CRIME DE FURTO QUALIFICADO
IMPRESSÃO DIGITAL
PROVA INDIRECTA
DIREITO AO SILÊNCIO
Sumário

I - A recolha de uma impressão digital no interior do veículo furtado, aposta num periférico essencial à condução, inexistindo outras e sem que ao arguido seja reconhecida qualquer razão para se introduzir naquele veículo permitem, por via direta, afirmar que esteve no interior do veículo e, indiretamente, que exerceu a condução e que o subtraiu ao domínio do seu proprietário.
II - As máximas da experiência, a chamada “experiência comum”, assente na razoabilidade e na normalidade das situações da vida, são isso mesmo, definem-se pelas situações padrão que, não havendo razões para que sejam postas em causas, devem defluir consequentemente na afirmação do facto e não na criação de dúvidas que as contrariem, em exercício meramente abstrato e com pressupostos contrários ao normal acontecer.
III - A possibilidade de se remeter ao silêncio e a qualidade de arguido não convocam a existência de um direito a que o Tribunal, em seu benefício, equacione uma miríade de hipóteses de explicação alternativa, criando uma dúvida insanável, quando tais hipóteses não sejam, em si mesmo, decorrências do normal acontecer, ante os dados conhecidos.

(Da responsabilidade do Relator)

Texto Integral

Proc. n.º 1147/22.8PCMTS.P1






Acordam em conferência na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I.

I.1
Nos autos de processo comum n.º 1147/22.8PCMTS, que correu termos no Juízo Local Criminal de ... – Juiz 3, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, por sentença de 13.06.2024 (Ref.ª 461142900), decidiu-se, além do mais, na improcedência da acusação, absolver o arguido AA da imputada prática de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos art.ºs 203.º e 204.º, n.º 1, al. a) do C.P.

*

I.2
Inconformado, veio o Ministério Público arguido interpor o recurso ora em apreciação (Ref.ª 39387738) referindo, em conclusões, o que a seguir se transcreve:
1. Nos presentes autos, o tribunal a quo decidiu não dar como provados os factos assim descritos em 1), 2) e 3) da sentença, considerando insuficiente a prova indiciária baseada no vestígio lofoscópico de impressão digital do polegar direito do arguido, no espelho retrovisor interior do veículo subtraído.
2. O tribunal a quo inferiu que a impressão digital no espelho retrovisor não permitia concluir necessariamente que o arguido subtraiu o veículo, porquanto poderia ter estado no seu interior a outro título.
3. Discordamos desta interpretação, pois a localização da impressão digital no espelho retrovisor, área de ajuste pelo condutor, indica claramente que o arguido conduziu o veículo.
4. Além disso, o período de tempo entre o furto do veículo e a sua recuperação, cerca de 24 horas, reforça a evidência de que o arguido foi o autor do crime.
5. A testemunha BB, apesar de afirmar que o veículo foi encontrado “passados 2 dias”, errou quanto ao tempo exacto, pois a viatura foi encontrada no dia 27.12.2022, pelas 11h40, cerca de 24 horas após o furto – cfr. aditamento n.º 1 elaborado pela Polícia de Segurança Pública.
6. A distância curta, de apenas 3 km, entre o local do furto e o local onde o veículo foi encontrado, é outro indício a favor da autoria do arguido.
7. A prova indirecta disponível nos autos deveria ter levado o tribunal a quo a considerar os factos como provados, pois não foi suscitada tese alternativa verosímil.
8. Nenhum outro vestígio lofoscópico foi encontrado no veículo, excepto o do arguido, reforçando a prova indirecta da sua autoria.
9. O tribunal a quo errou ao afirmar que apenas a impressão digital implicava o arguido no crime, desconsiderando outros indícios relevantes.
10. O silêncio do arguido não poderá prejudicá-lo, assim como não deverá beneficiá-lo, como acabou por ocorrer.
11. A certeza processual deve ser baseada na prova produzida e não em dúvidas abstratas geradas pelo tribunal, cabendo outro sim ao arguido fomentar essa dúvida, apresentando uma tese alternativa.
12. As regras da experiência comum, previsibilidade e normalidade do acontecer, orientam-nos contrariamente à decisão do tribunal a quo.
13. Quando se confirma que o arguido esteve no interior do veículo, a recuperação a poucos km do local original e o curto período de 24 horas indicam sua autoria.
14. A prova indirecta, que contém momentos de presunção ou inferência, pode igualmente justificar certeza bastante para fundar uma convicção positiva do Tribunal, desde que se assegure, na formação dessa convicção, uma valoração conjugada e coerente dos vários elementos indiciários a considerar, de forma motivada, objectivável e numa leitura que se afigure consentânea com as regras da experiência, como deveria ter sucedido in casu – cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10.01.2024, sob o processo n.º 887/21.3PAESP.P1, disponível em dgsi.pt.
Pelo exposto, deverá ser dado provimento ao presente recurso, sendo a sentença proferida substituída, na parte referente aos factos a), b) e c) dados como não provados, que deverão ser assentes com provados, tendo em consideração os elementos disponíveis a sustentar um juízo positivo em sede de prova indirecta e, em consequência disso, provados todos os factos da acusação pública, ser o arguido condenado pela prática de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203.º e 204.º, n.º 1 al. a) do Código Penal.
Desse modo, fazendo V. Exas. a acostumada justiça
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I.3
Admitido o recurso, por tempestivo e legal, o arguido AA apresentou articulado de resposta (Ref.ª 40105394), pugnando pela preservação do decidido.
Refere, em síntese, que a presença da impressão digital no espelho retrovisor não prova conclusivamente que o arguido conduziu o veículo, muito menos que o furtou. A impressão digital pode ter sido deixada em outras circunstâncias, inclusive com autorização do possuidor do veículo.
Por outro lado, a testemunha que encontrou o veículo errou quanto ao tempo decorrido desde o furto, criando dúvidas sobre a linha temporal dos eventos e a eventual ligação do arguido ao crime.
A proximidade entre o local do furto e onde o veículo foi encontrado não é prova suficiente da autoria do arguido, nem a ausência de outras impressões digitais no interior do veículo.
O arguido tem o direito constitucional ao silêncio do exercício do qual não podem ser extraídas consequências declarativas desfavoráveis. Gozando o arguido da presunção de inocência, a pretendida condenação exige provas robustas e inequívocas, não meras inferências ou suposições. Na dúvida, o princípio in dubio pro reo deve prevalecer, impondo a sua absolvição, o que foi concluído corretamente na decisão recorrida, em alinhamento com os princípios constitucionais da presunção de inocência e do direito ao silêncio.
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I.4.
Neste Tribunal a Digna Procuradora-Geral Adjunta teve vista nos autos, tendo emitido parecer (Ref.ª 1147/22.8PCMTS), manifestando-se pela procedência do recurso, subscrevendo a motivação do recurso da primeira instância.
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I.5
Deu-se cumprimento ao disposto no art.º 417.º n.º 2 do C.P.P., tendo o recorrido exercido contraditório, reiterando os fundamentos da sua pretensão (Ref.ª 404337), afirmando serem várias as justificações para a presença da impressão digital detetada.
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Foram os autos aos vistos e procedeu-se à conferência, importando, pois, apreciar e decidir.
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II.
Questões a decidir:
Conforme jurisprudência recorrente e pacífica, o âmbito de qualquer recurso é delimitado pelas conclusões que sobrevêm às alegações do recorrente, sem prejuízo do conhecimento, ainda que oficioso, dos vícios da decisão a que se alude no n.º 2 do art.º 410.º do C.P.P. (cfr. art.ºs 119.º, n.º 1, 123.º, n.º 2 e 410.º, n.º 2, als. a) a c) do C.P.P. e Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, de 19.10).
No caso, vistas as conclusões apresentadas em sede recursiva, constitui objeto do presente recurso apreciar da eventual existência de erro de julgamento.
*

III.
III.1
Por facilidade de exposição, retenha-se o teor da sentença posta em crise, na parte atinente à respetiva fundamentação de facto:
(…)
III. Fundamentação de Facto
Realizou-se audiência de discussão e julgamento com observância do legal formalismo prescrito por lei, tendo, em abono da verdade material resultado os seguintes
III.1.Factos provados
1) No dia 26 de dezembro de 2022, no período compreendido entre a 00h30 e as 7h00 da manhã, indivíduo não concretamente identificado dirigiu-se à Travessa ..., ..., ..., a fim de se apoderar de um dos veículos que ali encontrasse.
2) Ali chegado, o referido indivíduo, de forma não concretamente apurada, logrou introduzir-se no interior do veículo automóvel de marca ..., com matrícula ..-..-SR, no valor de €6.000,00 (seis mil euros), pertencente ao ofendido BB, que se encontrava estacionado naquele local.
3) O referido indivíduo, após conseguir pôr o veículo automóvel em funcionamento, colocou-se em fuga, fazendo sua a viatura em causa.
Com relevância para a decisão, ficou ainda provado que:
4) O ofendido recuperou a viatura acima identificada, após intervenção da Polícia de Segurança Pública, em 28 de dezembro de 2022.
Mais se apurou, quanto ao arguido que:
5) No período acima referido, vivia com a companheira, em união de facto, a filha menor do casal e a filha mais velha do arguido, atualmente, com 22 anos de idade.
6) A subsistência deste seu agregado familiar era assegurada, essencialmente, por apoios de cariz público.
7) Conservava um quotidiano centrado na problemática aditiva, mantendo consumos regulares de cocaína e heroína.
8) Nasceu e cresceu num agregado familiar de origem caraterizado como funcional e de vinculação afetiva.
9)Terminou o 8.º ano de escolaridade, aos 15 anos de idade, vindo a concluir o ensino secundário quando recluído.
10) Após o abandono escolar, começou a trabalhar como aprendiz de serralheiro, atividade que manteve em várias empresas durante seis anos, quando mudou para a área da construção civil, com posterior registo de desempenho irregular.
11) No final da adolescência, em contexto de grupo de pares, iniciou o consumo de estupefacientes, comportamento que, progressivamente, problematizou o seu estilo de vida, apresentando, desde então, períodos de abstinência interpolados com outros de recaída no consumo.
12) Contraiu matrimónio aos 19 anos de idade, contexto onde nasceu a filha do casal.
13) Após a separação do casal, AA estabeleceu novo relacionamento amoroso com a atual companheira, mãe da sua filha mais nova, atualmente, com 2 anos de idade.
14) Encontra-se recluído no Estabelecimento Prisional ... (Estabelecimento Prisional ...) desde 30/06/2023.
15) Em meio prisional, tem adotado comportamento de acordo com o normativo prisional.
16) Verbaliza ter cessado os consumos aquando da entrada no Estabelecimento Prisional ..., mantendo acompanhamento periódico em Psiquiatria.
17) Não exerce atividade laboral nem formativa.
18) Beneficia de visitas do ex-cônjuge, da atual companheira e das filhas.
19) Já foi condenado:
a. no âmbito do processo ... do extinto 2.º Juízo Criminal do Porto, por sentença transitada, pela prática em 22-6-1996 de um crime de detenção de arma proibida, na pena de 60 dias de multa;
b. no âmbito do processo ... do extinto 2.º Juízo Criminal de ..., por sentença transitada a 21-03-2001, pela prática de um crime de furto simples, na pena de 90 dias de multa;
c. no âmbito do processo ... do extinto 3.º Juízo Criminal de ..., por sentença transitada em 24-5-2002, pela prática de um crime de furto qualificado, na pena de dois anos de prisão suspensa por 2 anos e 2 meses;
d. no âmbito do processo ... do extinto 2.º Juízo Criminal do Porto, por sentença transitada a 27-9-2002, pela prática de um crime de furto qualificado, na pena de 1 ano de prisão suspensa por 4 anos;
e. no âmbito do processo ... do extinto 1.º Juízo Criminal, por sentença transitada a 18-10-2002, pela prática de um crime de abuso de confiança, na pena de 120 dias de multa;
f. no âmbito do processo ... do extinto 2.º Juízo Criminal de ..., por sentença transitada a 23-2-2007, pela prática de um crime de usurpação e um crime de detenção ilegal de arma, na pena única de 400 dias de multa, dos quais 200 de multa e 3 meses de prisão substituídos por multa e 150 dias de multa pela detenção ilegal de arma;
g. no âmbito do processo ... do extinto 2.º Juízo de Espinho, por sentença transitada a 1-7-2008, pela prática de um crime de contrafação, na pena de 190 dias de multa.
h. No âmbito do processo ... do extinto 2.º Juízo de Espinho, por sentença transitada a 04-06-2010, pela prática de um crime de contrafação, em 2006/09/16, na pena de 190 dias de multa;
i. No âmbito do processo ... do extinto 1.º Juízo Criminal de Vila do Conde, por sentença transitada em julgado em 03-04-2009, por um crime de aproveitamento de obra contrafeita, em 2005/10/21, na pena de 12 meses de prisão, suspensa por igual período e na pena de 200 dias de multa;
j. No âmbito do processo ... do extinto 2.º Juízo de Pequena Instância Criminal do Porto, por sentença transitada em julgado em 04-02-2010, por um crime de detenção de arma proibida, em 2009/11/04, na pena de 12 meses de prisão, substituída por 360 dias de multa;
k. No âmbito do processo ... do extinto 2.º Juízo Criminal de ..., por sentença transitada em julgado em 2010/02/04, pela prática de um crime de falsidade de testemunho, em 2009/01/13, na pena de 150 dias de multa;
l. No âmbito do processo ... do extinto 1.º Juízo Criminal de ..., por sentença transitada em julgado em 2011/06/29, por um crime de aproveitamento de obra contrafeita, em 2009/05/24, na pena de 250 dias de multa e 18 meses de prisão, suspensa na execução por igual período;
m. No âmbito do processo ... do extinto 2.º Juízo Criminal de ..., por sentença transitada em julgado em 2011/07/11, por um crime de aproveitamento de obra contrafeita, em 2006, na pena de 18 meses de prisão, suspensa por igual período, e 200 dias de multa;
n. No âmbito do processo ... do extinto 1.º Juízo Criminal de Vila Nova de Famalicão, por sentença transitada em julgado em 2011/09/16, por um crime de aproveitamento de obra contrafeita, em 2006/01/04, na pena de 10 meses de prisão, suspensa por 1 ano, e 200 dias de multa;
o. No âmbito do processo ... do JL Criminal de ... (J1), por sentença transitada em julgado em 2012/09/20, por um crime de burla, em 2010/06/07, na pena de 18 meses de prisão, suspensa por igual período;
p. No âmbito do processo ... do extinto 2.º Juízo Criminal de Viana do Castelo, por sentença transitada em julgado em 2013/03/05, por um crime de burla qualificada, em 2009/10/05, na pena de 2 anos, suspensa por igual período, sujeita a regime de prova;
q. No âmbito do processo ... do extinto 1.º Juízo de Vila Real, por sentença transitada em julgado em 2013/12/02, por um crime de burla qualificada, em 2009/09/03, por um crime de falsificação de documento, na pena de 18 meses de prisão, suspensa na execução por igual período, com condição de pagar ao ofendido a indemnização de €6.625,00 pelos danos patrimoniais e não patrimoniais que lhe causou.
r. No âmbito do processo ... do extinto 4.º Juízo Criminal de ..., por sentença transitada em julgado em 2014/01/24, por um crime de resistência e coação sobre funcionário, em 2012/11/11, na pena de 5 meses de prisão;
s. No âmbito do processo ... do extinto 3.º Juízo Criminal do Porto (1.ª Secção), por sentença transitada em julgado em 2014/03/28, por um crime de detenção de arma proibida, em 2012/09/04, na pena de 1 ano e 3 meses de prisão, suspensa na execução por igual período;
t. No âmbito do processo ... do extinto 1.º Juízo Criminal de ..., por acórdão de 2014/03/25, transitado em julgado em 2014/04/28, por seis crimes de roubo, em 2013/06/05, na pena de 3 anos e 8 meses de prisão;
u. No âmbito do processo ... do extinto 4.º Juízo Criminal de ..., por sentença transitada em julgado em 2014/05/05, por um crime de furto qualificado, em 2011/09/09, na pena de 25 meses de prisão;
v. No âmbito do processo ... do JC Criminal de Vila do Conde (J9), por acórdão de 2015/06/02, transitado em julgado em 2015/07/02, por quatro crimes de burla qualificada, em 2009/11 e 2009/08, na pena única de 5 anos de prisão;
w. No âmbito do processo ... do JL Criminal do Porto (J2), por sentença transitada em julgado em 2016/03/14, por um crime de falsificação de documento, em 2012/03/29, na pena de 18 meses de prisão;
x. No âmbito do processo ... do JC Criminal do Porto (J4), por acórdão datado de 2016/11/28, transitado em julgado em 2017/01/10, por um crime de falsificação de documento, em 2012/03/29, na pena de 6 anos de prisão, em cúmulo dos processos ..., ..., ..., ...,
y. No âmbito do processo ... do JC Criminal (J1), por acórdão dado de 2021/07/19, transitado em julgado em 2021/09/02, por um crime de tráfico de estupefacientes, em 2018/12/16, na pena de 3 meses de prisão, suspensa por 1 ano;
z. No âmbito do processo ..., do JC Criminal do Porto (J7), por acórdão datado de 2023/03/13, transitado em julgado em 2023/05/10, por um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, em 2021/12/31, na pena de 2 anos de prisão e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor por 8 meses.
III.2.Factos não provados
Com relevância para a decisão da causa, não se apuraram quaisquer outros factos, tendo resultado os seguintes factos não provados:
a) Foi o arguido que praticou os factos descritos de 1) a 3) supra.
b) O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que tal veículo não lhe pertencia e que atuava contra a vontade e sem o consentimento do seu proprietário.
c) Tinha, ainda, conhecimento que a conduta de se apoderar e conduzir o veículo em causa, sem o consentimento do seu proprietário, era proibida e punida pela lei penal.
III.3.Motivação
Na formação da sua convicção este Tribunal analisou de forma livre, crítica e conjugada a prova produzida em audiência de discussão e julgamento, de acordo com o preceituado no artigo 127.º do Código de Processo Penal.
O arguido esteve presente na audiência de discussão e julgamento, tendo optado por exercer o seu direito ao silêncio.
Em concreto, a nossa convicção relativamente aos factos provados resultou da valoração dos elementos documentais dos autos, conjugados com o depoimento da testemunha BB, ofendido nos autos.
Relativamente à prova documental, consideramos o teor:
- auto de denúncia fls. 3;
- aditamento n.º 1 de fls. 10 e 12;
- auto de entrega de fls. 11;
- relatório de inspeção judiciária de fls. 23;
- reportagem fotográfica de fls. 24 a 27;
- CRC do arguido emitido a 20/05/2024.
Mais se considerou o teor do relatório de exame pericial de fls. 31 a 35.
Enunciados os elementos probatórios a considerar, vejamos agora o exame crítico dos mesmos.
A factualidade dada como provada nos pontos 1) a 4) resulta da valoração conjugada do depoimento objetivo, isento e concretizado do ofendido. Descreveu a data, hora e o local onde deixou a sua viatura estacionada, identificando e indicando o seu valor, assim como a circunstância de no dia seguinte de manhã ter dado conta que a mesma já ali não se encontrava. Atestou pela queixa de apresentou, confirmando o teor do auto de denúncia de fls. 3, assim como a circunstância de lhe ter sido devolvida a viatura no dia 28 de dezembro seguinte, confirmando o teor do auto de entrega de fls. 11. Quanto ao estado da viatura, descreveu os danos eu a mesma tinha após a devolução, designadamente na ignição e no puxador da porta do condutor, o que também foi confirmado com base no teor da reportagem fotográfica de fls. 24 a 27.
Inexiste prova direta de que tenha sido o arguido o autor destes factos.
Vejamos, no entanto, se a mesma é suscetível de resultar da prova indireta.
Como se sublinha no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18 de janeiro de 2023 (proc. n.º 1197/07.4PBMTS.P1, in www.dgsi.pt) “(...) encontra-se consolidado o entendimento de que, para a prova dos factos em processo penal, é perfeitamente legítimo o recurso à prova indireta, também chamada prova indiciária, por presunções ou circunstancial. Portanto, tanto a prova direta, como a indireta ou indiciária são modos igualmente legítimos de chegar ao conhecimento da realidade do facto a provar, importando nesta as presunções simples, naturais ou hominis, simples meios de convicção que se encontram na base de qualquer juízo probatório.”.
A prova indireta assenta em dois elementos: o indício, facto instrumental provado, e a presunção, uma inferência efetuada a partir do indício, permitindo suportar um facto distinto, com apoio na experiência ou em regras da ciência.
Os indícios devem ser graves, precisos e concordantes.
Segundo Paolo Tonini, são graves os indícios que são resistentes às objeções e que, portanto, têm uma elevada capacidade de persuasão; são precisos quando não são suscetíveis de diversas interpretações, desde que a circunstância indiciante esteja amplamente provada; são concordantes quando convergem todos para a mesma direção (La prova penale, 4.a ed., Pádua, 2000, apud Eduardo Araújo da Silva, Crime Organizado-procedimento probatório, editora Atlas, São Paulo, 2003, pág. 157).
Como lapidarmente se consignou no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26/09/2012 (proc. 101/11.0PAVNO.S1, consultável em www.dgsi.pt): “A prova indiciária é suficiente para determinar a participação no facto punível se da sentença estiverem completamente demonstrados, por prova directa (requisito de ordem material), os indícios, que devem ser de natureza inequivocamente acusatória, plurais, contemporâneos do facto a provar e, sendo vários, devem estar interrelacionados de modo a que reforcem o juízo de inferência, que deve ser razoável, não arbitrário, absurdo ou infundado e respeitar a lógica da vida e da experiência.”.
Descendo ao caso dos autos, temos como seguro que entre 26/12/2022 e 28/12/2022, foi o arguido quem conduziu a viatura identificada na acusação.
Esta premissa resulta da valoração conjugada do teor do relatório de inspeção judiciária de fls. 23, da reportagem fotográfica de fls. 24 a 27 e do teor do exame pericial de fls. 31/35.
Destes resulta que foi o arguido deixou no interior da viatura subtraída uma impressão digital no espelho retrovisor interior.
Inexiste qualquer outro elemento suscetível de implicar o arguido na prática deste crime, com exceção de o mesmo residir, naquela data, na cidade do Porto.
Bastará isto para concluir que foi o arguido necessariamente o autor de tais factos?
Parece-nos que não.
Tal como preconiza o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 24/09/2019, acessível in www.dgsi.pt, “Na verdade, por um lado é de sublinhar a validade daquele meio de prova, ou seja, a recolha de vestígios (palmar e digital), acto contínuo à prática dos factos, logrando a identificação do recorrente como sendo a pessoa que ali deixou o vestígio palmar, o que reveste a natureza de prova pericial e, como tal, suportada em juízo técnico-científico (art. 151.º do CPP), com a especial relevância que o art. 163.º do CPP consagra.
Como método de investigação criminal, o relevo dessa recolha de vestígios radica na reconhecida circunstância das impressões digitais serem universais (porque comuns a todas as pessoas), permanentes (porque imutáveis desde que surgem, só desaparecendo com a putrefacção cadavérica), singulares ou inconfundíveis (porque únicas, jamais idênticas em dois indivíduos), indestrutíveis (porque não modificáveis, nem pela acção do sujeito, nem patologicamente, nem por falsificação) e mensuráveis (porque susceptíveis de comparação).
Em razão dessas características das impressões digitais, o valor probatório da perícia dactiloscópica deve ser encarado numa tripla perspectiva:
a) a aparição de uma impressão digital de uma pessoa faz prova directa do contacto dessa pessoa com o objecto onde foi detectada essa impressão;
b) mas, se a impressão digital faz prova directa do contacto dessa pessoa com o objecto onde foi detectada essa impressão, ou esteve no local onde foi colhida, já não faz prova directa da participação do sujeito no facto criminoso (até porque aquele contacto com a coisa pode ser posterior à pratica do crime ou meramente ocasional);
c) apesar de não fazer prova directa da participação do sujeito no facto criminoso, a impressão digital constitui um forte indício que, conjugado com outros indícios, pode fundamentar uma decisão condenatória.”.
Ora, a existência dessa impressão digital do arguido e o local onde a mesma está aposta (interior da viatura, no espelho retrovisor), associada ao desconhecimento que o ofendido (dono da viatura) tem do arguido, constitui indício de que o mesmo esteve no seu interior. Mas não necessariamente que a subtraiu. Admite-se como igualmente provável que nela tenha sido transportado, conduzindo-a ou não, sabendo ou não da sua prévia subtração.
Veja-se em sentido idêntico o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10/01/2024 (proc. 887/21.3PAESP.P1), consultável in www.dgsi.pt.
Assim, em face da insuficiência desta prova, resta dar como não provados os factos descritos de a) a c).
Os antecedentes criminais do arguido estão certificados no CRC atualizado e junto aos autos.
As suas condições pessoais resultam do relatório social junto.
*

(…)
*

III.2
Do erro de julgamento
Invoca o recorrente a existência de erro de julgamento quanto à matéria de facto, tendo a Mm. ª Juíza efetuado uma incorreta valoração da prova produzida pois que os meios de prova considerados, se devidamente apreciados, permitiriam a condenação do arguido.
No caso, considera incorretamente julgados os factos descritos em 1) a 3) dos factos não provados que, na sua ótica, deveriam transitar para os factos provados.
No entender do recorrente, o facto de ter sido encontrado vestígio lofoscópico no interior do veículo furtado permite concluir pela autoria do furto, tendo inclusivamente o Tribunal dado por assente, não só que o arguido esteve no interior do veículo mas, também, que o conduziu no período em que esteve subtraído à disponibilidade do seu proprietário.
Vejamos, então, começando por estabelecer os parâmetros da sindicância a que se procede.
Como é consabido, o julgamento da matéria de facto, em primeira instância, é efetuado segundo o princípio da imediação – possibilitando o contacto direto e pessoal entre o julgador e a prova, tangível ao (e próprio do) juiz a quo – sendo “(…) as provas apreciadas por quem assistiu à sua produção, sob a impressão viva colhida nesse momento e formada através de certos elementos ou coeficientes imponderáveis, mas altamente valiosos, que não podem conservar-se num relato escrito das mesmas provas” [Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português – Do Procedimento, Univ. Católica Ed., pág. 212]. Além disso, o julgamento da matéria de facto far-se-á segundo o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art.º 127.º do C.P.P., interpretado, não num sentido que desonere o julgador de justificar o seu raciocínio e percurso interior para chegar à afirmação do facto ou à sua desconsideração – caso em que, como adianta o recorrente, falaríamos de arbítrio - mas, apenas, no sentido de que o valor a atribuir a determinado meio de prova não é tarifado ou vinculado (salvo as exceções consignadas na lei), orientando-se o julgador de acordo com os ditames da lógica e da experiência, podendo, por exemplo, atribuir relevância a um depoimento em detrimento de vários e mais numerosos de sinal contrário, desde que o justifique, já que, na esteira do afirmado por Bacon, os depoimentos não se contam, pesam-se.
A convicção do Tribunal é, reforça-se, formada livremente, de acordo com as regras da experiência, enquanto postulados decorrentes da observação social e dos conhecimentos da técnica e da ciência. A afirmação positiva dos factos deverá fazer-se, não por razões ou argumentos puramente subjetivos e insindicáveis, mas sim concluindo-se através de uma “(…) valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, permitindo “objetivar a apreciação” [Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. II, Verbo 1993, pág. 111 a propósito da definição do conceito de livre apreciação da prova.].
Destarte, se a decisão do Tribunal recorrido se ancorar numa fundamentação compreensível, com as naturais opções próprias efetuadas com permissão da razão e das regras da experiência comum e a coberto da caraterizada livre apreciação, cumprir-se-á o necessário dever de fundamentação.
Naturalmente, qualquer dos sujeitos processuais destinatários da decisão poderá discordar do juízo valorativo assim firmado. Ou porque entende que outro meio de prova se sobreporia, ou porque outro, que foi valorado, seria, para si, no caso, suficiente mas, lembre-se, o poder de valorar a prova e de se determinar de acordo com essa avaliação pertence ao ente imparcial e constitucionalmente designado para a função de julgar: - o Tribunal.
Aqui chegados, a decisão da matéria de facto – com a qual o recorrente expressa forte dissídio – só pode ser sindicada, em sede de recurso, por duas vias distintas:
- Por verificação dos vícios previstos no art.º 410.º, n.º 2, do C.P.P., a denominada revista alargada que, a proceder, deflui na realização de um novo julgamento, total ou parcial, apenas excecionalmente o podendo fazer o próprio tribunal superior (art.ºs 426.º, n.º 1, 430.º, n.º 1, e 431.º, als. a) e c), do C.P.P.);
- Através da impugnação ampla, prevista no art.º 412.º, n.ºs 3, 4 e 6 do C.P.P., com eventual correção do decidido pelo tribunal superior (cfr. art.º 431.º, al. b), do C.P.P.).
No primeiro caso, o substrato para a verificação do(s) vício(s) deverá colher-se no texto da própria decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, sem recurso a elementos externos (designadamente probatórios) concretizando-se na (i) insuficiência dos factos provados para suportar a correlativa decisão de direito (o que não pode confundir-se com uma putativa insuficiência das provas para alicerçar a decisão de facto), na (ii) contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão (entre os factos provados e não provados, entre si ou uns com os outros, ou entre aqueles e a motivação, ou ainda nesta mesma) e (iii) o erro notório na apreciação da prova (ante o padrão do homem médio e evidente a partir do escrutínio do texto da decisão) (cfr. art.º 410.º, n.º 2, als. a), b) e c) do C.P.P.), vício que, neste contexto, não se verifica quando a fonte da discordância resultar, tão só, da não conformação com a versão acolhida pelo Tribunal que, aos olhos do recorrente, deveria ter sido distinta.
Na segunda hipótese e evidenciada no caso sub judice – impugnação ampla – a sindicância pode envolver o próprio processo e resultado da formação da convicção do julgador sobre a prova produzida, designadamente a suficiência ou insuficiência desta para a materialidade considerada, a capacidade e a segurança do convencimento que emerge dos meios de prova a valorar, seja à luz dos critérios legais da avaliação (art.º 127.º do C.P.P.), seja sob o espectro das disposições sobre prova vinculada.
Em síntese, no caso da denominada impugnação restrita, tendo por fundamento os vícios decisórios, apenas se consente o escrutínio da sentença na sua literalidade e sob o espartilho apontado supra. Já no caso da impugnação ampla, esta já pode visar o próprio juízo decisório revidendo, a sua verosimilhança e consistência, no cotejo com a prova produzida. Porém, ainda assim e nesta última hipótese, não se tratará, aqui, de um novo julgamento, sobreposto ao realizado em primeira instância e que usufruiu do aporte irrepetível oferecido pela oralidade e imediação. A impugnação, ainda que ampla, constitui, tão só, o remédio jurídico apropriado para a deteção de eventuais erros in judicando ou in procedendo, considerando o exame crítico da prova efetuado na primeira instância que está, naturalmente, vinculado a critérios objetivos, jurídicos e racionais e sustentado nas regras da lógica, da ciência e da experiência comum, sendo por isso mister que se demonstre a impossibilidade lógica e probatória da valoração seguida e a imperatividade de uma diferente convicção.
Mais.
No caso da impugnação ampla, - em que a atividade do Tribunal de recurso não se restringe ao texto da decisão, expandindo-se à análise da prova concretamente produzida em audiência de julgamento e devidamente registada – o juízo de apreciação e conformidade far-se-á de acordo com os limites fornecidos pelo recorrente e decorrentes do cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do art.º 412.º do C.P.P.. Ou seja, sempre que o recorrente vise impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto deve especificar (i) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; (ii) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; (iii) As provas que devem ser renovadas, ao que acresce que “Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas (…) fazem-se por referência ao consignado na ata (…) devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação. Em epítome e em tese geral, não bastará ao recorrente configurar hipóteses decisórias alternativas, da sua conveniência ou modo de ver, mais ou menos compagináveis com a prova produzida, sendo ainda necessário que a eventual insuficiência da prova para a decisão da matéria de facto que foi tomada, ou, na proposta de apreciação alternativa, a prova que foi produzida, imponham, como conclusão lógica, uma decisão distinta e, em concreto, aquela que na argumentação de recurso se defende.
Neste último aspeto referido importa reforçar que não basta a afirmação do dissídio, a apreciação crítica do decidido ou a asseveração de considerandos ou propostas de decisão alternativa. Antes, impõe-se ao recorrente um dever de fundamentação que torne evidente que as provas indicadas impõem decisão diferente, com o mesmo grau de argumentação e convencimento que é exigível ao julgador para fundamentar os factos provados e não provados, só assim se percebendo qual o raciocínio seguido para se poder afirmar que o mesmo impõe decisão diversa da recorrida [cfr., neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica, 2ª Edição, fls. 1131, notas 7 a 9, em anotação ao artigo 412º, do Código de Processo Penal].
Dito isto e avançando.
Os factos que, na ótica do recorrente, se mostram, neste segmento, incorretamente julgados prendem-se, exclusivamente, com a afirmação da autoria dos eventos ocorridos com significância criminal.
Em resumo e esquematicamente, o Tribunal a quo laborou com a seguinte linha de raciocínio:
- Tendo em conta a impressão digital recolhida no espelho retrovisor interior do veículo subtraído concluiu-se que “foi o arguido quem conduziu a viatura identificada na acusação e que o arguido deixou no interior da viatura subtraída uma impressão digital no espelho retrovisor interior”.
Porém
- “a existência dessa impressão digital do arguido e o local onde a mesma está aposta (interior da viatura, no espelho retrovisor), associada ao desconhecimento que o ofendido (dono da viatura) tem do arguido, constitui indício de que o mesmo esteve no seu interior. Mas não necessariamente que a subtraiu. Admite-se como igualmente provável que nela tenha sido transportado, conduzindo-a ou não, sabendo ou não da sua prévia subtração”.
Vejamos, pois.
Na ausência de prova direta quanto à autoria do furto, é precisamente contra a interpretação/valoração que o Tribunal fez da prova pericial existente e consequências que daí extraiu que o recorrente se insurge, dissidindo do Tribunal a quo e propondo a sua suficiência, enquanto premissa para a conclusão a obter, sendo este o elemento de prova que, a seu ver, se tivesse sido convenientemente interpretado, imporia decisão diversa.
A questão sujeita a apreciação prende-se, então, com a (in)suficiência, no caso, da prova pericial e das inferências daí extraídas para a afirmação da autoria do arguido relativamente ao crime de furto versado nos autos.
Como o relator deste acórdão já teve oportunidade de referir no acórdão invocado pelo recorrente nas suas alegações, a prática criminal, para que, na perspetiva do agente, possa ser bem sucedida ocorre, não raras vezes, às ocultas – sendo o furto um exemplo paradigmático disso - procurando-se formas de atuação ilusivas e que dificultem o estabelecimento da ligação entre os sinais objetivos da ocorrência de um crime e o seu autor (ou autores). Destarte, se a tarefa de reconstituição da verdade não pudesse combinar, no processo, elementos circunstanciais e indiretos, dificilmente poderia construir-se um juízo valorativo consistente e defluente numa eventual condenação fora dos casos de confissão do agente ou de crimes praticados perante testemunhas.
Assim, não raras vezes, terá o julgador de louvar-se em elementos indiciários/probatórios obtidos por via indireta, consequentemente envolvendo presunções obtidas por via judicial.
Como refere o Conselheiro Santos Cabral [in Prova indiciária e as novas formas de criminalidade, disponível em www.stj.pt], “(…) é clássica a distinção entre prova directa e prova indiciária. Aquela refere-se aos factos probandos, ao tema da prova, enquanto a prova indirecta, (…), se refere a factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação quanto ao tema da prova (v.g., uma coisa é ver homicídio e outra encontrar o suspeito com a arma do crime). Na prova indiciária, mais do que em qualquer outra, intervêm a inteligência e a lógica do juiz. A prova indiciária pressupõe um facto, demonstrado através de uma prova directa, ao qual se associa uma regra da ciência, uma máxima da experiência ou uma regra de sentido comum. Este facto indiciante permite a elaboração de um facto consequência em virtude de uma ligação racional e lógica (v.g., a prova directa – impressão digital – colocada no objecto furtado permite presumir que o seu autor está relacionado com o furto; da mesma forma, o sémen do suspeito na vítima de violação). (…). Por qualquer forma é incontornável a afirmação de que a gravidade do indício está directamente ligada ao seu grau de convencimento: é grave o indício que resiste às objecções e que tem uma elevada carga de persuasividade como ocorrerá quando a máxima da experiência que é formulada exprima uma regra que tem um amplo grau de probabilidade. Por seu turno é preciso o indício quando não é susceptível de outras interpretações. Mas sobretudo, o facto indiciante deve estar amplamente provado ou, como refere Tonini corre-se o risco de construir um castelo de argumentação lógica que não está sustentado em bases sólidas. Por fim os indícios devem ser concordantes, convergindo na direcção da mesma conclusão facto indiciante. (…).” (sublinhado nosso).
Também como se escreve no acórdão desta Relação de 18.03.2015 [proc. n.º 400/13.6PDPRT.P1, Rel. Neto de Moura, acedido em www.dgsi.pt], a propósito do papel preponderante, da atendibilidade e da valoração da prova indireta, “I – Quer a prova direta, quer a prova indireta são modos, igualmente legítimos, de chegar ao conhecimento da realidade (ou verdade) do factum probandum. II – Em processo penal são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei (art. 125.º do Cód. Proc. Penal), pelo que não pode ser excluída a prova por presunções (art. 349.º do Cód. Civil), em que se parte de um facto conhecido (o facto base ou facto indiciante) para afirmar um facto desconhecido (o factum probandum) recorrendo a um juízo de normalidade (de probabilidade) alicerçado em regras da experiência comum que permite chegar, sem necessidade de uma averiguação casuística, a um resultado verdadeiro. III – O sistema probatório alicerça-se em grande parte neste tipo de raciocínio (indutivo) e, para certos factos, como sejam os relativos aos elementos subjetivos do tipo (doloso ou negligente), não havendo confissão, a sua comprovação não poderá fazer-se senão por meio de prova indireta. IV – A prova indiciária é suficiente para determinar a participação no facto punível se da sentença constarem os factos-base (requisito de ordem formal) e se os indícios estiverem completamente demonstrados por prova direta (requisito de ordem material), os quais devem ser de natureza inequivocamente acusatória, plurais, contemporâneos do facto a provar e, sendo vários, devem estar interrelacionados de modo a que reforcem o juízo de inferência.”
Em síntese, neste capítulo, a prova indireta, que contém momentos de presunção ou inferência, pode igualmente justificar certeza bastante para fundar uma convicção positiva do Tribunal, desde que se assegure, na formação dessa convicção, uma valoração conjugada e coerente dos vários elementos indiciários a considerar, de forma motivada, objetivável e numa leitura que se afigure consentânea com as regras da experiência.
Dito isto, as razões do recorrente, como vimos, reconduzem-se à sustentação de que a existência de vestígios lofoscópicos do arguido no veículo subtraído possibilita o estabelecimento da sua autoria e o erro de julgamento detetado consistiria em tê-la desvalorizado.
Visto o teor da motivação da decisão de facto e analisado o iter seguido pelo Tribunal, considerando o texto da decisão, para efeitos de apreciação oficiosa e tendo em conta o estatuído no n.º 2, al. c) do art.º 410.º do C.P.P., o entendimento expresso não configura qualquer erro que possa ser categorizado de notório, porquanto só assumirá tal caraterística aquele que, pela sua evidente contrariedade com a lógica, com a razão, com as regras do conhecimento científico, se desvele imediatamente ante um observador munido de capacidades médias de avaliação o que, naturalmente, não sucede quanto ao concreto valor dos vestígios lofoscópicos ponderado na motivação, com alinhamento de critérios gerais que são, pelo menos na aparência, razoáveis.
Resta, então, saber se, mediante a apreciação conjunta daquela prova direta (vestígios lofoscópicos), dos dados circunstanciais que o julgador lhes juntou e das inferências que fez se pode concluir se a decisão em matéria de facto foi acertada ou errada, atividade que envolve matéria de impugnação ampla, nos termos do art.º 412.º, n.ºs 3, 4 e 6, do C.P.P.
No contexto assinalado e sindicando a valoração de suporte à condenação, tendo em atenção a concreta localização do vestígio recolhido e correspondente ao polegar da mão direita do recorrente, no que tange ao exercício da condução, começamos por adiantar que não é só na aparência, como acima referimos, que se mostram razoáveis os critérios alinhados pelo tribunal recorrido (excluídos os elementos referentes aos antecedentes) para contextuar a valoração dos vestígios lofoscópicos e, a partir deles e das circunstâncias, chegar indirectamente à prova da autoria da condução sem habilitação legal.
Efetivamente, do relatório de análise dos vestígios recolhidos (Ref.ª 36613459), resulta inequívoca a existência das impressões digitais deixadas no espelho retrovisor interior do veículo, (polegar da mão direita) sendo detetados 13 pontos coincidentes o que equivale a um juízo pericial de certeza, excluído à livre apreciação: - aquela impressão digital é, inequivocamente, do arguido e, por conseguinte, este tocou naquele objeto, colocando-o no interior do veículo furtado e em contacto com um dos dispositivos necessários e imprescindíveis para o exercício da condução automóvel.
Como se pode ler no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 25.01.2010 [proc. n.º 300/04.0GBBCL.G2, Rel. Cruz Bucho, disponível em www.jurisprudencia.pt] e a propósito das impressões digitais, “(…) É sabido que a importância e transcendência deste método de identificação criminal radica na circunstância de as impressões digitais serem:
· Universais, porque comuns a todas as pessoas
· Permanentes, porque são imutáveis desde que surgem no 4º mês de vida intra-uterina só desaparecendo com a putrefacção cadavérica (existem, porém, referências científicas no sentido de o desenho das impressões palmares pode sofrer e revelar a interferência de determinados estados mórbidos, como sejam, para além da lepra, o erctema toxicum bullosum, a hiperhidrose, o queratoma palmar de eczema tyloticum, o noevus verucosum striatus, o raquitismo, o nanismo, aacromegalia, a hemiplagia, o panarício a radiomermite, a esclerodermia com esclerodactilia, a acrocefalia-sindactilia e a ectodactilia- cfr. Pinto da Costa, Impressões Digitais: contribuição para o seu estudo médico-legal, Porto, 1972, págs. 387 e 385);
· Singulares ou inconfundíveis, porque únicas: jamais são idênticas em dois indivíduos, não havendo, de resto, duas impressões digitais iguais feitas por dedos diferentes (nos finais do século XIX, mais concretamente na década de 1890, o cientista britânico Francis Galton demonstrou que a probabilidade de a impressão digital de um dedo de uma pessoa ser exactamente igual à impressão do mesmo dedo de outra pessoa era de um para sessenta e quatro mil milhões. Esta demonstração probabilística foi posteriormente popularizada em 1924, com a frase da autoria de J. A. Larson “não há duas impressões digitais iguais”);
· Indestrutíveis, porque não são modificáveis, nem pela acção do sujeito nem patologicamente; nessa medida, não podem ser falsificadas;
· Mensuráveis, porque susceptíveis de comparação.
(…) Em função daquelas características das impressões digitais, o valor probatório da perícia dactiloscópica deve ser encarado numa tripla perspectiva
a) A aparição de uma impressão digital de uma pessoa faz prova directa do contacto dessa pessoa com o objecto onde foi detectada aquela impressão. Devido à grande fiabilidade da prova dactiloscópica impõe-se, porém, especiais cuidados na sua recolha [quem efectuou a recolha e quando, por ordem de quem, em que objecto e lugar se encontrava depositada, e especificamente em que zona (vidro exterior ou interior) e na sua transmissão (não estando, naturalmente afastada a existência de erro do perito na comparação)].
b) Mas se a impressão digital faz prova directa do contacto dessa pessoa com o objecto onde foi detectada aquela impressão ou esteve no local onde foi colhida, já não faz prova directa da participação do sujeito no facto criminoso (até porque aquele contacto com a coisa pode ser posterior à pratica do crime ou meramente ocasional).

c) Embora não faça prova directa da participação do sujeito no facto criminoso, a impressão digital pode ser encarado como um indício que, conjugado com outros indícios, pode fundamentar uma decisão condenatória. (…)”.
Assim sendo, existe prova direta da permanência do recorrido no interior do veículo subtraído, conclusão, aliás, assumida em sede de motivação da decisão de facto contida na sentença impugnada.
Por outro lado, tendo em conta o objeto de onde foi extraída - espelho retrovisor interior - a sua localização é própria e caraterística do movimento de posicionamento e acomodação daquele objeto à pessoa, gosto e estatura do condutor permitindo, por via indireta e com a necessária segurança, a afirmação de que o arguido, autor da impressão, esteve no banco do condutor, ato próprio do exercício da condução, não sendo convocáveis, com propriedade, regras de experiência ou hipóteses alternativas como o transporte. É que se o arguido tivesse sido transportado no banco traseiro ou no banco do passageiro da frente, inexistiria impressão no espelho retrovisor, no primeiro caso, ou seria da mão esquerda, no segundo.
Assim, a afirmação, por via indireta, de que exerceu a condução funda-se, a nosso ver, em critérios de lógica e da experiência, numa regra de sentido comum, sem a mínima entorse, nenhuma explicação alternativa existindo que seja minimamente plausível, não tendo sido encontrados outros vestígios de outros indivíduos compatíveis com a condução e situando-se, como se disse, a impressão num periférico essencial ao exercício dessa condução.
Por outro lado, o local do furto e o da recuperação do veículo são compatíveis com o lugar de residência do arguido. Não há, neste ponto, o surgimento de qualquer contraindício que crie escolhos à interpretação trazida pelo recorrente, como, por exemplo, o recorrido residir noutro local do território que tornasse improvável a sua presença.
Tendo o arguido estado, seguramente, no interior do veículo e exercido a condução, também entendemos possível a inferência da autoria contestada.
Visto o relatório da inspeção judiciária realizada ao veículo, o mesmo tinha a fechadura da porta do condutor arrombada, bem como estroncado o canhão da ignição (fotos 3 e 4), indícios claros da ocorrência do furto e do deslocamento do veículo contra a vontade do proprietário.
Por outro lado, como resulta dos elementos documentais considerados em sede de motivação da decisão de facto – cfr. aditamento n.º 1 – Ref.ª 34267806 – o veículo foi recuperado no dia 27 de dezembro de 2022, pelas 11h40, embora possa, naturalmente, ter sido devolvido ao proprietário no dia seguinte (cfr. termo de entrega dessa data). Assim sendo, entre o momento da subtração e o da localização decorreram pouco mais de 24 horas (31h10 na hipótese mais dilatada e 28h10m na mais reduzida), diminuindo a verosimilhança de qualquer explicação concorrente para a presença da impressão digital do recorrido no interior do veículo.
À validade da inferência contrapõe o Tribunal a quo e reitera o arguido que pelo hiato verificado, sem custódia, a impressão pode decorrer de qualquer outra circunstância ocasional: - “Admite-se como igualmente provável que nela tenha sido transportado, conduzindo-a ou não, sabendo ou não da sua prévia subtração”.
Discordamos.
Como já referimos neste género de situação, a criação de contraindícios razoáveis e que infirmem o juízo estribado em prova indireta ou a impossibilidade de afirmação de uma regra de sentido comum pressupõe a sua plausibilidade. O Tribunal não terá, ele próprio, que gerar dúvidas que não tenham sido trazidas ao objeto do processo ou que não decorram, naturalmente, das regras da experiência. Ora, inexiste qualquer elemento gerador de escolho na afirmação da autoria porquanto não há qualquer razão minimamente plausível para que o arguido tenha entrado no veículo e aí deixado ocasionalmente a sua impressão digital. Não há regra de experiência ou de sentido comum que obrigasse o Tribunal a equacioná-la e relacionada com a entrada ocasional num veículo alheio, exceto, por exemplo, se se tratasse de um táxi, frequentado por múltiplas pessoas estranhas ao proprietário sendo que, no caso, era até visível a quem exercesse a condução o estroncamento da ignição. No plano concreto, nem era um veículo afeto àquele serviço nem foram detetadas, no interior, outras impressões, sendo que, a recolhida, se situava, exatamente, em local compatível com a condução (e não com o transporte).
Revestindo a prova dactiloscópica a natureza de prova pericial, o juízo técnico-científico inerente a tal perícia presume-se, por isso, subtraído à livre apreciação do juiz, devendo a divergência ser fundamentada (art.º 163.º, n.ºs 1 e 2 do C.P.P.).
Ora, existindo prova direta do contato do arguido com o interior do veículo automóvel (e não, por exemplo, uma impressão palmar em painéis externos), num veículo com as fechaduras estroncadas, em momento próximo à sua retirada do local e sendo a impressão recolhida em objeto caraterístico e próprio do exercício da condução, ao que acresce a inexistência de contraindícios, declarados ou por decorrência de critérios de experiência que enfraqueçam o juízo valorativo, a afirmação da autoria do furto afigura-se-nos legítima impondo, por isso, decisão diversa.
Embora, como se viu, aquele vestígio não comprove, em termos diretos, a participação do recorrente no evento é, porém, um indício de tal participação. Pelas caraterísticas e localização da recolha do vestígio esta não é compatível como emergência de um contato ocasional não relacionado - por forma a que, pelo menos lançasse qualquer dúvida no espírito do julgador quanto ao facto de ter sido ou não, o autor do crime – inexistindo razões plausíveis para que outrem, que não ele, o tenha subtraído sabendo, naturalmente, que não lhe pertencia e sendo evidente o conhecimento da proibição da conduta.
Sabemos que o arguido se remeteu ao silencio sem que tal direito o possa desfavorecer. Porém, não sendo impostos ónus ao arguido e essencialmente quanto ao afastamento da sua responsabilidade em determinado evento criminoso, o silêncio, ante determinado quadro probatório, também não terá necessariamente de o favorecer. Ou seja, pelo silêncio não pode o Tribunal criar, motu proprio, uma miríade de hipóteses para a criação de contraindícios ou dúvidas fora do imediatismo daquelas que, pelas razões da experiência, são naturais em determinada situação concreta.
Por exemplo se a impressão digital é recolhida no exterior de um veículo automóvel é, efetivamente, um local exposto, livremente acessível, permeável e suscetível ao contato inocente de qualquer transeunte. Bastaria que alguém ali se tivesse momentaneamente apoiado. Já o contacto no interior e no local concreto onde foi extraída a impressão coloca, indubitavelmente, o arguido naquele local e o Tribunal, ante a ausência de explicação, não terá, ele próprio, que aventar hipóteses que não advieram da discussão da prova e do objeto do processo nem são, elas próprias, decorrências da normalidade. O Tribunal não terá, por si, que equacionar a hipótese de o arguido ter sido levado à força ou sob hipnose para o interior, apondo o seu polegar no espelho ou procurado ali local de pernoita ou que tenha conduzido o veículo fornecido por outrem (com o canhão da ignição estroncado), desconhecendo a sua proveniência, quando o pretenso “outrem” impressão alguma deixa no veículo. Quer porque nada disso foi referido, quer porque tais eventos não são regras de experiência.
Se, em caso de homicídio doloso, em que a vítima é sucessivamente baleada na cabeça a curta distância e se posteriormente se recupera uma arma que, através de análise perícial de balística, se determina ter disparado os projeteis recuperados e essa mesma arma contém impressões digitais no gatilho e no punho de determinada pessoa, embora o portador das impressões possa remeter-se ao silêncio, certamente não constituirá a melhor estratégia. Não terá o Tribunal que equacionar se alguém lhe colocou a arma na mão ou se, posteriormente ao crime, andou a efetuar disparos.
Se é recolhido vestígio biológico e estabelecido um perfil de ADN ou recolhida impressão digital numa montra de um estabelecimento assaltado, constante de produtos equivalentes aos subtraídos, não terá o Tribunal, na ausência de elementos que criem essa convicção, de equacionar a possibilidade de o suspeito ali ter entrado, através do vidro quebrado e acedendo à montra movido pela curiosidade de vasculhar os produtos em desarranjo. Se o mesmo tipo de indícios forem encontrados no interior de uma casa assaltada, com cujo proprietário o suspeito não tem qualquer tipo de relação, também não terá o Tribunal de criar contraindícios aventando a hipótese de o suspeito ali ter penetrado a convite do verdadeiro assaltante, se nada o relaciona com o espaço nem há vestígios de outros potenciais comparticipantes. Não terá de fazê-lo, não porque, se o não fizer, viola o princípio in dubio pro reo mas porque, perante os dados fornecidos pelo evento, não há nenhuma regra de experiência que possibilite cogitar tais hipóteses alternativas.
As máximas da experiência, a chamada “experiência comum”, assente na razoabilidade e na normalidade das situações da vida, são isso mesmo, definem-se pelas situações padrão que, não havendo razões para que sejam postas em causas, devem defluir consequentemente na afirmação do facto e não na criação de dúvidas que as contrariem, em exercício meramente abstrato e com pressupostos contrários ao normal acontecer.
Também em caso de furto, naturalmente praticado às ocultas, a recuperação posterior do objeto furtado – por hipótese um automóvel - contendo no seu interior impressões digitais de um estranho às relações do proprietário, certamente implicará que o titular de tais impressões forneça algum tipo de explicação (sem que daqui se retire um ónus) dado o valor identificativo da impressão digital na relacionação com o evento, mais forte, até, do que o depoimento de uma testemunha, dado que a impressão digital é cientificamente exata e o depoimento pode sofrer algum engulho quanto à certeza de uma identificação positiva posterior.
Cumpre até perguntar que melhor prova se pode obter, para a afirmação de uma autoria, fora os casos de confissão, do que a existência de impressões digitais em local que, em circunstâncias normais e conhecidas, é apenas acessível ao putativo autor do furto?
O arguido, enquanto sujeito processual, não tem obviamente de provar que não furtou, como nos parece de meridiana clareza, nem esse ónus (como já se aludiu) lhe é imposto na procedência da posição sufragada. O arguido goza do direito ao silêncio, como decorrência da presunção de inocência e concretização do princípio nemo tenetur se ipsum accusare.
É certo que, entre nós, não tem tido qualquer acolhimento a possibilidade, admitida pelo T.E.D.H. de, em circunstâncias excecionais, o tribunal poder retirar ilações do silêncio do arguido, o que implicaria, sempre, conferir-lhe efeito declarativo.
Aliás, o art.º 343.º, n.º do C.P.P. proíbe expressamente que o juiz atribua ao silêncio do arguido qualquer significado probatório desfavorável para o estabelecimento da culpabilidade.
Porém, tal proibição - quando o arguido, pelo exercício do direito ao silêncio, privou o Tribunal de uma informação que só ele conheça e que até poderia favorecê-lo (designadamente criando dúvidas) – não é excludente da possibilidade de, reflexamente, se traduzir num desfavorecimento objetivo, impedindo o afastamento da culpabilidade emergente de outras provas que assim não contradita [Cfr., neste sentido, Manuel Soares, Proibição de Desfavorecimento do Arguido em Consequência do Silêncio em Julgamento – A Questão Controversa das Ilações Probatórias Desfavoráveis, in Revista Julgar n.º 32, 2017, pág. 31].
Na sobredita hipótese, como se escreve no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28.05.2019 [proc. 520/16.5PAMTJ.L1-9, Rel. Filipa Costa Lourenço, acedido em www.dgsi.pt] “Não se trata de uma consequência probatória do silêncio mas apenas do resultado inevitável de o tribunal não poder considerar circunstâncias que desconhece. (…). O arguido não pode esperar que o seu silêncio reforce a presunção de inocência, anulando o valor das outras provas demonstrativas da culpabilidade. Pode manter-se em silêncio sem que tal atitude o desfavoreça, mas não pode pretender que daí surja um agravamento do ónus da prova imposto ao Ministério Público ou um especial direito à absolvição com base no princípio in dubio pro reo.”.
Efetivamente, a possibilidade de se remeter ao silêncio e a qualidade de arguido não convocam a existência de um direito a que o Tribunal, em seu benefício, equacione uma miríade de hipóteses de explicação alternativa, criando uma dúvida insanável, quando tais hipóteses não sejam, em si mesmo, decorrências do normal acontecer, ante os dados conhecidos.
Embora a autoria do recorrido não seja um facto que possa estabelecer-se diretamente em prova que imediatamente o verse, resulta, apesar de tudo, indireta mas seguramente, da prova sobre outros factos e das inferências que se permite, a partir destes, fazer-se, sem que possa dizer-se que o encadeamento de razões aduzidas pelo Ministério Público seja demasiado extenso, especulativo ou débil para que, assim, se compatibilize com o grau de certeza que uma condenação criminal exige.
Mais uma vez, sem impor ao arguido a demonstração do contrário, não surgiu no âmbito da discussão da causa qualquer outra explicação plausível para o sucedido nem esta é evidente a partir das regras da lógica ou da afirmação de uma regra de senso comum. Não existe nenhuma máxima da experiência, a ponderar inelutável e oficiosamente, que afirme que o(s) autor(es) de furto(s), geralmente, podem emprestar os veículos furtados a terceiros para que, nas horas subsequentes à ocorrência, estes os possam conduzir, aí deixando as suas impressões digitais, curiosamente não as deixando o putativo autor da subtração.
Concluímos, pois, como defende o recorrente, que os factos contestados transitem para os factos provados.
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III.3
Das consequências do decidido na decisão recorrida
Em decorrência do que acima se expôs, os factos não provados mencionados em a) a c), pelos fundamentos consignados, transitam para o elenco dos factos provados que, por incorporação passam, na parte alterada, a ter a seguinte redação:
1) No dia 26 de dezembro de 2022, no período compreendido entre a 00h30 e as 7h00 da manhã, o arguido AA dirigiu-se à Travessa ..., ..., ..., a fim de se apoderar de um dos veículos que ali encontrasse.
2) Ali chegado, o arguido, de forma não concretamente apurada, logrou introduzir-se no interior do veículo automóvel de marca ..., com matrícula ..-..-SR, no valor de €6.000,00 (seis mil euros), pertencente ao ofendido BB, que se encontrava estacionado naquele local.
3) O arguido, após conseguir pôr o veículo automóvel em funcionamento, colocou-se em fuga, fazendo sua a viatura em causa.
3A) O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que tal veículo não lhe pertencia e que atuava contra a vontade e sem o consentimento do seu proprietário.
3B) Tinha, ainda, conhecimento que a conduta de se apoderar e conduzir o veículo em causa, sem o consentimento do seu proprietário, era proibida e punida pela lei penal.
Deixando de persistir factos não provados, os restantes factos mantém a redação constante da sentença recorrida.
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III.4
Consequências jurídicas do crime
Ao abrigo do estatuído no art.º 203º n.º1 do C.P. pratica um crime de furto "quem com ilegítima intenção de apropriação, para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel alheia".
Foi exatamente a atividade descrita no tipo, e com a intencionalidade aí prevista, que o arguido levou a cabo, retirando o veículo do local onde o mesmo fora estacionado pelo proprietário e contra a vontade deste.
Ficou provado que o arguido sabia que o veículo que retirou não lhe pertencia e, ainda assim, desenvolveu a intenção, que consumou, de se apropriar do mesmo, retirando-o do local onde se encontrava.
Face aos factos assentes encontram-se preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do tipo legal em questão, não existindo qualquer elemento que indicie que o arguido tinha intenção de restituir a coisa subtraída à luz do enquadramento à luz do furtum usus.
Cometeu assim o arguido um crime de furto na forma consumada.
O legislador, de qualquer modo, considerou que o modus operandi desta atividade criminosa poderia englobar um vasto leque de circunstâncias que tornam mais gravosa a sua prática aos olhos da comunidade. Tais circunstâncias estão espraiadas pelas diversas alíneas do art.º 204º do C.P.
Tendo em atenção todas estas circunstâncias, verificamos que o arguido incorreu na atividade descrita na alínea a) do n.º 1 do art.º 204.º do C.P..
Com efeito, tendo em atenção a definição de valor elevado constante do art.º 202.º al. a) do C.P., o arguido subtraiu um bem cujo valor apurado integra tal conceito, por referência à Unidade de Conta em vigor à data da prática dos factos.
Preenche, portanto, com a sua conduta, o tipo de furto qualificado do art.º 204.º, n.º 1 do C.P., com a qualificativa prevista na sua al. a).
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Dentro da elasticidade da moldura penal abstratamente aplicável, e em face do Direito Penal vigente, é a culpa que fixa o limite máximo da pena que no caso deve ser aplicada. A finalidade de prevenção geral de integração ou positiva orienta a determinação concreta da pena abaixo do limite máximo indicado pela culpa e relaciona-se com a prevenção especial de socialização para que seja esta a determinar, em último termo, a medida final da pena.
O crime de furto qualificado é punível com uma moldura penal abstrata de 1 mês a 5 anos de prisão ou multa de 10 a 600 dias.
Prevendo-se a hipótese de aplicação, em alternativa, de pena privativa da liberdade – a prisão – ou pena não privativa da liberdade – a multa – importa reter o disposto no art.º 70.º do C.P.. Segundo este normativo o Tribunal deve dar preferência fundamentada à pena não detentiva sempre que esta se afigurar adequada à salvaguarda das finalidades da punição (cfr. art.º 40.º do C.P.).
No caso vertente o arguido, aquando da prática dos factos hoje em discussão, já fora por diversas vezes condenado em penas de prisão efetiva, por crimes contra a propriedade, medida reativa extrema que não cumpriu a sua finalidade, não impedindo que o arguido voltasse a delinquir.
São, assim, razões de prevenção especial que impõem a necessidade de optar pela pena de prisão, dada a insensibilidade demonstrada pelo arguido à pena de multa ou, inclusivamente, a penas privativas da liberdade.
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Efetuada a escolha da pena e determinada a moldura abstrata importa fixar a pena concreta a aplicar ao arguido, mediante a intervenção dos critérios estipulados no artigo 71.º do C.P. É dentro dos limites definidos, no seu ponto superior, pela culpa do agente (cfr. art.º 40.º, n.º 2 do C.P.) que, axiologicamente estranha a finalidades retributivas, estabelece o limite superior da pena que ainda seja concordante com as exigências de preservação da dignidade da pessoa humana e, no seu ponto inferior, pelas exigências de prevenção geral, que serão levadas em conta as exigências de prevenção especial, com vista à prossecução do objetivo traçado na parte final do n.º 1 do art.º 40.º [Cfr., neste sentido, Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, 1993, pags.214 e ss. e 245 a 248.].
No caso, como fatores individualizadores da pena, importa considerar que as exigências de prevenção geral são assinaláveis, tendo em conta a persistência dos crimes contra o património no cômputo geral da criminalidade registada.
Agiu com dolo direto.
O veículo subtraído foi recuperado logo no dia seguinte, ainda que sem intervenção voluntária do arguido, sendo o seu valor próximo do limite inferior da circunstância qualificativa.
São efetivamente elevadas as exigências de prevenção especial, considerando o percurso criminal do arguido, denotando insensibilidade as advertências anteriores e ante a efetiva necessidade da pena.
É verdade que a atuação do recorrido, ao longo dos anos, não revela uma homotropia de procedimentos, dada a pluralidade de bens jurídicos violados. No entanto os crimes contra a propriedade e contra o património são prevalecentes.
A personalidade revelada pelo arguido é desconforme ao Direito, com reflexo nas várias condenações, apelando a um agravamento da pena como forma de intimidação.
Com um passado de desestruturação motivado pelos problemas aditivos, que após ingresso no E.P. tem conseguido estabilizar, mantendo acompanhamento periódico na especialidade de Psiquiatria e um comportamento institucional adequado.
Assim, julga-se adequada a pena de 2 anos e 2 meses de prisão.
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Atendendo à pena concretamente aplicada, importa, agora, equacionar da suscetibilidade de substituição por medidas não detentivas.
Efetivamente, na filosofia subjacente do sistema punitivo do Código Penal, apesar de se aceitar a pena de prisão como pena principal para os crimes de maior gravidade, “ (...) afirma-se claramente que o recurso às penas privativas da liberdade só será legítimo quando, dadas as circunstâncias, se não mostrem adequadas as sanções não detentivas” [M. Maia Gonçalves, in Código Penal Português, 10ª ed., Almedina, 1996, p. 270.].
Não pode, todavia, deixar de considerar-se que “ (...) determinar se as medidas não institucionais são suficientes para promover a recuperação social do delinquente e dar satisfação às exigências de reprovação e de prevenção do crime não é uma operação abstracta ou atitude puramente intelectual, mas fruto de uma avaliação das circunstâncias de cada situação concreta. Só caso a caso, processo a processo, mediante uma apreciação dos elementos de prova disponíveis, se legitimará uma escolha entre as penas detentivas e não detentivas” [Adelino Robalo Cordeiro, Escolha e Medida da Pena, in Jornadas de Direito Criminal, Centro de Estudos Judiciários, 1983, p. 237 e ss.], raciocínio igualmente pertinente quanto a pena concretamente aplicada permitir a substituição.
No caso, seria equacionável a possibilidade de suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do art.º 50.º do C.P.
No entanto, o percurso criminal do arguido e as várias condenações sofridas não permitiram a formulação do necessário juízo de prognose favorável.
Concordamos que a formulação daquele juízo é contemporâneo ao momento da decisão, considerando os fatores de proteção de que o arguido beneficie e os preditores de sucesso que possam existir. Contudo não sendo um ato de fé, nos fatores a equacionar – a base fundacional da confiança no sucesso da medida – estará, também, o percurso objetivo do arguido, incluindo o seu passado criminal, como forma de poder ponderar como será o seu comportamento futuro. É o próprio art.º 50.º do C.P. que o prevê ao estabelecer, no seu n.º 1, nas premissas do juízo, a personalidade do agente, a sua conduta anterior e posterior ao crime e as circunstâncias deste.
O trajeto pregresso do recorrido – não obstante os fatores de proteção de que poderá beneficiar quando restituído à liberdade – é denotativo de traços de personalidade adversos a um comportamento normativo e, no limite, preditor do insucesso da medida pretendida.
O arguido, pelo seu procedimento conhecido, persistiu na prática de comportamentos tipificados como crime, acabando por ingressar em meio prisional, já tendo beneficiado da medida ora equacionada sem que a mesma tivesse produzido o efeito de interromper, definitivamente, o comportamento delitual.
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IV.
Decisão:
Por todo o exposto, acordam os Juízes Desembargadores que compõem a 1ª Secção deste Tribunal da Relação do Porto em julgar totalmente procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, decidem:
A) Alterar a matéria de facto nos termos expressos supra em III.3
B) Condenar o arguido AA, pela prática, com autor material e na forma consumada, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos art.ºs 203.º e 204.º, n.º 1 al. a), com referência ao art.º 202.º, al. a), todos do C.P., na pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão.
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Sem custas.
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Oportunamente remeta boletins ao Registo.
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Porto, 04 de dezembro de 2024
José Quaresma (Relator)
Amélia Carolina Teixeira (1.ª Adjunta)
Luís Coimbra (2.º Adjunto)