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LIQUIDAÇÃO
QUANTIA EXEQUENDA
NULIDADE DA SENTENÇA POR FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
Sumário
I - Perante dois entendimentos distintos sobre como efetuar a liquidação da quantia exequenda, impõe-se um mínimo de fundamentação em que se explique a razão por que se aderiu a um dos entendimentos. II - Limitando-se o despacho a ordenar que a execução prossiga em conformidade com a liquidação efetuada pela Exequente, sem apresentar qualquer razão de facto ou de direito, verifica-se total omissão de fundamentação, que não simples insuficiência, a impor a anulação do despacho. III - Tendo-se concluído pela nulidade da decisão, o Tribunal da Relação deve averiguar se é possível colmatá-la em sede de recurso, face à regra de substituição ao tribunal recorrido consignada no art.º 665º do CPC.
Texto Integral
Apelação nº 13092/21.0T8PRT.P1
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO
I – Resenha do processado
1. A... Unipessoal, Lda instaurou ação executiva contra AA pretendendo obter o pagamento coercivo do montante de €3.410.332,97.
No requerimento executivo, a Exequente alegou, resumidamente, o seguinte: adquiriu o crédito exequendo por cessão de créditos, à B... Company, a qual, por sua vez, os havia adquirido à Banco 1..., S.A.
O objeto do contrato incluiu um conjunto de créditos vencidos, incluindo um crédito sobre a sociedade comercial C..., Lda. A cessão de créditos incluiu a transmissão de todos os direitos, garantias e acessórios, designadamente a hipoteca que garantia o crédito cedido.
A Banco 1... havia celebrado com a C... um contrato de abertura de crédito até ao montante de € 470.000.000$00, garantido por hipoteca celebrada sobre um terreno para construção urbana, onde já se encontrava em construção um edifício. Essa hipoteca abrangia também as edificações urbanas e benfeitorias que nele fossem implantadas.
A C... não cumpriu o contrato e foi declarada insolvente.
Sobre a fração AF do imóvel encontra-se registada uma promessa de alineação, tendo havido uma decisão judicial, também registada, que declarou que em substituição da C..., se determina a transmissão do direito de propriedade do imóvel para a Executada.
A Exequente pretendeu assim executar a hipoteca, pelo correspondente valor em dívida.
A Executada deduziu embargos, alegando nunca ter celebrado qualquer contrato com a Exequente; ter celebrado com a C... um contrato promessa de compra e venda da fração “AF”; que, tendo sido incumprido, lhe moveu ação de execução especifica, que foi julgada procedente por sentença transitada em julgado. A C... só foi declarada insolvente após essa sentença; não obstante, a referida fração foi apreendida a favor da massa insolvente; a Executada expôs a situação ao juiz titular do processo de insolvência, que determinou lhe fosse restituída a fração.
A Exequente contestou os embargos, alegando que na sentença de execução específica não foi determinado o cancelamento da hipoteca; que a restituição que foi determinada no processo de insolvência teve por base a impossibilidade de serem apreendidos para a massa insolvente bens de terceiro, não resultando também qualquer cancelamento de hipoteca. A hipoteca é anterior ao registo do contrato-promessa, pelo que prevalece sobre o respetivo registo, não lhe sendo oponível.
A Mmª Juíza conheceu do mérito dos embargos em sede de despacho saneador-sentença, julgando-os improcedentes.
A Executada recorreu de tal decisão.
Por acórdão proferido por esta Relação em 30/06/2022 foi decidido:
· ordenar se proceda em 1ª instância à retificação da parte decisória da sentença recorrida, por forma a que, onde consta «(…) determinando a manutenção da penhora que incide sobre a fração “F” e o prosseguimento da execução (…)», passe a constar «(…) determinando a manutenção da penhora que incide sobre a fração “AF” e o prosseguimento da execução (…)».
· revogar a decisão recorrida e, em sua substituição, determinar se profira despacho de aperfeiçoamento convidando a Exequente a proceder à liquidação da quantia exequenda, respeitando a permilagem da fração da Executada na totalidade do imóvel, bem como os juros, que não podem exceder três anos.
Entretanto, havia sido efetuada a penhora da fração autónoma AF, com um valor tributável de € 86.883,83. E foram citados os credores. Nenhum crédito foi reclamado.
A Sr.ª Agente de Execução (AE) notificou as partes para se pronunciarem sobre a modalidade da venda.
A Executada veio suscitar a nulidade da notificação e quaisquer atos praticados pela AE após o trânsito em julgado do acórdão, dando nota de que a Exequente ainda não havia procedido à liquidação ordenada no acórdão.
A Mmª Juíza proferiu despacho considerou assistir razão à Executada, determinando a suspensão da venda e convidando a Exequente a proceder à liquidação da responsabilidade da executada nos termos determinados no acórdão.
2. A Exequente veio então requerer o prosseguimento da ação executiva pelo valor de € 2.949.932,97, considerando:
· ter já recebido no âmbito da insolvência do devedor C... e acordos extrajudiciais, o valor de € 460.400,00 que se abateram ao valor executado 3.410.332,97;
· a hipoteca que foi cedida à Exequente foi constituída antes da propriedade horizontal, pelo valor de € 3.062.237,01;
· não se venderam todos os imoveis que tem a referida hipoteca, e não se sabe o valor exato de avaliação não se pode estimar a proporcionalidade da hipoteca que garante este imóvel, uma vez que sendo genérica está abrangida pela mesma.
Exercendo o contraditório, a Executada requereu o indeferimento do prosseguimento da execução pelo valor pretendido de € 2.949.932,97, considerando que tal não dá cumprimento ao determinado no acórdão, ignorando a necessidade de liquidar a quantia exequenda que tem que respeitar a permilagem da fração da executada na totalidade do imóvel, bem como os juros, que não podem exceder três anos.
A Mmª Juíza emitiu o seguinte despacho: «Uma vez que a quantia exequenda não se mostra liquidada de acordo com o doutamente determinado pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto, deverá a exequente reformular aquela liquidação, respeitando o valor da permilagem da fração dos executados e o limite dos juros referente a apenas três anos, sem prejuízo do disposto no art.º 281º, do C.P.C.»
A Exequente, após prorrogação do prazo, veio proceder à liquidação nos seguintes termos:
«3. Vertida a douta decisão, quanto ao caso concreto, efetuado o cálculo de juros, à taxa de 4%, tal como indicado no requerimento executivo, sob o capital em dívida de 1.859.718,48€, desde a data de incumprimento – 05/05/2005 a 05/05/2008 – logramos apurar o valor de 223.370,02€, a título de juros, no total em divida de 2.083.088,50€.
4. Tomando por referência a decisão proferida no presente processo, a responsabilidade da executada terá de ser apurada por referência à proporcionalidade dentro do conjunto das frações ainda abrangidas pela hipoteca, segundo uma ‘regra de três simples’: se o conjunto da permilagem das frações não distratadas responde pela totalidade do crédito ainda em dívida, então a permilagem de cada uma dessas frações corresponde a determinada parte desse crédito.
5. Aplicando essa ‘regra de três simples’ ao caso em apreço, obteremos, necessariamente, o seguinte resultado:
✓ Nr. de fracções com hipoteca ainda não distratadas: 6 (seis)
✓ Permilagem de cada uma das frações na totalidade do prédio (conforme ficou definido por decisão já transitada em julgado e, cuja certidão predial se junta como documento nº 1):
▪ Fracção H: 19
▪ Fracção I: 24
▪ Fração J: 24
▪ Fração Q: 21
▪ Fração AO: 19
▪ Fração AT: 3
▪ Total de Permilagem: 110
✓ Montante em dívida: 2.083.088,50€
✓ Percentagem de responsabilidade da executada, garantida pela hipoteca, correspondente à permilagem da fração AF:
▪ Fracção AF: 378.743,37€
6. A este montante sempre acrescerão despesas e honorários com o processo e a Sra. Agente de Execução.
7. Assim, e como já referido supra, a garantia hipotecária será apenas a correspondente à permilagem da fração autónoma da executada, atingindo-se essa percentagem através de uma “regra de três simples” conforme cálculos enunciados no antecedente artigo 5.
8. O que se requer junto de V. Exa, dando assim cumprimento ao ordenado pelo douto Tribunal, conforme teor do douto despacho que antecede.»
A Executada veio pronunciar-se considerando que a liquidação efetuada não dá total e cabal cumprimento ao acórdão, porquanto:
· a hipoteca só permite exigir aos executados o valor das prestações vencidas e dos juros, desconhecendo-se aqui se o valor peticionado corresponde efetivamente a essa quantia ou se porventura foram contemplados outras despesas, assim como não é feita prova, nem tão pouco menção expressa das frações já distratadas à data do incumprimento, 05/05/2005, e as que faltavam distratar, os montantes entretanto pagos e a que título, e se efetivamente essas quantias foram deduzidas ao capital em dívida, sendo apenas feita uma referência genérica, e às frações ainda não distratadas (6), contudo sem qualquer menção expressa à fração em causa (AF) e respetiva permilagem.
· mesmo a admitir-se os valores mencionados no requerimento executivo como tendo sido deduzidos ao capital, por simples cálculo aritmético obtemos o valor de 1.734.735,77€ (2.334 350,12€ - 246.640,00€ - 50.240,00€ - 56.000,00€ - 59.250,00€ 50.000,00€ -103.484,35€- 44.000,00€= 1.734.735,77€), e não de 1.859.718,48€, sendo o erro manifesto.
· não é junto qualquer documento comprovativo dos valores em dívida, nem dos valores pagos antes ou após o incumprimento, nem a executada teve algum conhecimento ou intervenção no contrato, e consequente incumprimento, nem tão pouco das hipotecas que, entretanto, foram sendo expurgadas, e como tal não sendo alegada e junta tal informação não dispõe de elementos para o aferir e ou comprovar.
· deve, pois, determinar-se a retificação do requerimento, devendo o mesmo ser devidamente instruído, e com prova cabal de todos os elementos que permitam à executada confirmar o alegado, e valor peticionado, nos termos do determinado no douto acórdão proferido e transitado em julgado.
A Mmª Juíza proferiu o seguinte despacho:
«Tenha-se em atenção a liquidação efectuada pela exequente.
Quanto à venda, deve a mesma prosseguir, tendo-se em consideração liquidação ora efectuada.»
3. Inconformada com tal decisão, dela apelou a Executada, formulando as seguintes conclusões [[1]]:
1) O presente recurso prende-se com o douto despacho proferido pelo Tribunal “a quo”, no qual se decidiu: “Tenha-se em atenção a liquidação efectuada pela exequente. Quanto à venda, deve a mesma prosseguir, tendo-se em consideração liquidação ora efectuada.”
2) Salvo o devido respeito por outra melhor opinião, o despacho que se recorre é nulo desde logo por falta de fundamentação, atento o disposto no artigo 154º do CPC;
3) E, ainda, por omissão de pronúncia relativamente ao alegado pela executada, ora recorrente, nos termos do disposto no art. 615.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil.
Senão vejamos,
4) A exequente A... Unipessoal, Lda intentou a presente execução sumária (…)
6) A recorrente está na posse da fração AF, exercendo todos os direitos de proprietária, como é, usando e fruindo da mesma, à vista de toda a gente, desde pelo menos 19/05/2006, data da outorga do contrato promessa com eficácia real, sendo certo que o contrato promessa com efeitos meramente obrigacionais remonta a 1 de junho de 2003.
7) Jamais a ora recorrente foi interpelada pela Banco 1..., ou pela B..., ou pela ora exequente, a não ser com a propositura da presente execução e diligencias que antecederam, para proceder ao pagamento de qualquer quantia.
8) A recorrente comprou a fração AF, e pagou o respetivo preço, 83.500,00€, atuando de boa-fé no cumprimento das suas obrigações, nos termos do disposto no artigo 762º do CC.
9) A executada, deduziu embargos de executado, apenso A, (…)
10) Inconformada com a decisão proferida, a executada interpôs o competente recurso para o Tribunal da Relação do Porto, tendo sido proferido douto acórdão, entretanto transitado em julgado, nos seguintes termos: (…)
11) Após ser proferido o douto Acórdão, a exequente tentou o prosseguimento da execução, o que não logrou, uma vez que não deu cumprimento ao ali determinado.
12) A exequente por requerimentos de 20/03/2024 e 22/03/2024 (referências 38536021 e 38559797), requereu o seguinte: (…)
13) A executada, no exercício do contraditório, pronunciou-se alegando (…)
14) O tribunal “a quo”, profere despacho (referência 459698976) nos seguintes termos: (…)
15) Tal como se referiu é deste despacho que se recorre.
16) O douto despacho limita-se a ordenar que se tenha em consideração a liquidação apresentada pela exequente.
17) O despacho proferido é completamente omisso sobre o alegado e requerido pela executada no seu requerimento de 11/04/2024 (refª 38719914).
18) E para além de omissão de pronúncia, do mesmo não resulta qualquer fundamentação de facto e ou de direito para decidir naqueles termos.
19) E, pois, assim, o mesmo despacho padece de vícios que implicam a sua nulidade, e consequente anulação de todos os atos praticados à posteriori.
20) Quer por omissão de pronúncia, atento o disposto no artigo º do no nº 1, al. b) do artº 615º do CPC.
21) Quer por falta de fundamentação, atento o disposto no art.º 154º do CPC.
22) Aliás, conforme douto entendimento vertido no Acórdão do STJ de 05/05/2005 in www.dgsi.pt; Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 17/11/2004, e ainda Acórdão do TRG de 21-05-2015, proc. nº 1/08.0TJVNF-EK.G1 in www.dgsi.pt
Acresce que,
23) Salvo o devido respeito por outra melhor opinião, os requerimentos da exequente de 20/03/2024 e 22/03/2024 (referências 38536021 e 38559797), não dão total e cabal cumprimento ao determinado no douto acórdão.
24) Uma vez que no mesmo não é junta a escritura de constituição de propriedade horizontal, contrato de mútuo, prestações pagas e não pagas, e consequente valor das prestações vencidas, juros, despesas, frações já distratadas à data do incumprimento, 05/05/2005, e montantes recebidos a esse título, bem como as que faltavam distratar, montantes entretanto pagos e a que título, etc.
25) A alegação e comprovação de tais factos são condição sine qua non para a liquidação da execução, aliás na esteira do decidido no douto acórdão, e uma vez que a executada, conforme decorre amplamente dos autos não teve qualquer intervenção no contrato de empréstimo celebrado entre a C... e a Banco 1... e como tal desconhece os seus termos e consequente incumprimento, pagamentos, distrates, etc.
26) Acresce que, mesmo a aceitar-se os cálculos apresentados, o que apenas se consente por mero raciocínio, os mesmos partiram de uma premissa errada, uma vez que por simples cálculo aritmético obtemos o valor de 1.734.735,77€ (2.334 350,12€ - 246.640,00€ - 50.240,00€ - 56.000,00€ - 59.250,00€ 50.000,00€ -103.484,35€- 44.000,00€= 1.734.735,77€), e não de 1.859.718,48€, como se pretende, com naturais repercussões no cálculo de juros.
27) Não é alegado, de forma discriminada, nem junto qualquer documento comprovativo dos valores em dívida, nem dos valores pagos antes ou após o incumprimento, nem a executada teve algum conhecimento ou intervenção no contrato, e consequente incumprimento, nem tão pouco das hipotecas que, entretanto, foram sendo expurgadas, e como tal não sendo alegada e junta tal informação não dispõe de elementos para aferir e ou comprovar a pretendida liquidação da execução.
28) O requerimento da exequente (ref 38536021 e 38559797) não dá cumprimento ao doutamente determinado no Acórdão proferido pelo TRP, e como tal a execução não pode prosseguir os seus termos.
29) O douto despacho, violou entre outros o disposto nos artigos 2º CRP, 154º, 615º nº 1 b), 716º e 724º nº 1 al h), 687 e 693 nº 2 todos do CPC.
Nestes termos e nos melhores de direito, doutamente supridos por v/ exas., deve ser dado provimento ao presente recurso e a douta decisão revogada de acordo com as alegações e conclusões que antecedem, por assim ser de Justiça!!!
4. A Exequente não contra-alegou.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II - FUNDAMENTAÇÃO
5. Apreciando o mérito do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art.º 615º nº 1 al. d) e e), ex vi do art.º 666º, 635º nº 4 e 639º nº 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC).
No caso, são as seguintes as questões a decidir:
· Nulidade da decisão por ausência de fundamentação
· Nulidade da decisão por omissão de pronúncia
5.1. Nulidade da decisão por ausência de fundamentação
Prescreve o art.º 615º do CPC: 1 - É nula a sentença quando: b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; (…) d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;(…).
À exceção dos atos meramente ordenadores do processo e dos despachos de mero expediente, compete ao juiz fundamentar todas as decisões tomadas: art.º 154º nº 1 do CPC: 1 - As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre justificadas. 2 - A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade.
A relevância de tal fundamentação fica demonstrada com o facto de a lei cominar com a nulidade a sentença ou despacho que não obedeça a tal comando: art.º 615º nº 1 al. b) do CPC.
Mesmo que o CPC não o referisse, essa necessidade de fundamentação resultaria por imposição direta do art.º 205º nº 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP): “as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.
Será esta fundamentação que assegura ao cidadão o controlo da decisão e permitirá ao Tribunal de recurso a sindicância do bem ou mal julgado.
Essa fundamentação deve ser expressa e, ainda que sucinta, deve ser suficiente para permitir o controlo do ato.
Por outro lado, é entendimento jurisprudencial unânime que só «(…) ocorre falta de fundamentação de facto da decisão judicial, quando exista falta absoluta de motivação ou quando a mesma se revele gravemente insuficiente, em termos tais que não permitam ao respetivo destinatário a perceção das razões de facto da decisão judicial» [[2]]
E cremos que esse é o caso do despacho aqui em crise.
Na verdade, perante dois entendimentos distintos sobre como efetuar a liquidação da quantia exequenda, impunha-se um mínimo de fundamentação em que se explicasse a razão por que se aderiu a um dos entendimentos.
Efetuada a liquidação pela Exequente, impunha-se desde logo à Sr.ª Juíza que verificasse se a mesma respeitava e cumpria o ordenado no acórdão.
Para além disso, veio a Executada impugnar a liquidação efetuada apresentando motivação circunstanciada.
Assim, teria a Mmª Juíza que tomar posição sobre as questões/argumentos da Executada, considerando-as procedentes ou não.
Não o fez, limitando-se a ordenar que a execução prosseguisse em conformidade com a liquidação efetuada pela Exequente, sem apresentar qualquer razão de facto ou de direito.
Verifica-se, pois, total omissão de fundamentação, que não simples insuficiência, a impor a anulação do despacho. [[3]]
Face ao que acaba de se concluir, fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso: art.º 663º nº 2, ex vi do art.º 608º nº 2, ambos do CPC.
5.2. Possibilidade de colmatar a nulidade
Tendo-se concluído pela nulidade da decisão, incumbe a este Tribunal averiguar se é possível colmatá-la aqui em sede de recurso, face à regra de substituição ao tribunal recorrido consignada no art.º 665º do CPC.
Apesar do título apresentado à execução ser considerado autêntico, há que relembrar que no caso em apreço estamos perante uma Executada que não é a devedora originária, uma execução hipotecária em que a responsabilidade da Executada reside na exata medida do valor da fração autónoma de que é proprietária.
Assim, nos termos do art.º 610º nº 2 al. b) do CPC, incumbia à Exequente referir no requerimento executivo se efetuou a interpelação da Executada, e em que data o fez.
A Exequente nada alegou pelo que há que contar com a data da citação, que atuará como data da interpelação: art.º 804º nº 1 e 3 do Código Civil (CC). [[4]] A citação da Executada ocorreu em 21/10/2021.
Depois, como segunda nota, a obrigação que incumbia sobre a Exequente de proceder à liquidação da quantia exequenda, alegando todos os factos, e juntando os documentos comprovativos — art.º 724º nº 1 al. e) e h) do CPC —, aqui absolutamente essenciais para que a Executada, que não é devedora originária, nem interveio em qualquer dos contratos anteriores, possa sindicar a obrigação que lhe está a ser exigida.
Como já ficou decidido no acórdão proferido nestes autos em 30/06/2022, a Executada não é responsável pela totalidade do valor ainda em dívida pela C... à Banco 1.../A..., mas apenas pelo valor da sua fração autónoma, sendo que esse valor é o correspondente à permilagem da fração autónoma.
Ora, olhado o requerimento executivo, vemos que a Executada alega que o valor em dívida é de € 3.410.332,97 (€ 1.859.718,48 de capital + € 1.550.614,49 de juros de mora), mas não demonstra como o calculou, face a tudo o que recebeu anteriormente (por exemplo, de distrates de outras hipotecas, eventual recebimento no processo de insolvência, etc.).
Resulta da certidão da Conservatória de Registo Predial (CRP) junta com o requerimento executivo que da constituição da propriedade horizontal nesse imóvel (14/11/2000) resultaram 46 frações autónomas (de “A” a “AT”).
A Exequente alega ainda que a Banco 1..., SA, apresentou reclamação de créditos no processo de insolvência da mutuária C..., Lda, e que, aquando da apresentação da mesma, a hipoteca já apenas abrangia as frações B, C, D, F, H, I, J, K, L, M, N, O, P, Q, R, U, W, AA, AD, AF, AG, AI, AJ, AO, AS e AT (26 frações, portanto), uma vez que relativamente às restantes frações, foram expurgadas as hipotecas no decurso da vigência do contrato.
Depois, já em sede da liquidação que efetuou depois do acórdão, através do requerimento de 22/03/2024, ref.ª Citius 38559797, a Exequente refere apenas 6 frações (“H”, “I”, “J”, “Q”, “AO”, “AT”), além da fração aqui penhorada, “AF”, um total de 7 frações.
Naturalmente que as contas a efetuar darão um resultado muito diferente, consoante se considerem 26 frações (requerimento executivo) ou 7 frações (requerimento de 22/03/2024).
Tudo isto para significar que este Tribunal não pode colmatar a nulidade, procedendo agora à liquidação, uma vez que os autos não reúnem os necessários elementos para o efeito, designadamente a definição clara de quais as frações que já expurgaram a hipoteca e as que ainda permanecem vinculadas à garantia hipotecária.
Já vimos que a data relevante é a da citação, e não a do requerimento executivo, ou da reclamação de créditos ou de 22/03/2024. Assim, terá a Executada de proceder à liquidação, considerando a data da citação. E, nessa data (em 21/10/2021), efetuar e demonstrar:
· qual o valor ainda em dívida;
· quantas frações existiam ainda com a hipoteca por distratar;
· qual a permilagem de cada uma dessas frações.
Depois de definidos esses elementos, será simples efetuar as operações matemáticas para concretizar o valor da permilagem da fração da Executada, que será o valor da sua responsabilidade.
E sem deixar de atender que os juros moratórios também só podem ser exigidos os referentes aos 3 anos anteriores a mesma data da citação (21/10/2021), devendo incidir sobre o montante que se vier a apurar ser o valor da permilagem da fração da Executada.
III. DECISÃO 7. Pelo que fica exposto, acorda-se nesta secção cível da Relação do Porto julgar nulo e de nenhum efeito o despacho proferido em 06 de maio de 2024 (ref.ª 459698976) e determinar se proceda à notificação da Exequente para proceder à liquidação da quantia exequenda em conformidade com o referido no ponto 5.2. deste acórdão.
Custas do recurso a cargo da Exequente, face ao decaimento (art.º 527º nº 2 do CPC).
Porto, 05 de dezembro de 2024
Relatora: Isabel Silva
1º Adjunto: João Venade
2º Adjunto: Paulo Duarte Teixeira
________________________
[[1]] Consigna-se que se transcrevem apenas o que integra efetivas conclusões, desconsiderando o que se reporta a simples “relatório” do processado, já efetuado nos pontos anteriores desta peça. [[2]] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), de 13/09/2022, processo n.º 773/19.7T8CBR.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt//, sítio a ter em conta nos demais arestos que vierem a ser citados sem outra menção de origem. No mesmo sentido, e do mesmo STJ, acórdão de 10/12/2020, processo nº 709/12.6TVLSB.L1.S1. [[3]] Cf. acórdãos do STJ, de 17.04.2007 (processo 07B956) e de 24.01.2008 (processo 07B3813). [[4]] «É evidente que, (…), por força do estipulado no artigo 805º, nº 1, do Código Civil, que confere plena relevância à interpelação judicial – a qual, como é óbvio, se poderá naturalmente consubstanciar na citação para o processo executivo.» - Lopes do Rego, in “Requisitos da Obrigação Exequenda”, publicado na Themis, Revista da Faculdade de Direito da UNL, ano IV, nº 7, 2003, Almedina, pág. 70-71. No mesmo sentido, acórdão do STJ de 26/03/1992, processo nº 080827.