autor tinha direito às quantias de € 6.000 a título de subsídio de habitação, € 3.900 a título de prémio de vitória por força das 13 vitórias alcançadas pela ré empregadora na Liga SABSEG na temporada 2021/2022 e de € 5.000 a título de prémio decorrente do número de jogos efetuados, mais concretamente por força dos 27 jogos efetuados na Liga SABSEG na temporada 2021/2022, que devem ser considerados no cálculo da pensão.
A ré empregadora opôs-se à ampliação do pedido, considerando não ser tempestiva e não corresponder a um desenvolvimento do pedido inicial, acrescendo ainda que se trata de valores que não devem ser consideramos retribuição por não reunirem os respetivos pressupostos.
O artigo 28.º, do Código de Processo do Trabalho, determina o seguinte:
1 - É permitido ao autor aditar novos pedidos e causas de pedir, nos termos dos números seguintes.
2 - Se, até à audiência final, ocorrerem factos que permitam ao autor deduzir contra o réu novos pedidos, pode ser aditada a petição inicial, desde que a todos os pedidos corresponda a mesma forma de processo.
3 - O autor pode ainda deduzir contra o réu novos pedidos, nos termos do número anterior, embora esses pedidos se reportem a factos ocorridos antes da propositura da ação, desde que justifique a sua não inclusão na petição inicial.
4 - Nos casos previstos nos números anteriores, o réu é notificado para contestar tanto a matéria do aditamento como a sua admissibilidade.
Na realidade, em nosso modesto entendimento, existe uma ampliação do pedido assente numa alteração da causa de pedir que corresponde ao valor da retribuição anual.
O autor não deduziu um pedido líquido, tendo pedido a fixação de uma pensão baseada em dois fatores: o grau de incapacidade que for determinado e a retribuição anual.
Contudo, defendeu na petição inicial que a retribuição era de € 42.721,78 e, agora, com base nos novos factos que vem alegar, considera, em suma, que a retribuição anual é de € 57.621,78.
A questão que se coloca é a de saber se o autor pode, na audiência final, alterar a causa de pedir (no caso, o valor da retribuição) e, com base nisso, alterar o primeiro pedido deduzido.
O n.º 3 da norma referida induz uma resposta positiva, exigindo, no entanto, uma justificação apresentada pelo autor.
A justificação apresentada no requerimento foi a de que os valores em causa não constavam dos recibos de vencimento.
Embora consideremos que o autor tinha elementos para alegar esta matéria anteriormente, consideramos que uma análise da norma referida deve levar à aceitação do requerimento do autor, porque é verdade que os valores referidos constam do contrato, mas não dos recibos de vencimento e é a melhor interpretação conjugada com os artigos 72.º, n.º 1 e 74.º do Código de Processo Civil.
Nos termos destas disposições legais, o tribunal deve considerar factos essenciais que resultem dos autos, designadamente da prova produzida, mesmo que não alegados e pode (deve) condenar para além do pedido se os factos levarem a essa conclusão, pois estamos perante matéria referente a direitos indisponíveis – artigo 78.º, da LAT.
Se assim é e constando dos autos o contrato de onde resultam os direitos contratuais do autor, designadamente em sede remuneratória, bem como, neste momento, documentos de onde resultam o número de jogos e vitórias efetuados pelo autor e obtidos pela ré empregadora, consideramos que deve ser admitida a ampliação do pedido e da causa de pedir.
Pelo exposto, defiro a requerida ampliação do pedido e a ampliação da causa de pedir que lhe está subjacente e, em consequência, adito à matéria assente e controvertida o seguinte:
Facto E da lista de factos assentes:
Passa a constar aquilo que resulta do contrato celebrado entre as partes em matéria remuneratória.
Tema de prova n.º 1:
A retribuição anual ilíquida do sinistrado, na época de 2021/2022, foi de € 57.621,78 (onde já se incluía o subsidio de alimentação)?
Na época de 2021/2022, o autor jogou 27 jogos, tendo a ré empregador obtido 13 vitórias?
Notifique.
Admito as declarações do autor ao tema de prova n..º 1, devendo a realização da diligência ser feita através da plataforma WEBEX, determinando-se o agendamento da respetiva reunião para o dia do julgamento e devendo o autor fornecer os elementos necessários para que a reunião possa decorrer (email e outras informações que forem necessárias).
Notifique.”
Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, concluída com o dispositivo seguinte (que se transcreve):
“Pelo exposto, julgo procedente a ação e, em consequência, declaro que o autor sofreu um acidente de trabalho em 10 de outubro de 2021 em resultado do qual ficou com sequelas que consolidaram em 9-11-2021 e que lhe determinaram uma IPP de 4% e, por via disso, condeno as rés no seguinte:
Ré seguradora:
No pagamento do capital de remição de uma pensão anual e vitalícia de € 980 com vencimento em 10 de novembro de 2021, acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde aquela data até integral pagamento.
Ré empregadora:
No pagamento do capital de remição de uma pensão anual e vitalícia de € 384,21 com vencimento em 10 de novembro de 2021, acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde aquela data até integral pagamento.
No mais, julgo improcedente a ação.
Mais condeno as rés no pagamento das custas, na proporção da responsabilidade, fixando-se à causa o valor de € 23.607,65.
Registe e notifique.(…)”.
Inconformado com o identificado despacho de 4-09-2023, a 2.ª Ré Entidade Empregadora, apresentou recurso de apelação, tendo formulado as seguintes CONCLUSÕES (que se transcrevem, inserindo-se no texto as notas de rodapé constantes das conclusões):
«1. Tendo sido, em 7 de dezembro último, proferido despacho a que alude o n.º 5 do artigo 17.º - C do CIRE no âmbito do PER da aqui Recorrente, e atento o teor do artigo 4.º, n.º 1, u) do R.C.P. aqui aplicável, requer-se a V/ Exas. se dignem admitir e declarar a isenção de custas da Apelante, com as inerentes consequências legais.
2. Na sequência do requerimento de ampliação do pedido promovido pelo Sinistrado (ata com a ref. citius 128152106 de 28/06/2023 e requerimento datado de 24/07/2023) foi proferido despacho pelo Tribunal a quo, em 4 de setembro [nota de rodapé 11 - peticiona o pagamento – para além dos valores inicialmente peticionados – das quantias de: - € 5.000,00 (cinco mil euros) respeitante ao estipulado no n.º 4 da cláusula 3.ª do contrato de trabalho; € 3.900,00 (três mil e novecentos euros) respeitante ao estipulado no n.º 6 da cláusula 3.ª do contrato de trabalho; - € 6.000,00 (seis mil euros) respeita ao estipulado no n.º 6 da cláusula 3.ª do contrato de trabalho], o qual decide deferir “a requerida ampliação do pedido e a ampliação da causa de pedir que lhe está subjacente e, em consequência, adito à matéria assente e controvertida o seguinte: (…)”, promovendo, assim, à alteração da lista de factos assentes (facto E) e ao tema de prova n.º 1.
3. Não concordando com a aludida decisão, é esta parte do despacho que a Recorrente vem impugnar pelo presente recurso e, na medida em que a impugnação de tal decisão através de recurso da decisão final afigurar-se-ia absolutamente inútil, é o presente recurso interposto nos termos e para os efeitos do artigo 79.º - A, n.º 2, k) do C.P.T., devendo, a final, ser revogado o despacho em crise, na parte que aqui se discute, substituindo-se por outro que indefira a ampliação do pedido e da causa de pedir, com as inerentes consequências legais.
4. Constata-se, desde logo, que o despacho em crise invoca fundamentos que se encontram em oposição com a decisão proferida, porquanto analisa e enquadra o pedido do Sinistrado nos termos do artigo 28.º do C.P.T. (“cumulação sucessiva de pedidos e da causa de pedir”) e conclui pelo deferimento da “ampliação do pedido e a ampliação da causa de pedir”.
5. Trata-se de dois institutos diferentes [nota de rodapé 12 – in Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 12/15/2021, disponível em www.dgsi.pt], com normas e fundamentos igualmente distintos, havendo, assim, uma evidente oposição entre o fundamento e a decisão proferida pelo Tribunal a quo, o que determina a nulidade do despacho em crise, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, c) do C.P.C. [nota de rodapé 13 – Aplicável por força do disposto no artigo 613.º, n.º 3, do C.P.C.].
6. Sem prescindir, note-se ainda que a Recorrente invoca, de forma autónoma e relevante, que o montante agora peticionado nunca poderia integrar o conceito de retribuição [nota de rodapé 14 – vide requerimento datado de 07-08-2023, ref. 46277360], fundamentando, alegação essa que o próprio despacho em crise faz alusão.
7. Atenta a relevância da matéria invocada para a decisão a ser proferida in casu, impunha-se que o Tribunal a quo dela conhecesse – até no âmbito dos seus poderes-deveres –, o que não sucedeu e o que determina a nulidade do despacho sob análise, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, d) do C.P.C. [nota de rodapé 15 – aplicável ex vi do artigo 613.º, n.º 3, do C.P.C.].
8. Sem prescindir, entende a Recorrente que o pedido do Sinistrado teria ab initio que falecer por intempestividade e inadmissibilidade legal.
9. O artigo 28.º do C.P.T. (normativo que é analisado e no qual é enquadrado pelo Tribunal o pedido do A.) exige se verifique um requisito temporal e outro material, sendo que, in casu, nem um, nem outro, se verificam.
10. O pedido formulado pelo Sinistrado teria, desde logo, que ser apresentado “até à audiência final” (artigo 28.º, n.º 2 do C.P.T.) e foi apresentado durante a dita audiência, o que determina a intempestividade do requerido. [nota de rodapé 16 – Artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil.
11. Por outro lado, também não se verifica a ocorrência de factos novos, nem, invocando-se alegados factos ocorridos antes da propositura da ação, justificação válida e legal que justifique a não inclusão deste pedido na p.i., sendo certo que o Sinistrado, ao propor a presente ação, estaria munido de todos os elementos para, querendo, deduzir o pedido agora sob sindicância. É, pois, inadmissível o seu pedido, o que se requer seja reconhecido.
12. A este propósito também o tribunal promove a uma errada interpretação e aplicação do direito, porquanto os citados artigos 72.º e 74.º do C.P.C. em nada se coadunam com a matéria em discussão, o que deve ser reconhecido e considerado para os devidos e legais efeitos.
13. A intempestividade e inadmissibilidade supra invocadas, determinam, sem mais, a revogação da decisão de deferimento da “requerida ampliação do pedido e a ampliação da causa de pedir”, com as inerentes consequências legais.
14. Sem prescindir, também o pedido do A. deveria ter sido indeferido por falta de sustentação legal e factual que lhe dê causa, pois que, ignora o Tribunal a quo que os montantes agora peticionados pelo Sinistrado [nota de rodapé 17 - € 6.000,00 a título de subsídio de habitação; € 3.900,00 a título de prémio de vitória; € 5.000,00 a título de prémio decorrente de número de jogos efetuados] não integram o conceito de retribuição.
15. Atendendo ao disposto no artigo 258.º do C.T. e à jurisprudência [nota de rodapé 18 – in Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 01/23/2023, disponível em www.dgsi.pt] e doutrina [nora de rodapé 19 – António Monteiro Fernandes, “A noção de retribuição no regime do contrato de trabalho: uma revisão da matéria”, pág. 297] aplicável in casu, só podemos concluir que, nenhuma das parcelas peticionadas (subsídio de habitação; prémio de vitória e prémio decorrente do n.º de jogos efetuados) podem integrar o conceito de retribuição.
16. O conceito de retribuição encontra-se, pois, objetivamente delimitado pelo seu caráter obrigatório, regular e periódico e ainda pela correspetividade com a prestação de trabalho.
17. Com efeito, o subsídio de habitação não constitui retribuição, porquanto nenhuma correspetividade apresenta com a prestação do trabalho do Sinistrado nem com a sua disponibilidade para tal prestação.
18. As compensações peticionadas a título de prémio por vitórias/ jogos efetuados não poderão, igualmente, integrar o conceito de retribuição, não podendo, pois, o requisito essencial da regularidade abranger prestações que estão inteiramente dependentes do sucesso ou insucesso da equipe na qual o Sinistrado integrava, nem depender da vontade do treinador que determinava os jogos em que o Sinistrado participava ou não, e por quanto tempo.
19. Assim, o montante peticionado pelo Sinistrado nunca poderia integrar o conceito de retribuição, por não assumir caráter regular e estar dependente de inúmeros fatores incertos e imprecisos, como são o sucesso da equipe, a participação do Sinistrado nos jogos, em número e em tempo, sendo tais prestações, tal como resulta do contrato, uma verdadeira compensação a título de prémio e não retribuição. Tal facto deveria, igualmente, determinar o indeferimento da ampliação do pedido.
20. Face a tudo quanto resulta supra exposto, temos que, o despacho em crise enferme de nulidades nos termos do artigo 615.º, n.º 1, c) e d) do C.P.C., com as inerentes consequências legais, o que se requer seja reconhecido e declarado.
21. Sem prescindir, caso assim não se entenda, o que por mera cautela de patrocínio se equaciona, temos que, o Tribunal a quo, quanto ao teor do despacho proferido na parte objeto do presente recurso, promoveu:
- A uma errada interpretação do normativo legal previsto no artigo 28.º, n.ºs 2 e 3 do C.P.T.;
- A uma errada aplicação dos artigos 72.º e 74.º do C.P.C.;
- À não aplicação e interpretação do normativo legal previsto no artigo 258.º do C.T., como se impunha.
22. Ao promover a uma correta análise e aplicação do disposto nos artigos 28.º do C.P.T. e 258.º do C.T. – nos termos supra expostos – sempre se imporia indeferir o pedido de ampliação formulado pelo Sinistrado, nos termos melhor acima explanados.
23. Requer-se, assim, a esse Venerando Tribunal se digne revogar a decisão vertida no despacho em crise, substituindo-o por outro que indefira a “requerida ampliação do pedido e a ampliação da causa de pedir”, suprimindo-se, consequentemente, as alterações promovidas à lista de factos assentes (Facto E) e ao Tema de Prova n.º 1, o que expressamente se requer.«.
Termina dizendo que o despacho recorrido deve ser declarado nulo, com as inerentes consequências e, caso assim se não entenda, deve ser revogado e substituído por decisão deste Tribunal que indefira a requerida “ampliação do pedido”.
Não se conformando com a sentença proferida, a 2.ª Ré Entidade Empregadora, apresentou recurso de apelação, tendo formulado as seguintes CONCLUSÕES (que se transcrevem, inserindo-se no texto as notas de rodapé das conclusões):
«1. O recurso versa sobre a sentença que condenou a Recorrente no pagamento do capital de remição de uma pensão anual e vitalícia de 384,21 €, com vencimento em 10 de novembro de 2021, acrescido de juros de mora à taxa legal, desde aquela data até integral pagamento.
2. E ainda, sobre a sentença proferida no apenso de Fixação da Incapacidade para o Trabalho, por sentença datada de 12 de junho de 2023, o Tribunal a quo considerou demonstrado que o Sinistrado padece das sequelas descritas no auto de Junta Médica, a que corresponde um grau de desvalorização de 4%, fixando em 4% a Incapacidade Permanente Parcial (IPP), nos termos do artigo 140.º, n.º 2, do C.P.T. Por último,
3. O recurso versa igualmente sobre o deferimento da ampliação do pedido, na medida em que o recurso autonomo apresentado sobre esta questão ainda não foi admitido.
4. Entende o Recorrente que o Tribunal a quo fez uma errada interpretação e valoração da prova produzida, pelo que deve a decisão proferida sobre a matéria de facto ser alterada, nos termos do disposto no artigo 662.º do C.P.C.
5. O Tribunal a quo considerou provados, entre outros, os pontos 13 e 14 dos factos assentes, no entanto, não foi produzida prova que permita a inclusão de tais factos na matéria assente.
6. Relativamente ao ponto 13 dos Factos Provados, o Tribunal a quo considerou como provado que, na época de 2021/2022, o Sinistrado auferia a retribuição anual ilíquida de 42.721,78 €, fundamentando tal decisão nos recibos de vencimento e no contrato de trabalho celebrado entre a Recorrente e o Sinistrado, juntos aos autos. 7. No entanto, resulta dos recibos de vencimento juntos aos autos que o Sinistrado auferia com caracter regular a quantia mensal de 3.181,82 €, o que perfaz a retribuição anual ilíquida de 35.000,00 €.
8. Deste modo, atenta a prova documental junta aos autos, a factualidade constante do Ponto 13 deve ser alterada, passando a ter a seguinte redação: A retribuição anual ilíquida do sinistrado, na época de 2021/2022, foi de € 35.000,00 (onde já se incluía o subsídio de alimentação).
9. Quanto ao ponto 14, o Tribunal a quo considerou como provado que o Sinistrado também recebeu a quantia mensal de 500,00 €, a título de despesas de alojamento, que utilizou, durante a época de 2021/2022, para suportar parcialmente a renda da habitação que arrendou na cidade do Porto pelo valor mensal de 750,00 €.
10. Tendo o Tribunal a quo formado a sua convicção apenas nas declarações de parte do Sinistrado, não se socorrendo de qualquer outro meio probatório que corroborasse tal facto.
11. O contrato de arrendamento urbano deve ser celebrado por escrito (cfr. artigo 1069.º, n.º 1, do CC).
12. Pelo que, para o Tribunal a quo considerar como provada a existência de um contrato de arrendamento, teria de encontrar suporte num meio de prova documental, como impõe o n.º 1 do artigo 364.º do CC.
13. Prova documental essa que, in casu, não existe, porquanto o Sinistrado nunca juntou aos autos o alegado contrato de arrendamento, nem os comprovativos de pagamento da alegada renda de 750,00€.
14. Exigindo a lei a celebração do contrato de arrendamento por escrito, não pode este documento ser substituído por um qualquer outro meio de prova.
15. Deve, pois, o Ponto 14 dos Factos Provados ser alterado, passando a ter a seguinte redação: Para além da quantia referida em 13, o autor recebeu ainda, mensalmente, a quantia de € 500 a título de despesas de alojamento.
16. Acresce que, o Tribunal a quo não considerou factos que, atenta a sua relevância, devia ter dado como provados.
17. Resulta das declarações de parte do Sinistrado que este continua a exercer a sua atividade profissional.
18. Isso mesmo é afirmado pelo próprio logo no início das declarações de parte: “estou a jogar na ...”, resultando, ainda, do requerimento datado de 24 de julho de 2023 (referência Citius 46204692), submetido nos autos pelo Sinistrado.
19. Discutindo-se nos presentes autos se as sequelas resultantes do acidente de trabalho ocorrido em 10 de outubro de 2021, descritas no auto de Junta Médica, afetaram a capacidade de trabalho do Sinistrado, impunha-se que as declarações do Sinistrado quanto à sua atividade profissional atual fossem consideradas, como dispõe o artigo 413.º do C.P.C.
20. Pelo que o Tribunal a quo devia ter considerado como provado que o Sinistrado continua a exercer a sua atividade – jogador profissional de futebol – na ..., nas suas plenas capacidades.
21. Desta forma, deverá ser aditado um novo ponto aos Factos Provados, com a seguinte redação: 16. O Autor continua a exercer a sua atividade profissional – jogador profissional de futebol – na ..., nas suas plenas capacidades.
22. Assim, e em cumprimento do disposto no artigo 640.º do CPC (aplicável ex vi artigo 79.º do CPT), deve o acervo probatório ser alterado nos seguintes termos:
Ponto 13: A retribuição anual ilíquida do sinistrado, na época de 2021/2022, foi de € 35.000,00 (onde já se incluía o subsídio de alimentação).
Ponto 14: Para além da quantia referida em 13, o autor recebeu ainda, mensalmente, a quantia de € 500 a título de despesas de alojamento.
Deve, ainda, ser aditado um novo ponto aos Factos Provados, com a seguinte redação:
Ponto 16. O Autor continua a exercer a sua atividade profissional – jogador profissional de futebol – na ..., nas suas plenas capacidades.
Isto posto,
23. O Tribunal a quo considerou demonstrado que o Sinistrado padece de sequelas, a que corresponde um grau de desvalorização de 4%, fixando em 4% a IPP, nos termos do disposto no artigo 140.º, n.º 2, do C.P.T.
24. No entanto, contrariamente ao decidido, o Sinistrado não ficou a padecer de qualquer IPP em consequência do acidente em causa nos presentes autos.
25. Ficou demonstrado nos autos que, logo após o acidente, o Sinistrado continuou a exercer a sua atividade a favor da Recorrente, participando regularmente nos jogos da equipa sénior de futebol masculino, nas suas plenas capacidades e sem qualquer lesão ou sequela.
26. Dos documentos juntos pela Recorrente com a contestação apresentada resulta que, na época de 2021/2022, o autor jogou 28 jogos oficiais, em 25 deles jogou mais de 45 minutos e foi jogador titular em 10 jogos, facto que foi reconhecido pelo Tribunal a quo no ponto 15 dos Factos Provados.
27. Acresce que, das declarações de parte do Sinistrado resulta que este, na presente data, continua a exercer a sua atividade profissional – jogador de futebol profissional – na ..., facto que deveria ter sido considerado e dado como provado pelo Tribunal a quo.
28. Na decisão a proferir, para além do valor probatório que deve atribuir à perícia médico-legal, o Tribunal deverá ainda considerar outros elementos de prova que, no caso, se revelem atendíveis. [nota de rodapé 9 – Vide Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 18-11-2015, e Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 29/04/2020, disponíveis em www.dgsi.pt].
29. Atento o tipo de lesões resultantes do acidente de trabalho, impunha-se reunir pareceres especializados.
30. In casu, o Tribunal a quo apenas considerou o auto da Junta Médica e as conclusões dos peritos, não tendo ponderado outros elementos de prova, como devia, para concluir pela fixação da IPP.
31. O Tribunal a quo não aplicou, nem interpretou, corretamente o normativo legal previsto no artigo n.º 7 do artigo 139.º do C.P.T.
32. O Tribunal a quo violou, ainda, o Princípio do Inquisitório e o Princípio da Audiência Contraditória, previstos nos artigos 411.º e 415.º do C.P.C.
33. Pelo que deve a sentença em crise ser revogada e substituída por decisão deste Tribunal que considere que o Sinistrado ficou curado sem qualquer desvalorização, o que se requer.
Ainda,
34. No decurso da audiência de discussão e julgamento, o Sinistrado requereu ao Tribunal que admitisse a ampliação do pedido, peticionando o pagamento das quantias de 5.000,00 €, a título de prémio decorrente do número de jogos efetuados; 3.900,00 €, a título de prémio de vitória; e 6.000,00 €, respeitante ao subsídio de habitação.
35. Tal pedido só poderia ser considerado intempestivo e inadmissível, nos termos do artigo 28.º do CPT
36. A este propósito também o Tribunal a quo promove a uma errada interpretação e aplicação do direito, porquanto os artigos 72.º e 74.º do C.P.C. em nada se coadunam com a matéria em discussão, o que deve ser reconhecido e considerado para os devidos e legais efeitos.
37. A intempestividade e inadmissibilidade supra invocadas determinam, sem mais, a revogação da decisão de deferimento da “requerida ampliação do pedido e a ampliação da causa de pedir”, com as inerentes consequências legais.
38. Assim, o Tribunal a quo, quanto ao teor do despacho proferido na parte objeto do presente recurso, promoveu a uma errada interpretação do normativo legal previsto no artigo 28.º, n.os 2 e 3 do C.P.T.; e a uma errada aplicação dos artigos 72.º e 74.º do C.P.C.
39. Pelo que se requer a esse Venerando Tribunal se digne revogar a decisão vertida no despacho em crise, substituindo-o por outro que indefira a “requerida ampliação do pedido e a ampliação da causa de pedir”, suprimindo-se, consequentemente, as alterações promovidas à lista de factos assentes (Facto E) e ao Tema de Prova n.º 1.
40. O Tribunal a quo considerou, ainda, que a quantia mensal de 500,00 €, atribuída ao Sinistrado a título subsídio de alojamento, “tem as características necessárias para integrar o conceito de retribuição, na sua regularidade e no seu objetivo (não compensação de custos aleatórios)”.
41. Ao contrário do decidido, o montante peticionado pelo Sinistrado a título de subsídio de habitação – 500,00 € mensais – não integra o conceito de retribuição. 42. Atendendo ao disposto no artigo 258.º do C.T. e à jurisprudência [nota de rodapé 10 – in Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 23/01/2023, disponível em www.dgsi.pt] e doutrina [nota de rodapé 11 – António Monteiro Fernandes, “A noção de retribuição no regime do contrato de trabalho: uma revisão da matéria”, pág. 297] aplicáveis in casu, só podemos concluir que o subsídio de habitação não integra o conceito de retribuição.
43. O conceito de retribuição encontra-se, pois, objetivamente delimitado pelo seu carácter obrigatório, regular e periódico e, ainda, pela correspectividade com a prestação de trabalho.
44. In casu, não existe qualquer correspectividade entre o subsídio de habitação e a prestação do trabalho pelo Sinistrado, nem com a sua disponibilidade para tal prestação, não constituindo, por isso, retribuição.
45. Acresce que não foi provada a existência de um contrato de arrendamento, nem do pagamento de uma renda mensal de 750,00 €.
46. Assim, o Tribunal a quo, quanto ao teor da sentença proferida na parte objeto do presente recurso, não aplicou, nem interpretou o normativo legal previsto no artigo 258.º do C.T., como se impunha.
47. Ao promover a uma correta análise e aplicação do disposto no artigo 258.º do C.T., o Tribunal a quo concluiria que o subsídio de habitação não constitui retribuição, nos termos supra expostos.
48. Nestes termos, conclui o Recorrente que o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 28.º, n.os 2 e 3, e 139.º, n.º 7, do C.P.T; os artigos 72.º, 74.º, 411.º, 415.º do C.P.C.; e o artigo 258.º do C.T.».
Termina dizendo que a sentença proferida pelo Tribunal a quo deve ser revogada e substituída por decisão deste Tribunal no sentido das alegações e conclusões.
Não houve resposta aos recursos apresentados pela 2.ª Ré Entidade Empregadora.
Foi proferido pelo Tribunal a quo despacho (refª citius 130172725) a admitir os recursos de apelação interpostos, nos termos aí exarados.
O Exmº Srº Procurador-Geral-Adjunto junto deste Tribunal de recurso emitiu o parecer a que alude o artigo 87º, nº 3, do CPT, pronunciando-se, no essencial, como se segue (transcrição):
«(…)
4.1. Impugna a Recorrente a decisão sobre a matéria de facto dada como provada nos pontos 13, 14 e 16.
Prendem-se os dois primeiros com a retribuição auferida pelo Recorrido, e entende-se que não há erro de julgamento, quanto a eles.
Do contrato e recibos do recorrido concluiu a douta sentença o valor anual da retribuição.
Como se lê no Processo: 2875/20.8T8PNF.P1, Ref: 17491796, do TRP, de 27.11.2023 “O conceito de retribuição para efeitos do cálculo das prestações devidas ao sinistrado ou beneficiários no âmbito da reparação devida por acidente de trabalho não coincide e é mais amplo que o consagrado no Código do Trabalho.
Conforme resulta do nº 2 do artigo 71º da Lei 98/2009, de 4 de Setembro, constitui retribuição, para efeito de acidentes de trabalho, «todas as prestações recebidas pelo sinistrado com carácter de regularidade que não se destinem a compensar o sinistrado por custos aleatórios».
E, são custos aleatórios os que tenham subjacente um acontecimento incerto, sujeito às incertezas do acaso, casual, fortuito, imprevisível. O que vale por dizer que não só o montante deve ser susceptível de variar, como também a causa que lhe está subjacente deve ter alguma incerteza ou imprevisibilidade.
Neste caso toas as quantias consideradas eram pagas mensalmente e em quantias iguais todos os meses.
4.2. Quanto ao ponto 16, é claro que não tendo sido dado como incapaz para o trabalho habitual pode o recorrido continuar a jogar.
Tal não significa que não tenha o recorrido sofrido uma redução da sua capacidade de trabalho e de ganho de 4%, como se deu como provado, e, antes a perícia médica examinou e avaliou.
4.3. A condenação “extra vel ultra petitum”, na medida em que constitui um desvio ao princípio dispositivo, tem de apresentar-se como resultado da aplicação de preceitos inderrogáveis de leis ou instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho aos factos provados, ainda que essa aplicação venha a traduzir-se numa condenação em quantidade superior ou em objecto diferente do pedido formulado.
“E preceitos inderrogáveis são apenas aqueles que o são absolutamente, isto é, que reconhecem um direito a cujo exercício o seu titular não pode renunciar, como será o caso do direito a indemnização por acidente de trabalho ou doença profissional ou do direito ao salário na vigência do contrato.” (Leite Ferreira Código e Processo Anotado, 4ª ed., 1996, a pág. 353).
As pensões e indemnizações decorrentes de acidente de trabalho são um direito de natureza irrenunciável.
Assim, a condenação pode ir além do pedido.
Sendo calculadas em função da retribuição anual auferida pelo sinistrado, provando que auferia retribuição superior, pode e deve o juiz condenar em quantia superior à pedida, e discutir o valor da retribuição, na medida em que aquelas dependem desta como se disse.
Nestes termos, cremos que não merece reparo a douta sentença recorrida, bem como o anterior despacho referido, não assistindo razão à Recorrente.
A Recorrente respondeu ao indicado parecer, replicando a posição já assumida no recurso.
Por despacho da relatora com a refª citius 17752103, foi determinado que os autos baixassem à 1.ª instância para que tomasse decisão sobre a questão prévia suscitada pela Recorrente relativa à invocada isenção de custas.
O Tribunal a quo proferiu o despacho refª citius 132159824, indeferindo o reconhecimento da isenção requerida e determinando o cumprimento do artigo 642.º do Código de Processo Civil.
Notificada a Recorrente veio proceder ao pagamento da taxa de justiça atinente aos recursos apresentados e multa para a qual foi notificada.
Nessa sequência, os autos foram remetidos novamente a este Tribunal da Relação.
Procedeu-se a exame preliminar, foram colhidos os vistos, após o que o processo foi submetido à conferência.
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação apresentada, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, que não tenham sido apreciadas com trânsito em julgado e das que se não encontrem prejudicadas pela solução dada a outras [artigos 635.º, n.º 4, 637.º n.º 2, 1ª parte, 639.º, n.ºs 1 e 2, 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil[2], aplicáveis por força do artigo 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho[3]].
Assim, são as seguintes as questões suscitadas e a apreciar[4]:
A - Recurso interposto do despacho de 4-09-2023
(1) Se ocorre a invocada nulidade do despacho por alegada oposição entre o fundamento e a decisão proferida pelo Tribunal e por omissão de pronúncia, nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alíneas c) e d), respetivamente, do CPC;
(2) Saber se o Tribunal a quo errou na aplicação do direito e se deve ser revogado o despacho recorrido.
B - Recurso interposto da sentença final de 7-09-2023
(3) Impugnação da decisão da matéria de facto – recurso da matéria de facto;
(4) Impugnação da decisão proferida no apenso de fixação de incapacidade – Saber se ocorreu erro de julgamento e se deve ser revogada essa decisão e ser considerado que o Sinistrado ficou curado sem qualquer desvalorização.
(5) Saber se o Tribunal a quo errou na aplicação do direito, ao considerar como retribuição para efeito do cálculo da reparação devida por acidente de trabalho a quantia mensal de € 500,00 (total anual de € 6.000,00) a título de despesas de alojamento - subsídio de alojamento.
Consigna-se que as conclusões contidas sob os pontos 34. a 39. do recurso interposto da sentença final reconduzem-se na realidade ao objeto do recurso interposto do despacho recorrido de 4-09-2023, mais precisamente à questão (2) supra enunciada e, portanto, será conhecida no âmbito do recurso desse despacho, como se impõe.
A - Recurso interposto do despacho de 4-09-2023
A.1) Nulidade invocada – Saber se ocorre a invocada nulidade do despacho por alegada oposição entre o fundamento e a decisão proferida pelo Tribunal e por omissão de pronúncia, nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alíneas c) e d), respetivamente, do CPC.
A sentença (ou o despacho), como ato jurisdicional que é, se atentar contra as regras próprias da sua elaboração e estruturação, ou ainda contra o conteúdo e limites do poder à luz do qual é proferida, torna-se passível do vício da nulidade nos termos do artigo 615.º do CPC.
Em linha com o entendimento pacífico da doutrina e jurisprudência, assinala-se, desde já, que as causas de nulidade constantes do elenco do n.º 1, do artigo 615.º do CPC, não incluem o “chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário”[5].
As nulidades da sentença (leia-se aqui despacho) encontram-se taxativamente previstas no artigo 615.º do CPC e reportam-se a vícios estruturais da sentença, também conhecidos por erros de atividade ou de construção da própria sentença, que não se confundem com eventual erro de julgamento de facto ou de direito. Tais nulidades sancionam, pois, vícios formais, de procedimento – errore in procedendo – e não patologias que eventualmente traduzam erros judiciais - errore in judicando.
De facto, como se evidencia no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-11-2021[6] «[a] violação das normas processuais que disciplinam, em geral e em particular (artigos 607º a 609º do Código de Processo Civil), a elaboração da sentença - do acórdão - (por força do nº 2 do artigo 663º e 679º), enquanto ato processual que é, consubstancia vício formal ou error in procedendo e pode importar, designadamente, alguma das nulidades típicas previstas nas diversas alíneas do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil (aplicáveis aos acórdãos ex vi nº 1 do artigo 666º e artigo 679º do Código de Processo Civil).».
Nos termos do artigo 615.º, n.º 1, a sentença é nula quando:
“a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.”.
O disposto no artigo 615.º é aplicável, com as necessárias adaptações, aos despachos por força do artigo 613.º, n.º 3, do CPC.
Na ótica da Recorrente, o despacho recorrido padece de nulidade a coberto do disposto na primeira parte das alíneas c) e d), do n.º 1 artigo 615.º - fundamentos em oposição com a decisão e omissão de pronúncia, respetivamente, razão pela qual serão analisados tais vícios.
Quanto à alínea c) do n.º 1, do artigo 615.º do CPC, decorre do seu primeiro segmento que o vício de nulidade da sentença/despacho – fundamentos em oposição com a decisão – ocorre quando os fundamentos de facto e/ou direito invocados pelo julgador deveriam conduzir logicamente a um resultado oposto ao expresso na decisão. Está, pois, em causa um vício estrutural da decisão, por contradição entre as suas premissas, de facto e/ou de direito, e a conclusão, de tal modo que esta deveria seguir um resultado diverso. Porém, esta nulidade não abrange, como atrás já se referiu, o erro de julgamento, seja de facto ou de direito, designadamente a não conformidade da decisão com o direito substantivo.
A propósito desta causa de nulidade referem A. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa[7] o seguinte: “A nulidade a que se reporta a 1ª parte da al. c) ocorre quando existe incompatibilidade entre os fundamentos e a decisão, ou seja, em que a fundamentação aponta num sentido que contradiz o resultado final. Situação que, sendo violadora do chamado silogismo judiciário, em que as premissas devem condizer com a conclusão, também não se confunde com um eventual erro de julgamento, que se verifique quando o juiz decide contrariamente aos factos apurados ou contra norma jurídica que lhe impõe uma solução jurídica diferente.”
Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8-04-2021[8] (citando), «[e]sta nulidade remete-nos para o princípio da coerência lógica da sentença, pois que entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica. Não está em causa o erro de julgamento, quer quanto aos factos, quer quanto ao direito aplicável, mas antes a estrutura lógica da sentença, ou seja, quando a decisão proferida seguiu um caminho diverso daquele que apontava os fundamentos.».
Por sua vez, quanto à nulidade prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, a decisão queda-se aquém ou foi além do thema decidendum ao qual o tribunal estava adstrito, consubstanciando-se no uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de se ter deixado por tratar questões que deveria conhecer (no caso da omissão de pronúncia) ou por se ter abordado e decidido questões de que não se podia conhecer (no caso de excesso de pronúncia).
O prescrito na citada alínea d) está em consonância com o n.º 2 do artigo 608.º, que dispõe: «O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras».
A nulidade em referência serve, pois, de cominação para o desrespeito do artigo 608.º, n.º 2, do CPC, reconduzindo-se os vícios aí previstos à inobservância dos estritos limites do poder cognitivo do tribunal.
Como constitui também entendimento sedimentado na doutrina e jurisprudência os argumentos convocáveis para se decidir certa questão não se identificam necessária e coincidentemente com a própria questão a decidir, em si mesma considerada. Ou seja, questões e argumentos não se confundem, sendo que o dever de decisão é circunscrito à apreciação daquelas.
Sobre esta matéria, e no mesmo sentido, vejam-se, entre muitos outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 8-03-2023[9], 10-12-2020[10], 10-04-2024[11] e de 1-02-2023[12].
Assim, como se assinala no citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8-03-2023, [a] nulidade por omissão de pronúncia (art. 615.º, n.º l, d), do CPC1), sancionando a violação do estatuído no nº 2 do artigo 608.º, apenas se verifica quando o tribunal deixe de conhecer “questões temáticas centrais”2 (isto é, atinentes ao thema decidendum, que é constituído pelo pedido ou pedidos, causa ou causas de pedir e exceções) suscitadas pelos litigantes, ou de que se deva conhecer oficiosamente, cuja resolução não esteja prejudicada pela solução dada a outras, questões (a resolver) que não se confundem nem compreendem o dever de responder a todos os invocados argumentos, motivos ou razões jurídicas, até porque, como é sabido, “o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito” (art. 5.º, n.º 3).».
A nulidade em referência, como se expõe no citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10-12-2020, “apenas se verifica quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre as «questões» pelas partes submetidas ao seu escrutínio, ou de que deva conhecer oficiosamente, como tais se considerando as pretensões formuladas por aquelas, mas não, como é pacífico, os argumentos invocados, nem a mera qualificação jurídica oferecida pelos litigantes.”
Importa, pois, não confundir questões com factos, argumentos, razões ou considerações.
Apelando aos ensinamentos de Alberto dos Reis[13], o que importa é que o tribunal decida a questão posta, não lhe incumbindo apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão.
Perante o sobredito enquadramento, e descendo ao caso dos autos, diremos, desde já adiantando a conclusão, que, ao contrário do sustentado pela Recorrente 2.ª Ré Empregadora, não ocorre qualquer dos vícios de nulidade apontados ao despacho recorrido.
Com efeito, lido o despacho recorrido, não se identifica qualquer vício estrutural e intrínseco do mesmo, que afete a sua estrutura lógica e que consubstancie uma situação de error in procedendo. Ou seja, não pode dizer-se que ocorra uma incompatibilidade entre os fundamentos e a decisão, que a fundamentação aponta num sentido que contradiz o resultado final.
Não se deteta qualquer contradição, pois que, analisada a pronúncia do despacho, podendo a Recorrente divergir da solução a que no mesmo se chegou, tal não se traduz, porém, na existência do vício lógico que carateriza a nulidade em causa (em que os fundamentos conduziriam logicamente, não ao resultado expresso, mas ao oposto).
Na verdade, sendo ou não adequado o juízo e conclusão a que se chegou na decisão recorrida – questão esta que, como vimos, não colhe cobertura no âmbito do vício analisado e sim no âmbito de eventual erro de julgamento –, percebe-se o raciocínio seguido nessa sentença e as razões que conduziram àquela conclusão. Poderá o Recorrente divergir do entendimento seguido, seja na subsunção seja na aplicação do direito, sendo que tal juízo não tem assento no vício que se analisa.
Não se pode, pois afirmar a verificação da nulidade prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
Por outro lado, e a propósito do requerimento efetuado pelo Autor em sede de audiência de julgamento que foi objeto do despacho recorrido, o Tribunal a quo não deixou de conhecer qualquer questão que lhe tivesse sido colocada e relativamente à qual estivesse obrigado a tomar posição na fase processual em que proferiu o despacho.
O Tribunal decidiu a questão que lhe foi suscitada pelo Autor, no sentido da admissibilidade da ampliação, quer no que toca ao pedido, quer em termos fácticos, por apelo às normas legais que teve por pertinentes, entre as quais os artigos 72.º e 74.º do CPT e 78º da Lei nº 98/2009, de 4-09.
Sublinhe-se que foi cumprido o contraditório quanto à questão suscitada pelo Autor, para o que foi concedido à 2.ª Ré Entidade Empregadora o prazo de 10 dias, sendo certo que a ora Recorrente exerceu o contraditório dentro do prazo concedido no requerimento refª citius de 10-07-2023 (refª citius 14822878). Nesse requerimento, a Recorrente não suscita qualquer questão atinente ao conceito de retribuição, como certamente não desconhece. Tal questão foi apenas suscitada num requerimento posterior em resposta a um outro requerimento do Autor.
Não vamos entrar aqui na questão da admissibilidade ou não dos requerimentos do Autor e da Ré datados de 24-07-2023 (refª citius 14880535) e 7-08-2023 (14924717), sob a perspetiva da temática da questão que havia sido suscitada pelo Autor em sede de audiência de julgamento, tendo em conta que se trata de questão não suscitada nos recursos apresentados e, aliás, nem sequer assumiria relevância para as questões a decidir nos mesmos. Refira-se que quanto aos prémios e sua não qualificação como retribuição como veio a ser sustentado pela 2.ª Ré apenas no requerimento de 7-08-2023, a questão mostra-se ultrapassada tendo em conta que foi entretanto proferida sentença que não reconheceu a natureza retributiva a tais prémios por falta desde logo do requisito da regularidade, o que não foi objeto de recurso.
Seja como for, para efeitos da ampliação decidida – seja em termos fácticos, seja em temos do peticionado -, não se impunha ao Tribunal a quo nessa fase qualquer apreciação de mérito quanto à natureza retributiva dos montantes invocados - as quantias previstas nos n.ºs 7, 6 e 4 da cláusula 3ª do contrato de trabalho junto com a p.i. como doc. 1. - como integrando a retribuição anual bruta do Autor que deveria servir de cálculo para a reparação do acidente, bastando para tanto que a matéria em causa se perfilasse como relevante em face das soluções plausíveis da questão de direito a decidir em sede de sentença final quanto ao que devia ser considerado como “retribuição anual ilíquida normalmente devida ao sinistrado, à data do acidente” - artigo 71.º, n.º 1, da Lei n.º 98/2009 de 4-09 - e como “retribuição mensal” por reporte à noção prevista no n.º 2 desse mesmo normativo “todas as prestações recebidas com caráter de regularidade que não se destinem a compensar o sinistrado por custos aleatórios”.
Não se pode, pois, dizer que o Tribunal a quo deixou de se pronunciar sobre questão que devesse apreciar, não padecendo o despacho recorrido do apontado vício formal de nulidade por omissão de pronúncia previsto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC.
Em suma, o despacho recorrido não padece de vício formal de nulidade, improcedendo o recurso nesta parte.
Sustenta a Recorrente que o pedido do Autor “teria ab initio que falecer por intempestividade e inadmissibilidade legal” à luz do artigo 28.º do CPT, argumentando que os convocados artigos 72.º e 74.º do CPT em nada se coadunam com a matéria em discussão. Mais sustenta que o pedido do Autor deveria ter sido indeferido por falta de sustentação legal e factual que lhe dê causa, referindo que atendendo ao disposto no artigo 258.º do Código do Trabalho e à jurisprudência e doutrina aplicável, “nenhuma das parcelas peticionadas (subsídio de habitação, prémio de vitória e prémio decorrente do n.º de jogos efetuados) podem integrar o conceito de retribuição”.
Começando por esta segunda linha argumentativa, atinente à questão de mérito, reiteramos aqui as considerações atrás tecidas em sede de apreciação da invocada nulidade por omissão de pronúncia.
Quanto aos prémios, a questão mostra-se absolutamente ultrapassada, sendo certo que na sentença final não foi reconhecida a natureza retributiva a tais prémios por falta desde logo do requisito da regularidade, o que não foi objeto de recurso e transitou em julgado.
No que respeita à verba constante no n.º 7 da cláusula 3ª do contrato de trabalho – que a própria Recorrente apelida de “subsídio de habitação”, como se referiu supra, não se impunha ao Tribunal na fase processual em que decidiu pelo deferimento da ampliação e pelo aditamento à matéria assente e controvertida, a apreciação de mérito quanto à natureza retributiva dos montantes invocados - as quantias previstas nos n.ºs 7, 6 e 4 da cláusula 3ª do contrato de trabalho junto com a p.i. como doc. 1. - como integrando a retribuição anual bruta do Autor que deveria servir de cálculo para a reparação do acidente.
Para ampliação em referência, bastaria que matéria fáctica em causa fosse considerada como essencial e relevante para a boa decisão da causa, na medida do necessário para o apuramento da verdade material. E esse foi inequivocamente o entendimento do Tribunal a quo, ao convocar desde logo o regime previsto nos artigos 72.º e 74.º do CPT e o artigo 78.º da Lei n.º 98/2009, de 4-09.
Por outro lado, não colhe a argumentação da Recorrente no sentido da inadmissibilidade legal e da intempestividade da ampliação admitida no despacho recorrido.
Vejamos.
No caso, se atentarmos na tentativa de conciliação da fase conciliatória verificamos que na mesma o Sinistrado invocou que trabalhava para a 2.ª Ré Entidade Empregadora, mediante a remuneração anual líquida de “€ 2.500,00x14 meses, acrescido de € 11.070,34 de outras remunerações”, ou seja, mediante uma retribuição anual de € 46.070,34.
Não foi obtido acordo nessa matéria, tendo a Seguradora invocado que apenas estava transferida a responsabilidade infortunística em função da retribuição anual ilíquida de € 35.000,00 (€ 2.500,00x14). Já a Entidade Empregadora referiu não concordar com o valor peticionado de retribuição por entender que tinha na sua totalidade o valor transferido para a Seguradora em função da retribuição anual ilíquida de € 35.000,00.
Na petição inicial da fase contenciosa, o Sinistrado/Autor apelou e juntou o contrato de trabalho desportivo de jogador de futebol profissional, celebrado entre si e a 2.ª Ré Empregadora, invocando desde logo a respetiva cláusula 3.ª e alegando que a remuneração global líquida constante do n.º 1 alínea a) dessa cláusula no montante de € 35.000,00 correspondia à quantia anual ilíquida de € 42.721,78, sendo certo que peticionou o pagamento da pensão que viesse a ser fixada com base na consideração dessa remuneração anual de € 42.721,78 e do grau de IPP que lhe viesse a ser reconhecido.
Na fase contenciosa as Rés mantiveram as posições assumidas na fase conciliatória, sendo que não impugnaram o contrato de trabalho e os recibos de vencimento juntos com a petição inicial como documentos 1 e 2, respetivamente.
No decurso da produção da prova em audiência de julgamento veio o Autor, em substância, requerer a ampliação do pedido, mas tal pressupunha necessariamente uma ampliação em termos fácticos no que respeita aos montantes a considerar na retribuição anual bruta para efeitos de cálculo da reparação do acidente de trabalho.
No domínio do processo emergente de acidente de trabalho existe um dever de conhecimento oficioso, por estar em causa a aplicação de preceitos inderrogáveis – em que, como se sabe, a condenação pode ser em quantidade superior ao pedido, ou em objeto diverso dele (artigo 74.º do CPT) -, tratando-se de matéria subtraída à disponibilidade das partes (artigo 12.º da NLAT)[14]. O direito do trabalhador, vítima de acidente de trabalho, à “justa reparação” tem assento no artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição da República Portuguesa (cfr. ainda os artigos 283.º, n.º 1, do Código do Trabalho, o artigo 78.º da NLAT[15] e o artigo 127.º, n.º 1, do CPT[16]).
Temos assim por inequívoco que, tratando-se de direitos indisponíveis, o montante devido pela reparação do acidente é de conhecimento oficioso[17], devendo o juiz fixá-lo de acordo com as normas legais aplicáveis aos factos provados, independentemente do enquadramento jurídico que as partes tenham efetuado[18] e dos valores peticionados.
A reparação do acidente de trabalho é um direito que é de existência e exercício necessários por ter subjacentes interesses de ordem pública, pelo que é de conhecimento oficioso e, bem assim, é-lhe aplicável a regra contida no artigo 74.º do CPT.
Como evidencia Maria José Costa Pinto[19], o artigo 74.º do CPT «constitui precisamente um caso em que a lei impõe ao julgador um dever oficioso de aplicar a lei aos factos de que possa servir-se, em homenagem ao interesse e ordem pública que constituem pressuposto das normas imperativas e indisponíveis de natureza laboral, interesse este que é mais vasto do que o interesse individual dos titulares dos inerentes direitos na sua satisfação efectiva e que justifica a impossibilidade do afastamento da aplicação destas normas por livre determinação da vontade das partes. Partilham inequivocamente desta natureza de “preceitos inderrogáveis de leis”, as normas legais que estabelecem a reparação por virtude de acidente de trabalho. (…)».
Não estava, pois, à partida o Tribunal a quo limitado ao pedido formulado pelo Autor/Sinistrado, desde que tal resultasse da aplicação à matéria de facto provada (artigo 74.º do CPT).
Acresce que, nos termos do artigo 72.º, n.º 1, do CPT, “sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 5.º do Código de Processo Civil, se no decurso da produção da prova surgirem factos essenciais que, embora não articulados, o tribunal considere relevantes para a boa decisão da causa, deve o juiz, na medida do necessário para o apuramento da verdade material, ampliar os temas da prova enunciados no despacho mencionado no artigo 596.º do Código de Processo Civil ou, não o havendo, tomá-los em consideração na decisão, desde que sobre eles tenha incidido discussão”.
Ora, Tribunal a quo apelou precisamente ao regime decorrente dos artigos 72.º e 74.º do CPT para justificar desde logo o aditamento da matéria assente e a alteração no sentido da sua ampliação do tema de prova n.º 1, para na retribuição anual ilíquida questionada como tendo sido recebida pelo Autor no período temporal relevante estarem também integrados os montantes a que respeitavam os números 7, 6 e 4 da cláusula 3ª do contrato de trabalho junto com a p.i. como doc. 1.
Refira-se que quanto ao determinado no que se refere à alínea E) da matéria assente, no sentido de na mesma constar o que resulta do contrato celebrado entre o Autor e a 2.ª Ré Entidade Empregadora em matéria remuneratória, ou dizendo mais rigorosamente ao clausulado contratualmente entre as partes em termos monetários, sempre essa matéria poderia ser considerada na fundamentação da sentença no elenco factual.
Na verdade, a celebração do contrato escrito em referência – contrato de trabalho escrito junto como doc. 1 com a petição inicial - e, consequentemente, o respetivo clausulado, foi matéria invocada e que não foi objeto de impugnação, tratando-se de factualidade provada por documento subscrito pelo Autor e 2.ª Ré Empregadora – cuja subscrição não foi colocada em crise, nem o documento foi objeto de impugnação (cfr. artigo 607.º, n.º 4, do CPC).
Do mesmo passo, e no que respeita aos montantes que o Autor requereu que fossem considerados como integrando a retribuição anual a considerar para efeitos de cálculo da reparação do acidente, é certo que na petição inicial o Autor não invocou que recebeu os mesmos.
No entanto, como a Recorrente não desconhece porque esteve representada nas sessões de audiência de julgamento, a matéria atinente ao recebimento pelo Autor dos montantes em referência foi objeto de discussão e de prova nas duas sessões de julgamento que tiveram lugar. Ou seja, mesmo antes do Tribunal a quo ter proferido o despacho recorrido, já a única testemunha inquirida e o legal representante da ora Recorrente (em sede de declarações de parte) foram questionados pelo Tribunal e pelas partes sobre o pagamento ao Autor dos alegados montantes (denominado “subsídio de habitação” e prémios) – cfr. sessão de julgamento de 28-06-2023 – depoimento da testemunha DD e declarações de parte da 2.ª Ré Entidade Empregadora prestadas pelo seu Administrador EE. Atente-se que no que respeita aos € 500,00 mensais a título de despesas de alojamento previsto na cláusula 3.ª, n.º 7, do contrato celebrado entre o Autor e a Recorrente o seu legal representante em declarações de parte reconheceu que pagou o montante mensal em causa ao Autor (até disse mais, referiu “subsídio de renda se o jogador negociar isso pagamos mesmo que tenha casa própria” – sic declarações de parte do legal representante da 2.ª Ré Entidade Empregadora na sessão de 28-06-2023). Por essa razão, aliás, se compreende o procedimento seguido pelo Tribunal a quo ao apelar ao artigo 72.º do CPT para justificar e alicerçar a ampliação do tema de prova n.º 1 que havia inicialmente enunciado no despacho mencionado no artigo 596.º do CPC (cfr. artigo 131.º, n.º 2, do CPT). Estava em causa matéria que se prendia com a questão de saber o que devia ser considerado como “retribuição anual ilíquida normalmente devida ao sinistrado, à data do acidente” - artigo 71.º, n.º 1, da Lei n.º 98/2009 de 4-09 - e como “retribuição mensal” por reporte à noção prevista no n.º 2 desse mesmo normativo “todas as prestações recebidas com caráter de regularidade que não se destinem a compensar o sinistrado por custos aleatórios” [regulamentação aplicável nesta matéria por força do disposto no artigo 10.º da Lei n.º 27/2011, de 16 de junho (que estabelece um regime específico para a reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho sofridos por praticantes desportivos e se encontrava em vigor à data dos acidente dos autos – a nova Lei n.º 48/2023, de 22 de agosto apenas se aplica aos acidentes de trabalho ocorridos após a sua entrada em vigor) – constituía já facto assente no saneador que o Autor é praticante desportivo profissional na modalidade de futebol – facto assente sob a alínea A) dos factos assentes].
A matéria em causa perfilava-se como essencial para a questão do apuramento da reparação do acidente de trabalho a decidir em sede de sentença final e de conhecimento oficioso por estar em causa preceitos inderrogáveis e direitos irrenunciáveis, pelo que se justificava plenamente a ampliação determinada e o procedimento seguido pelo Tribunal a quo no que respeita à ampliação dos temas de prova, sendo certo que em matéria de reparação de acidentes de trabalho se aplica o artigo 74.º do CPT - condenação extra vel ultra petitum -, devendo o juiz condenar em quantidade superior ao pedido ou em objeto diverso dele, quando tal resulte da aplicação à matéria provada de preceitos inderrogáveis da lei, como é o caso do regime legalmente previsto para a reparação dos acidentes de trabalho.
Em suma, a ampliação decidida, porque é disso que em substância se trata, não sendo sequer de subsumir a situação ao artigo 28.º do CPT – até porque nem sequer estamos perante uma cumulação sucessiva de pedidos e de causas de pedir -, podendo ser feita oficiosamente pelas razões acima assinaladas e com fundamento no regime previsto nos artigos 72.º e 74.º do CPT, que foram assim corretamente interpretados e aplicados.
Inexiste, pois, fundamento para revogar o despacho recorrido, improcedendo o recurso.
*
B.1) Decisão da matéria de facto proferida pela 1ª instância
A decisão da matéria de facto proferida na 1ª instância é a seguinte (transcrição):
“1. Factos provados:
1. O Autor é Praticante Desportivo Profissional da modalidade de futebol.
2. No âmbito da sua profissão, celebrou em 19 de Agosto de 2021 com a 2.ª Ré B... SAD, um contrato individual de trabalho.
3. Através desse Contrato de Trabalho, o Autor obrigou-se a prestar com regularidade a actividade de futebolista à B... SAD, em representação e sob a autoridade e direcção desta, mediante retribuição.
4. Tal contrato de trabalho foi celebrado pelo prazo de 2 (duas) épocas desportivas, com início em 19.08.2021 e termo final em 30.06.2023
5. Para a época desportiva que aqui interessa (época 2021/2022), na 3.ª Cláusula o Contrato de Trabalho (documento n.º 1), estipula que o Autor receberia da 2.ª Ré B..., como contraprestação pelo seu trabalho:
«1. Pela prestação acima referida, a B... SAD obriga-se a pagar ao JOGADOR:
a) Época 2021/2022 (desde 01-08-2021 a 30-06-2022): remuneração global líquida de € 35.000,00 (trinta e cinco mil euros), a ser paga em 11 (onze) prestações mensais, iguais e sucessivas de € 3.182,00 (três mil cento e oitenta e dois euros) cada, a primeira das quais a ser paga até 05 de Setembro de 2021, e as restantes 10 (dez) prestações no mesmo dia dos meses imediatamente subsequentes;
(…)
4. Caso na vigência do presente contrato, o JOGADOR realize um conjunto de 10 (dez) jogos oficiais em que jogue mais de 45 (quarenta e cinco) minutos, a B.... SAD, compromete-se a pagar ao jogador um prémio de € 2.500 (dois mil e quinhentos euros).
(…)
6. Por cada vitória da B... SAD em jogos oficiais, em que o JOGADOR participe, a B... SAD compromete-se a pagar ao JOGADOR, a título de prémio, a quantia líquida de € 300,00 (trezentos euros)
7. As partes acordam, ainda, que a B... SAD pagará ao JOGADOR a quantia mensal de € 500 (quinhentos euros) para fazer face a despesas de alojamento.
8. Na remuneração prevista nos números 1 e 2 da presente cláusula, consideram-se integradas todas ou quaisquer outras remunerações previstas na lei, portarias regulamentares de trabalho ou convenções, designadamente os subsídios de férias e de Natal (porque pagos em duodécimos), subsídios de alimentação e ajudas de custo.».
6. A Entidade Patronal tinha a sua responsabilidade pelos danos emergentes do acidente de trabalho transferida para a 1.ª Ré Seguradora, através de contrato de seguro, sendo a responsabilidade patronal transferida pela remuneração anual de € 35.000,00.
7. No dia 10-10-2021, cerca das 16:50 horas, em ..., o Autor foi vítima de acidente que Consistiu em ter levado uma cabeçada do guarda-redes, tendo perdido o conhecimento, resultando traumatismo da face
8. Desse traumatismo na face resultou fractura do complexo zigomático-malar direito.
9. Submetido a exame médico no GML de Entre Douro e Vouga à ordem dos presentes autos, este concluiu no seu relatório que o Sinistrado, estando 30 dias em situação de ITA e 31 dias em situação de ITP, ficou a padecer da I.P.P. 1,0000%
10. Durante os períodos de ITA, o Autor/Sinistrado recebeu integralmente o seu salário, sempre pagas pela 2.ª Ré B... SAD.
11. Todas as partes aceitaram que existe nexo de causalidade entre o traumatismo e o dano atendendo a que existe adequação entre a sede do traumatismo e a sede do dano corporal resultante, existe continuidade sintomatológica e adequação temporal entre o traumatismo e o dano corporal resultante, o tipo de lesões é adequado a uma etiologia traumática e o tipo de traumatismo é adequado a produzir este tipo de lesões.
12. Realizada a tentativa de conciliação, viria a mesma a frustrar-se, apenas pelas seguintes razões:
1) O Sinistrado/Autor não se conciliou por não concordar com a IPP de 1% T.N.I. atribuída pelo INML;
2) A 1.ª Ré C... porque «…não concorda com o coeficiente de desvalorização arbitrado ao sinistrado pelo Perito do Gabinete Médico-Legal e Forense de Entre Douro e Vouga, dado entender que ele se encontra curado sem qualquer desvalorização.»
3) A 2.ª Ré B... SAD porque «… Não concorda com o valor peticionado de retribuição pelo sinistrado uma vez que entende que tem na sua totalidade o valor transferido para a seguradora, nos termos da citada apólice de seguro, em função da retribuição anual ilíquida de € 35.000,00.
Também não concorda com o coeficiente de desvalorização arbitrado ao sinistrado pelo Exmo. Perito do Gabinete Médico-Legal e Forense de Entre Douro e Vouga, dado entender que ele se encontra curado sem qualquer desvalorização.
13. A retribuição anual ilíquida do sinistrado, na época de 2021/2022, foi de € 42.721,78 (onde já se incluía o subsidio de alimentação).
14. para além da quantia referida em 13, o autor recebeu ainda, mensalmente, a quantia de € 500 a título de despesas de alojamento, que utilizou, durante a época de 2021/2022, para suportar parcialmente a renda da habitação que arrendou na cidade do Porto pelo valor mensal de € 750.
15. Na época de 2021/2022, o autor jogou 28 jogos oficiais, em 25 jogou mais de 45 minutos, tendo a ré empregadora, com a participação do autor, obtido, pelo menos, 11 vitórias.
16. O autor recebeu o valor relativo às vitórias no final da época desportiva.
2. Factos não provados:
Em transportes para comparência a actos judiciais o Sinistrado gastou € 25.”
Assim,
- Realizado exame médico singular, na fase conciliatória do processo, no Gabinete Médico-legal e Forense de Entre Douro e Vouga, datado de 18-05-2022 (refª citius 31228722 de 1-02-2022 – fls. 37 a 39 dos autos), elaborado por Assistente de Medicina Legal, no mesmo foi considerado que o Sinistrado apresenta, como sequela com nexo de causalidade com o evento, cicatriz nacarada com 1 cm de comprimento na região malar direita, concluindo ser de atribuir ao Sinistrado uma IPP de 1% (coeficiente global de incapacidade permanente parcial – IPP de 1%) pelo Capítulo II 1.4.6 (que prevê um intervalo entre 0.01-0,05) da TNI.
- No apenso para fixação de incapacidade (apenso A) foi proferido despacho com o seguinte teor:
“As partes vieram requerer junta médica, sendo que o sinistrado requer desde logo perícia da especialidade de cirurgia máxilo-facial.
Na fase conciliatória não foi pedido parecer de qualquer especialidade, pelo que não há motivo para se avançar desde já para uma junta médica da especialidade.
Nos termos do artigo 139.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho, determino a realização de perícia por junta médica, a realizar no dia 16-05-2023, pelas 14 horas e 40 minutos.
A junta médica será composta por três peritos médicos, um a indicar pelo GML e os restantes a indicas pelas partes [sinistrado e seguradora].
Como objeto de perícia fixam-se os quesitos indicados pelas partes.
Notifique.”
Tal despacho foi notificado às partes, nada tendo sido dito.
- Nesse mesmo apenso, procedeu-se à nomeação dos peritos, no dia 16-05-2023, conforme termo de nomeação nos termos do artigo 139.º, n.º 4, do Código de Processo do Trabalho, tendo sido nomeados:
“Perito do sinistrado: Dr. FF (Apresentado pelo Sinistrado)
Perito da responsável: Dra. GG.
Perito do Tribunal: Dr. HH.”
- No apenso em referência, foi realizada junta médica, conforme auto de exame por junta médica de 16-05-2023 (refª citius 127389979), na qual intervieram os identificados peritos, do qual consta o seguinte:
“SITUAÇÃO ACTUAL (Descrição das lesões e respetivas sequelas anatómicas e disfunções)
Os peritos médicos, após a observação do sinistrado e consulta do processo, respondem aos quesitos em fls 15 v do seguinte modo:
“Fls. 15 vº
1 – Do acidente dos autos sofreu como lesões fractura do complexo zigomático-malar direito que foi operada (fls 4v) (unanimidade)
2 –
2.1 – Sim, de acordo com TC de 25-11-2021 (fls. 7 verso) realizada cerca de 5 semanas após o sinistro. A fractura do zigomático terá consolidado posteriormente não havendo clínica de fractura não consolidada. Não apresenta assimetria nos ossos da face (unanimidade).
2.2. e 2.3. – Refere que sim. Mencionou diminuição da sensibilidade e desconforto ao toque na região infra-orbitária e naso-geniana direita. Mencionou também diminuição da sensibilidade dos dentes 15, 16, 17, 18 (últimos dentes do quadrante superior direito – 1º quadrante). (unanimidade).
3 – Não apresenta outras sequelas para além das mencionadas. (unanimidade)
4 – Tais sequelas conferem IPP conforme quadro anexo (por maioria, peritos do Tribunal e do sinistrado). Considera-se que não apresenta verdadeira anestesia que permita enquadrar no intervalo previsto para a alínea considerada. Dado apresenta “apenas” hipostesia os peritos afastam-se (conforme instrução 7 da TNI) do limite inferior do intervalo, propondo uma IPP de 4,00%.
Pela perita da responsável foi requerida a realização de junta de Cirurgia Maxilo-facial.
Fls. 16
1 – Já respondido acima.
2 – Já respondido acima.”
Analisado o sobredito quadro anexo, verifica-se que os senhores Peritos médicos, no respetivo parecer maioritário quanto à desvalorização das sequelas e atribuição de IPP, enquadraram as sequelas apresentadas pelo Sinistrado, a que se reportaram, no Capítulo III, 4.5.1. a) da TNI, arbitrando um coeficiente de 0,04 com atribuição de um coeficiente global de Incapacidade de 4.00%.
- Consigna-se que os quesitos de fls. 15 verso, têm a seguinte redação:
“ 1) Considerando a documentação constante dos autos, quais as lesões que o Sinistrado sofreu em consequência do acidente de trabalho ocorrido a 10/10/2021?
2) Em consequência dessas lesões, ou do seu tratamento, actualmente o Sinistrado apresenta como sequelas:
2.1. Fratura não consolidada da parede lateral do seio maxilar direito, com afundamento? E da inserção do osso zigomática?
2.2. Sofre de hipostesia do nervo infraorbitário direito?
2.3. E sofre de alteração da sensibilidade dentária? Se sim, em que quadrante?
3) Que outras sequelas apresenta o Sinistrado em consequência do acidente participado?
4) Em face da TNI, há lugar à atribuição de IPP? Qual o seu valor?”
Por sua vez, os quesitos de fls. 16 têm a seguinte redação:
“1. Do acidente dos autos resultaram para o A. sequelas determinantes de alguma incapacidade permanente?
2- E qual o coeficiente de tal incapacidade”.
- O auto de exame por junta médica foi notificado às partes.
Nessa sequência, a 1.ª Ré Seguradora requereu a realização de uma nova junta médica, na qual interviessem pelo menos dois peritos da especialidade de cirurgia plástica, reconstrutiva e estética (de preferência com experiência em cirurgias maxilo-faciais), nos termos do disposto no artigo 139.º, n.º 2, do Código de Processo do Trabalho.
O Autor pugnou pelo indeferimento do requerido pela Seguradora, dizendo que as sequelas foram totalmente identificadas por unanimidade dos peritos e o respetivo enquadramento na TNI realizado e devidamente justificado pela maioria dos peritos e, bem assim, que na fase conciliatória do processo não foi solicitado qualquer parecer especializado de cirurgia maxilo-facial.
- Em 12-06-2023 foi proferida a decisão no apenso de fixação de incapacidade (refª citius 127838524) com o seguinte teor:
“A ré, na sequência da posição da senhora perita médica que apresentou na junta médica, veio requerer a realização de junta médica da especialidade de cirurgia máxilo-facial.
O autor opôs-se.
Cumpre decidir.
Em primento lugar, considero que não estamos perante uma situação que integre o âmbito normativo do artigo 139.º, n.º 2, do CPT, pois na fase conciliatória não foi solicitado parecer de qualquer especialidade. Simplesmente, existia um parecer de um médico especialista (cirúrgia estética e reconstrutiva) apresentado pelo sinistrado. Logo, não existia obrigatoriedade de intervenção de médicos especialistas de qualquer especialidade.
Em segundo lugar, consideramos que a submissão do sinistrado a juntas médicas de especialidade, novos exames médicos ou a exigência de junção de registos clínicos deve fundar-se numa posição médica, manifestada pelos senhores peritos que elaboram ou intervêem na perícia e, por conseguinte, se na perícia singular não foi considerado necessário um parecer de especialidade e se na junta médica dois peritos consideraram que não era necessária junta de especialidade, estando preparados para sustentar uma posição conclusiva, como fizeram, tal será indiciador da desnecessidade da diligência.
Em terceiro lugar, admito que todas as posições médicas devem ser ponderadas e que mais vale elementos a mais do que a menos, pelo que considero que, ainda que a maioria dos peritos médicos considerem que não é necessária a diligência, deve apreciar-se a sua relevância. No caso, os senhores peritos pronunciaram-se unanimemente sobre todas as questões (lesões, sequelas, nexo de causalidade entre o evento, as lesões e as sequelas), pelo que consideramos que existe um quadro sequelar definido, faltando apenas a valoração da incapacidade que lhe deve ser atribuída. Esta tarefa é a tarefa, por excelência, dos peritos médicos com a competência em avaliação do dano corporal, como sucede com, pelo menos, a maioria dos peritos que intervieram nas perícias realizadas (junta médica e perícia singular), pelo que consideramos que a sujeição do sinistrado a mais uma perícia redundaria num excesso desnecessário.
Pelo exposto, indefiro a requerida perícia.
Notifique.
2. Contestado este pedido, foram saneados e condensados os autos principais, tendo-se determinado a organização deste apenso para fixação da incapacidade permanente parcial decorrente das lesões.
3. Foi realizada Junta Médica na qual, para além de outras questões relevantes para efeitos dos autos principais, se questionava quais as lesões e sequelas apresentadas e qual a desvalorização que lhe corresponde de acordo com a TNI.
4. Por maioria foi fixada a incapacidade permanente parcial de 4%.
5. Tendo em conta a natureza técnico–cientifica deste meio de prova e a conclusão maioritária dos peritos, considero demonstrado que o autor padece das sequelas descritas no auto de Junta Médica a que corresponde um grau de desvalorização de 4%.
6. Assim sendo, nos termos 140.º, n.º 2, do Código do Processo do Trabalho, fixo em 4% a incapacidade permanente parcial de que o autor está afectado por força das lesões de que padece descritas no auto de Junta Médica.
7. Custas a fixar nos termos que forem definidos nos autos principais, sem prejuízo da isenção de que as partes eventualmente beneficiem.
8. Registe e notifique.”.
A Recorrente manifesta a respetiva discordância quanto à decisão da matéria de facto proferida pelo Tribunal a quo, resultando das conclusões da apelação que organiza a impugnação da matéria de facto, em concreto, nos seguintes termos:
- impugna os pontos 13. e 14. dos factos provados, pretendendo a alteração da respetiva redação nos termos que enuncia e, bem assim, que seja aditado um facto à matéria de facto provada com a redação que também indica.
Analisadas as conclusões e a motivação da alegação, consideram-se minimamente cumpridos os ónus legais de impugnação previstos no artigo 640.º do CPC, pelo que nada obsta ao conhecimento da impugnação.
Importa referir que sobre a modificabilidade da decisão de facto no âmbito do recurso de apelação, estabelece o n.º 1 do artigo 662.º do CPC que «A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa» (sublinhou-se).
Não se questionando a amplitude de conhecimento por parte do Tribunal da Relação, nos moldes que vem sendo reconhecida em jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal de Justiça[20] – de maneira a que fique plenamente assegurado o duplo grau de jurisdição -, o certo é que o poder/dever previsto neste último normativo – de alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa – significa que para tal alteração, como se afirma no Acórdão de 17-04-2023[21] desta Secção Social do Tribunal da Relação do Porto, “não basta que os meios de prova admitam, permitam ou consintam uma decisão diversa da recorrida”.
De facto, como também se evidencia neste último Acórdão[22], «a parte recorrente não pode simplesmente invocar um generalizado erro de julgamento tendente a uma reapreciação global dos meios de prova, não podendo a censura do recorrente quanto ao modo de formação da convicção do tribunal a quo assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, simplesmente em defender que a sua valoração da prova deve substituir a valoração feita pelo julgador; antes tal censura tem que assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente por não existirem os dados objetivos que se apontam na motivação ou por se terem violado os princípios para a aquisição desses dados objetivos ou ainda por não ter existido liberdade de formação da convicção [21 – É que de outra forma, ocorreria uma inversão da posição dos intervenientes no processo, mediante a substituição da convicção de quem tem que julgar pela convicção de quem espera a decisão].».
Haverá também que ter presente que o juiz, como regra, aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto (artigo 607.º, n.º 5, do CPC). Pode também dizer-se que é entendimento pacífico da doutrina e jurisprudência, que a livre apreciação da prova não consente que o julgador forme a sua convicção arbitrariamente, impondo-se ao invés um processo de valoração racional, dirigido à formação de um prudente juízo crítico global. Este juízo deve assentar na ponderação conjugada dos diversos meios de prova, aferido segundo regras de experiência, atendendo aos princípios de racionalidade lógica e considerando as circunstâncias do caso.
Claro está que o resultado desse processo deve ter suporte na prova produzida e tal deve emanar, em termos suficientemente claros e objetivos, da fundamentação da decisão da matéria de facto.
Como é evidente, tal resultado não pressupõe uma certeza absoluta, sendo sim necessário que a prova permita criar a convicção da realidade de um facto [nas palavras de Antunes Varela, J.Miguel Bezerra e Sampaio e Nora[23], “grau especial de convicção, traduzido na certeza subjetiva”].
E, como se enfatiza no Acórdão desta Secção Social do Tribunal da Relação do Porto de 4-05-2022[24], «[e]ssa certeza subjetiva, com alto grau de probabilidade, há-de resultar da conjugação de todos os meios de prova produzidos sobre um mesmo facto, ponderando-se a coerência que exista num determinado sentido e aferindo-se esse resultado convergente em termos de razoabilidade e lógica. Se pelo contrário, existir insuficiência, contradição ou incoerência entre os meios de prova produzidos, ou mesmo se o sentido da prova produzida se apresentar como irrazoável ou ilógico, então haverá um dúvida séria e incontornável quanto à probabilidade dos factos em causa serem certos, obstando a que se considere o facto provado.».
Do atrás exposto decorre com manifesta clareza que se o recorrente entende que o Tribunal a quo valorou indevidamente meios de prova e, em contraste, atendeu indevidamente a outros que não mereciam credibilidade, errando assim na formação da sua livre convicção, não é suficiente partilhar e esgrimir aquela que é a sua própria convicção para procurar descredibilizar os meios de prova que foram valorados pelo julgador, antes lhe cumprindo evidenciar as razões que revelam o erro, seja por ter decidido ao arrepio das regras da experiência, ou por contrariar os princípios da racionalidade lógica, ou por ter desconsiderado quaisquer circunstâncias com influência relevante naquele processo de valoração da prova.
Isto posto, procederemos agora à indagação em concreto da impugnação.
- Ponto 13 dos factos provados, pretendendo a Recorrente a alteração da respetiva redação.
Este ponto tem a seguinte redação:
“A retribuição anual ilíquida do sinistrado, na época de 2021/2022, foi de € 42.721,78 (onde já se incluía o subsídio de alimentação)”.
A Recorrente pretende que tal ponto seja alterado para a seguinte redação:
“A retribuição anual ilíquida do sinistrado, na época de 2021/2022, foi de € 35.000,00 (onde já se incluía o subsídio de alimentação)”.
Para sustentar a sua posição refere a Recorrente que resulta dos recibos de vencimento juntos aos autos que o Sinistrado auferia com caráter regular a quantia mensal de € 3.181,82 e, bem assim, que isso perfaz a retribuição anual ilíquida de € 35.000,00. Mais sustenta que apenas as rubricas constantes de tais recibos se enquadram na denominada retribuição e que conforme resulta documentalmente demonstrado foi essa a remuneração transferida para a Ré Seguradora.
Consta na sentença recorrida em sede de motivação sobre esta matéria o seguinte:
«O Tribunal formou a sua convicção sobre a retribuição ilíquida nos recibos de vencimento juntos aos autos (folhas 75/76), conjugado com o próprio contrato que refere expressamente que a remuneração global é líquida, que corresponderá, necessariamente, a um valor superior em termos ilíquidos. Acresce que a quantia de € 35.000 líquida, paga em 11 meses, equivale a um valor líquido de € 3.181,82, que é precisamente a quantia líquida que é paga em cada recibo de vencimento, pelo que consideramos que o valor constante dos recibos, independentemente das parcelas lá colocadas pela ré empregadora, correspondem aos € 35.000 líquidos acordados contratualmente, o que equivale a € 42.721,78. Note-se apenas que existe uma referência a quilómetros (sempre igual) e a testemunha DD referiu que só pode ser relativo às deslocações de casa para os treinos, sendo que o administrador da ré referiu que normalmente é definido um valor para quilómetros no início da época. Todavia, o autor referiu que na época a que respeita o acidente residia no Porto (indicou a morada concreta) e não fazia grande número de quilómetros para treinar.».
Importa sublinhar que o julgador a quo, como resulta do trecho da motivação transcrito alicerçou a sua convicção na análise conjugada dos recibos de vencimento juntos aos autos com o próprio contrato de trabalho celebrado entre o Autor e a Recorrente, apelando ainda ao depoimento da testemunha DD e às declarações de parte prestadas pelo administrador da Recorrente.
Se atentarmos na impugnação apresentada, a Recorrente apela apenas aos recibos de vencimento e ao contrato de seguro (retribuição transferida) para sustentar a alteração pretendida.
Os elementos de prova convocados pela Recorrente, ao invés do por si sustentado, não impõem indubitavelmente decisão diversa nesta matéria. Muito pelo contrário! Tais elementos vão em sentido logicamente incompatível com a alteração da redação pretendida pela Recorrente.
Como resulta da motivação, o Tribunal a quo não valorou apenas os recibos de vencimento, mas também a sua conjugação com o contrato celebrado e subscrito pelo trabalhador Autor e 2.ª Ré Entidade Empregadora, sendo certo que tais elementos probatórios documentais não foram impugnados pelas partes.
Ora, do contrato de trabalho junto como documento n.º 1 com a petição inicial e constante dos autos a fls. 72 verso a 74 dos autos, consta expressamente na sua cláusula 2.ª que o jogador Autor se obriga a prestar com regularidade a atividade de futebolista, em representação e sob a autoridade e direção da 2.ª Ré Empregadora por duas épocas desportivas com início a 19-08-2021 e termo no dia 30-06-2023. Por sua vez, consta expressamente da cláusula 3.ª, n.º 1, desse mesmo contrato que pela prestação referida na cláusula 2.ª a ora Recorrente se obriga a pagar ao jogador na época 2021/2022 (desde 1-08-2021 a 30-06-2022) “remuneração global líquida de € 35,000,00”, “a ser paga em 11 (onze) prestações mensais, iguais e sucessivas de € 3.182,00 (…) cada” (sublinhado nosso)
Por outro lado, se analisarmos os recibos de vencimento do Autor que foram juntos ao processo pela própria 2.ª Ré Entidade Empregadora [recibos de agosto a novembro de 2021 juntos pela ora Recorrente na fase conciliatória a fls. 32 a 35 - e que, por sua vez o Autor voltou a juntar com a petição inicial como doc. 2 a fls. 75 a 76 -; e recibos de dezembro de 2021 e janeiro a junho de 2022 juntos pela ora Recorrente na fase contenciosa a fls. 127 a 130], verificamos que nos 11 recibos em questão consta sempre como valor líquido final a receber pelo Trabalhador o montante de € 3.181,82.
Dessa conjugação está racionalmente e logicamente justificada a convicção formada pelo Tribunal quanto ao montante plasmado no ponto 13. dos factos provados. Como resulta da motivação, o contrato de trabalho celebrado refere expressamente que a remuneração global de € 35.000,00 é líquida, o que corresponderá, necessariamente, a um valor superior de remuneração em termos ilíquidos. O valor ilíquido global correspondente é o plasmado no ponto 13. dos factos provados como decorre inequivocamente da análise dos recibos de vencimento do Autor emitidos pela própria Recorrente (que contêm as rubricas de remunerações ilíquidas e os descontos legais correspondentes que, por sua vez, conduzem ao referido valor líquido final constante em cada recibo), sendo de relembrar que a própria Recorrente mesmo em sede recursiva refere que as rubricas constantes dos recibos se enquadram “na denominada retribuição”.
Nunca poderia, aliás, o Tribunal ater-se para estes efeitos a um valor da remuneração líquida, quando é certo que a Lei n.º 98/2009 de 4-09 estatui expressamente que “a indemnização por incapacidade temporária e a pensão por morte e por incapacidade permanente, absoluta ou parcial, são calculadas com base na retribuição anual ilíquida normalmente devida ao sinistrado, à data do acidente” [artigo 71.º, n.º 1, da citada Lei –regulamentação aplicável, como se disse, por força do disposto no artigo 10.º da citada Lei n.º 27/2011, de 16 de junho].
Pelo exposto, e sem necessidade de considerações adicionais, improcede nesta parte a impugnação apresentada.
- Ponto 14. dos factos provados, pretendendo a Recorrente a alteração da respetiva redação.
Relembre-se que este ponto tem a seguinte redação:
“Para além da quantia referida em 13, o autor recebeu ainda, mensalmente, a quantia de € 500 a título de despesas de alojamento, que utilizou, durante a época 2021/2022, para suportar parcialmente a renda de habitação que arrendou na cidade do Porto pelo valor mensal de € 750.”.
A Recorrente pretende que tal ponto seja alterado para a seguinte redação:
“Para além da quantia referida em 13, o autor recebeu ainda, mensalmente, a quantia de € 500 a título de despesas de alojamento”.
Refere a Recorrente que quanto ao alegado arrendamento, pelo Sinistrado, de uma habitação na cidade do Porto, onde residia, e ao pagamento da renda mensal de € 750,00, o Tribunal a quo formou a sua convicção apenas nas declarações de parte do Sinistrado, não se socorrendo de qualquer outro meio probatório que corroborasse tal facto, com o que não se pode conformar. Convoca o disposto nos artigos 1069.º e 364.º do Código Civil, para defender que o Tribunal a quo para considerar como provada a existência de um contrato de arrendamento teria de encontrar suporte num meio de prova documental, que inexiste já que o Autor nunca juntou aos autos o alegado contrato de arrendamento nem os comprovativos de pagamento da alegada renda de € 750,00. Apela a passagens das declarações de parte do Autor, que localiza na gravação, para depois concluir que exigindo a lei a celebração do contrato de arrendamento por escrito não podia esse documento ser substituído por um qualquer outro meio de prova.
Na motivação da decisão da matéria de facto, consta na sentença recorrida, relativamente à matéria em causa, o seguinte:
«Do contrato resulta ainda o pagamento de € 500 mensais para o autor fazer face a despesas de alojamento. O autor referiu que naquela época residia em casa arrendada no Porto, pela qual pagava a quantia de € 750,00 mensais, utilizando os € 500 das despesas de alojamento e colocando mais € 250 do seu ordenado, pelo que concluímos que se tratava de um subsídio com um fim determinado que era suportar parcialmente o pagamento da renda uma vez que o autor estava deslocado».
Sem necessidade nesta sede de apreciar as conclusões que o Tribunal a quo na motivação da matéria de facto referiu retirar quanto à natureza e finalidade do pagamento do montante em causa, verifica-se que o julgador na sua livre convicção deu credibilidade às declarações de parte do Autor na matéria impugnada pela Recorrente, sendo certo que a Recorrente nem sequer coloca em crise tal valoração, considera, sim, que se trata de matéria em que o Tribunal estava sujeito a prova vinculada, apenas sendo possível a prova da matéria em causa pela via documental.
Sempre ressalvando o devido respeito por distinta posição, assim não entendemos.
No ponto em causa o Tribunal a quo não está a dar como provada a celebração de um contrato de arrendamento, sendo certo que nos presentes autos não está sequer em causa saber se o Autor celebrou ou não um contrato de arrendamento, nem isso, aliás, assumia qualquer relevância para as questões a decidir nos autos.
Acresce que a matéria da utilização do montante em causa para suportar o valor mensal mencionado no ponto impugnado não está sujeito a prova documental vinculada.
Considera-se, pois, que nada obsta a que na matéria impugnada a convicção do Tribunal a quo se tenha baseado apenas nas declarações de parte do Autor, por terem merecido credibilidade (artigo 466.º, n.º 3, do CPC), sendo que reanalisadas tais declarações não somos levados a formar convicção diversa da formada em 1.ª instância, não se impondo a alteração do decidido.
Sem prejuízo do antedito, e como melhor resultará do conhecimento do recurso da sentença recorrida em sede de aplicação do direito, estando provado e não impugnado que, para além da quantia referida em 13, o Autor recebeu ainda, mensalmente, a quantia de € 500,00 a título de despesas de alojamento e o teor do n.º 7 da cláusula 3.ª do contrato de trabalho celebrado entre o Autor e a Recorrente, a matéria fáctica impugnada - “que utilizou, durante a época de 2021/2022, para suportar parcialmente a renda da habitação que arrendou na cidade do Porto pelo valor mensal de € 750” -, não é sequer suscetível de influir na decisão da causa e concretamente na matéria que é objeto do presente recurso.
Pelas razões atrás elencadas, e sem necessidade de outras considerações, improcede nesta parte a impugnação apresentada.
- Ponto que a Recorrente pretende aditar aos factos provados com a redação que indica.
Sustenta a Recorrente que o Tribunal a quo não considerou factos que, atenta a sua relevância, devia ter dado como provado, referindo que resulta das declarações de parte do Sinistrado que este continua a exercer a sua atividade profissional de jogador de futebol, citando passagens de tais declarações que localiza na gravação.
Argumenta que, discutindo-se nos autos se as sequelas resultantes do acidente de trabalho descritas no auto de junta médica afetaram a capacidade de trabalho do Sinistrado, se impunha que as declarações do Sinistrado quanto à sua atividade profissional atual fossem consideradas.
Defende a Recorrente que o Tribunal a quo devia ter considerado como provado que o Sinistrado continua a exercer a sua atividade – jogador profissional de futebol – na ..., nas suas plenas capacidades, pretendendo o aditamento ao elenco dos factos provados de um ponto com tal redação.
Não se olvida que o recurso pode visar o aditamento de factos sobre os quais não tenha ocorrido pronúncia na sentença, mas isso, sublinhe-se, desde que ocorra fundamento legal para que tivesse ocorrido tal pronúncia.
Quanto ao ponto pretendido aditar, importa desde logo referir que o segmento do mesmo atinente à expressão “nas suas plenas capacidades” nunca poderia integrar o elenco da matéria de facto – provada ou não provada.
Na verdade, o segmento em referência tem natureza conclusiva e valorativa, encerrando um juízo que haveria que decorrer, ou não, de factos que sustentassem essa conclusão, sendo certo que nem sequer foi invocado o necessário substrato fáctico suscetível de apoiar essa conclusão.
Conforme vem sendo entendimento pacífico desta Secção Social do Tribunal da Relação do Porto, em linha com posição seguida na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, as conclusões apenas podem extrair-se de factos materiais, concretos e precisos que tenham sido alegados, sobre os quais tenha recaído prova que suporte o sentido dessas alegações, sendo esse juízo conclusivo formulado a jusante, na sentença, onde cabe fazer a apreciação crítica da matéria de facto provada. Daí que, quando o tribunal a quo se tenha pronunciado em sede de matéria de facto sobre afirmações conclusivas, essa pronúncia deve ter-se por não escrita[25].
A verdade também é que mesmo esse juízo valorativo conclusivo nunca poderia ser retirado do simples facto de o Autor continuar a exercer a atividade profissional de jogador profissional de futebol.
Ademais, o único elemento de prova convocado pela Recorrente (as declarações de parte do Autor) para sustentar o aditamento em causa “ (…) nas suas plenas capacidades”, nem sequer se pronunciou sobre essa matéria, que, aliás, nem sequer lhe foi questionada. Não se olvide que, havendo outras questões a decidir, a fixação da incapacidade para o trabalho correu por apenso, mediante a realização de perícia médica (artigos 139.º, 140.º e 132.º do CPT).
Quanto ao mais – ou seja, ao facto de o Sinistrado continuar a exercer a sua atividade de jogador profissional de futebol (seja na ..., seja em qualquer outro local), não pode afirmar-se que a decisão proferida em 1.ª instância apresente qualquer patologia por deficiência pela não inclusão dessa matéria, sendo certo que nunca esteve em causa que o Autor padecesse de incapacidade permanente absoluta para trabalho habitual, no caso, jogador profissional de futebol e se mostra provado sob o ponto 1 que “o Autor é praticante desportivo profissional da modalidade de futebol”.
Saliente-se que o facto de o Autor continuar a exercer a atividade de jogador profissional de futebol não é de todo incompatível com a afirmação de que o Autor ficou a padecer de sequelas em consequência do acidente desvalorizáveis com a atribuição de um coeficiente de incapacidade permanente previsto na TNI (Tabela Nacional de Incapacidades).
Não é pelo facto de ser reconhecida uma incapacidade permanente parcial (IPP) a um jogador profissional de futebol que este fica incapaz para a profissão habitual, doutro modo não se compreenderia o regime previsto na citada Lei 27/2011 em que estão expressamente prevenidas situações das quais resulte incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual (artigo 3.º, n.º 2) e situações das quais resulte uma incapacidade permanente parcial para todo e qualquer trabalho (artigo 4.º) e, bem assim, uma tabela de incapacidades específicas (artigo 5.º) em que ao grau de incapacidade resultante da aplicação da tabela nacional de incapacidades por acidentes de trabalho e doenças profissionais corresponde o grau de incapacidade previsto na tabela de comutação para a atividade de praticante desportivo profissional anexa a tal lei, salvo se da primeira resultar valor superior, sendo certo que analisada essa tabela de incapacidades específicas se verifica que até ao grau de incapacidade de 5% inexiste qualquer comutação específica para a atividade de praticante desportivo profissional. Atente-se que o grau de IPP fixado no apenso de incapacidade foi de 4%.
Em suma, a matéria impugnada não é, pois, sequer suscetível de influir na decisão da causa e concretamente na matéria que é objeto do presente recurso.
Por todo o exposto, improcede também nesta sede a impugnação apresentada.
Refere a Recorrente que o Tribunal a quo considerou demonstrado que o Sinistrado padece de sequelas, a que corresponde um grau de desvalorização de 4%, fixando a IPP em 4%, nos termos do disposto no artigo 140.º, n.º 1, do CPT, mas, contrariamente ao decidido, o Sinistrado não ficou a padecer de qualquer IPP em consequência do acidente dos autos.
Argumenta que ficou demonstrado que, logo após o acidente, o Sinistrado continuou a exercer a sua atividade a favor da Recorrente, participando regularmente nos jogos da equipa sénior de futebol masculino, nas suas plenas capacidades e sem qualquer lesão ou sequela, referindo que no ponto 15 dos factos provados ficou reconhecido que o Autor na época 2021/2022 jogou 28 jogos oficiais, em 25 dos quais jogou mais de 45 minutos. Mais argumenta que das declarações de parte do Sinistrado resulta que este, na presente data, continua a exercer a atividade profissional - jogador de futebol profissional. Daí conclui que as sequelas resultantes do acidente de trabalho não afetaram a capacidade de trabalho do Sinistrado.
Defende que a IPP tem uma natureza complexa, devendo o seu apuramento exigir a apreciação de diferentes elementos de prova, que não apenas a perícia médico-legal. Mais sustenta que o Tribunal a quo andou mal ao indeferir o pedido de realização da junta médica de especialidade de cirurgia máximo-facial, uma vez que um médico especialista nessa área conseguiria aferir, com maior acuidade, se a “diminuição da sensibilidade e desconforto ao toque na região infra-orbitrária e naso-geniana direita” resultaram das lesões fratura do complexo zigomático-malar direito e se tais sequelas conferem algum grau de IPP. Entende a Recorrente que o Tribunal a quo incorreu em erro de aplicação e interpretação do disposto no n.º 7 do artigo 139.º do CPT e violou o princípio do inquisitório e da audiência contraditória, previstos nos artigos 411.º e 415.º do CPC, para depois finalizar com a conclusão de que a decisão deverá ser revogada e substituída por decisão que considere que o Sinistrado ficou curado sem qualquer desvalorização.
Vejamos.
Refira-se que, na fase contenciosa, a perícia por junta médica será sempre de realização obrigatória quando a questão da incapacidade esteja em discussão – como in casu -, inscrevendo-se no âmbito da denominada prova pericial – cfr. artigos 139.º e 140º do CPT.
A prova pericial tem por objeto, conforme estatuído no artigo 388.º do Código Civil, “a perceção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devem ser objeto de inspeção judicial”.
Do transcrito normativo decorre que a prova pericial incide sobre determinados factos e destina-se a elucidar o tribunal sobre o seu significado e alcance, no pressuposto que a respetiva natureza e complexidade técnica exigem conhecimentos especiais que o julgador não possui.
Ora, como constitui entendimento uniforme na jurisprudência, na fixação da incapacidade, o juiz não pode deixar de se servir da prova obtida por meios periciais, pese embora o laudo pericial não tenha força vinculativa obrigatória, e sem prejuízo, todavia, de a eventual divergência dever ser devidamente fundamentada em outros elementos probatórios que, por si ou conjugadamente com as regras da experiência comum, levem a conclusão contrária por se tratar de matéria em que o juiz não dispõe dos necessários conhecimentos técnico-científicos.
Porém, quer adira ou quer se desvie, para que decida de acordo com a sua livre convicção, em qualquer caso é sempre necessário que o juiz conte com um resultado do exame pericial devidamente fundamentado. O laudo, seja ele obtido por unanimidade dos peritos ou apenas por maioria, deve convencer pela sua fundamentação, pois só assim cumpre o propósito de facultar ao juiz os elementos necessários para fixar a natureza e o grau de incapacidade.
Revertendo ao caso em apreço, resulta inquestionavelmente da matéria fáctica considerada assente desde logo no despacho saneador que o Sinistrado é praticante desportivo profissional da modalidade de futebol e sofreu um acidente consistente em ter levado uma cabeçada do guarda-redes, tendo perdido o conhecimento, e do qual resultou traumatismo da face do qual por sua vez resultou fratura do complexo zigomático-malar direito – pontos 1., 7. e 8. do elenco dos factos provados os quais não foram objeto de impugnação.
Quanto às sequelas de que o Autor ficou a padecer em consequência do acidente dos autos, as mesmas estão consideradas e subjacentes à decisão de fixação da IPP de 4% proferida no apenso de incapacidade para o trabalho, com apelo e adesão ao parecer unânime da junta médica no que respeita ao quadro sequelar consequência do acidente dos autos e, bem assim, ao parecer maioritário dessa mesma junta médica no que concerne à atribuição do coeficiente de incapacidade permanente parcial de 4%.
Os senhores peritos médicos da junta médica, por unanimidade consideraram que a fratura do complexo zigomático-malar direito terá consolidado posteriormente ao TC de 25-11-2021 junto a fls. 7 a 9 do apenso A, referindo inexistir clínica de fratura não consolidada, não apresentando ao exame objetivo assimetria nos ossos da face (cfr. resposta dada ao quesito 2.). Os senhores peritos médicos em junta médica, como apontou o Tribunal a quo pronunciaram-se unanimemente sobre as lesões, sequelas, nexo de causalidade entre o evento, as lesões e as sequelas, sendo que no que respeita a sequelas foram consideradas fratura consolidada do zigomático, sem assimetria os ossos da face; diminuição da sensibilidade e desconforto ao toque na região infra-orbitrária e naso geniana direita, e diminuição da sensibilidade nos dentes 15, 16, 17, 18 (últimos dentes do quadrante superior direito – 1º quadrante). Foi ainda emitido parecer unânime da junta médica no sentido de que o Sinistrado não apresenta outras sequelas para além das mencionadas.
A junta médica emitiu ainda parecer maioritário [perito do Tribunal indicado pelo Gabinete Médico Legal (GML) e perito apresentado pelo Sinistrado] no sentido de que as sequelas descritas conferem IPP conforme quadro anexo, com enquadramento na TNI no capítulo III, rubrica 4.5.1,a) (capítulo III neurologia e neurocirurgia; rubrica 4 – Nervos cranianos, 4.5. – V par (“trigémio” ou trigêmeo), 4.5.1. Parte sensitiva, integrando-a na alínea a) prevista para as situações de anestesia, sem dor, por lesão de um ou mais nervos que prevê um intervalo de 0,05-0,10. Os senhores peritos médicos no seu parecer deram ainda cumprimento à instrução n.º 7 da Tabela Nacional de Incapacidades (Decreto-Lei n.º 352/2007 de 23 de outubro), justificando o motivo pelo qual se desviaram do intervalo previsto para a alínea considerada.
Sem querer entrar no campo médico da questão, o nervo trigêmeo constitui, com o homólogo contralateral, o quinto (V) par de nervos cranianos, sendo assim chamado por possuir três ramos: ramos oftálmico, maxilar e mandibular. É um nervo com função mista (motora e sensitiva), porém há um predomínio da função sensitiva[26].
A descrição do quadro sequelar que o Sinistrado apresenta como consequência do acidente dos autos, como vimos, resultou do parecer unânime dos peritos da junta médica alicerçado no exame objetivo do Sinistrado e elementos clínicos constantes dos autos, sendo que do laudo pericial maioritário da junta médica se retiram cabalmente as razões da integração dessas sequelas em sequelas dos nervos cranianos, mais precisamente do nervo trigêmeo (V par dos nervos cranianos) com desvalorização da parte sensitiva que por não atingir o nível da anestesia (sem sensibilidade) mas apenas o nível da hipostesia (sensibilidade diminuída) justificou o afastamento do coeficiente mínimo previsto na tabela.
Atente-se que na perícia singular foi também considerada a existência de sequelas desvalorizáveis, aí com ponderação e valorização da cicatriz nacarada na região malar direita de 1 cm decorrendo do enquadramento aí efetuado que nesse exame médico singular também foi valorizada a parte sensitiva sob o ponto de vista das dismorfias (Capítulo II 1.4.6. cicatrizes dolorosas objetiváveis pela contratura e alterações de sensibilidade – 0,01-0,05).
O laudo maioritário quanto à atribuição do coeficiente de desvalorização das sequelas, precedido do parecer unânime em matéria de sequelas consequência do acidente, permite captar as razões e o processo lógico que conduziu à integração das sequelas no capítulo, rubrica e alínea da TNI e o desvio do intervalo previsto na mesma. De facto, tendo em conta as lesões sofridas com fratura do complexo zigomático-malar direito, entretanto consolidada, e as identificadas sequelas de diminuição de sensibilidade e desconforto ao toque identificadas na região infra-orbitrária e naso-geniana e, bem assim, diminuição da sensibilidade nos dentes do quadrante superior direito, é lógica a integração das sequelas no nervo V par trigêmeo com desvalorização pela parte sensitiva. Atente-se que o próprio capítulo das dismorfias prevê que deve ser privilegiada a função sobre a morfologia (capítulo II dismorfias, ponto 1 cicatrizes).
Ponderando o atrás exposto, e tendo em conta a junta médica realizada no apenso de fixação de incapacidade para o trabalho, forçoso é concluir que inexistem fundamentos para questionar a avaliação e o parecer emitido pela junta médica (unânime quanto ao quadro sequelar apresentado e maioritário quanto ao coeficiente de desvalorização que lhe corresponde e a atribuir).
Como tivemos oportunidade de referir em sede de impugnação da matéria de facto, a circunstância do Sinistrado ter continuado e continuar a exercer a sua atividade profissional de jogador profissional de futebol em nada contende ou coloca em crise o sobredito laudo pericial, sendo certo que não lhe foi reconhecida qualquer incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual. A referida circunstância, ao contrário do que sustenta a Recorrente, não implica que o Sinistrado ficou curado sem qualquer desvalorização. A incapacidade permanente parcial genérica para o trabalho – no âmbito de todo e qualquer trabalho – de 4% que lhe foi atribuída nem sequer tem comutação específica para a atividade de praticante desportivo profissional (cfr. tabela anexa da citada na citada Lei 27/2011).
O Tribunal a quo não descurou qualquer elemento probatório relevante para a decisão de fixação da incapacidade, nem merece qualquer censura o indeferimento do pedido de realização de junta médica da especialidade de cirurgia máxilo-facial.
Na fase conciliatória do processo não foi pedido qualquer parecer da especialidade em causa – ou qualquer outra especialidade -, que justificasse a intervenção de dois médicos da especialidade na junta médica (cfr. artigo 139.º, n.º 1, do CPT), conforme logo se consignou no primeiro despacho proferido pelo Tribunal a quo no apenso de incapacidade.
Por outro lado, a junta médica realizada mostrava-se devidamente fundamentada e fornecendo elementos seguros para a decisão, pelo que é perfeitamente razoável e adequado que o Mm.º Juiz do Tribunal a quo, no uso do poder previsto no n.º 7 do artigo 139.º do CPT (ou mesmo no artigo 411.º do CPC), não considerasse necessária a realização de exames e pareceres complementares ou requisitar parecer técnicos, nem considerasse necessária a realização de outra junta médica, e, bem assim, entendesse que os autos reuniam as condições necessárias para tomar decisão na sua livre convicção, em matéria com natureza eminentemente do campo da ciência médica.
Não foi também violado o princípio da audiência contraditória previsto no artigo 415.º do CPC, aliás, a Recorrente nem sequer partilhou qualquer argumentação que pudesse de alguma forma espelhar a invocada violação.
A decisão judicial de 1.ª instância encontra-se devidamente sustentada quanto à determinação e fixação da incapacidade do Autor em 4% de IPP (incapacidade permanente parcial), com apelo ao laudo pericial da junta médica, que se perfila como claro, congruente, objetivo e fundamentado.
Em conclusão, inexiste qualquer fundamento que justifique a revogação da decisão proferida no apenso de fixação de incapacidade quanto à natureza e grau de incapacidade e que foi integrada na sentença recorrida, improcedendo também nesta parte o recurso.
*
B.5) Saber se o Tribunal a quo errou na aplicação do direito, ao considerar como retribuição para efeito do cálculo da reparação devida por acidente de trabalho a quantia mensal de € 500,00 (total anual de € 6.000,00) a título de despesas de alojamento - subsídio de alojamento.
Face ao que resulta das conclusões de recurso, sustenta, em substância, a Recorrente que: ao contrário do decidido o montante de € 500,00 mensais a título de subsídio de habitação/alojamento não integra o conceito de retribuição atendendo ao disposto no artigo 258.º do Código do Trabalho; o conceito de retribuição se encontra objetivamente delimitado pelo seu caráter obrigatório, regular e periódico e, ainda, pela correspectividade com a prestação de trabalho; no caso não existe correspectividade entre o subsídio de habitação e a prestação de trabalho pelo Sinistrado, nem com a sua disponibilidade para tal prestação, não constituindo por isso retribuição, não tendo a sentença recorrida aplicado e interpretado corretamente o artigo 258.º do Código do Trabalho.
A questão que se coloca consiste, pois, em saber se a quantia de € 500,00 mensais prevista na cláusula 3.ª, n.º 7, do contrato de trabalho celebrado entre o Autor (em que as partes acordaram que a 2.ª Ré Entidade Empregadora pagaria ainda ao jogador Autor a quantia mensal de 500,00 para fazer face a despesas de alojamento – ponto 5. dos factos provados), mostrando-se também provado que, para além da quantia referida em 13. factos provados, o Autor recebeu ainda, mensalmente, a quantia de € 500,00 a título de despesas de alojamento (facto 14.), integra ou não a retribuição do trabalhador para efeitos de acidente de trabalho.
Quanto a esta questão, diremos desde já adiantando a conclusão, que se concorda com a solução seguida em 1.ª instância no sentido de considerar que a quantia em referência integra a retribuição do trabalhador para efeitos de acidente de trabalho.
Vejamos porquê.
Como se dá conta no recente Acórdão do STJ de 11-09-2024[27], o Supremo Tribunal de Justiça já teve ocasião de sublinhar reiteradamente que a noção de retribuição para efeitos de acidente de trabalho, tal como resulta da presente LAT, mais concretamente do seu artigo 71.º, é distinta e mais ampla do que a noção de retribuição que resulta do Código do Trabalho e que se acha consagrada no seu artigo 258.º. No mesmo sentido, Acórdão do STJ de 12-01-2023[28].
Esse mesmo entendimento tem sido perfilhado por esta Secção Social do Tribunal da Relação do Porto, conforme decorre dos Acórdãos de 23-01-2023[29] e de 15-12-2021[30].
Por comodidade e com a devida vénia iremos seguir e transcrever parte dos citados Acórdãos, pois dificilmente diríamos algo mais que o que neles se diz e argumenta no sentido da orientação que perfilhamos.
Assim, expõe-se no citado Acórdão do STJ de 11-09-2024, que nos permitimos transcrever [com exclusão das notas de rodapé], o seguinte:
«Com efeito, enquanto a noção de retribuição constante do Código de Trabalho assenta nas notas características da obrigatoriedade, regularidade, periodicidade e contrapartida do trabalho, a LAT no seu artigo 71.º, n.º 2 dispõe que “[e]ntende-se por retribuição mensal todas as prestações recebidas com carácter de regularidade que não se destinem a compensar o sinistrado por custos aleatórios”. Destarte, a noção de retribuição para efeitos de acidentes de trabalho é mais ampla porque apenas exige a regularidade das prestações recebidas e não exige que tais prestações sejam contrapartida do trabalho. E a diferença compreende-se perfeitamente atendendo à diferente teleologia das definições: enquanto no Código do Trabalho está em jogo, em primeira linha, saber quanto é devido ao trabalhador pelo seu trabalho, na lei dos acidentes de trabalho o que importa é apurar o dano sofrido pelo sinistrado por força do acidente de trabalho, sendo tal dano integrado pelas prestações que o trabalhador vinha regularmente recebendo do empregador, mesmo que tais prestações se destinassem a cobrir custos, apenas excetuando a lei a compensação de custos aleatórios.
Na verdade, a lei ao excluir do conceito de retribuição para efeitos de acidente de trabalho apenas as prestações regulares que se destinem a compensar custos aleatórios admite que são retribuição para este efeito, prestações que sejam compensatórias de custos não aleatórios.
Mas não é só a letra da lei que aponta claramente nesse sentido, mas também o escopo da norma. Trata-se de determinar o dano sofrido pelo trabalhador. Ora, se o trabalhador que recebe regularmente um subsídio de refeição deixa de o receber tal traduz-se em uma perda porque, no fim de contas, terá despesas com a sua alimentação todos os dias…
Como se pode ler no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 17-03-2010, processo n.º 436/09.1YFLSB (Relator Conselheiro Sousa Grandão):
“Se este normativo1começa por apelar ao critério geral de retribuição – que já alude, ele próprio, à regularidade da prestação – para depois adicionar aquelas prestações regulares que não se destinem a compensar custos aleatórios, é forçoso reconhecer que perfilha um conceito mais abrangente, apenas aludindo, para efeitos de exclusão retributiva, à variabilidade e contingência das prestações.
No domínio da sinistralidade laboral, o que o legislador pretende é compensar o sinistrado pela falta ou diminuição dos rendimentos provenientes do trabalho: assim se compreende que as prestações reparatórias atendam ao “salário médio”, onde se integram todos os valores que a entidade patronal satisfazia regularmente e em função das quais o trabalhador programava regularmente a sua vida.
A matéria de facto provada – ponto n.º 13 – demonstra que as prestações em causa correspondiam a valores fixos e diários – logo, independentes de quaisquer custos ou despesas aleatórias – devidos por cada dia de trabalho – no que se evidencia a sua correspectividade com o trabalho desenvolvido pelo trabalhador, seguramente mais penoso por estar deslocado – sem necessidade de qualquer documento comprovativo”.
Também no Acórdão proferido a 31-10-2018, no processo n.º 359/15.5T8STR.L1.S1 (Relator Conselheiro Leones Dantas), em que o Relator do presente Acórdão interveio como Adjunto, se afirmou que:
“Analisados estes dispositivos, decorre dos mesmos que o conceito de retribuição assumido como elemento de base do cálculo da reparação das consequências do acidente não coincide com o conceito de retribuição que emerge dos artigos 258.º e ss. do Código do Trabalho.
Para os efeitos daquele artigo 71.º, são retribuição «todas as prestações recebidas com carácter de regularidade que não se destinem a compensar o sinistrado por custos aleatórios».
Não se faz apelo à contrapartida da efetiva prestação de trabalho, estando-se antes perante uma noção mais ampla onde cabem todas as prestações recebidas pelo sinistrado que não se destinem a compensar custos aleatórios.
Outro dos elementos que permitem incluir estas prestações na base de cálculo das reparações é o conceito de regularidade.
O conceito de regularidade tem aqui implícita uma dimensão temporal que aponta para a repetição dos pagamentos e a partir daí a dimensão dos rendimentos normalmente auferidos pelo sinistrado.
Importa que na ponderação deste conceito não se esqueça que o que está em causa é a perda da capacidade para o futuro do sinistrado e não a fixação da dimensão de rendimentos devidos ao sinistrado.”
(…)
Está claramente demonstrada nos autos a regularidade do pagamento da quantia (facto 10.). Assim, tal importância só não contaria para efeitos de retribuição segundo o artigo 71.º da LAT se a mesma cobrisse custos aleatórios. Não vislumbramos, no entanto, qualquer aleatoriedade: um piloto de aeronaves, como o sinistrado, que tem para realizar o seu trabalho de fazê-lo a partir de uma base de trabalho incorrerá em despesas, designadamente de alimentação, que são normais e previsíveis, nada tendo de aleatórias. E, como se pode ler no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23-01-2023, processo n.º 3024/19.0T8PNF.P1 (Relator Desembargador Jerónimo Freitas), “[s]ão custos aleatórios os que tenham subjacente um acontecimento incerto, sujeito às incertezas do acaso, casual, fortuito, imprevisível. O que vale por dizer que não só o montante deve ser susceptível de variar, como também a causa que lhe está subjacente deve ter alguma incerteza ou imprevisibilidade”. Em suma, face à noção do artigo 71.º da LAT não é suficiente para excluir do conceito de retribuição para efeitos de acidente de trabalho invocar apenas que a prestação regular se destina a cobrir custos, havendo que provar igualmente – ónus da prova que cabe ao empregador (ou segurador) – que tais custos são aleatórios.».
Na mesma linha se perfila o citado Acórdão desta Secção Social de 23-01-2023, sintetizando no respetivo sumário que, «[a]tenta a noção estabelecida no n.º 2 do artigo 71.º da LAT recai sobre a Ré o ónus de alegação e prova de factos de onde resultasse demonstrado que aquele pagamento se destinava a compensar custos aleatórios, nos termos referidos na parte final da norma, isto é, custos de natureza acidental e meramente compensatória».
Do mesmo passo, refere-se no citado Acórdão do STJ de 12-01-2023, «aleatório é aquilo que está sujeito a contingência, dependente do acaso ou de circunstâncias imprevisíveis; … que é casual ou fortuito.».
Revertendo ao caso dos autos, não há dúvidas que estamos perante uma quantia contratualmente acordada entre as partes, sendo que resulta da cláusula 3.ª, n.º 7, do contrato de trabalho desportivo de jogador profissional celebrado entre as partes por duas épocas desportivas, que “as partes acordam, ainda, que a B... SAD pagará ao Jogador a quantia mensal de 500,00 (quinhentos euros) para fazer face a despesas de alojamento”, sendo que tal quantia mensal de € 500,00 foi efetivamente recebida, mensalmente, pelo Autor a título de despesas de alojamento e, portanto, foi paga pela Ré (pontos 5. e 14. dos factos provados).
Estamos inequivocamente perante uma prestação regular e de montante certo, no cumprimento de uma obrigação contratual previamente acordada entre as partes e cuja obrigação de pagamento ao trabalhador foi assumida pela Recorrente entidade empregadora, o que, salvo melhor opinião, desde logo por si arredaria a possibilidade da sua qualificação como prestação regular destinada a compensar o trabalhador por custos aleatórios, em sentido próprio, ou seja, nos moldes atrás prefigurados.
Antes pelo contrário, tal valor é pago pela 2ª Ré sem que fosse exigido, pelo menos tal não resulta da obrigação contratual assumida por escrito, nem o contrário foi invocado, qualquer prova da realização da despesa e mesmo do respetivo montante. Por essa razão, aliás, em sede de matéria de facto se julgou inócuo o segmento impugnado no que respeita ao ponto 14. (“que utilizou, durante a época de 2021/2022, para suportar parcialmente a renda da habitação que arrendou na cidade do Porto pelo valor mensal de € 750”).
Nenhuma censura nos merece, pois, a conclusão a que chegou o Tribunal a quo no sentido de considerar a referida quantia mensal de € 500,00 como fazendo parte da retribuição para efeitos de reparação do acidente de trabalho.
Em face do exposto, acordam os Juízes da Secção Social do Tribunal da Relação do Porto em:
- julgar totalmente improcedente o recurso interposto do despacho proferido em 4-09-2023 que, consequentemente, se mantém;
- julgar totalmente improcedente o recurso interposto da sentença recorrida, confirmando-se a mesma.
Custas dos recursos pela Recorrente.
Nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do CPC, anexa-se o sumário do presente acórdão.
Notifique e registe.
Porto, 18 de novembro de 2024
Germana Ferreira Lopes [Relatora]
António Luís Carvalhão [1º Adjunto]
Rui Manuel Barata Penha [2º Adjunto]
___________________________________
[1] Consigna-se que em todas as transcrições será respeitado o original, com a salvaguarda da correção de lapsos materiais evidentes e de sublinhados/realces que não serão mantidos.
[2] Adiante CPC.
[3] Adiante CPT.
[4] Segundo a ordem da precedência lógica na apreciação, sendo que a solução de alguma pode contender com o conhecimento de outra(s) – artigos 608.º e 663.º, n.º 2, do CPC (ex vi artigo 87.º, n.º 1, do CPT).
[5] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª Edição revista e Actualizada, Coimbra Editora, Almedina, 1985, página 686.
[6] Processo n.º 1436/15.8T8PVZ.P1.S1, Relator Conselheiro Pedro de Lima Gonçalves, acessível in www.dgsi.pt, site onde se mostram disponíveis os demais Acórdãos infra a referenciar, desde que o sejam sem menção expressa em sentido adverso.
[7] In Código de Processo Civil Anotado, Almedina 2020, págs. 763/762.
[8] Processo n.º 3340/16.3T8VIS-A.C1.S2, Relator Conselheiro Ilídio Savcarrão.
[9] Processo n.º 16978/18.5T8LSB.L2.S1, Relator Conselheiro Mário Belo Morgado.
[10] Processo n.º 12131/18.6T8LSB.L1.S1, Relatora Conselheira Maria do Rosário Morgado.
[11] Processo n.º 1610/19.8T8VNG.P1.S1, Relator Conselheiro Nelson Borges Carneiro.
[12] Processo n.º 252/19.2T8OAZ.P1.S1, Relator Conselheiro Júlio Gomes.
[13] Código de Processo Civil, anotado, volume 5º, página 143.
[14] Nos termos do artigo 12.º da NLAT, é nula a convenção contrária aos direitos ou garantias conferidos por essa lei ou com eles incompatível (n.º 1). São igualmente nulos os atos e contratos que visem a renúncia aos direitos conferidos nessa mesma lei (n.º 2).
[15] Nos termos do artigo 78.º da NLAT, os créditos provenientes do direito à reparação estabelecida nessa lei são inalienáveis, impenhoráveis e irrenunciáveis e gozam das garantias consignadas no Código do Trabalho.
[16] A questão da determinação da entidade responsável tem um tratamento específico na legislação processual laboral, estabelecendo o artigo 127.º, n.º 1, do CPT que, quando estiver em discussão a determinação da entidade responsável, o juiz pode, até ao encerramento da audiência, mandar intervir na ação qualquer entidade que julgue ser eventual responsável.
[17] Sobre esta matéria veja-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-12-2018, Relator Conselheiro Ribeiro Cardoso, processo n.º 620/16.1T8LMG.C1.S1.
[18] Até porque nos termos do artigo 5.º, n.º 3, do CPC 3 - O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.
[19] In Prontuário de Direito do Trabalho, Centro de Estudos Judiciários, n.ºs 74-75, Coimbra Editora, “Violação de regras de segurança e higiene no trabalho: perspetiva jurisprudencial, páginas 223-224.
[20] Cfr., entre outros, Acórdãos de 9-02-2017 (processo n.º 8228/03.5TVLSB.L1.S2, Relator Conselheiro Tomé Gomes), de 8-03-2022 (processo n.º 656/20.8T8PRT.L1.S1, Relatora Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza) e de 24-10-2023 (processo n.º 4689/20.6T8CBR.C1.S1, Relator Conselheiro Nuno Pinto Oliveira).
[21] Processo n.º 1321/20.1.T8OAZ.P1, relatado pelo Desembargador António Luís Carvalhão, aqui 1.º Adjunto.
[22] Inserindo-se no texto a nota de rodapé 21 do Acórdão em causa.
[23] In Manual de Processo Civil, 2.ª edição revista e atualizada, Coimbra Editora, Lda., pág. 436 e 437.
[24] Processo n.º 1166/20.9T8MTS.P1, Relator Desembargador Jerónimo Freitas.
[25] Veja-se, a título meramente exemplificativo: o Acórdão desta Secção Social de 13-07-2022, processo n.º 3642/20.4T8VFR.P1, Relatora Desembargadora Teresa Sá Lopes; os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 21-10-2009 (processo nº 272/09.5YFLSB, Relator Conselheiro Vasques Dinis), 12-03-2014 (processo n.º 590/12.5TTLRA.C1.S1, Relator Conselheiro Mário Belo Morgado), 28-01-2016, (processo nº 1715/12.6TTPRT.P1.S1, Relator Conselheiro António Leones Dantas), de 28-10-2021 (processo nº 4150/14.8T8VNG-A.P1.S1, Relator Conselheiro João Cura Mariano).
[26] Simples consulta no google na Wikipédia – nervo trigêmeo.
[27] Processo n.º 3533/20.9T8LRS.C1.S1, Relator Conselheiro Júlio Gomes.
[28] No mesmo sentido, Acórdão do STJ de 12-01-2023, processo n.º 4286/15.8T8LSB.L1.S.1, Relator Conselheiro Ramalho Pinto.
[29] Processo n.º 3024/19.0T8PNF.P1, Relator Desembargador Jerónimo Freitas.
[30] Processo n.º 2517/18.1T8PNF.P1, Relatora Paula Leal de Carvalho, hoje Juíza Conselheira, e no qual teve também intervenção como Adjunto o aqui 2.º Adjunto Desembargador Rui Penha.