OBJECTO DO RECURSO
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA
Sumário

I - O tribunal da Relação não pode suspender a execução da pena aplicada ao arguido, se este restringiu o recurso à questão da culpabilidade.
II - O vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada só ocorre quando o tribunal, podendo fazê-lo, deixou de investigar um ou mais factos com relevância, de tal forma que a matéria de facto dada como provada não permite a adequada decisão de direito.
III - Aquele vício não se confunde com o vício de insuficiência da prova.

Texto Integral

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:

Na -ª vara criminal da comarca do....., procedeu-se ao julgamento do arguido Ulisses....., em processo comum com intervenção do tribunal singular, tendo no final sido proferido acórdão onde se decidiu condená-lo, pela prática de um crime de passagem de moeda falsa p. e p. pelo artº 265º, nº 1, alínea a), do CP, na pena de 1 ano e 3 meses de prisão.

Desse acórdão interpôs recurso o arguido, sustentado, em síntese, na sua motivação:
- O tribunal recorrido errou ao dar como provado que o recorrente sabia que as notas eram falsas.
- E de que tinha consciência da ilicitude da sua conduta.
- Foi violado o princípio in dubio pro reo.
- Ocorrem os vícios previstos no artº 410º, nº 2, alíneas a) e c), do CPP – insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e erro notório na apreciação da prova.
- Em consequência, deve ser absolvido.

O recurso foi admitido.
Respondendo o Mº Pº na 1ª instância defendeu a manutenção da decisão recorrida.
Nesta instância, o senhor procurador-geral adjunto foi de parecer que
- a pretensão de absolvição do recorrente é infundada;
- deve suspender-se a execução da pena.
Foi cumprido o artº 417º, nº 2, do CPP.
No despacho referente ao exame preliminar do processo, o relator pronunciou-se pela rejeição do recurso, por manifesta improcedência.
Corridos os vistos, cumpre decidir.

Fundamentação:

O recorrente impugna a decisão proferida sobre matéria de facto, podendo fazê-lo, visto a prova ter sido documentada, mediante gravação. Pretende não se ter provado que
- soubesse que as notas eram falsas;
- tivesse consciência da ilicitude da sua conduta.
Não cumpriu o ónus imposto pelo artº 412º, nºs 3, alínea b), e 4, do CPP, pois não especificou, por referência aos suportes técnicos, as provas que, em seu entender, impunham decisão diversa da recorrida. Sobre a referência aos suportes técnicos, tanto a motivação como as conclusões são totalmente omissas. Era em função dessa especificação que devia fazer-se a transcrição. É que, como diz Germano Marques da Silva, não se destinando o recurso em matéria de facto a um novo julgamento, constituindo apenas remédio para os vícios do julgamento em 1ª instância, as transcrições a fazer são apenas aquelas que na perspectiva do recorrente são importantes para a decisão do recurso (Forum Iustitiae, Maio de 1999, página 22). Quer isto dizer que não irá ser feito pela Relação o reexame da totalidade das declarações produzidas na audiência de julgamento na 1ª instância, que foram transcritas.
Mas, não obstante o recorrente não as ter identificado com referência aos suportes técnicos, as provas em que baseia a sua crítica à decisão de facto constam da motivação, sendo constituídas por declarações de pessoas ouvidas na audiência, declarações essas que ele próprio transcreveu e são por isso acessíveis a este tribunal de recurso. E essas transcrições, não tendo a sua fidedignidade sido posta em causa pelo recorrido, têm de considerar-se como boas.
Irá, pois, conhecer-se em matéria de facto com a amplitude do artº 412º, nºs 3 e 4.
Com vista a fazer valer a sua pretensão de que não se provou que sabia serem falsas as notas, o recorrente argumenta com as declarações dele próprio e das testemunhas Manuel....., agente da PSP, Fátima....., empregada que atendeu o recorrente num dos estabelecimentos, Marta....., empregada no outro estabelecimento, e Elizabete....., irmã dele.
As testemunhas Manuel...... e Elizabete..... nada mostraram saber sobre o facto em discussão, pois apenas se fizeram eco do que o arguido lhes disse.
O recorrente negou saber que as notas eram falsas. Mas, essa afirmação não mereceu credibilidade ao tribunal recorrido e tem contra si factos objectivos que a contrariam. Desde logo, a circunstância, afirmada, sem oposição, pela testemunha Marta....., de o arguido, numa das lojas, depois de ter aceite o preço de 9.500$00 de um objecto que disse pretender comprar, pedir à empregada que o atendeu que embrulhasse tal artigo e, quando ela virou costas para ir buscar um saco para o embrulho, ter agarrado nesse objecto e ido embora, deixando em cima do balcão a nota falsa que aparentava ser de 10.000$00. Mandam efectivamente as regras da lógica concluir que, se desconhecesse que a nota era falsa, o arguido, de modestos recursos económicos, não iria embora sem o troco de 500$00. E só a consciência de que a nota era falsa dá sentido ao acto de abandonar o estabelecimento com o objecto sem estar embrulhado, depois ter pedido para ser embrulhado, sem que tivesse havido qualquer demora no atendimento do pedido. Além disso, nesse estabelecimento, o arguido nem precisaria de entregar para pagamento uma nota de 10.000$00, visto que acabara de receber de troco no outro estabelecimento a quantia de 9.650$00.
As declarações da testemunha Fátima...... que o recorrente usa na sua argumentação não são no sentido de que o arguido não sabia que as notas eram falsas. Bem ao contrário, pois essas declarações são de “que a nota que recebeu do arguido era diferente das outras; era mais baça”.
Assim, com toda a evidência, as provas em que o recorrente se baseia não impõem decisão diversa da recorrida.
O recorrente fala ainda nos vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e do erro notório na apreciação da prova, previstos, respectivamente, nas alíneas a) e c) do nº 2 do artº 410º do CPP.
O segundo destes vícios estaria em o tribunal recorrido ter dado como provado que o arguido sabia que as notas eram falsas, quando esse facto foi por ele negado e não foi afirmado por qualquer das pessoas ouvidas na audiência. Mas, o erro notório na apreciação da prova tem de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. E, como é por demais evidente, não viola essas regras dar como provado que o arguido sabia que as notas eram falsas, com base em indicações nesse sentido dadas por algumas das pessoas ouvidas na audiência de julgamento.
Não tem qualquer fundamento a invocação de violação do princípio in dubio pro reo, na medida em que não só o acórdão recorrido não dá indicação de qualquer dúvida que tenha sido resolvida em desfavor do arguido, como, em face das indicações referidas, não se vê que o tribunal devesse razoavelmente ter dúvidas sobre a verificação do facto que se discute.
O primeiro daqueles vícios estaria de igual modo em o tribunal recorrido ter dado como provado que o arguido sabia que as notas eram falsas sem que se tivesse feito prova disso. Mas, esta alegação nada tem a ver com o vício do artº 410º, nº 2, alínea a). A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada só existe quando o tribunal, podendo fazê-lo, deixou de investigar um ou mais factos com relevância, de tal forma que a matéria de facto dada como provada não permite a adequada decisão de direito. E não é isso que se alega.
O recorrente confunde, pois, insuficiência da matéria de facto para a decisão com insuficiência da prova.
Se não foi feita prova bastante de um facto que o tribunal deu como provado, o que há é um erro na apreciação das provas, e já se viu que no caso isso não acontece.
O recorrente só impugnou a falta de consciência da ilicitude da sua conduta como decorrência da pretensão de que não se provara que sabia serem falsas as notas. Não defende, nem podia razoavelmente defender, que, sabendo serem as notas falsas, desconhecia que era proibida e punida por lei a sua colocação em circulação.
Não procedendo as críticas que o recorrente dirige à decisão proferida sobre matéria de facto e não se vislumbrando outros vícios cujo conhecimento seja oficioso, tem-se como definitiva essa decisão.
O recorrente não põe em causa que os factos dados como provados integram o crime pelo qual foi condenado. E efectivamente integram.
A determinação da pena não faz parte do objecto do recurso.
O recurso é, pois, manifestamente improcedente, devendo por isso ser rejeitado, nos termos do artº 420º, nº 1, do CPP.
O senhor procurador-geral adjunto colocou a hipótese de suspensão da execução da pena.
Mas, o recorrente limitou o recurso à questão de saber se se provaram os factos integradores do crime por que foi condenado, não abrangendo nele a matéria respeitante à pena.
O artº 402º, nº 1, do CPP diz que o recurso interposto de uma sentença abrange toda a sentença, mas “sem prejuízo do disposto no artigo seguinte”. E o artº 403º refere no seu nº 1: É admissível a limitação do recurso a uma parte da decisão quando a parte recorrida puder ser separada da parte não recorrida, por forma a tornar possível uma apreciação e uma decisão autónomas. E na alínea c) do nº 2 diz que, para esse efeito, a questão da culpabilidade é autónoma da questão da determinação da sanção.
Assim, sendo o recurso limitado à questão da culpabilidade, não pode apreciar-se a questão de saber se deve ou não suspender-se a execução da pena de prisão aplicada ao arguido, a qual não é de conhecimento oficioso.

Decisão:

Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação em rejeitar o recurso, por manifesta improcedência.
O recorrente vai condenado a pagar 3 UCs, ao abrigo do nº 4 daquele artº 420º.

Porto, 10 de Dezembro de 2003
Manuel Joaquim Braz
Luís Dias André da Silva
Fernando Manuel Monterroso Gomes