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REQUERIMENTO DE ABERTURA DA INSTRUÇÃO
REJEIÇÃO
Sumário
I - A rejeição do RAI, tendo em consideração os seus efeitos preclusivos, não pode depender, tão só, da falta de primor ou rigor na organização dos factos, não devendo ser rejeitado o RAI que, embora confuso, desordenado, contenha, ainda assim, os elementos conformadores do potencial preenchimento do tipo do crime imputado. II - Ao JIC está vedado, é certo, suprir a falta de alegação de elementos essenciais, ou convidar o requerente ao aperfeiçoamento, mas não pode o julgador, se alegados tais factos, ainda que desordenadamente, rejeitar o RAI com base numa falta de conveniente organização da necessária acusação alternativa.
Texto Integral
Processo: 548/22.6GBVFR-D.P1
Acordam em conferência na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto
I. I.1
Nos autos de instrução n.º 548/22.6GBVFR, a correr termos no Juízo de Instrução Criminal de Santa Maria da Feira – Juiz 3, foi em 14.05.2024 proferido despacho (Ref.ª 132934923) que rejeitou liminarmente o requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente.
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I.2
Não se conformando com o decidido veio o assistente AA interpor o recurso ora em apreciação referindo, em conclusões, o que a seguir se transcreve: 1º Foi proferida nos presentes autos Decisão que apreciando o Requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente AA, aqui recorrente (após decorrer teoricamente sobre o que deve ser um requerimento de abertura de instrução), considerou: “Guiados por estas linhas orientadoras e analisando o RAI apresentado pelo assistente, é-nos facilmente apreensível que o mesmo não obedece cabalmente ao comando estatuído no art.º. 287º, nº 2, do cód. Proc. Penal, sendo manifesto que, contrariamente ao exigido no art.º. 283º, nº 3, al. b) e c) do mesmo diploma legal, não contém a descrição clara, ordenada e suficiente – à semelhança do que é exigido para a acusação, seja pública, seja particular – dos factos necessários a dar como preenchidos todos os elementos típicos objetivos e subjetivos do ilícito penal imputado à arguida. Entendemos, por isso, que tal requerimento é nulo (cf. Art, 283º, nº 3, als. b) e c), aplicável ex vi art. 287º, nº 2, ambos do cód. Proc. Penal) sendo que a falta de objeto adveniente dessa nulidade implica, como vimos, a inexequibilidade da instrução relativamente à aferição da prática do crime em causa. Deve, pois, ser rejeitado nos termos do art. 287º, nº 3, do cód. Proc. Penal, por inadmissibilidade legal da instrução. Face ao exposto, devido declarar nulo o requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente e, em consequência, rejeito-o liminarmente.” 2ª È desta Decisão que por se discordar se recorre, nomeadamente de se considerar nulo o requerimento de abertura de instrução e, por via dessa decisão de que também se discorda, rejeitar liminarmente o requerimento por inadmissibilidade legal da instrução. 3ª Entende o recorrente que tal requerimento não padece de nulidade, que é admissível a instrução, e que não existem motivos para a rejeitar, muito menos liminarmente. 4ª Entende ainda que padece de falta de fundamentação a Decisão pois não permite ao assistente saber a razão de ciência da insuficiência dos factos, pois de forma gratuita e genérica, limita-se a dizer, sem qualquer mínimo de concretização que o requerimento “não contém a descrição clara, ordenada e suficiente – (…) – dos factos necessários a dar como preenchidos todos os elementos tipicos objectivos e subjectivos do ilicito penal imputado à arguida.” 5ª O dizer isto sem mais, é o mesmo que nada dizer pois pode ser genericamente apontado a qualquer requerimento, sem margem para contrariar 6ª Deveria no mínimo, dizer o que falta para que fosse admissível, mas não faz a Decisão esse percurso, e entendemos que teria que o fazer, sob pena de nulidade da própria Decisão, por violação do disposto no art. 97º nº 5 do CPP 7ª Não conseguimos descortinar face à Decisão proferida, quais os elementos, objectivo e ou subjectivo do tipo de ilícito eventualmente não preenchidos que resultaria, nessa situação limite, no futuro uma impossibilidade de pronuncia do denunciado em questão 8ª Salvo o devido respeito por posição diversa, mal andou o Ex.mo Sr. Juiz de Instrução ao declarar nulo o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo ora recorrente, por não obedecer “cabalmente ao comando do estatuído no artigo do art. 287º, nº 2, do Código de Processo Penal, sendo manifesto que, contrariamente ao exigido no artigo 283º, n.º 3, al. b e c) do mesmo diploma legal, não contém a decrição clara, ordenada e suficiente – (…) – dos factos necessários a dar como preenchidos todos os elementos tipicos objectivos e subjectivos do ilícito penal imputado à arguida.” 9ª Mais aidantando o douto despacho recorrido, erradamente, que o RAI deve ser rejeitado nos termos do artigo 287º, n.º 3 do CPC por inadmissibilidade da instrução. Sem prescindir 10ª Igualmente se insurge o aqui recorrente contra o entendimento do tribunal a quo de que não cabe ao Tribunal proferir convite ao aperfeiçoamento das eventuais deficiências do requerimento. 11ª A decisão é ostensivamente violadora dos mais fundamentais direitos do assistente, pois, para além de a instrução ser legalmente admissível, a nulidade invocada não existe, não podendo, por tal via, ser LIMINARMENTE REJEITADO tal requerimento, ou sequer rejeitado. 12ª Por outro lado, ainda que se entenda que existem deficiências no requerimento de abertura de instrução, o que só por mera hipótese se admite, sempre como já se referiu haveria lugar ao convite ao aperfeiçoamento, facultando ao assistente a oportunidade de exercer o seu direito de requerer a abertura de instrução, pois tal possibilidade não afectaria o direito de defesa do arguido 13ª No liminarmente rejeitado requerimento de abertura de instrução constam os elementos que cumprem todas as exigências legais mencionadas no nº 2 do art.287º do CPP, assim como o disposto nas alíneas b) e d) do n.º 3 do artigo 283.º contendo “A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança” 14ª No requerimento rejeitado consta de facto a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, factos esse já constantes também da participação. 15ª Em concreto, no liminarmente rejeitado requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente AA, estão lá tais factos e estes são suficientes, tanto para a pronúncia a final, como para a defesa do arguido. 16º Tais factos são suficientes para imputar ao arguido BB, entre outros, um crime de ofensa à integridade física do assistente recorrente. 17º Resultam dos mesmos que existem indícios da prática de crime de ofensa à integridade física por parte do arguido BB e que esses indícios que já eram suficientemente fortes para este ter sido acusado, certamente também o serão para agora ser pronunciado, bastando para tal que se admita a instrução. 18º Os factos participados pelo assistente recorrente, e constante do requerimento de abertura de Instrução contra o arguido BB, sem sombra para duvida, preenchem seguramente e configuram o crime de ofensa à integridade física previstos e punidos nos termos do art. 143º do Código Penal. 19º O mesmo permite constatar a autoria dos factos e, que foram praticados de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei, não se privou de actuar daquela forma. 20º Ora, da análise do teor do requerimento de abertura de instrução resulta inequívoco que o mesmo não padece de nulidade. 21º Pois cumpre com o exigido no art. 287º e, em concreto, com o seu nº 2, contendo também as prescrições constantes do art. 283º, e que poderiam dar lugar à nulidade nomeadamente as alíneas b) e d) do seu nº 3, aplicáveis por força do nº 2 do art. 287º quando é o assistente a requerer a abertura de instrução. 22º Como tal, inexistindo inadmissibilidade legal da instrução, o mesmo não podia ser rejeitado. 23º Pois, a instrução requerida é legalmente admissível, pois o requerimento só podia ser rejeitado por extemporâneo, o que não é o caso, por incompetencia do juíz que também não é, ou por inadmissibilidade legal de instrução, que também não é. 24º O despacho recorrido viola o disposto nos artigos 287º, nº 1, 2 e 3 e 283º, nº 1 e 3 do CPP, bem como o artigo 20.° da Constituição da República Portuguesa. 25ª Pelo que a decisão proferida deve ser revogada e substituída por outra que, admitindo a instrução requerida, ordene o prosseguimento à mesma. 26º Tal como o Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, do Relator JOÃO CARROLA, com data de 24-10-2023, o Requerimento de Abertura de Instrução posto em causa nos presentes autos permite-nos, apesar de se poder considerar que o texto acusatório possa não ser um exemplo de rigor descritivo, ainda assim os factos imputados permitem, na nossa perspetiva, fundamentar a aplicação de penas ao arguido – tal factualidade preencherá os elementos correspondentes à tipicidade objectiva e subjectiva do ilícito criminal em apreço –, sucedendo que o referido arguido pode defender-se em conformidade, não saindo, nessa medida, violados os princípios do acusatório ou do contraditório, o que equivale a dizer que pode cumprir a função processual para que estaria vocacionado. Sem prescindir, 27ª Ainda que assim não se entendesse, haveria que convidar-se ao aperfeiçoamento pois nenhum vicio se encontra que seja susceptível de ferir de nulidade o requerimento e como tal não tornaria inadmissível legalmente a instrução e, como tal passível, de ser rejeitado. 28ª Não tendo sido admitido o requerimento de abertura de instrução ou, em último caso, não tendo sido proferido despacho de convite ao aperfeiçoamento, está a denegar-se a justiça que é sempre devida.” Termos em que, deve a Decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que, considere não padecer de nulidade o requerimento de abertura de instrução, admitindo-se a instrução requerida por ter sido requerida em tempo, ser competente o juiz, e ser a mesma admissível, e dê prosseguimento à mesma, tudo como é de JUSTIÇA
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I.3
Admitido o recurso, por tempestivo e legal, o Ministério Público apresentou as suas alegações de resposta, pugnando pela improcedência do recurso e consequente manutenção do despacho recorrido, formulando as seguintes conclusões (Ref.ª 16450354). I. Os presentes autos tiveram origem nas queixas apresentadas, reciprocamente, por vários intervenientes, designadamente pelo ora recorrente AA e por BB, relativas a factos suscetíveis de consubstanciar, em abstrato, a prática de crimes de injúria, difamação, ameaça agravada e ofensa à integridade física simples. II. Concluída a investigação, em 23/02/2024 o Ministério Público proferiu despachos de arquivamento, bem como de acusação contra o AA, imputando-lhe a prática de ofensa à integridade física na pessoa do (aqui ofendido) BB. III. Não se conformando com o despacho de arquivamento do Ministério Público, veio o assistente AA requerer a abertura de instrução, descrevendo a factualidade que no seu entender também justificaria a dedução de acusação contra o BB pela prática de uma ofensa à integridade física na sua pessoa. IV. Pela Mma. JIC foi proferida douta decisão instrutória, com data de 14/05/2024, que rejeitou o requerimento de abertura de instrução, por entender que o requerimento não contém a descrição clara, ordenada e suficiente – à semelhança do que é exigido para a acusação, seja pública, seja particular – dos factos necessários a dar como preenchidos todos os elementos típicos objetivos e subjetivos do ilícito penal imputado à arguida (tratando-se aqui de lapso, pois trata-se de um arguido). V. É nosso entendimento que bem esteve a Mma. JIC em rejeitar o RAI apresentado pelo assistente, desde logo porque inexiste no requerimento qualquer referência factual ao dolo, sendo certo que mesmo dando como indiciada a prática pelo arguido BB dos factos que lhe são imputados no RAI, a verdade é que estaríamos perante uma tentativa de agressão, não punível. Nestes termos, deve negar-se provimento ao recurso e manter-se a decisão proferida nestes autos nos seus precisos termos, fazendo-se, assim, a habitual JUSTIÇA!
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I.4
Neste Tribunal o Digno Procurador-Geral Adjunto teve vista nos autos, tendo emitido parecer no sentido do provimento do recurso (Ref.ª 18522371) e consequente revogação do despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que admita a instrução.
Rejeita o argumento de que o assistente deveria ter sido convidado a aperfeiçoar o RAI, aceitando que a decisão recorrida carece de fundamentação o que, contudo, configurará mera irregularidade que deveria ter sido arguida no prazo de 3 dias, considerando-se, por inação, sanada
No mais e quanto ao RAI apresentado, apesar de algumas falhas estruturais, este conterá os elementos objetivos e subjetivos do crime, a indicação das normas incriminatórias e a referência à prova, devendo, por isso, ter sido admitido.
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Deu-se cumprimento ao disposto no art.º 417.º n.º 2 do C.P.P., não tendo sido exercido o contraditório.
Foram os autos aos vistos e procedeu-se à conferência, importando, pois, apreciar e decidir.
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II.
Questões a decidir:
Conforme jurisprudência recorrente e pacífica, o âmbito de qualquer recurso é delimitado pelas conclusões que sobrevêm às alegações do recorrente, sem prejuízo do conhecimento, ainda que oficioso, dos vícios da decisão a que se alude no n.º 2 do art.º 410.º do C.P.P. (cfr. art.ºs 119.º, n.º 1, 123.º, n.º 2 e 410.º, n.º 2, als. a) a c) do C.P.P. e Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, de 19.10).
No caso, vistas as conclusões apresentadas em sede recursória, constitui objeto do presente recurso saber se o despacho recorrido padece de qualquer vício, se o requerimento de abertura da instrução (doravante RAI), apresentado pelo assistente, continha os elementos necessários à sua admissão e consequente prosseguimento daquela fase processual ou se, pelo menos, deveria ter sido formulado um convite ao aperfeiçoamento.
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III. III.1
Por facilidade de exposição retenha-se o teor do despacho recorrido: (…) O assistente, AA, melhor identificados nos autos, veio requerer a abertura de instrução, ao abrigo do disposto no art. 287.º, n.º 1 al. b), do cód. proc. penal, visando, obter a pronúncia do arguido BB pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples – vide fls. 340 e ss. Cumpre dizer que, como é consabido e decorre, aliás, do art. 287.º, n.º 2, do mesmo corpo de normas, o requerimento para abertura de instrução, apresentado pelo assistente em caso de arquivamento pelo Ministério Público, deve equivaler, em tudo, a uma acusação, condicionando e delimitando a atividade de investigação do juiz de instrução e, consequentemente, o objeto da decisão instrutória - Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal", Tomo III, págs. 125 e segs. e 139 e segs. -, nos exatos termos em que a acusação formal, seja pública, seja particular, o faz. E assim é de tal modo que na instrução apenas poderão ser considerados os factos descritos no requerimento para a sua abertura (ressalvada a hipótese a que se refere o art. 303º do Cód. Proc. Penal de alteração não substancial dos factos descritos nesse requerimento), sob pena de nulidade da decisão instrutória, como resulta, claramente do disposto no art. 309º, nº, do cód. proc. penal. Daí que, não constando do mesmo uma descrição clara e ordenada de todos os factos necessários a integração de todos os pressupostos legais de algum crime se torne inviável a realização desta fase processual por falta de delimitação do seu objeto, sendo manifesto que ninguém poderá vir a ser pronunciado com base apenas em alegações genéricas, inconclusivas ou omissas de factos suscetíveis de fazer integrar, na totalidade, os elementos objetivos e subjetivos do crime pelo qual se pretende essa pronuncia. E devendo o despacho de pronúncia quedar-se pela apreciação do conteúdo do requerimento de abertura de instrução, torna-se óbvio que as omissões deste podem comprometer irremediavelmente a pronúncia dos arguidos, não fazendo qualquer “sentido proceder-se a uma instrução visando levar o arguido a julgamento sabendo-se antecipadamente que a decisão instrutória não poderá ser proferida nesse sentido" – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22.10.2003, que pode ler-se na íntegra em www.dgsi.pt.. Esta estrita vinculação temática do Tribunal de Instrução aos factos alegados no requerimento para abertura de instrução, enquanto limitação da atividade instrutória, relaciona-se, assim, com a natureza judicial desta fase processual, sendo uma consequência do princípio da estrutura acusatória do processo penal e constituindo uma garantia de defesa consagrada no art. 32º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa. Acresce a isto, por outro lado, que as eventuais deficiências do requerimento não podem ser supridas por iniciativa do Tribunal, designadamente mediante decisão que convidasse o assistente para o efeito. A admitir-se entendimento diverso, "(...) estar-se-ia a transferir para o juiz o exercício da ação penal, contra todos os princípios constitucionais e legais em vigor e a transformar a natureza da instrução que passaria de contraditória a inquisitória" – cfr. Ac. da Rel. De Lisboa de 25.06.2002, CJ, III, 143. Em boa verdade, uma decisão neste sentido – consubstanciando o exercício, pelo juiz de instrução, de uma faculdade inquisitória e de exercício de ação penal que, no atual quadro legal, não lhe assiste – contrariaria o princípio da estrutura acusatória do processo penal consagrada do referido art. 32º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa. Quanto a este ponto em particular, é pertinente chamar à colação o que expenderam os Professores Gomes Canotilho e Vital Moreira, na Constituição da República Anotada, 3ª ed., pág. 206: a estrutura acusatória do processo penal implica, além do mais, a proibição de acumulações orgânicas a montante do processo, ou seja, que o juiz de instrução seja também o órgão de acusação. De onde resulta que o juiz de instrução não pode intrometer-se na delimitação do objeto do processo – fixado pela acusação ou pelo RAI do assistente – no sentido de o alterar ou completar, diretamente ou por convite ao aperfeiçoamento feito ao assistente requerente da abertura da instrução. Anote-se, ainda neste âmbito, que a inadmissibilidade de renovação do requerimento para abertura de instrução não implica uma limitação desproporcionada do direito da assistente a deduzir acusação através desse requerimento – como referido no Acórdão do Tribunal Constitucional de 30.01.2001 - Publicado no DR-IIS, de 23.03.2001 (acerca da não equiparação do estatuto do assistente ao do arguido, cfr. também Acórdão do mesmo Tribunal de 31.10.2003, publicado no DR-IIS, de 17.12.2003, a pág. 18.455) –, "(...) na medida em que tal facto lhe é exclusivamente imputável, para além de constituir – na sua possível concretização – uma considerável afetação das garantias de defesa do arguido". Ainda segundo este aresto: "(...) do ponto de vista da relevância constitucional merece maior tutela a garantia de efetivação do direito de defesa (na medida em que protege o indivíduo contra possíveis abusos do poder de punir), do que garantias decorrentes da posição processual do assistente em casos de não pronúncia do arguido, isto é, em que o Ministério Público não descobriu indícios suficientes para fundar uma acusação e, por isso, decidiu arquivar o inquérito". Esclarecendo, definitivamente as divergências jurisprudenciais que se vinham verificando a este respeito - No sentido de que a apontada deficiência do requerimento para abertura de instrução consubstanciaria mera irregularidade processual cuja reparação poderia ser oficiosamente ordenada, nos termos do Art. 123º, n.º2, do Cód. Proc. Penal, cfr., i.a., Acórdãos da Relação de Lisboa de 12.07.95, CJ, IV, 140 e de 20.06.2000, CJ, III, 153; da Relação de Coimbra de 17.11.93, CJ, V, 59; da Relação do Porto de 05.05.93, CJ, III, 243, de 28.02.2001 e de 07.02.2001 – podendo ler-se os sumários dos dois últimos em http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf; da Relação do Porto de 21.11.2001, CJ, V, 225; da Relação de Lisboa de 21.03.2001, CJ, II, 131; da Relação de Coimbra de 13.11.2002 - podendo ler-se o respetivo sumário em www.trc.pt. No sentido de que não é admissível o convite ao aperfeiçoamento do requerimento do assistente, cfr., i.a., Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 13.11.2002 e de 22.10.2003 (neste último se referindo "(...) uma tendência na jurisprudência deste Supremo Tribunal no sentido de não haver lugar, nos casos de requerimento do assistente para abertura de instrução, a convite para suprir as deficiências do requerimento"), ambos podendo ler-se na íntegra em www.dgsi.pt; Acórdão da Relação de Coimbra de 23.02.2005, CJ, I, 48; Acórdão da Relação de Guimarães de 14.02.2005, CJ, I, 299; Acórdão da Relação de Coimbra de 31.10.2001, podendo ver-se o respetivo sumário em www.trc.pt/index1.htlm; Acórdãos da Relação de Lisboa de 03.02.2005, CJ, I, 139, de 09.02.2000, CJ, I, 153, de 03.10.2001 e de 31.01.2001, cujos sumários podem ler-se em http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf; cfr. também Acórdãos da Relação do Porto de 23.05.2001, CJ, III, 239; da Relação de Lisboa de 11.10.2001, CJ, IV, 141, de 11.04.2002, CJ, II, 147, e de 14.01.2003, CJ, I, 124; também da Relação de Lisboa de 15.05.2003, 19.03.2003, 11.12.2002, 17.12.2002, 19.12.2002 e de 13.03.2003, cujos sumários podem ler-se em http://www.pgdlisboa.pt (jurisprudência - sumários - área criminal), o último também publicado "in" CJ, II, págs. 124 a 126, - veio o Supremo Tribunal de Justiça fixar jurisprudência por Acórdão de 12.05.2005 (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2005, publicado no DR – I S-A de 04.11.2005) nos termos seguintes: «Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento para abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do cód. proc. penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido». Guiados por esta linhas orientadoras e analisando criticamente o RAI apresentado pelo assistente, é-nos facilmente apreensível que o mesmo não obedece cabalmente ao comando estatuído no art. 287.º, n.º 2, do cód. proc. penal, sendo manifesto que, contrariamente ao exigido no art. 283.º, nº 3, al. b) e c) do mesmo diploma legal, não contém a descrição clara, ordenada e suficiente – à semelhança do que é exigido para a acusação, seja pública, seja particular – dos factos necessários a dar como preenchidos todos os elementos típicos objetivos e subjetivos do ilícito penal imputado à arguida. Entendemos, por isso, que tal requerimento é nulo (cf. art. 283º, nº 3, als. b) e c), aplicável ex vi art. 287.º, n.º 2, ambos do cód. proc. penal) sendo que a falta de objeto adveniente dessa nulidade implica, como vimos, a inexequibilidade da instrução relativamente à aferição da prática do crime em causa. Deve, pois, ser rejeitado nos termos do art. 287º, n.º 3, do cód. proc. penal, por inadmissibilidade legal da instrução. Face ao exposto, decido declarar nulo o requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente e, em consequência, rejeito-o liminarmente.
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(…)
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III.2
Da nulidade do despacho recorrido
Como é consabido e relativamente aos vícios, vigora no nosso sistema processual penal o princípio da legalidade, com tradução no art.º 118.º do C.P.P., nos termos do qual a violação, ou a inobservância das disposições da lei do processo penal, só determina a nulidade do ato quando esta for expressamente cominada na lei. Quando assim não sucede, o ato ilegal diz-se irregular.
Por sua vez, constituem nulidades insanáveis as previstas no art.º 119.º do C.P.P. (ou em outras disposições esparsas no Código que expressamente como tal as caraterizem), sendo todas as outras previstas dependentes de arguição, sob pena de sanação (art.ºs 120.º e 121.º do C.P.P.).
No caso, alega o recorrente que a decisão recorrida padece de falta de fundamentação pois “não permite ao assistente saber a razão de ciência da insuficiência dos factos”.
Efetivamente, o art.º 97º do C.P.P. estabelece que: “1- Os actos decisórios dos juízes tomam a forma de: a) Sentenças, quando conhecerem a final do objecto do processo; b) Despachos, quando conhecerem de qualquer questão interlocutória ou quando puserem termo ao processo fora do caso previsto na alínea anterior. 2 – (…) 3 – (…) 4 – (…) 5 - Os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.”.
Revertendo ao caso em apreço, o despacho recorrido tece judiciosas considerações, com pertinente convocação de apoio doutrinário e jurisprudencial, sobre os requisitos do RAI, o princípio do acusatório, a vinculação temática e a insusceptibilidade de convite ao aperfeiçoamento.
Nesta parte, adiantamos já, estamos completamente de acordo, subscrevendo-se todas as considerações expendidas até ao segmento “Guiados por esta linhas orientadoras e analisando criticamente o RAI apresentado pelo assistente, é-nos facilmente apreensível que o mesmo não obedece cabalmente ao comando estatuído no art. 287.º, n.º 2, do cód. proc. penal, sendo manifesto que, contrariamente ao exigido no art. 283.º, nº 3, al. b) e c) do mesmo diploma legal, não contém a descrição clara, ordenada e suficiente – à semelhança do que é exigido para a acusação, seja pública, seja particular – dos factos necessários a dar como preenchidos todos os elementos típicos objetivos e subjetivos do ilícito penal imputado à arguida.”.
Porém, ali chegado, o despacho recorrido é, a nosso ver, pouco esclarecedor do ponto de vista subsuntivo do conteúdo do RAI ao entorno de premissas convocados, sendo em rigor conclusivo, não se alcançando, com clareza, por que razão e em que termos aquele articulado do assistente não cumpre aqueles parâmetros previamente definidos.
Como bem nota o Digno Procurador-Geral Adjunto junto desta Relação o despacho recorrido “(…) não analisa quais os factos que constam do requerimento, quais os que faltam, se não consta nenhum facto relativo aos elementos objectivos ou se falta apenas algum ou alguns desses factos, o que deveria constar e o que considera não constar referente ao elemento subjectivo. Lendo a decisão recorrida, não se consegue estabelecer qualquer ligação da mesma ao requerimento de abertura de instrução em apreço (…)”.
Porém, a falta de fundamentação em causa não se encontra prevista como causa de nulidade pelo que, por força do inicialmente apontado princípio da legalidade, o ato praticado é apenas irregular, o que teria de ser invocado no prazo de 3 dias a contar daquele em que o respetivo interessado tiver sido notificado para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado (cfr. art.º 123.º, n.º 1, do C.P.P.), o que não sucedeu (atenta a data da sua notificação), mostrando-se, pois, sanada.
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III.3
Quanto ao mérito do decidido
Retendo o teor do RAI apresentado pelo recorrente - sobre o qual recaiu o despacho recorrido - e sopesados os argumentos invocados em sede recursória, impõe-se apreciar e decidir.
Insurge-se o recorrente contra o acerto da decisão posta em crise que rejeitou liminarmente o RAI por inadmissibilidade legal da instrução, nos termos do disposto no art.º 287.º, n.º 3 do C.P.P.
No entender da recorrente o RAI não era nulo e continha suficiente substrato factual que permitisse a abertura da instrução.
Vejamos.
Conforme lapidarmente dispõe o art.º 286.º n.º 1 do C.P.P., a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
No caso e por via da presente instrução, pretende o assistente sindicar, na vertente judicial, o despacho de encerramento do inquérito que concluiu pelo arquivamento.
Assim e na concretização da almejada sindicância, estatui o artigo 287.º n.º 2 do diploma em análise que o requerimento de abertura da instrução, embora não sujeito a formalidades especiais (...) deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à (...) não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar. Deve ainda o requerimento apresentado pelo assistente obedecer aos mesmos requisitos estabelecidos nas alíneas b) e c) do art.º 283.º do C.P.P. para a acusação deduzida pelo Ministério Público, isto é, deve conter a indicação das disposições legais aplicáveis e a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao(s) arguido(s) de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.
Como decorre do exposto e em caso de arquivamento – como aqui sucedeu - o RAI deve, então, conter uma acusação alternativa que irá condicionar e limitar a atividade de investigação do juiz e o conteúdo da decisão instrutória a proferir, delimitando o objeto do processo, conforme resulta também do disposto nos art.ºs 303.º n.º 1 e 309.º n.º 1 do C.P.P. [cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, pág. 125 e ss.]. Efetivamente, na decisão instrutória e nos atos a realizar no decurso daquela fase, apenas poderão ser considerados os factos descritos no RAI, que fixa o thema decidendum (ressalvada a hipótese de alteração substancial), sob pena de nulidade – cfr. art.º 309.º n.º 1 do C.P.P. – devendo aquela peça, por si e em substância, em termos de autossuficiência e autonomia, conter os elementos de descrição factual e típica que fixem o objeto do processo e que permitam concluir, ainda que indiciariamente, pela existência de responsabilidade criminal do arguido por forma a que, da sua eventual comprovação em sede de instrução, emirja um despacho de pronúncia que a valide e permita a passagem à fase subsequente e a sujeição a julgamento tendo, como substrato factual acusatório, precisamente, os elementos constitutivos expressos no RAI.
Tal regime - impondo que o RAI contenha, ínsita, uma verdadeira acusação, apetrechada dos elementos que são os exigíveis para a acusação pública, por força do artigo 283.º do C.P.P., - decorre, diretamente, da estrutura acusatória do processo penal – cfr. art.º 32.º n.º 5 da C.R.P.. A vinculação temática que daí deflui relaciona-se com as garantias de defesa do arguido, protegendo-o contra o alargamento do objeto e possibilitando-lhe a organização da defesa perante os factos de que é acusado ou pelos quais é pronunciado.
Na verdade, como refere Germano Marques da Silva, o juiz está substancial e formalmente limitado, na pronúncia, aos factos pelos quais tenha sido deduzida acusação formal ou tenham sido descritos no requerimento do assistente e que este considera que deveriam ser objeto da acusação do Ministério Público [op. cit., pág. 144].
Assim, e reforçando-se o exposto, o RAI deve estruturar-se como uma acusação (na falta desta), dele tendo de constar, como em qualquer acusação, a narração, ainda que sintética, dos concretos factos imputados ao arguido e as normas legais aplicáveis, daqui derivando que nos segmentos da narração dos factos e da indicação das disposições legais aplicáveis, o RAI deve estruturar-se, formal e substancialmente, como uma verdadeira acusação, como uma acusação alternativa a que já aludimos e que, na perspetiva do assistente, deveria ter sido deduzida pelo Ministério Público e não foi, apresentando o requerente da instrução a peça processual que, a seu ver, foi injustificadamente omitida pelo titular da ação penal.
Destarte, quando o RAI não contém o quis, o quid, o ubi, o quibus auxiliis, o quomodo e o quando, definidores da indispensável narração – estando, consequentemente, ferido de nulidade – a instrução carece de objeto, o que – independentemente de determinar ou não, a sua inexistência jurídica [cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª Edição, Verbo, 2000, pág. 151] – conduz à inadmissibilidade legal desta fase do processo [cfr. neste sentido, acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13.03.2019, processo n.º 353/16.9T9LRA.C1, disponível em www.dgsi.pt].
Note-se que, quando o RAI, na ausência de acusação, não contenha aqueles elementos estruturantes, é vedado ao juiz, por força do princípio do acusatório, convidar o apresentante a aperfeiçoar o articulado, conforme jurisprudência fixada no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2005 [publicado no Diário da República — I SÉRIE-A n.º 212, de 04.11.2005], para além de, na prática e a ser concedida essa faculdade, esta representar um alargamento do prazo perentório para requerer a instrução [cfr., sobre o assunto, ainda, acórdão do Tribunal Constitucional de 30/01/2001, DR IIª Série, de 23.03.2001].
Revertendo ao caso.
Com a instrução pretendia o assistente a pronúncia do arguido pela prática de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo art.º 143.º, n.º 1 do C.P..
Para o efeito, apresentou RAI contendo 55 artigos e no qual vai intercalando a descrição factual do que considera indiciado, com as razões de divergência da posição assumida pelo Ministério Público no despacho final de encerramento, tecendo considerações sobre a prova recolhida. Inexiste, portanto, uma separação formal entre a construção da predita acusação alternativa e a matéria de alegação, de facto e de Direito, das razões da divergência.
Revisitado o teor da indicada peça, excluindo as razões de dissídio relativo ao arquivamento e enfatizando os meios de prova produzidos em inquérito de cujo teor resultaria a indiciação pretendida, refere o assistente, além do mais, que, no dia 10 de agosto de 2022, cerca das 17h00, na sequência de uma discussão mantida com o arguido e a sua companheira, este atirou-se com os pés na direção do assistente, não o tendo acertado com os pés como como pretendia, mas bateu-lhe com a mão fechada na cara, apanhando-lhe a haste dos óculos (lado esquerdo), partindo-a e provocou dor com a pancada. Bateu-lhe pelo menos uma vez A autoria dos factos foi deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, não se privando de atual daquela forma.
Aqui chegados, também já dissemos – e resulta da letra da lei (ut art.º 287.º, n.º 2 do C.P.P.) – que o RAI não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação sendo que, no caso de arquivamento e em instrução a impulso do assistente o RAI deve conter, também, como putativa acusação que é, a indicação das disposições legais aplicáveis e a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança (necessariamente os elementos típicos), incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.
A razão da sobredita exigência é simples.
A imposição ao sujeito processual assistente, nos casos em que é o requerente, da obrigação de narrar, ainda que sinteticamente, os factos que imputa ao arguido e que fundamentam a aplicação de uma pena ou medida de segurança, nos termos estabelecidos para a acusação e ainda as disposições legais aplicáveis, tem como objetivo a vinculação do juiz de instrução a um concreto e determinado “objeto do processo” que é assim delimitado e definido, a montante, por essa peça processual e sobre o qual terá de pronunciar-se quando proferir o seu despacho de pronúncia (sendo este nulo na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos no RAI). Embora o JIC possa exercer poderes de investigação na instrução, o seu exercício e objeto está delimitado pelo thema decidendum assim demarcado, preservando o modelo acusatório em que assenta a estrutura processual do Código. A exigência da descrição minimamente factual dos conteúdos imputados é, atualmente, uma constante unânime na jurisprudência dos vários Tribunais das Relações [cfr. neste sentido, José António Mouraz Lopes, Garantia Judiciária no Processo Penal, Coimbra Editora, 2001, pág. 74 e ss.].
Se assim não fosse e ao assistente fosse permitida a apresentação de uma assentada de fatores de discordância, uma glosa ao acerto e posicionamento do Ministério Público no arquivamento, uma crítica às ilações retiradas de determinados meios de prova mas sem que se transmitisse (também) uma narrativa factual própria de uma acusação, com relevância criminal, então seria o JIC, na verdade e em subversão do princípio do acusatório, a “construir”, de entre os factos a retirar do processo, aqueles que julgasse convenientes para a construção de um relato com essa significância (transmutando-se em investigador/acusador).
Tecidas estas considerações e retendo o acima respigado ao teor do RAI apresentado, já afirmamos que o mesmo, na sua estrutura e conteúdo, não é o modelo concretizador de tudo o que afirmamos essencial, misturando as razões de divergência com os factos de onde poderá advir a responsabilização criminal do arguido, sendo que as primeiras - o raciocínio de valoração probatória assente em presunção de correlação lógica, no sentido de o arguido ser autor de crimes – não preenchem materialmente e em factos a alegada conduta incriminatória, a ilicitude e culpa tipificadas. Não será pela referência ou indicação das provas produzidas em inquérito, valoradas segundo o entendimento do assistente, que se fundamenta, processualmente, o RAI como uma acusação sendo que como já referimos, a nulidade que possa decorrer dessa insuficiência é insanável por recurso ao aperfeiçoamento, que se traduziria numa faculdade inquisitória e de exercício da ação penal que não assiste ao JIC.
Porém a rejeição do RAI, tendo em consideração os seus efeitos preclusivos, não pode depender, tão só, da falta de primor ou rigor na organização dos factos, não devendo ser rejeitado o RAI que, embora confuso, desordenado, contenha, ainda assim, os elementos conformadores do potencial preenchimento do tipo do crime imputado.
Ao JIC está vedado, como dissemos e enfatizamos, suprir a falta de alegação de elementos essenciais, mas não pode o julgador, se alegados, ainda que desordenadamente, rejeitar o RAI por essa falta de organização conveniente da desejada acusação alternativa.
Ora, retendo os trechos acima assinalados, que constam do RAI, é possível aferir da verificação dos elementos (objetivos e subjetivos) do crime de ofensa à integridade física que o assistente imputa ao arguido.
O dolo concretiza-se no conhecimento (ou representação) de todas as circunstâncias do facto, de todos os elementos descritivos e normativos do tipo objetivo do ilícito o que, no caso e como vimos, se encontra alegado: - Naquelas circunstâncias temporais o arguido atirou-se ao assistente com os pés, não o tendo atingido desta forma, como pretendia, mas bateu-lhe com a mão fechada na cara, provocando-lhe dor.
Quanto aos elementos subjetivos, trata-se de um crime doloso, em qualquer uma das suas formas, sendo que, geralmente, o “conhecimento” e a “intenção” (e, para parte da doutrina e jurisprudência a “consciência da proibição” e a “consciência da ilicitude”, elementos que, por não pacificados, não permitiriam, por si só, a rejeição) com que o arguido terá atuado, dado o seu caráter interno, demonstra-se, em termos probatórios/indiciários, à falta de confissão, pela objetividade dos factos e por via indireta mas terão, forçosamente, que constar dos factos sujeitos a prova e que constituem, também eles, o objeto do processo.
No caso afirma-se que o arguido pretendeu atingir o corpo do assistente, batendo-lhe com a mão fechada na cada, tendo agido de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, não se privando de atual daquela forma.
Face a tal alegação, entendemos não existir fundamento para a rejeição liminar do RAI e para que não seja realizada a requerida instrução, independentemente da viabilidade, a final, da pretensão do assistente, traduzível, ou não, em pronúncia, pois esta depende da apreciação a realizar em sede de instrução cujo mérito não é objeto do recurso.
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IV.
Decisão:
Por todo o exposto, acordam os Juízes Desembargadores que compõem a 1ª Secção deste Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento, ainda que parcial, ao recurso do assistente AA e, em consequência, decidem revogar o despacho recorrido que deverá ser substituído por outro que declare aberta a instrução e determine o prosseguimento dessa fase processual com a realização das diligências instrutórias que forem julgadas adequadas.
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Sem custas.
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Porto, 04 de dezembro de 2024
José Quaresma
Pedro Vaz Pato
Pedro Afonso Lucas