EXCEÇÃO PERENTÓRIA
CONHECIMENTO DAS EXCEÇÕES NO SANEADOR SENTENÇA
NULIDADE DA SENTENÇA POR FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
Sumário

I - A decisão que conhece de uma excepção peremptória tem de possuir a necessária fundamentação de facto, sob pena de nulidade por falta de fundamentação.
II - Sendo controvertidos os factos jurídicos concretos que servem de fundamento à excepção, não é possível conhecer da excepção no despacho saneador.

Texto Integral

RECURSO DE APELAÇÃO
ECLI:PT:TRP:2024:18579.23.7T8PRT.B.P1

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SUMÁRIO:
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ACORDAM OS JUÍZES DA 3.ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:



I. Relatório:
AA, contribuinte fiscal n.º ...57, BB, contribuinte fiscal n.º ...86, e CC, contribuinte fiscal n.º ...00, todos residentes nas ..., na qualidade de herdeiros da herança indivisa aberta por óbito de DD, instauraram acção judicial contra EE, contribuinte fiscal n.º ...23, residente em ..., formulando contra esta os seguintes pedidos: julgar o testamento outorgado no dia 07-05-2013 por FF, nulo por notória dificuldade do testador em exprimir a sua vontade; subsidiariamente, caso assim não se entenda, julgar anulável o mencionado testamento por o testador padecia de incapacidade acidental à data da feitura do mesmo.
Para o efeito alegam que são o marido e as filhas da falecida DD, irmã da ré, sendo estas únicas herdeiras dos respectivos pais, e que em 07-05-2013 o falecido sogro e avó materno dos autores, FF, outorgou um testamento numa altura em que as suas condições físicas e mentais se encontravam notoriamente afectadas e em resultado das quais ele não conseguia formar e/ou exprimir uma vontade livre e consciente, razão pela qual o referido testamento enferma dos vícios que justificam os pedidos.
A ré contestou, deduzindo impugnação, excepção e reconvenção.
Começou por arguir a caducidade do direito de acção dos autores porque a acção foi instaurada muito para além do prazo de 2 anos referido no n.º 2 do artigo 2308.º do Código Civil. Impugnou parte dos factos alegados pelos autores. Em reconvenção, para a eventualidade de a excepção não ser julgada procedente ou a acção improcedente por não provada e, pede em reconvenção que seja «declarado nulo o testamento outorgado pelo seu pai em 05-04-2013 nos termos do artigo 2180º do Código Civil ou, caso assim não se entenda, anulável nos termos do artigo 2199º do Código Civil. Para o efeito, alegou que à data da outorga deste testamento o testador não tinha condições mentais e psíquicas para formar e declarar uma vontade livre e consciente.
Os autores replicaram, impugnando partes dos factos alegados pela ré e excepcionando, além do mais, a caducidade do direito de acção da ré de invocar a anulabilidade do testamento pelo decurso do respectivo prazo de dois anos.
Findos os articulados, o Mmo. Juiz a quo conheceu da excepção de caducidade do direito de acção dos autores arguida pela ré, julgando-a procedente, do que foi interposto recurso pelos autores, pendente noutro apenso.
De seguida, ouvidas as partes, conheceu da excepção, arguida pelos autores na réplica, da caducidade do direito exercido pela ré em reconvenção, proferindo a seguinte decisão:
«Veio a ré peticionar a anulação do testamento celebrado a 05/04/2013 por FF dizendo que se o testador não possuía capacidade para realizar o testamento de 7 de Maio de 2013, cuja validade os autores colocam em causa, também não tinha para celebrar aquele anterior de Abril.
Em relação à pretensão dos autores do testamento celebrado em Maio ser declarado anulado a ré veio invocar a caducidade dizendo que a acção de anulação do testamento caduca ao fim de dois anos a contar da data em que o interessado teve conhecimento do testamento e da causa da anulabilidade, já a tendo os autores desde pelo menos Abril de 2021.
Ora, os argumentos que a ré invoca na contestação contra os autores para a caducidade da acção de anulação do testamento de Maio são exactamente os mesmos que existem em relação a si para a declaração de anulação do testamento de Abril.
Não pode a ré, por um lado, alegar que do processo de inventário por óbito de FF, designadamente da reclamação da relação de bens de 27/03/2021, já decorria que este sofria de graves de problemas de saúde a nível neurológico no momento da assinatura do testamento, cuja validade se afigurava dúbia, e com isso invocar o decurso do prazo de dois anos previsto no artigo 2308.º, 2, do CC, e considerar que esse prazo não decorreu para si.
Se a ré não tinha conhecimento dos prolemas neurológicos do testador FF em data anterior, pelo menos nessa altura, em Março de 2021, passou a ter, razão pela qual peticionando em Dezembro de 2023, com a contestação, a declaração de anulação do testamento de Abril de 2013, fá-lo após o prazo de dois anos acima referido.
Pelo exposto, julgo caduca a acção reconvencional de requerer a anulação do testamento de Abril de 2013
Do assim decidido, a interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
I. O presente recurso tem como objecto o despacho proferido nos presentes autos que julgou procedente a excepção peremptória de caducidade do pedido reconvencional realizado pelos recorrentes (anulabilidade testamento de Abril de 2013).
II. Com todo o respeito pela decisão proferida, não pode a recorrente conformar-se com a mesma, pois não corresponde a uma determinação justa.
III. Caso existam factos controvertidos com relevância para a decisão e forem várias as decisões de direito plausíveis deve o tribunal abster-se de conhecer na fase de saneamento do mérito da causa, impondo-se o seu prosseguimento para possibilitar a produção das provas pertinentes à sua demonstração em juízo.
IV. O tribunal considerou que os autos fornecem desde já, material suficiente para se decidir em sede de despacho saneador do mérito da excepção de caducidade.
V. Contudo na opinião da recorrente existiam ainda factos controvertidos significativos para a serem apreciados pelo tribunal, não se produzindo prova para esse efeito.
VI. Violando-se assim o disposto nos artigos 595.º n.º 1 b) e 595.º n.º 4 do CPC, devendo ser determinado o prosseguimento da causa relativamente ao pedido reconvencional.
VII. Nos termos do 615º n.º 1 b) do CPC determina-se a declaração de nulidade das decisões que não mencionem os factos provados e não provados.
VIII. Não podendo no caso em apreço considerar-se que apenas estamos perante uma fundamentação de facto sucinta, mas sim perante uma inexistência de fundamentação de facto.
IX. Devendo assim determinar-se a declaração de nulidade da decisão ora recorrida.
X. A decisão recorrida é argumentada da seguinte forma “os argumentos que a ré invoca na contestação contra os autores para a caducidade da acção de anulação do testamento de Maio são exactamente são exactamente os mesmos que existem em relação para a declaração de anulação do testamento de Abril”.
XI. “Não pode a ré, por um lado, alegar que do processo de inventário por óbito de FF, designadamente da reclamação da relação de bens de 27/03/2021, já decorria que este sofria de graves problemas de saúde a nível neurológico no momento da assinatura do testamento, cuja validade se afigurava dúbia, e com isso invocar o decurso do prazo de dois anos previsto no artigo 2308.º nº2 C.C. e considerar que esse prazo não decorreu para si”.
XII. No nosso entender, da reclamação de bens (27/03/2021) decorre que os autores naquela data estavam já convencidos de que o testador sofria de graves problemas de saúde a nível neurológico que afectavam a sua capacidade de testar.
XIII. Mas isso não significa que só porque os autores tenham proferido tal declaração, se deva considerar-se que a ré tenha ficado a conhecer, ou melhor, igualmente convencida da existência de qualquer tipo de problema de saúde do testador, até porque naquela data não juntaram os autores qualquer relatório medico.
XIV. A declaração dos autores, só aos mesmos vincula.
XV. Aquele conhecimento (incapacidade para testar) só pode advir de prova pericial ou documental inequívoca dessa incapacidade para testar e não da simples declaração de terceiros.
XVI. A ré apenas ficou a conhecer os relatórios médicos que serviram de base ao pedido dos autores com a citação para contestar a presente acção, o que ocorreu em 10-11-2023.
XVII. Ficando nessa data também a perceber que poderia não bastar o fato de os notários sob sua responsabilidade, determinarem que o testador tinha capacidade para outorgar o seu testamento.
XVIII. Portanto no nosso entendimento, é no momento da citação (com os relatórios médicos juntos) que a ré compreende que apesar da intervenção dos notários a condição de saúde do seu pai poderia ser causa de anulabilidade dos testamentos, o que ocorreu em 10-11-2023.
XIX. E foi estar em tempo de o fazer, que entendeu que por mero dever de patrocínio deveria requer que se o testador fosse considerado inábil para aquele testamento de 7 de Maio de 2013 também teria de considerado inábil para o de 5 de Abril 2013.
XX. Realizando esse realizado em 11 Dezembro de 2023 com a contestação apresentada, portanto ainda dentro daquele prazo de 2 anos do artigo 2308.º nº 2 do Código Civil.
XXI. Assim, considera a ré estar em prazo de requer a anulação do testamento de 5 de Abril de 2013.
XXII. Rogando pelo prosseguimento dos autos para produção de melhor prova relegando-se o conhecimento da excepção da caducidade do pedido reconvencional para final, fazendo assim Vossas Excelências Inteira Justiça.
Termos em que deve ser revogada a decisão recorrida, declarando improcedente a excepção de caducidade e consequente determinar prosseguimento dos autos relativamente ao pedido reconvencional fazendo Vossas Excelências inteira Justiça.
Os recorridos não responderam a estas alegações.
O Mmo. Juiz a quo admitiu o recurso omitindo, todavia, o despacho de apreciação da nulidade arguida no recurso, previsto no n.º 1 do artigo 617.º do Código de Processo Civil.
O relator entendeu não ordenar a baixa do processo para ser proferido o despacho omitido (n.º 5 do artigo 617.º).
Após os vistos legais, cumpre decidir.


II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões:
i. Se a decisão recorrida é nula por falta de fundamentação.
ii. Não sendo nula, se a decisão deve ser confirmada.


III. Nulidades da decisão recorrida:
A recorrente arguiu a nulidade da decisão recorrida por falta de fundamentação.
Na verdade, a decisão recorrida não descreve um único facto que tenha considerado provado e que pudesse servir de fundamento ao dispositivo.
O Mmo. juiz a quo limita-se a fazer na decisão um conjunto de considerações sobre o teor dos articulados da acção e a posição que nele as partes assumiram, não tendo, contudo, enunciado os factos que considera já provados por confissão das partes e em função das quais seria possível aferir (ou não) se a situação de incapacidade do testador existia em que data se tornou conhecida da parte que agora vem arguir na acção o vício do testamento.
Uma excepção é constituída por factos jurídicos concretos que têm o efeito jurídico de impedir, modificar ou extinguir o direito que se pretende fazer valer. Por conseguinte, a afirmação de que a excepção está verificada não pode prescindir da prévia determinação do facto jurídico em que ela sustenta, i.e., estando em causa a caducidade de um direito de acção, o apuramento dos factos jurídicos concretos que preenchem os pressupostos do direito de acção e dos factos jurídicos concretos que revelam o conhecimento desses pressupostos e conduzem, por isso, ao início do prazo legal de caducidade aplicável.
Não possuindo absolutamente nenhuma fundamentação de facto, a decisão recorrida é nula por falta de fundamentação.


IV. Fundamentação de facto:
O tribunal a quo não elencou quaisquer factos que se possam considerar já provados.


V. Matéria de Direito:
A declaração de nulidade da decisão recorrida prejudica o conhecimento dos demais fundamentos do recurso e com base nos quais a recorrente defende a revogação do despacho.
Com efeito, não estamos perante o recurso da decisão que põe termo ao processo porque apesar da decisão o processo tem de prosseguir para conhecimento dos demais fundamentos da acção e da reconvenção: os fundamento da nulidade do testamento (cujo prazo de caducidade da acção é de 10 anos nos termos do n.º 1 do artigo 2308.º do Código Civil, e não de 2 anos, nos termos do n.º 2 do mesmo preceito legal, sendo que aquele prazo não decorreu nem vem alegado que tenha decorrido).
Consequentemente, não tendo aplicação ao caso a regra da substituição ao tribunal recorrido estabelecida no artigo 665.º do Código de Processo Civil, a nulidade da decisão produz o efeito revogatório normal da anulação, em resultado do qual a decisão deixa de vigorar ainda que não viesse a proceder algum ou mesmo todos os demais argumentos com base nos quais se pede a sua revogação.
Ainda assim sempre se dirá o seguinte.
É absolutamente certeiro que o que vale para uma das partes deverá valer para a outra. Todavia, primeiro é necessário apurar o que deve valer contra ambas, ou seja, apurar os factos controvertidos que permitem apurar se a incapacidade existia, quando, em que se traduzia, como se manifestava.
É igualmente certeiro que o que interessa à caducidade é o conhecimento dos (factos materiais que consubstanciam os) pressupostos do direito de acção, sendo irrelevante se a parte conhecia o a qualidade jurídica dos mesmos e/ou a existência de um prazo de caducidade para instaurar a acção de anulabilidade (artigo 6.º do Código Civil).
Todavia, a circunstância de numa determinada ocasião a parte ter afirmado que os factos que integram aqueles pressupostos ocorreram não é bastante para que os mesmos sejam julgados provados (não são factos que lhe sejam favoráveis e que ela possa confessar). Tal como a circunstância de a parte os situar num certo momento não determina necessariamente que os mesmos já existiam noutra altura diferente.
Embora a doença de Parkinson não tenha actualmente cura e seja evolutiva, esses factos têm de ser apurados em concreto porque cada doente é um doente e tem uma evolução própria. Só depois de apurados se pode discutir sobre o momento em que os mesmos se tornaram conhecidos ou cognoscíveis da parte interessada na arguição do vício.
É também igualmente certo que quem lidava com o testador não podia desconhecer o seu estado, as patologias de que enfermava, o modo como ele geria, organizava e decidia (ou não) a sua vida. Por isso, nenhum exame ou outro meio de prova produzido à posterior pode ter transmitido aos interessados o conhecimento originário da incapacidade que tinha de se manifestar no que eles viam e presenciavam por si, no momento próprio. Todavia, de novo, é necessário fazer a prova dos comportamentos do testador para apurar em que medida os mesmos traduziam uma situação de capacidade esta era cognoscível por quem lidava com ele.
Por fim, no despacho saneador o tribunal só pode conhecer do mérito da causa ou de alguma excepção peremptória quando o estado do processo o permitir sem necessidade de mais prova (artigo 595.º do Código de Processo Civil). Esta norma permite ao juiz conhecer do mérito da causa ou de alguma excepção peremptória, imediatamente após o fim dos articulados, mas apenas se e quando não houver necessidade de produzir mais provas sobre a matéria sobre que irá recair esse conhecimento.
Tal ocorre quando essa apreciação é totalmente independente do apuramento de factos, quando a matéria de facto necessária para o conhecimento se encontra já toda ela provada por confissão ou por documento com valor de prova plena e quando os factos que permanecem controvertidos são indiferentes para o conhecimento ou os factos que permanecem controvertidos só admitirem prova documental e a parte tenha sido notificada para a juntar.
Fora dessas situações, estando o julgamento dependente de factos que carecem de prova que deva ser produzida na audiência de julgamento (v.g. prova por declarações), o juiz não pode conhecer de imediato do mérito e deve fazer prosseguir a acção para a audiência de julgamento.
Ora os factos que sustentam a alegação do estado de incapacidade do testador encontram-se impugnados e são controvertidos. É certo que a ré impugna que o testador estivesse incapaz no momento que interessa aos autores e depois defende que a incapacidade existia num momento anterior a esse, que é agora da sua conveniência.
Todavia, a reconvenção da ré foi deduzida a título subsidiário, apenas para a hipótese de «a presente acção proceder por provada, concluído assim este tribunal pela nulidade do testamento de 7 de Maio de 2013 ou pela anulabilidade do mesmo». Por outras palavras, a reconvenção apenas foi deduzida para acautelar a hipótese de vingar a tese dos autores de que o testador estava incapaz, pelo que a mesma não importa a confissão dos factos alegados pelos autores para fundar a alegada incapacidade, nem o reconhecimento da incapacidade.
Por essa razão parece seguro que a excepção da caducidade do direito de acção (no que conserve à reconvenção) não podia ainda ser conhecida, por não estarem ainda provados os factos alegados como fundamento da acção e da reconvenção.
Tudo isso para dizer que ainda que não fosse nula, a decisão teria de ser revogada.



VI. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação julgar o recurso procedente e, em consequência, anulam a decisão recorrida.

Custas do recurso pelos recorridos.

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Porto, 5 de Dezembro de 2024.
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Os Juízes Desembargadores
Relator: Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 865)
1.º Adjunto: Ana Vieira
2.º Adjunto: Francisca Micaela Mota Vieira








[a presente peça processual foi produzida pelo Relator com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas]