AÇÃO DE SIMPLES APRECIAÇÃO NEGATIVA
ÓNUS DE ALEGAÇÃO E PROVA
PEDIDO RECONVENCIONAL
SENTENÇA
Sumário

I - Na acção de simples apreciação negativa o réu pode limitar-se a uma defesa por impugnação ou deduzir reconvenção, pedindo a condenação do autor a reconhecer a existência o seu direito.
II - Só nesta última situação recai sobre o réu o ónus de provar os factos constitutivos do seu direito; cabendo subsequentemente ao autor o ónus de alegar na réplica e provar os factos integradores das excepções que entenda opor ao direito do réu.
III - Não havendo reconvenção, o desfecho da acção de simples apreciação negativa só pode ser, no caso de procedência da acção, a declaração judicial de o direito não existe, ou, no caso de improcedência, a absolvição da ré do pedido, não a declaração judicial de que o direito existe e/ou tem uma determinada configuração.

Texto Integral

RECURSO DE APELAÇÃO
ECLI:PT:TRP:2024:13867.22.2T8PRT.P1

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SUMÁRIO:
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ACORDAM OS JUÍZES DA 3.ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:


I. Relatório:
AA e mulher BB, contribuintes fiscais n.º ...36 e ...14, respectivamente, residentes em França, instauraram acção judicial contra a Banco 1..., SA, pessoa colectiva n.º ...46, com sede em Lisboa, formulando contra esta os seguintes pedidos: dar-se como provado que os autores nada devem à ré e, consequentemente, ser retirada a divida comunicada ao Banco de Portugal, pelo facto da m esma ter sido paga com o produto da venda do imóvel.
Para fundamentar o seu pedido alegaram que em 1998 adquiriram uma casa e um terreno, com recurso a um crédito do Banco 2..., posteriormente adquirido pela ré; por dificuldades várias deixaram durante vários anos de cumprir as suas obrigações perante o banco e emigraram; em meados de 2021 souberam que um dos imóveis, sobre os quais ficou registada hipoteca a favor do banco, ainda é sua propriedade, o outro foi adquirido por outra empresa pelo preço de €56.050,00 e a ré comunicou ao Banco de Portugal uma divida dos autores no valor de €55.973,58; como o imóvel foi vendido pelo preço de €56.050,00 crê-se que tal divida já estaria paga, tanto mais que os autores nunca foram interpelados pela ré para o pagamento de qualquer valor em dívida; na hipótese da ré vir agora avançar com mais algum valor em débito, os autores invocam já a prescrição, nos termos dos artigo 303 e seguintes do Código Civil.
A ré foi citada e apresentou contestação, defendendo a improcedência da acção e alegando para o efeito que os autores contraíram junto do ex-Banco 2..., em 24.4.1998, um financiamento no montante de €72.325,70, para adquirirem a casa de habitação descrita no registo predial sob o nº ...01 e a parcela de terreno descrita no registo predial sob o nº ...00; os autores apenas pagaram as prestações vencidas entre Maio e Outubro de 1998, no valor, em capital, de € 47,22; em virtude do incumprimento e porque dispunha de hipoteca sobre os imóveis a ré instaurou execução contra os autores em 22.6.2002, pelo valor de €90.999,45, sendo €72.069,38 de capital e o remanescente de juros e comissões; nessa execução, a casa de habitação foi penhorada e depois arrematada pela Banco 1..., em 19.4.2004, pelo valor de €49.900,00; desse produto da venda a ré aplicou, em 2007, o valor de €47.371,00 na amortização parcial da dívida, mediante cobrança sequencial das prestações vencidas desde a mais antiga até à mais recente; a parcela de terreno também foi arrematada pela Banco 1..., pelo valor de €7.000,00, não tendo, contudo a Banco 1... procedido ao registo da aquisição, a seu favor, com o inerente cancelamento dos ónus, nem à aplicação do valor na amortização parcial do empréstimo porque ainda está a diligenciar, junto do processo judicial, pela obtenção do título de transmissão, sem o qual não pode proceder a tais registos; o produto da venda dos imóveis é insuficiente para liquidação integral da dívida dos autores, pelo que a comunicação à Central de Responsabilidades do Banco de Portugal é correcta.
Os autores apresentaram articulado que intitularam resposta à contestação (cuja apresentação a autora questionou e sobre o qual nunca foi proferido despacho de admissão), refutando as contas feitas pela ré e sustentando que as mesmas não fazem sentido.
Realizado julgamento foi proferida sentença, tendo a acção sido julgada improcedente e a ré absolvida do pedido.
Do assim decidido, os autores interpuseram recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
1. A 05/08/2022, os autores, ora recorrentes, intentaram no Tribunal a quo a presente acção declarativa, com processo comum contra a ré Banco 1..., SA, aqui recorrida, com vista a: - dar como procedente por provada a presente acção e em consequência disso, que os autores nada devem a aqui Ré e, consequentemente, ser retirada a divida comunicada ao Banco de Portugal, pelo facto da mesma ter sido paga com o produto da venda do imóvel, tudo com as demais consequências.
2. Alegaram para tanto, que o valor comunicado ao Banco de Portugal - € 55.973,58, que nunca lhes foi pedido pela ré como débito dos autores, aqui recorrentes à ré aqui recorrida já havia sido pago pelo produto da venda dos imóveis, tendo inclusive juntado prova documental (escritura de compra e venda), cujas certidões prediais e matriciais estão juntas aos autos e que foram objecto do contrato entre os autores e o Banco 2... e que está na origem desta relação contratual.
3. De igual modo, afirmaram que se assim não se entendesse (que este valor já estava pago) sempre o mesmo (direito) deveria considerar-se prescrito, invocando o instituto da prescrição nos termos dos art.º 303 e seguintes do Código Civil, pois haviam-se ultrapassado todos os prazos prescricionais que se pudessem aplicar ao caso sub judice.
4. Dando-se como provado “…que os autores apenas pagaram pontualmente as prestações vencidas entre Maio e Outubro de 1998” – ponto 12 da douta sentença – até “Julho de 2021” – ponto 5 da sentença – decorreram mais de 20 anos pelo que, de acordo com o Ac. do STJ datado de 22.09.2016 (proc. n.º 125/06.9TBMMV-C.C1.S1).
5. A douta sentença recorrida determinou que “julga-se improcedente a presente acção intentada pelos autores. AA e BB e absolve-se a ré Banco 1..., SA da mesma”.
6. Ao determinar assim, fez o Tribunal a quo incorrecta interpretação dos meios de prova apresentados e aplicação do direito ao caso aplicável, na medida em que primeiro não se pronunciou quanto à prescrição do direito invocada pelos autores, aqui recorrentes.
7. Não o fazendo, para além de obter uma conclusão totalmente diversa da esperada pelos autores, aqui recorrentes e que se impunha tal como indicado nos acórdãos citados: Ac. do STJ datado de 22.09.2016 (proc. n.º 125/06.9TBMMV-C.C1.S1), e Ac. do Trib da Relação de Lisboa, datado de 02.07.2009 (votado por unanimidade – proc. n.º 387/08-6) dispõe que: «A prescrição verdadeira e própria tem por efeito extinguir o direito, por tal modo que o beneficiário dela tem a faculdade de recusar a prestação ou de se opor, por qualquer modo, ao exercício do direito prescrito».
8. Estamos perante a verificação de uma prescrição extintiva conforme se pode ler no Ac no Tribunal da Relação de Lisboa (Proc. n.º 320-C/2001, L1-1 e, como tal, de conhecimento oficioso, pelo que o Tribunal a quo teria sempre que se pronunciar:
«1) De harmonia com o disposto no art.º 303º do CC, o tribunal não pode suprir, de ofício, a prescrição, carecendo esta, para ser eficaz, de ser invocada, judicial ou extrajudicialmente, por aquele a quem aproveita, pelo seu representante ou, tratando-se de incapaz, pelo Ministério Público. 2) Mas, uma vez chamado a pronunciar-se sobre a procedência ou improcedência da excepção peremptória da prescrição, por o respectivo beneficiário a ter invocado expressamente (como exige o cit. art. 303º do CC), não pode o tribunal deixar de decidir se ocorre alguma causa de suspensão ou interrupção da mesma, desde que o seu conhecimento não imponha a apreciação de factos carecidos de alegação, por os respectivos elementos constarem do próprio processo. 3) Ou seja, se o próprio processo - constando dele os elementos necessários - fornece ao juiz o conhecimento de uma determinada causa interruptiva ou suspensiva da prescrição, o tribunal tem de a apreciar oficiosamente. 4 ) De resto, tal conhecimento oficioso impõe-se, por maioria de razão, quando o credor, confrontado com a invocação da prescrição por parte do devedor, invoca uma causa de suspensão da prescrição mas o tribunal entende que o que ocorreu foi antes foi antes uma causa de interrupção da prescrição. 5) É que, no referido cenário, a mera circunstância de o tribunal qualificar diversamente os factos que tem diante de si não pode ser impedimento ao conhecimento dessa causa interruptiva da prescrição, já que o tribunal não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 664º do CPC).»
9. Não o tendo feito a sentença enferma de nulidade nos termos e para os efeitos do art.º 615 do CPC, que prescreve sob a epigrafe “causas de nulidade da sentença” c) os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível; d) o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
10. Logo, entendemos que o Tribunal a quo deveria ter-se pronunciado quanto a esta, o que teria conduzido, no nosso entendimento à extinção da dívida dos autores, aqui recorrentes à ré aqui recorrida.
11. Assim não se entendendo, o Tribunal a quo, na sua douta sentença, teria sempre que chegar a outra conclusão, subsumindo os factos à prova produzida e que foi maioritariamente e sobejamente apresentada pelos autores, aqui recorrentes.
12. Entendemos que o efectivamente resulta como provado é:
» Encontra-se ainda registado a favor dos recorrentes um dos imóveis adquiridos em 1998, aquando a aquisição e celebração de um crédito à habitação junto do antigo Banco 2....
» O que acarretou que em 2021 os aqui recorrentes tivessem notificados pela Autoridade Tributária de uma execução fiscal pendente contra os mesmos, pela falta de pagamento do Imposto Municipal de Imóveis em 2021.
» E, só nesta altura os autores, aqui recorrentes verificam que constam em Banco de Portugal, como devedores à aqui ré do valor de € 55.973,58.
» Não outro, nem mais nenhum outro.
» Que pela ré, aqui recorrida, nada saberiam, pois, nunca foram interpelados para o pagamento de qualquer valor.
» E, reitera-se, os valores referentes a tal débito já teriam sido pagos pela venda do imóvel (art.º 4404).
13. Ao assim decidir como decidiu, o Dig. Juiz a quo incorreu em erro decisório na apreciação da matéria de facto dada como provada, na medida em que é manifesta a insuficiência desta para decidir como decidiu.
14. O juiz a quo não pode dar como provado que: Encontra-se em divida à Banco 1... um remanescente de dívida, cujo valor total ascendia, na data de 20.09.2022 à quantia total de €193.862,12, sendo € 137.888,54 referente a juros e €55.973,58 referente a capital, valor coincidente com o valor comunicado ao Banco de Portugal” (sic), pois entendemos que não há nos autos prova desses mesmos valores. Os autores nunca foram interpelados para o pagamento de €193.862,12. Nunca este valor apareceu em mais lado nenhum. O que se encontra reportado ao Banco de Portugal é €55.973,58.
15. O valor de €193.862,12 parece-nos, salvo melhor opinião uma alegação vã da ré, que nem tão pouco explica, quanto mais fundamenta o valor de tal pedido.
16. Também não se pode dar como provado que … os aqui autores pagaram apenas (…) as prestações vencidas entre Maio e Outubro de 1998 no valor de €47,22 quando este está em clara contradição com o documento apresentado pela ré em sede de Contestação como Doc 1; ali verifica-se, desde logo, que há pelo menos mais um mês - o de Novembro -– pago.
17. Muito menos se pode provar que a «…Banco 1... instaurou a competente execução contra os aqui autores em 22.6.2002, pelo valor de € 90.999,45 …» pois a ré não só não juntou qualquer documento da citada acção, como o próprio n.º do processo, a ser o correcto, indicia que acção tenha dado entrada em 2001 e não em 2002 (Proc. 1019/01).
18. Pelo que o demais alegado, não passam de meras alegações que podiam e deviam ser provadas por quem as alega, nomeadamente pela ré Banco 1..., SA, não só a prova de qual a acção executiva, qual o valor alcançado pelas vendas dos imóveis e quais os valores dos juros e dos competentes abatimentos à divida efectuados.
19. Se não o fez foi, efectivamente, por não quis, por que não viu vantagem ou entendeu que não deveria fazê-lo, pese embora, entendamos que era seu dever fazê-lo conforme estipula o art.º 342.º do CC que transcreve o principio do ónus da prova: 1. Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado.
20. Nesta medida e, pela mesma razão de ideia entendemos que não ficou provado também que o «… artº 4404 (…) foi arrematado pela quantia de €49.9000 e o outro pelo valor de €7.000 e que tal tenha sido aplicado aos valores em debito e ainda assim resta a quantia de €193.862,12.
21. Existiu assim por parte do D. Juiz a quo “erro notório na apreciação da prova”, pois, percorrendo o texto da decisão recorrida, nele se detectam erros, dado que a factualidade considerada provada e não provada não é a necessária e suficiente para se chegar à decisão a que se chegou, não se encontrando tal decisão assente num raciocínio lógico correctamente explanado.
22. Em suma, deve ser declarado por V. Exas sentença ora recorrida enferma de nulidade nos termos e para os efeitos do art.º 615 do Código de Processo Civil.
23. Deve, a alegada, presente dívida dos autores, aqui recorrentes à ré, aqui recorrida ser declarada prescrita nos termos do art.º 303 e seguintes do Código Civil e, em consequência, ser reconhecida que os autores nada devem à aqui ré, conforme acompanham e fundamentam o AC. do STJ datado de 22.09.2016 (Proc. n.º 125/06.9TBMMV-C.C1.S1), e o AC do Trib da Relação de Lisboa.
24. Assim não se entendendo, o que só por mera hipótese académica se colocará, deve entender-se que o valor comunicado ao Banco de Portugal é o único valor em causa - €55.973,58, quanto a débito dos autores à ré, na medida em que nenhum outro foi solicitado aos autores, nem estes foram interpelados para este ou qualquer outro pagamento, pelo que, desconhecendo-se de que forma foi apurada o valor ora indicado e muito menos se entende que se deva dar como provado.
Termos em que o presente recurso deve ser julgado procedente e, em consequência, ser revogada a sentença proferida e substituída por outra que julgue procedente a excepção da prescrição do direito do ora recorrente, e/ou se assim não se entender, na mesma medida dando como procedente o pedido, em face de tudo quanto foi exposto.
A recorrida respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.


II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões:
i. Se a decisão recorrida é nula.
ii. Se a decisão sobre a matéria de facto deve ser modificada.
iii. Se os autores não têm uma dívida para com a ré com origem no contrato de mútuo bancário com hipoteca que celebraram.


III. Nulidades da decisão recorrida:
Os recorrentes argúem a nulidade da sentença recorrida por nela não ter sido apreciada a prescrição extintiva do direito de crédito invocada pelos autores na petição inicial.
Efectivamente, tendo a prescrição sido mencionada num dos articulados da acção, ela tornou-se indiscutivelmente uma das questões a decidir, pelo que o juiz tinha a obrigação de se pronunciar sobre ela na sentença final.
Não o tendo feito incorreu em nulidade por omissão de pronúncia – artigo 615.º, n.º 1, alín. d), do Código de Processo Civil –.
Apesar disso, uma vez que no recurso de apelação vigora o princípio da substituição ao tribunal recorrido (artigo 665.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), nos termos do qual, quando o objecto do recurso não é constituído apenas pela arguição da nulidade da sentença, esse vício não determina a anulação do processado (razão pela qual, no caso dos recursos das decisões finais, a arguição da nulidade é quase uma inutilidade) cabe a este tribunal de recurso o dever de se substituir ao tribunal recorrido e suprir a deficiência que determina a nulidade, de modo a poder conhecer do objecto da apelação.
É o que se fará.
Não se antes referir que no corpo das alegações (mas já não nas conclusões das alegações, razão pela qual a questão nem sequer integra o objecto do recurso, entendendo-se, como sempre se entendeu, que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações) os recorrentes apodam ainda a sentença de nula por ambiguidade ou obscuridade que não permitem perceber «qual o montante que o tribunal a quo entende que os autores ainda são devedores».
É manifesto que não é assim.
Resulta claramente da sentença que o tribunal a quo considerou que os autores são devedores do «valor total que ascendia, na data de 20.9.2022, à quantia total de €193.862,12, sendo €137.888,54 referente a juros e €55.973,58 referente a capital, valor este coincidente com o valor comunicado à Central de Responsabilidades do Banco de Portugal» (ponto 9 da fundamentação de facto) ou que «mesmo não considerando os juros os AA. ainda se encontram em dívida capital no valor de€ 55.973,58, correspondente ao valor comunicado ao Banco de Portugal» (último parágrafo da fundamentação de direito). Não há, por isso qualquer ambiguidade ou obscuridade na sentença recorrida que pudesse gerar a sua nulidade.


IV. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
Os recorrentes defendem que não podem ser julgados provados os factos dos pontos 9, 12, 13, 14, 15 e 16, uma vez que os factos respeitantes ao que se possa ter passado um processo executivo têm de ser provados por certidão e esta não se encontra junta.
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto exige o cumprimento dos requisitos consagrados no artigo 640.º do Código de Processo Civil.
Estes requisitos, contudo, estão formulados para a situação de ter sido produzida prova em sentidos opostos e o tribunal ter formado a sua convicção acolhendo alguns desses meios de prova e desatendendo outros, caso em que o recorrente deve justificar quais os meios de prova que a Relação deve considerar e porquê.
Embora a norma não faça esta distinção, no caso em que o juiz a quo tenha fundamentado a sua decisão num determinado meio de prova apenas e o recorrente se limite a questionar a suficiência desse meio de prova, parece que não pode exigir-se ao recorrente que indique o outro meio de prova que deve ser atendido e, tratando-se de prova gravada, que especifique as passagens da respectiva gravação, pela óbvia razão de que se o recorrente não sustenta que deva ser acolhido outro meio de prova (porque não o há ou porque não é essa a sua estratégia processual) não tem de o indicar, basta-lhe questionar a suficiência do meio de prova atendido na decisão recorrida.
Por esse motivo há que conhecer da impugnação.
Conforme anotam os recorrentes não foi junta aos autos certidão judicial do processo de execução para pagamento de quantia certa instaurado pela Banco 1... contra os autores.
Esta situação é absolutamente incompreensível e revela falta de cuidado na instrução dos autos imputável a ambas as partes (os próprios autores requereram ao tribunal que solicitasse informação à Administração Tributária sobre o montante das dívidas tributárias, o que foi deferido, quando esta não tinha absolutamente nenhum interesse para o objecto da lide, que é, recorda-se a dívida … à ré, mas não requereram a informação que agora dizem faltar), mas particularmente censurável ao tribunal e à ré porque foi ela que foi chamada a demonstrar o valor em dívida, não se alcançando como o poderia fazer sem demonstrar a pendência da execução, as datas da venda dos bens hipotecados, o produto dessas vendas, o estado da execução, a liquidação do julgado caso tenha ocorrido.
Perante isso, esta Relação podia mesmo oficiosamente ordenar a produção de novos meios de prova, mais concretamente a junção da certidão em falta (artigo 662.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Civil). Todavia, uma vez que, como explicaremos em sede de fundamentação de direito, é possível, mesmo só com a matéria de facto que os autos já permitem julgar provada, conhecer do objecto do recurso e decidir correctamente o desfecho da acção, aquela diligência probatória é inútil e não será ordenada.
Os autores e recorrentes aceitam que contraíram junto do Banco 2..., em 24.4.1998, um financiamento no montante de 14.500.000$00, ora €72.325,70, tendo dado de garantia a hipoteca de dois imóveis adquiridos com esse empréstimo. Esses factos são, aliás, revelados na escritura pública de mútuo com hipoteca, cuja cópia (simples, não autenticada!) foi junta pelos autores com a petição inicial, e foram julgados provados nos pontos 10 e 11 por falta de impugnação.
No ponto 12 foi julgado provado que os aqui autores apenas pagaram pontualmente as prestações vencidas entre Maio e Outubro de 1998, no valor, em capital, de €47,22.
Os recorrentes anotam que o documento n.º 1 junto pela ré com a contestação refere: «Data de Vencimento da Última Prestação Paga: 1998-11-24». A mesma indicação encontra-se no documento junto pela autora antes da audiência de julgamento (requerimento de 28-11-2023). Porém, o documento n.º 2 junto com o mesmo articulado não confirma esse facto porque na primeira página do mesmo parece estar indicado que não foi paga a prestação vencida em «1998-11-24». Existe uma incongruência nos documentos que carecia de ser explicada com a certidão do requerimento executivo no qual, certamente, se terá discriminado a origem e composição do valor em dívida dado à execução.
Daqui não resulta, contudo, que o ponto em questão deva ser alterado no sentido de julgar provado que a prestação de Novembro de 1998 foi paga pelos autores (em rigor os recorrentes não indicam o sentido da decisão que deve ser proferida).
Por um lado, a contradição entre aquele dois documentos gera dúvidas sobre se a prestação de Novembro terá sido paga, não gera a certeza ou a alta probabilidade de que ela foi mesmo paga, sendo certo que não há razão para preferir um dos documentos ao outro.
Por outro lado, pelas razões que se explicarão em sede de fundamentação de direito, o ónus da prova do pagamento da dívida é dos autores (artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil), não é da ré, pelo que aquela dúvida tem de ser decidida contrariamente aos interesses dos autores (artigo 346.º do Código Civil).
Logo, o ponto 12 deve ser mantido na parte em que ambas as partes estão de acordo, sendo certo que os autores não produziram qualquer meio de prova (nem o indicam, aliás) dos pagamentos que fizeram para liquidação das prestações do mútuo bancário que contraíram (aliás, não os alegaram sequer, porque, na sua tese, a dívida ficou paga com o produto da venda de um dos imóveis hipotecados, não por efeito de qualquer pagamento voluntário que tenham feito).
O que tem de ser eliminado é apenas o montante das prestações pagas dado que se desconhece de todo qual era o montante de cada uma das prestações a cargo dos autores cujo valor não consta da cópia da escritura do empréstimo (esta remete para um documento complementar que não foi junto).
A redacção do ponto 12 passa a ser a seguinte:
«12. Os autores pagaram pontualmente as prestações vencidas entre Maio e Outubro de 1998.»
No ponto 13 foi julgado provado que por via do incumprimento do contrato de mútuo bancário a ré «instaurou a competente execução contra os aqui autores em 22.6.2002, pelo valor de €90.999,45 (conforme se alcança da certidão predial junta com a petição inicial), a qual correu seus termos no 2º Juízo Cível da Comarca de Gondomar, com o número de processo 1019/01, sendo €72.069,38 de capital e o remanescente de juros e comissões».
A certidão em causa é a certidão do registo predial de um dos imóveis hipotecados. Dela apenas se retira que em 04.06.2002 foi inscrita a penhora desse imóvel numa execução instaurada pela ré contra os autores cuja quantia exequenda era de €90.999,45.
É só isso que pode ser julgado provado, porque não houve o cuidado de juntar ou ordenar a junção da certidão do processo executivo, conforme era necessário para afirmar a sua existência, as suas características e vicissitudes, sendo certo que na motivação da decisão sobre a matéria de facto não existe nenhuma indicação do meio de prova complementar da certidão do registo predial que poderia permitir a prova do demais que foi levado ao ponto impugnado, e, por mais que nos esforcemos, não encontramos nos autos meio de prova que se refira a tal (nem ele está indicado pelas partes no recurso) ou contas que perfaçam os valores indicados de capital e juros.
A redacção do ponto 13 passa a ser a seguinte:
«13. Após os autores entrarem em incumprimento do contrato de mútuo, a Banco 1... instaurou contra os autores execução para pagamento de quantia certa, cuja quantia exequenda era de €90.999,45, na qual, em 19-04-2002, foram penhorados os imóveis hipotecados.»
O ponto 14 não pode ser julgado provado sem a certidão judicial correspondente porque se trata de actos processuais praticados no âmbito de um processo judicial.
Acresce que nem sequer se encontra junta a certidão do registo predial onde estivesse inscrita a aquisição pela Banco 1.... A cópia da escritura junta pelos autores revela que depois a Banco 1... vendeu o imóvel a outra sociedade, mas não como, antes desse negócio, o adquiriu, a quem e por que preço.
O ponto 14 é julgado não provado.
Essa decisão prejudica a redacção do ponto 15.
Com efeito, se não se provou a venda na execução nem o produto dessa venda, não é possível julgar provado o facto tal como ele se encontra redigido.
O que tem de ser julgado provado, por se tratar de um facto desfavorável à ré e dever, por isso, considerar-se confessado, é o seguinte:
«15. Em 2007, a Banco 1... lançou a crédito, na conta que regista os movimento do contrato de mútuo dos autores, o valor de €47.371,00, aplicando-o na amortização de capital e juros, mediante cobrança sequencial das prestações por ordem de antiguidade.»
A mesma falta de prova serve para a decisão sobre o ponto 16.
Neste caso encontra-se junta aos autos inclusivamente uma certidão predial da qual resulta que o imóvel ainda se encontra inscrito no registo a favor dos autores, razão pela qual era absolutamente imperioso comprovar através da competente certidão judicial os actos praticados no processo executivo.
O ponto 16 é julgado não provado.
Essa decisão cria uma contradição com o facto do ponto 17, pelo que a mesma tem de ser suprida oficiosamente por esta Relação, para evitar que este Acórdão enferme de nulidade por contradição na fundamentação (de facto).
Para o efeito, altera-se a redacção do ponto 17 para a seguinte:
«17. O prédio inscrito na matriz nº ...17 sobre o qual os autores constituíram hipoteca para garantia da obrigação de reembolso do mútuo ainda se encontra inscrito no registo predial a favor dos autores.»
Resta ver o ponto 9 que embora venha antes dos demais, é, afinal de contas, a conclusão que se pretendeu retirar daqueles.
O ponto refere-se ao montante actual da dívida dos autores.
O valor nele indicado provém do documento 1 junto com a contestação e foi confirmado em audiência pela funcionária da Banco 1... arrolada por esta como testemunha, cujo depoimento resultou exclusivamente do que ela leu nos documentos em poder do banco e das informações que colheu junto de outros colaboradores ou departamentos do banco.
Por outras palavras, esta testemunha não possui nenhuma razão de ciência que acrescente valor probatório ao documento, com excepção daquilo que o documento não informa (v.g. conteúdo da comunicação ao Banco de Portugal).
Acresce que o documento está desactualizado, tal como a matéria de facto, porque na pendência da acção a Banco 1... fez outro lançamento a crédito no extracto de conta dos autores, juntando na véspera da audiência de julgamento um documento equivalente àquele, mas no qual, após o lançamento a crédito do montante de €7.000 (que a testemunha disse ser o produto da venda do outro imóvel), passámos a ter em dívida «capital vencido» no montante de €48.973,58 e «juros de mora» no montante de €144.597,58 (neste caso, ao contrário do que diz ter feito com o anterior lançamento, o crédito foi imputando na totalidade ao pagamento de capital).
Essa alteração não foi transposta para a fundamentação de facto apesar de o disposto no artigo 611.º do Código de Processo Civil assim o determinar.
O que pode/deve então ser julgado provado é apenas o seguinte:
9.i- Em 20-11-2023, a conta onde a Banco 1... regista os movimentos do mútuo aos autores, após dois lançamentos a crédito em momento posterior à entrada dos autores em incumprimento do mútuo, acusa estar em dívida o montante total de €193.571,16, que compreende «capital vencido» no montante de €48.973,58 e «juros de mora» no montante de €144.597,58.
9.ii- As comunicações da Banco 1... ao Banco de Portugal são feitas indicando o capital em dívida, sem juros de mora.


V. Fundamentação de facto:
Encontram-se agora julgados provados os seguintes factos:
1. Em 1998 os autores adquiriram casa para habitação própria permanente, com recurso a crédito bancária, nomeadamente concedido pelo Banco 2... que depois foi posteriormente adquirido pela aqui ré, conforme contrato de compra e venda e mútuo com hipoteca e fiança.
2. Conforme aí expresso os autores adquiriram dois imóveis: um que corresponde a um prédio urbano sito na Travessa ..., descrito na matriz sob o art.º ...04 e o outro também a um prédio urbano, correspondente a uma parcela de terreno destinada a edificação sito também na Travessa ..., inscrito na matriz ...17.
3. Por dificuldades várias da vida os aqui autores foram forçados a sair do país em busca de uma vida melhor, tendo deixado de cumprir durante diversos anos as obrigações que tinham para com a ré, acreditaram que esta já teria executado a dívida e adquirido os imóveis, tendo em conta que sobre os mesmos incidiam as competentes hipotecas, conforme se alcança da certidão predial.
4. No ano de 2021 foram os aqui autores alvo de execução fiscal por parte da Autoridade Tributária para pagamento de dívidas referentes à falta de pagamentos de IMI (Imposto Municipal sobre Imóveis) de todos os anos em falta.
5. Nessa altura, sensivelmente em Julho de 2021, aquando as férias em Portugal, deslocaram-se ao Serviço de Finanças onde puderam verificar que um dos imoveis é ainda se encontrava registado a seu favor, conforme certidões prediais que aqui se juntam e certidão matricial.
6. Sendo que o outro foi adquirido pela empresa A... - Unipessoal, Lda., NIPC n.º ...71 pelo preço de €56.050,00 (cinquenta e seis mil euros e cinquenta cêntimos) à ré.
7. Os autores encontram-se a pagar, actualmente, a execução fiscal, por falta de pagamento de IMI (Imposto Municipal sobre Imóveis) referentes aos imóveis em questão, dos anos transactos, e ainda quanto ao imóvel sua propriedade.
8. [os autores contactaram] a aqui ré para verificação da presente situação, já que ainda se encontra reportada ao Banco de Portugal uma divida no valor de €55.973,58 (cinquenta e cinco mil novecentos e setenta e três euros e cinquenta e oito cêntimos).
9.i- Em 20-11-2023, a conta onde a Banco 1... regista os movimentos do mútuo aos autores, após dois lançamentos a crédito em momento posterior à entrada dos autores em incumprimento do mútuo, acusa estar em dívida o montante total de €193.571,16, que compreende «capital vencido» no montante de €48.973,58 e «juros de mora» no montante de €144.597,58.
9.ii- As comunicações da Banco 1... ao Banco de Portugal são feitas indicando o capital em dívida, sem juros de mora.
10. Os autores contraíram junto do ex-Banco 2... (Banco 2...), em 24-04-1998, um financiamento no montante de 14.500.000$00, ora €72.325,70, destinado a aquisição de habitação própria e permanente e a obras referentes aos imóveis, nessa mesma data adquiridos, ou seja, uma casa de habitação inscrita na matriz sob o art.º ...04 e descrita na CRP de Gondomar com o nº ...01 e uma parcela de terreno descrito na CRP de Gondomar, com o nº ...00 (descrita em livro sob o nº ...08) inscrito na matriz sob o artº ...17), ambos na freguesia ....
11. Como garantia de tal financiamento foi prestada fiança por CC e DD e constituída hipoteca, a favor do então Banco 2..., sobre os dois acima identificados imóveis.
12. Os autores pagaram pontualmente as prestações vencidas entre Maio e Outubro de 1998.
13. Após os autores entrarem em incumprimento do contrato de mútuo, a Banco 1... instaurou contra os autores execução para pagamento de quantia certa, cuja quantia exequenda era de €90.999,45, na qual, em 19-04-2002, foram penhorados os imóveis hipotecados.
15. Em 2007, a Banco 1... lançou a crédito, na conta que regista os movimento do contrato de mútuo dos autores, o valor de €47.371,00, aplicando-o na amortização de capital e juros, mediante cobrança sequencial das prestações por ordem de antiguidade.
17. O prédio inscrito na matriz nº ...17 sobre o qual os autores constituíram hipoteca para garantia da obrigação de reembolso do mútuo ainda se encontra inscrito no registo predial a favor dos autores.


VI. Matéria de Direito:
A apreciação do mérito da acção e do recurso exige que previamente se apure a exacta configuração da acção de modo a definir o seu objecto, o que cabe nela decidir e qual das partes têm o ónus da prova.
Literalmente o pedido formulado pelos autores é o seguinte: «dar-se como provado que os AA nada devem a aqui Ré e, consequentemente, ser retirada a divida comunicada ao Banco de Portugal, pelo facto da mesma ter sido paga com o produto da venda do imóvel». A correcta redacção do petitório, que apenas está implícita mas se descortina na pretensão dos autores, é que se declare que os autores nada devem à ré e se condene a ré a retirar a comunicação ao Banco de Portugal da dívida que atribuiu aos autores.
Estamos pois perante uma cumulação de dois pedidos.
Através do primeiro pedido os autores pretendem que se declare judicialmente [na sua linguagem, que se «dê como provado»] a inexistência da dívida que a ré lhe atribui e que comunicou ao Banco de Portugal para efeitos de inclusão na lista de créditos vencidos em incumprimento. Em resultado do primeiro pedido e no que tange ao mesmo a acção tem a natureza de acção de simples apreciação negativa que o artigo 10.º, n.º 3, alínea a), do Código de Processo Civil define como aquelas cuja finalidade é «obter unicamente a declaração da inexistência de um direito ou de um facto».
O segundo pedido intima a ré a adoptar um comportamento, a realizar uma prestação de facto. Por isso, nessa parte a acção é uma acção de condenação, porque tem por objecto exigir do demandado a prestação de um facto (artigo 10.º, n.º 3, alínea b), do Código de Processo Civil). Este pedido não suscita dificuldades (será sempre consequência do que se decidir em relação ao primeiro) pelo que, por ora, pode ficar arredado da discussão.
Esta caracterização da natureza da acção é importante porque as acções de simples apreciação negativa têm uma particularidade. Nos termos do artigo 343.º do Código Civil que rege sobre as regras do ónus da prova em casos especiais, nas acções de simples apreciação ou declaração negativa, compete ao réu a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga. Por outras palavras, se o réu se arroga titular de um crédito e perante essa afirmação os autores requerem que se declare judicialmente que tal crédito não existe, a prova dos factos constitutivos do direito de crédito cabe ao réu.
Devidamente lido, este preceito não representa uma modificação da regra comum do ónus da prova (essa é a finalidade do artigo 344.º) consagrada no n.º 1 do artigo 342.º do Código Civil, nos termos do qual cabe àquele que invocar um direito fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado. Em ambos os casos o ónus cabe àquele que invocar o direito, o que sucede é que nas acções constitutivas, de condenação ou de simples apreciação positiva essa posição corresponde à posição (e à pretensão) do autor (é ele que invoca o direito para fundamentar o seu pedido), nas acções de simples apreciação negativa é o réu que ocupa essa posição quando o autor alegue na petição inicial que o direito nunca se constituiu ou quando o réu pretenda que se declare o seu direito.
Isto levanta desde logo a questão de saber a quem cabe a alegação da causa de pedir da acção, ou, talvez de forma mais rigorosa, qual é efectivamente a causa de pedir nas acções desta natureza. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2.ª ed. actualizada, pág. 245, nota 3, defendem que «nas próprias acções de mera declaração negativa o autor tem de mencionar a causa de pedir, ou seja, o facto concreto que serve de base à sua pretensão».
Os mesmos autores, loc. cit., pág. 187, depois de no corpo do texto sustentarem que para preencher a causa de pedir na acção de simples apreciação negativa não basta que o autor requeira a «declaração de que nada deve ao réu, sem mencionar o acto jurídico concreto a que se reporta a declaração», afirmam na nota 2 que «a acção de simples declaração de inexistência de um direito pressupõe, além da menção do direito a que se refere o pedido, a concretização da respectiva causa de pedir. Não bastará requerer a declaração de que A nada deve a B. Será necessário individualizar ou completar a petição, requerendo a declaração de que A nada deve a B em virtude do contrato de empréstimo que com ele celebrou ou em consequência do acidente registado entre os veículos de um e outro em tal data e local».
Em sentido contrário, Anselmo de Castro, in Processo Civil Declaratório, III, pág. 186, nota 2, defende que nestes casos é ao réu que cabe deduzir a causa de pedir na contestação.
Independentemente disso, certo é, como vimos, que cabe ao réu o ónus da prova dos factos constitutivos do direito que se arroga e cuja inexistência os autores defendem e para cuja declaração judicial instauraram a acção. Se lhe cabe o ónus da prova, cabe-lhe, antes disso, o ónus de alegar esses factos.
Todavia, como bem alerta Teixeira de Sousa, in Código de Processo Civil online, disponível no blog https://blogippc.blog spot.com/2024/07/cpc-online-21.html, «o art. 343.º, n.º 1, CC regula a distribuição do ónus da prova nas acções de simples apreciação negativa, impondo ao réu a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga. Estes factos constitutivos só podem surgir em processo através de um pedido reconvencional do réu (art. 266.º, n.º 1), já que, para contestar os factos impeditivos ou extintivos alegados pelo autor, basta a impugnação (isto é, a negação) destes factos pelo réu (art. 574.º, n.º 1). (b) O art. 343.º, n.º 1, CC segue a regra geral de que a prova dos factos constitutivos compete à parte que os invoca (art. 342.º, n.º 1, CC) […] Da improcedência de uma acção de apreciação negativa de um direito só pode decorrer o reconhecimento da existência deste direito se o réu tiver alegado e feito prova dos factos constitutivos desse mesmo direito, ou seja, se o réu tiver deduzido o pedido reconvencional de declaração desse direito. A mera improcedência da acção pela não prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos alegados pelo autor significa apenas que não ficou demonstrada a não existência do direito».
Se assim não fosse, bastaria ao devedor, numa jogada de antecipação à acção de cumprimento do credor, instaurar uma acção de simples apreciação negativa com o fundamento de que o réu continua a defender que o crédito não se extinguiu, para transferir para este o ónus de provar que o crédito subsiste quando a extinção do mesmo tem de decorrer de um facto extintivo cuja alegação e prova compete, nos termos do n.º 2 do artigo 342.º do Código de Processo Civil, ao devedor. Seria a estratégia processual a definir a regra do ónus da prova o que é de todo inconcebível (cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18-04-2024, proc. n.º 693/22.8T8PDL.L1.S1, in www.dgsi.pt).
Ao instaurar a acção de simples apreciação negativa o autor tem de alegar o direito que pretende que seja declarado inexistente, isto é, o direito de que o réu se arroga titular e que tem o autor no polo passivo, na posição de devedor ou obrigado. Tem ainda de fundamentar o seu interesse processual na instauração da acção.
Na contestação o réu pode alegar os factos constitutivos desse direito para procurar demonstrar que o direito existe e, por isso, a acção deve ser julgada improcedente. Todavia, o objecto da acção não é a declaração de que o direito existe, é a declaração de que o direito não existe. O que está em julgamento não é a posição do réu de que o direito existe, é a pretensão do autor de que fique decido judicialmente que o direito não existe.
A alegação pelo réu dos factos constitutivos do direito apenas serve o objectivo de impedir a procedência da acção, mediante a demonstração de que estão reunidos os factos constitutivos do direito (o que, note-se, não exclui a possibilidade de o réu se limitar a impugnar os factos alegados pelo autor e tal poder ser suficiente para impedir a procedência da acção, caso o autor soçobre na demonstração dos factos consubstanciadores da causa de pedir).
A alegação (da existência) dos factos constitutivos do direito não se confunde com a alegação da inexistência de qualquer facto impeditivo ou modificativo do direito.
Se, por exemplo, se trata de um direito de crédito, o que o réu tem de alegar na contestação da acção de simples apreciação negativa é que foi celebrado um contrato válido e eficaz do qual resultou para os autores a obrigação de pagamento de uma determinada quantia.
Mas o réu já não tem de alegar, nem de provar, que não se verificou ainda nenhuma causa de extinção dessa obrigação; não tem de alegar nem provar que a dívida não foi paga, o foi objecto de novação, nem alvo de dação em cumprimento, dação em função do cumprimento, compensação, nem se encontra prescrita, etc.
É o autor, interessado em demonstrar que apesar de se ter constituído num determinado momento, o direito de crédito já se encontra extinto (e por isso deve ser declarado judicialmente inexistente … à data do pedido), que tem de alegar e fazer a prova dos factos extintivos ou modificativos do direito de crédito de que pretender fazer-se valer para demonstrar a (actual) inexistência do direito de crédito.
Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e L. F. Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2018, pág. 38/39, afirmam a esse propósito que «as acções de simples apreciação visam obter a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto; não exigem, embora também não excluam, a efectiva e actual violação ou lesão do direito. A classificação de uma acção como de simples apreciação positiva ou negativa depende unicamente da providência que é requerida pelo autor, o que se repercutirá na distribuição de ónus probatório, nos termos que resultam do disposto nos arts. 342º, nº 1, e 343º, nº 1, do CC. A enunciação de um pedido de reconhecimento da existência de um direito ou de um facto, supondo a alegação prévia dos respectivos fundamentos, faz impender sobre o autor o correspondente ónus da prova: o resultado da acção ser-lhe-á favorável ou desfavorável consoante se provem ou não tais factos. Já na sua formulação negativa recairá sobre o réu o ónus da prova da existência do direito ou do facto que o autor veio (legitimamente) questionar, assim se compreendendo, nestes casos, a manutenção do articulado de réplica, que permite ao autor responder à matéria que for alegada pelo réu na contestação (art. 584º, nº 2)».
Efectivamente, segundo este preceito, nas acções de simples apreciação negativa, a réplica serve para o autor impugnar os factos constitutivos que o réu tenha alegado e para alegar os factos impeditivos ou extintivos do direito invocado pelo réu.
A questão que se pode colocar e que o caso coloca é se essa alegação, para a qual está definido na lei processual um articulado específico, pode afinal ser feita …antes, ou seja, num articulado anterior da acção, mais especificamente ainda, se o autor pode logo na petição inicial alegar factos extintivos do direito do réu.
Em princípio, quem pode mais tarde deve poder antes, porque o que faz precludir a alegação dos factos que podiam ser alegados é a ultrapassagem do prazo definido para a apresentação do articulado destinado à sua alegação (i.é., no momento da apresentação da petição inicial não está ainda precludido o direito de alegar os factos extintivos do direito do réu que este pode alegar na réplica, pelo que não há impedimento a que o autor alegue logo tais factos).
Esta afirmação não pode passar, contudo, sem reservas.
No nosso sistema processual vigora o princípio da substanciação (independentemente da sua formulação mais ampla ou menos ampla para não incluir, como não inclui agora, os factos complementares e os factos instrumentais), nos termos do qual não basta à parte afirmar a situação jurídica para desse modo permitir ao tribunal discutir e considerar todos os factos jurídicos concretos que possam estar na sua origem e/ou servir de fundamento da mesma.
Ao invés, é necessário que a parte funde a sua alegação em factos jurídicos concretos dos quais proceda o direito que pretende fazer valer, alegação essa que serve para individualizar a pretensão da parte, para conformar o objecto do processo, para permitir o exercício material do direito ao contraditório, para balizar os poderes de cognição do tribunal [cf. artigos 552.º, n.º 1, alínea d), 581.º, n.º 4, 580.º, n.º 1, 581.º, n.º 1 e n.º 4, do Código de Processo Civil, na doutrina Lebre de Freitas, in Acção Declarativa Comum, À Luz do Código de Processo Civil de 2013, Coimbra Editora, 41-46, Remédio Marques, in Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, pág. 443].
Vigora identicamente o princípio da igualdade de armas, nos termos do qual uma parte não pode ser confrontada com exigências de natureza processual diferentes daquelas com que se defronta a outra parte e cuja distinção não seja proporcionada e justificada apenas pelo que decorre estritamente da posição que ocupam no processo. Por isso, as mesmas exigências de substanciação que se colocam ao autor para integrar a causa de pedir, colocam-se ao réu para efeitos de arguição das excepções de que pretende servir-se. Daí que se deva entender que não basta ao réu referir uma situação jurídica sem qualquer facto concreto a suportar essa invocação, para forçar o tribunal a verificar a totalidade dos possíveis fundamentos da mesma.
Logo parece difícil (embora não seja impossível) que o autor possa arguir logo na petição inicial excepções ao direito do réu cujos factos constitutivos apenas irão ser alegados por este na contestação! Como quer que seja não se exclui que isso possa suceder, até porque nos termos do artigo 587.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, a falta de apresentação da réplica (rectius, a falta de apresentação do articulado para as finalidades que lhe estão assinaladas na lei) tem os efeitos previstos no artigo 574.º do mesmo diploma, ou seja, não determina que se considerem admitidos por acordo os factos que estejam em oposição com a “defesa” (leia-se, a defesa do autor aos factos constitutivos do direito do réu alegados na contestação) «considerada no seu conjunto» (i.e., configurada pelo conjunto dos articulados admissíveis apresentados).
Feito este percurso, estamos em condições de partir para o conhecimento do mérito da causa.
Conforme já foi referido o desfecho final da acção pode ser a procedência da acção com a declaração judicial de que os autores não são devedores da ré, ou a improcedência da acção com a absolvição da ré do pedido.
Não tendo sido deduzida reconvenção pelo réu, o desfecho da acção nunca pode ser a declaração judicial de que os autores devem à ré uma determinada quantia, seja ela a indicada pela ré ou outra, sendo certo que o pedido deduzido é o de que se declare que os autores nada devem, não que não devem mais que X ou Y.
Por conseguinte, não é relevante que por falta de cuidado na instrução dos autos e de junção da certidão judicial do processo executivo instaurado contra os autores, não se tenha demonstrado o montante exacto que está em dívida no contrato de mútuo celebrado pelos autores com o Banco 2..., hoje titulado pela Banco 1... que adquiriu o banco mutuante.
O que é relevante é que se tenha provado que efectivamente os autores são devedores de valores que se obrigaram a pagar ao abrigo desse contrato e tanto basta para que a acção seja julgada improcedente.
Refira-se, aliás, que esse desfecho já resultava sem mais dos articulados da acção!
Com efeito, de modo a preencher a causa de pedir da acção, os autores alegaram que celebraram um contrato de mútuo pelo qual lhes foi emprestada a quantia de €72.325,70, ou seja, especificaram a relação contratual que está na origem da dívida a que a ré se arroga e que da mesma resultou o direito de crédito da mutuante ao reembolso dessa quantia, acrescida de juros remuneratórios, impostos e demais encargos.
Para além disso, confessam que entraram em incumprimento do contrato, ou seja, que não pagaram as quantias devidas nos termos do contrato!
Alegam ainda que «o valor em dívida foi pago pelo valor da venda do imóvel à empresa A...-Unipessoal, Lda.» (artigo 15.º da petição inicial).
Ora, só a quantia mutuada ascendeu a €72.325,70, a esse montante acresceram necessariamente juros remuneratórios, impostos e demais encargos, e ainda, na sequência do confessado incumprimento dos mutuários que se prolongou, nas suas palavras, por «vários anos», juros moratórios; assim, porque os autores não alegaram sequer quantas prestações pagaram e de que montante, é absolutamente improcedente pretender que uma receita de €56.050,00 (que foi o valor pago no negócio citado pelos autores) pudesse pagar a totalidade da dívida resultante do contrato de mútuo!
Acresce que o negócio mencionado pelos autores de alienação do imóvel antes pertencente aos autores e hipotecado para garantia da satisfação do mútuo foi celebrado entre a ré e um terceiro!
Uma vez que vigora entre nós o princípio da proibição do pacto comissório (artigo 694.º do Código Civil), que não permitia à Banco 1... fazer seu o imóvel hipotecado e dispor dele conforme entendesse, o que podia funcionar como pagamento do mútuo não era o preço duma venda posterior celebrada entre outras pessoas, mas sim o produto pago pela Banco 1... para adquirir o imóvel dos autores (rectius, o produto da sua venda no processo executivo onde o imóvel foi penhorado), o qual não vem sequer alegado pelos autores.
Note-se que na réplica os autores não opuseram ao direito de crédito da ré nenhuma excepção. Não alegaram, nomeadamente, que a dívida foi paga; limitaram-se a impugnar os factos alegados pela ré nos quais ela se refere ao produto obtido com as vendas coercivas dos imóveis na execução hipotecária e ao modo como o imputou ao serviço da dívida.
Excluída a alegação dos autores de que aquele negócio possa ter permitido pagar a dívida dos autores e tendo a ré logrado demonstrar os factos constitutivos do direito de crédito (cuja origem válida foi, como vimos, admitida pelos autores) ficou satisfeito o respectivo ónus da prova na presente acção.
Para impedir que no julgamento da acção isso tivesse consequências, cabia os autores o ónus de alegar, na réplica, os factos impeditivos, modificativos ou extintivos desse direito de crédito, o que não fizeram para além do que consta da própria petição inicial e que era afinal insuficiente para demonstrar a extinção do direito de crédito pelo … pagamento.
Referem agora os recorrentes que arguiram a prescrição do direito de crédito e que há que o julgar prescrito.
Como já se assinalou, tal excepção não foi alegada quando devia tê-lo sido, isto é, na réplica, articulado onde não foi arguida excepção alguma. Na petição inicial sim, depois de defenderem que a dívida mutuária foi paga com a venda do imóvel pela Banco 1..., os autores alegaram o seguinte:
16.º Tanto mais que os aqui AA também nunca foram interpelados pela Ré para o pagamento de qualquer valor em dívida, pelo que, na hipótese da Ré vir agora avançar com mais algum valor em débito,
17.º Os AA invocam desde já a Prescrição, nos termos dos art.º 303 e seguintes do CC, com as concomitantes consequências legais.
Esta alegação é absolutamente insuficiente para constituir um meio válido de arguir a excepção da prescrição. Com efeito, a mesma não está fundamentada na alegação de qualquer regra de direito ou facto jurídico concreto e sem isso ela não constitui uma forma válida de defesa por excepção. Não é dito, por exemplo, que prazo de prescrição é aplicável, que norma jurídica o prevê, qual a natureza da prescrição em causa, em que data se iniciou a contagem do prazo, em que data se concluiu o prazo de prescrição.
Prevendo a lei processual um articulado específico para a arguição das excepções (a réplica), o réu, em regra, só deve ser confrontado com o ónus de não ter respondido às excepções arguidas no articulado definido para o efeito na lei processual. Sobretudo, para poder exercer materialmente o direito ao contraditório, isto é, suportar o ónus do dever de impugnar os factos em que se funda a excepção que lhe é oposta, o réu tem de conhecer em que factos se suporta a excepção.
Não sendo alegados nenhuns factos, nem o réu tem do que se defender, nem o tribunal lhe pode opor uma decisão quanto à matéria da excepção baseada em factos não alegados. O réu pode, por exemplo, opor ao decurso do prazo de prescrição a alegação de que esse prazo se suspendeu ou interrompeu; só o pode fazer se souber antecipadamente que prazo tinha o autor em mente e quando sustenta o autor que ele se iniciou. Aqueles dois artigos da petição inicial não satisfazem minimamente essa exigência.
Como quer que seja, é absolutamente claro que os autos não permitem sequer julgar decorrido qualquer prazo de prescrição.
O contrato de mútuo que originou a dívida dos autores foi celebrado em Abril de 1998. A execução foi instaurada seguramente antes de Junho de 2002, data em que foi inscrita a penhora dos imóveis hipotecados certamente realizada nessa execução.
A citação dos executados na execução ou o decurso do prazo de cinco dias após a instauração da execução interromperam o prazo de prescrição nos termos do artigo 323.º do Código Civil.
Entre aquelas duas datas decorreu um período inferior a cinco anos, razão pela qual mesmo que se considere aplicável o prazo do artigo 310.º do Código Civil é impossível que o mesmo tenha decorrido antes da interrupção da prescrição.
Após essa interrupção, só se inicia novo prazo de prescrição quando «passar em julgado a decisão que puser termo ao processo» (artigo 327.º, n.º 1, do Código Civil). Ignora-se em absoluto em que estado se encontra o processo de execução, designadamente se nele já foi proferido algum despacho a julgar extinta a execução, sem o que é impossível considerar que o prazo de prescrição se reiniciou e se esgotou.
Cabia aos autores, para tirarem benefício do efeito extintivo da prescrição, alegar e demonstrar os factos que integram esse instituto, o que de todo não foi feito.
Deste modo, ainda que pelos motivos acabados de referir, improcede o recurso.



VII. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação julgar o recurso improcedente e, em consequência, embora pelos fundamentos acabados de enunciar, confirmam a decisão recorrida.

Custas do recurso pelos recorrentes, os quais vão condenados a pagar à recorrida, a título de custas de parte, o valor da taxa de justiça que suportou e eventuais encargos.

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Porto, 5 de Dezembro de 2024.
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Os Juízes Desembargadores
Relator: Aristides Rodrigues de Almeida (Rto 864)
1.º Adjunto: Paulo Duarte Mesquita Teixeira
2.º Adjunto: António Carneiro da Silva






[a presente peça processual foi produzida pelo Relator com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas]