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INVENTÁRIO
RECLAMAÇÃO À RELAÇÃO DE BENS
FACTOS CONCRETIZADORES
BENFEITORIAS
Sumário
I - Discutindo-se, em incidente de reclamação contra a relação de bens, o dever de relacionamento de benfeitorias realizadas em bem próprio do ex cônjuge, os factos destinados à descrição e pormenorização das obras realizadas constituem factos concretizadores da alegação feita na reclamação de que tais obras consistiram em restauração e ampliação, em mais dois andares, dessa casa. II - Enquanto factos concretizadores, podem ser considerados pelo tribunal desde que, nos termos da alínea b), do n.º 2, do art.º 5.º do CPC, resultem da instrução da causa e as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciar sobre eles. III - Este último preceito não faz depender a consideração dos factos concretizadores que resultem da instrução da causa de comunicação formal do tribunal de que os vai considerar na decisão e da concessão de prazo suplementar para o exercício do contraditório; o que exige é que as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciar sobre eles, o que sempre ocorrerá quando, em sede de produção de prova, tenham sido objeto, não só das declarações e depoimentos prestados, como de ampla discussão, quer pelas partes, através dos seus mandatários, quer pelo próprio tribunal. IV - Com a impugnação da decisão da matéria de facto visa-se alterar o julgamento feito em 1.ª instância dos factos que nela se considera mal julgados; isto, contudo, não como fim em si mesmo, mas como meio ou instrumento de, mediante a alteração dos factos objeto da impugnação, ser feito um diverso enquadramento jurídico deles e, com isso, ser obtida uma decisão diversa da recorrida quanto ao fundo da causa. V.- Tal impugnação tem, por isso, natureza instrumental, não devendo ser apreciada, porque inútil, mesmo que do seu conhecimento resultasse a alteração do julgamento dos factos no sentido preconizado pelo recorrente, quando se mostre irrelevante para a definição do direito aplicável ao caso. VI - A proveniência do dinheiro que serviu de pagamento de benfeitorias realizadas em bem próprio do ex cônjuge, designadamente que se tratou de dinheiro comum, é um facto constitutivo do direito do interessado que, em reclamação à relação de bens, pugna pelo seu relacionamento, cabendo-lhe, por isso, o ónus da prova correspondente (art.º 342.º, n.º 1 do CC); não cumprindo esse ónus, soçobra a sua pretensão.
Texto Integral
Processo n.º 245/22.2T8PRD-C.P1 - Recurso de apelação
Tribunal recorrido: Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este – Juízo de Família e Menores de Paredes – Juiz 2
1.- BB, depois de, no processo apenso, ter sido decretado, por sentença de 08-03-2022, transitada em julgado, o divórcio e, consequentemente, a dissolução do seu casamento com AA, veio requerer, em 18-01-2023, inventário para partilha dos bens comuns do extinto casal.
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2.- Por despacho de 23-01-2023, foi admitido o requerimento inicial e nomeado como cabeça de casal, enquanto cônjuge mais velho, o interessado AA.
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3.- Citado, apresentou o cabeça de casal, em 02-03-2023, a relação de bens, relacionando bens móveis e passivo.
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4.- Dela notificada, reclamou a interessada, em 28-03-2023, da relação de bens, acusando, além do mais, sob o item 36, o não relacionamento do seguinte:
- “Benfeitorias efetuadas pelo casal em prédio, bem próprio do ex-marido, por aquisição por partilha da herança por óbito de seus pais, que constituiu a casa de morada de família do ex-casal, prédio esse descrito na Conservatória do Registo Predial de Lousada, pela freguesia ..., sob o nº. ...15 e inscrito na matriz urbana da união das freguesias ..., ..., sob o artigo ...14 (…), benfeitorias essas que consistiram em restauração e ampliação, em mais 2 andares, dessa casa, benfeitorias essas que elevaram, em muito, o valor desse prédio. Considera adequado o valor de 100.000€00.”
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5.- Notificado da reclamação, respondeu o cabeça de casal em 09-05-2023, afirmando, quanto à rubrica das benfeitorias referida em 4, que a única obra que o dissolvido casal fez no prédio foi uma rampa de acesso à garagem. Neste pressuposto, requereu a sua inclusão em verba autónoma, à qual atribuiu o valor de € 1.000,00.
Quanto às demais obras efetuadas no prédio, referiu que foram realizadas a mando e a cargo do seu pai, pelo que constituem “bem próprio” seu.
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6.- Realizada a audiência prévia, e obtido acordo entre os interessados quanto ao mais, prosseguiu o incidente de reclamação à relação de bens para apreciação da questão atinente às benfeitorias, com a produção, em 07-05-2024, da prova requerida (depoimento e declarações de parte da interessada; declarações de parte do cabeça de cascal; inquirição de testemunhas).
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7.- Seguidamente, foi proferida, em 13-05-2024, decisão do incidente, julgando: A.- parcialmente procedente, por parcialmente provada, a reclamação apresentada pela interessada e, concomitantemente, determinar que sejam: 1.- Relacionados os seguintes bens: - Benfeitorias realizadas pelo ex-casal/património comum, respeitantes ao prédio referido em 4), que constituiu a casa de morada de família correspondentes ao serviço de trolha (revestimento de paredes, no interior e exterior, chapisco, massa por causa das humidades e depois a carapinha), pintura das paredes exterior e interior, caixilharia e carpintaria. B - Julgar improcedente o mais respeitante à reclamação quanto à relação de bens.
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8.- Inconformado com a decisão, dela interpôs o cabeça de casal o presente recurso, batendo-se pela sua revogação, com a consequente eliminação do dever de relacionar as benfeitorias nela referidas.
Para o efeito, formulou as seguintes conclusões:
A. Vem o presente recurso interposto da douta sentença de fls., que determinou que fossem relacionadas as benfeitorias realizadas pelo ex-casal/património comum, respeitantes ao prédio referido em 4), que constituiu a casa de morada de família correspondentes ao serviço de trolha (revestimento de paredes, no interior e exterior, chapisco, massa por causa das humidades e depois a carapinha), pintura das paredes exterior e interior caixilharia e carpintaria.
B. Em síntese, cumpria nos presentes autos aferir se as benfeitorias realizadas no imóvel propriedade do Recorrente deveriam integrar ou não a relação de bens.
C. Sucede que, a sentença ora em crise padece de um vício de nulidade, previsto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do C.P.C., por excesso de pronúncia, uma vez que, o Tribunal a quo conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento, dado que a aqui Recorrida, na sua reclamação, não refere, sequer, que tipo de serviço terá sido executado e custeado pelo extinto casal.
D. Prevê o artigo 5.º, n.º 2, b) do CPC que “além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz: b) os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegam e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar”.
E. Ora, perante os factos que resultaram da instrução da causa, mormente os que dizem respeito à concretização das benfeitorias e resultantes do depoimento da testemunha CC, o ora Recorrente não teve a possibilidade de se pronunciar quanto ao mesmos, tendo a contra instância sido insuficiente perante tais factos trazidos aos autos por uma testemunha.
F. O próprio Tribunal procedeu à concretização, e até ampliação, do pedido formulado para Recorrida na reclamação por si apresentada, sendo esta a detentora de um alegado direito de crédito.
G. Pelo que, atento o exposto, deve a sentença objeto do presente recurso ser declarada nula, visto que, o Tribunal a quo excedeu os seus poderes de cognição, conhecendo de questões que não foram debatidas pelas partes, incluindo-as na sua decisão sem disso dar conhecimento às partes.
H. Ademais, a Mma. Juiz a quo dá, erradamente, como provados os seguintes factos:
9) O ex-casal, quanto ao prédio referido em 4), que constituiu a casa de morada de família, realizou ainda as obras correspondentes ao serviço de trolha (revestimento de paredes, no interior e exterior, chapisco, massa por causa das humidades e depois a carapinha), pintura das paredes exterior e interior, caixilharia/carpintaria.
10) As obras realizadas em 9) elevaram o valor do prédio a montante não concretamente apurado.
13) O respetivo licenciamento ficou em nome de DD, sogro da ora interessada, apenas por, nessa data, tal prédio ser de sua propriedade.
I. Dando, por sua vez, erradamente com não provados os seguintes:
d) As obras realizadas no prédio referido em 4) sempre foram efetuadas a mando e a cargo do pai do ora Cabeça de Casal, Sr. DD, com o seu próprio dinheiro.
g) A outra habitação gêmea referida em 14) também foi efetuada pelo pai do Cabeça de Casal.
J. Para tal decisão, o Tribunal a quo baseou-se nas regras da experiência comum, no teor dos documentos juntos, conjugados com os depoimentos das testemunhas, com o depoimento de parte e, bem assim, com as declarações de parte.
K. Posto que, o ora Recorrente não concorda com a forma como, na sentença ora objeto do presente recurso, a prova produzida foi apreciada e valorada e, consequentemente, com as conclusões a que se chegou.
L. A douta sentença refere que para dar como provados e não provados os suprarreferidos factos, foi tido em consideração o “depoimento da testemunha CC, que, como melhor se explicitou acima, e que agora se reproduz, se afigurou totalmente isenta, com conhecimento directo dos factos e por isso credível, conjugado com as regras da experiência comum. Assim, partindo do depoimento desta testemunha, que foi inteiramente valorado e atentas as regras da experiência comum, conclui-se no sentido da factualidade dada como provada.”
M. Sucede que, a testemunha em causa, no seu depoimento, foi clara ao referir que desconhece quem colocou a caixilharia, bem como, quem a suportou, afirmando também que não sabe de quem provinha o dinheiro que lhe era dado pelo Recorrente.
N. Aliás, a mesma refere que os materiais que utilizava na obra eram lá colocados, não sabendo por quem, nem quem os custeava.
O. Face à prova produzida, não podia o Tribunal concluir que os serviços de trolha prestados pela testemunha foram custeados pelo ex-casal, apontando tudo precisamente no sentido contrário ao que a Mma. Juiz a quo decidiu.
P. O circunstancialismo ora em crise resulta dos depoimentos prestados pela testemunha CC, na sessão de 07.05.2024 da produção de prova, que aqui se dá por integralmente reproduzido, transcrevendo-se as concretas passagens do minuto 00:07:45 a 00:08:38, 00:08:56 a 00:11:08, 00:11:32 a 00:12:03 e 00:12:11 a 00:12:58.
Q. Bem como, dos depoimentos prestados pelo Recorrente, na sessão de 07.05.2024 da produção de prova, que aqui se dá por integralmente reproduzido, transcrevendo-se as concretas passagens do minuto 00:06:32 a 00:09:30, 00:10:25 a 00:10:55 e 00:11:50 a 00:12:54; pela testemunha EE, na sessão de 07.05.2024 da produção de prova, que aqui se dá por integralmente reproduzido, transcrevendo-se as concretas passagens do minuto 00:02:08 a 00:05:24, 00:008:04 a 00:08:22, 00:09:44 a 00:10:35 e 00:12:03 a 00:12:45; e pela testemunha FF, na sessão de 07.05.2024 da produção de prova, que aqui se dá por integralmente reproduzido, transcrevendo-se as concretas passagens do minuto 00:01:54 a 00:07:36, 00:10:01 a 00:10:37, 00:11:04 a 00:13:02 e 00:14:54 a 00:15:37.
R. Ora, perante tais depoimentos, o Tribunal a quo não poderia concluir no sentido que concluiu, dando tais factos como provados.
S. Isto porque, o referido Tribunal atribuiu total credibilidade ao depoimento da testemunha CC, porque isento, desconsiderando o facto de aquela não demonstrar qualquer certeza acerca da sequência das obras realizadas e, muito menos, quem suportava o custo com os materiais.
T. A testemunha refere que o dinheiro lhe era entregue pelo Recorrente, mas quando questionada acerca da sua proveniência a mesma nada sabe,
U. Ora, atento o exposto, não pode, s.m.o, o Tribunal a quo, fazer uma interpretação extensiva do que é dito pela testemunha, socorrendo-se de deduções ou do conceito indeterminado de “regras da experiência comum”.
V. Parece-nos que, tais regras, não admitem a extração de factos que a própria testemunha afirma desconhecer, nomeadamente, a proveniência do dinheiro e o custo dos materiais.
W. No que concerne às demais testemunhas, o mui nobre Tribunal não lhes confere qualquer credibilidade, alegando uma animosidade entre aquelas e a Recorrida.
X. Acontece que, dos depoimentos prestados não resultou qualquer animosidade, nada tendo ocorrido que tal indiciasse, não se compreendendo a falta de atribuição àquelas de credibilidade.
Y. Até porque, são as únicas que sabem, realmente, o que sucedeu, tendo conhecimento direto dos factos.
Z. Os seus depoimentos revelaram-se coerentes, isentos, imparciais e verosímeis face às regras da experiência, pelo que, nunca tendo ocorrido qualquer tipo de desacato entre aquelas e a Recorrida, não se vê razão para o Tribunal não valorar os depoimentos com base numa animosidade.
AA. As testemunhas em causa apenas se limitaram a responder ao solicitado, nunca tendo indo além das questões por forma a denegrir a imagem da Recorrida.
BB. Ademais, a Mma. Juiz não valorou corretamente a prova documental respeitante ao licenciamento das obras.
CC. O licenciamento ficou em nome do pai do Recorrente, pois além do imóvel ser sua propriedade, foi aquele quem custou todas as obras e despesas.
DD. Concluindo-se que, apesar de toda a prova documental e testemunhal apontar em sentido diverso, que o licenciamento estava em nome do pai do Recorrente, mas que, contudo, não foi aquele quem pagou pelas obras, o que não é verdade.
EE. Da restante prova produzida nos presentes autos, não resultam quaisquer factos que, com a necessária certeza, permitissem ao Tribunal a quo concluir no sentido de afastar a prova documental produzida e os efeitos que através da mesma se alcançaram.
FF. Por fim, caso se considere que foi o património do ex-casal que suportou as benfeitorias em causa, apenas poderia ser contabilizado o serviço de trolha executado pela testemunha CC, e não mais do que isso, uma vez que a própria testemunha referiu que não fez a pintura, caixilharia e carpintaria, desconhecendo quem o tenha feito.
GG.
HH. Deste modo, impõe-se a revogação in totum da sentença objeto do presente recurso, não devendo as benfeitorias correspondentes ao serviço de trolha (revestimento de paredes, no interior e exterior, chapisco, massa por causa das humidades e depois a carapinha), pintura das paredes exterior e interior, caixilharia e carpintaria, integrar a relação de bens.
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A interessada respondeu ao recurso interposto, batendo-se pela sua improcedência e não formulando conclusões.
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O recurso, depois de se julgar não verificada a nulidade da decisão recorrida arguida pelo Recorrente, foi admitido pelo tribunal a quo como apelação, com subida imediata, em separado e com efeito suspensivo e assim recebido nesta Relação, que o considerou corretamente admitido e com o efeito legalmente previsto.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II.- Das questões a decidir
O âmbito dos recursos, tal como resulta das disposições conjugadas dos art. ºs 635.º, n.º 4, 639.º, n.ºs 1 e 2 e 641.º, n.º 2, al. b) do Código de Processo Civil (doravante, CPC), é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente.
Isto, com ressalva das questões de conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado ou das que se prendem com a qualificação jurídica dos factos (cfr., a este propósito, o disposto nos art. ºs 608.º, n.º 2, 663.º, n.º 2 e 5.º, n.º 3 do CPC).
Neste pressuposto, as questões que, neste recurso, importa apreciar e decidir são as seguintes, de acordo com a sua precedência lógica:
1.- da nulidade da decisão recorrida por nela se ter apreciado uma questão da qual não se podia tomar conhecimento (art.º 615.º, n.º 1, alínea d) do CPC);
2.- da impugnação da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida, quanto:
2.1.- à consideração, pelo tribunal a quo, de factos não alegados pelas partes, fora do condicionalismo previsto no art.º 5.º, n.º 2, al. b) do CPC;
2.2.- à consideração como provados dos factos com os n.ºs 9, 10 e 13 e como não provados dos elencados em d) e g);
3.- do dever de relacionamento das benfeitorias referidas pelo Apelante no seu recurso.
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III.- Da Fundamentação
III.I.- Na decisão proferida em 1.ª Instância e alvo deste recurso foram considerados provados os seguintes factos:
1) A Requerente BB, filha de GG e de HH e o Requerido AA, filho de DD e de II, celebraram casamento católico no dia ../../1989, sem convenção antenupcial.
2) No dia 28.01.2022 AA instaurou ação de divórcio sem consentimento de outro cônjuge contra BB.
3) Por sentença proferida no dia 08.03.2022 foi tal divórcio convertido em divórcio por mútuo consentimento e foi decretado o divórcio, assim se dissolvendo o casamento entre AA e FF, celebrado a 12 de novembro de 1989.
4) Encontra-se inscrito na matriz sob o artigo n.º ...14, distrito ..., concelho ..., freguesia ..., ..., o prédio sito na Rua ..., ..., Lugar ..., que teve origem no artigo ...78 - urbano, da freguesia ... (extinta), afeto a habitação, 3 pisos, tipologia T2, com a área de 300m2, sendo coberta 74m2 e descoberta 222m2, sendo o ano de inscrição na matriz em 1995, com o valor patrimonial de €65.975,00, sendo titular AA.
5) Encontra-se registado na Conservatória do Registo Predial, sob o n.º ..5/19960104, da freguesia ..., concelho ..., o prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo ...78, urbano, situado em Lugar ..., com a área total de 300m2, sendo coberta de 74m2 e descoberta de 226m2, casa de rés do chão, andar e logradouro, confrontando de norte, nascente e poente com terras que foram de DD e do sul com caminho público, composto por casa de cave e rés do chão, com quintal.
6) Pela apresentação 8 de 1996/01/04, está registada a aquisição, por partilha da herança, sendo sujeito ativo AA, casado com FF no regime de comunhão de adquiridos, residente em ..., ..., ... e sujeito passivo DD, casado com II no regime de comunhão geral, com morada em ..., ..., ....
7) Quanto ao prédio referido em 4), que constituiu a casa de morada de família, o ex-casal realizou uma rampa de acesso à garagem, solicitando a respetiva licença no dia 17.12.1996, dando origem ao processo 604/02/96, conforme documento junto com a resposta à reclamação da relação de bens.
8) A rampa de acesso tem valor não concretamente apurado.
9) O ex-casal, quanto ao prédio referido em 4), que constituiu a casa de morada de família, realizou ainda as obras correspondentes ao serviço de trolha (revestimento de paredes, no interior e exterior, chapisco, massa por causa das humidades e depois a carapinha), pintura das paredes exterior e interior, caixilharia/carpintaria.
10) As obras realizadas em 9) elevaram o valor do prédio a montante não concretamente apurado.
11) Após o casamento referido em 1), o casal passou a residir no prédio referido em 4), constituído na altura apenas por uma garagem, sem água, correspondente ao atual rés-do-chão.
12) Foi o pai do cabeça de casal que, em 31.08.1990, solicitou junto da Câmara as licenças para aprovação do projeto apresentado e destaque da parcela assinalado na planta topográfica anexa que se destina a doar a dois dos seus filhos e ainda as alterações a efetuar no prédio em construção, abrangendo a construção do prédio ora em causa, constituindo projeto de aditamento ao processo de obras n.º .../87. Por despacho de 01.06.1992 foi ainda concedida
a prorrogação da licença, até 14.04.1996 (alvará de licença .../92).
13) O respetivo licenciamento ficou em nome de DD, sogro da ora interessada, apenas por, nessa data, tal prédio ser de sua propriedade.
14) Tal habitação é gémea de uma outra.
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III.II.- Na decisão proferida em 1.ª Instância e alvo deste recurso não foram considerados provados os seguintes factos:
a) O valor da rampa de acesso referido em 8) tem o valor de €1.000,00 (mil euros).
b) Para além das obras referidas em 9), o ex-casal, quanto ao prédio referido em 4), realizou ainda outras obras, designadamente de pedreiro e telhado.
c) Essas obras elevaram o valor desse prédio em €100.000,00.
d) As obras realizadas no prédio referido em 4) sempre foram efetuadas a mando e a cargo do pai do ora Cabeça de Casal, Sr. DD, com o seu próprio dinheiro.
e) Aquando o referido em 11), essa garagem não tinha portas, divisões nem casa de banho.
f) Para além do referido em 9), logo no ano seguinte ao casamento, o casal iniciou, naquele prédio, obras de ampliação, em mais 2 andares, a mando e custeadas exclusivamente pelo ex-casal.
g) A outra habitação gémea referida em 14) também foi efetuada pelo pai do Cabeça de Casal.
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III.II.- Do objeto do recurso
1.- Da nulidade da sentença recorrida por excesso de pronúncia
Invoca o Apelante que a decisão recorrida é nula pelo facto de o tribunal a quo ter apreciado uma questão da qual não podia tomar conhecimento.
Tal vício está previsto na alínea d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC, nos termos do qual, reportando-nos àquilo que aqui importa considerar, é, de facto, nula a sentença quando o juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
A nulidade em apreço está conexionada, além do mais, com o disposto no n.º 2 do art.º 608.º do CPC, o qual, no que ao caso importa, impõe ao juiz que, na sentença, se ocupe apenas das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
Ou seja, à luz de tal normativo, há nulidade da decisão sempre que o tribunal, tal não lhe sendo permitido por lei ou não sendo do seu conhecimento oficioso, se pronuncie sobre questões cuja apreciação lhe não foi pedida pelas partes.
Do que se trata aqui é, como decorre dos normativos legais supra transcritos, de um ‘excesso de pronúncia’ do tribunal quanto a questões de que não devesse conhecer, o que afasta, por conseguinte, as hipóteses em que, como refere Rui Pinto, “o tribunal usa de fundamentos jurídicos diferentes dos invocados pelas partes, dado o artigo 5.º, n.º 3 [do CPC] o permitir”, ou “aduz argumentos que a parte não apresentara, já que, uma coisa são as questões e, outra, são os argumentos que suportam a resolução daquelas” (in “Os meios reclamatórios comuns da decisão civil (artigos 613.º a 617.º do CPC)”, Julgar online, maio de 2020, p. 29).
In casu, segundo o Apelante a decisão recorrida padeceria do vício em apreço pelo facto de ter considerado factos que não haviam sido alegados pelas partes, mormente pela Recorrida na sua reclamação à relação de bens, não respeitando, por isso, o disposto no art.º 5.º, n.º 2, alínea b) do CPC.
Não há, contudo, com este enquadramento, nulidade atendível.
Na verdade, o vício em causa contende, como se viu, com as questõesque ao tribunal cumpre conhecer na sentença, sobrevindo quando o tribunal se pronuncie sobre alguma questão que não tenha sido suscitada por qualquer das partes.
Neste caso, a questão que ao tribunal se impunha apreciar era, como o próprio Apelante reconhece na sua peça recursória, aferir se as benfeitorias realizadas no imóvel que é reconhecidamente seu bem próprio foram pagas pelo casal ou pelo pai do Apelante, por forma a saber-se se deveriam integrar ou não a relação de bens.
Ora, como resulta da leitura da decisão recorrida, foi exatamente essa e nenhuma outra a questão que o tribunal a quo apreciou, o que, sem mais, impõe a conclusão de que a sua atividade decisória se cingiu àquilo que lhe era permitido (e imposto) conhecer, não padecendo, por isso, do vício que lhe é assacado no recurso.
A questão que o Apelante suscita é diversa. Tem a ver, como se viu, com a eventual consideração pelo tribunal a quo de factos cujo conhecimento, porque não alegados pelas partes, lhe estava vedado. Tal questão, contudo, prendendo-se com o substrato factual que deve servir de suporte à aplicação do direito, tem a ver com o julgamento da matéria de facto e não com o conhecimento das questões jurídicas que ao tribunal cumpre conhecer, sendo, por conseguinte, naquela sede e não nesta que deve ser apreciada.
Não há, pois, e em suma, nulidade da decisão recorrida, pelo que improcede a pretensão do Apelante em apreço.
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2.- Da impugnação da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida 2.1.- Da consideração, pelo tribunal a quo, de factos não alegados pelas partes, fora do condicionalismo previsto no art.º 5.º, n.º 2, al. b) do CPC
Insurge-se o Apelante contra o facto de, na decisão recorrida, o tribunal a quo se ter servido de factos que não haviam sido alegados pelas partes, fora do condicionalismo previsto no art.º 5.º, n.º 2, al. b) do CPC.
Vejamos.
A propósito do ónus de alegação das partes e da amplitude dos poderes de cognição do tribunal em matéria de facto, dispõe o art.º 5.º, n.º 1 do CPC que às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas.
Por seu turno, estabelece o n.º 2 do mesmo preceito que, além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz:
.- os factos instrumentais que resultem da instrução da causa (alínea a);
.- os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar (alínea b);
.- os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.
Da leitura deste preceito resulta um sistema em que, tratando-se de factos essenciais, cabe exclusivamente às partes o ónus da sua alegação, sem que o tribunal possa substituí-las nessa tarefa. À margem destes, o tribunal só se pode socorrer oficiosamente dos factos que, resultando da instrução da causa, se assumam como instrumentais, ou então como complemento ou concretização dos alegados pelas partes - desde que, neste caso, as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciar sobre eles -, ou, finalmente, dos factos notórios e daqueles de que tenha conhecimento oficioso.
Subjacente a tal solução está a opção do legislador processual civil pela consagração da denominada “teoria da substanciação”, a qual “implica para o autor a necessidade de articular os factos dos quais deriva a sua pretensão, constituindo-se o objeto do processo e, por arrastamento, o caso julgado apenas sobre os factos integradores dessa concreta causa de pedir” (v. António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luis Filipe Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2023, p. 26).
Os factos essenciais são, como resulta do n.º 1 do preceito em análise, aqueles que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas, o mesmo é dizer os factos que servem de fundamento à ação e à defesa.
Divergem dos factos instrumentais, que “são aqueles que permitem a afirmação, por indução, de outros factos de que depende o reconhecimento do direito ou da exceção”, tratando-se, por isso, “dos factos que possam servir para a formação da convicção sobre os demais factos (designadamente por via do uso de presunções judiciais)” (v., neste sentido, os mesmos Autores, in ob. cit., p. 32 e 33). Saliente-se que os factos instrumentais não se confundem com os factos “que sirvam para integrar presunções legais (v.g. em matéria de responsabilidade civil extracontratual, da posse ou do regime da filiação)”, os quais “são de considerar essenciais, devendo ser alegados em conformidade (art.º 5.º, n.º 1) e ser objeto de pronúncia positiva ou negativa na sentença (ibidem, p. 33).
Os factos complementares ou concretizadores, por seu turno, são, como, como se depreende da norma legal, os que sirvam de desenvolvimento ou explicitação dos factos que haviam sido alegados pelas partes e que, por isso, estando contido nestes, contribuem, também, para a definição do direito aplicável ao caso.
Finalmente, os factos notórios são os factos do conhecimento geral, isto é, aqueles que, como se referiu no Acórdão do STJ de 12-03-2009, “o juiz o conhece como tal, colocado na posição do cidadão comum, regularmente informado, sem necessitar de recorrer a operações lógicas e cognitivas, nem a juízos presuntivos” (disponível na internet, no sítio com o endereço www.dgsi.pt), enquanto que os factos oficiosos são aqueles que o juiz adquire por decorrência do exercício das suas funções.
Com relevo para este caso, merece especial relevo a distinção entre os factos essenciais e os factos complementares ou concretizadores. Os primeiros são, como refere Paulo Pimenta, os factos “nucleares[, que] constituem o núcleo primordial da causa de pedir ou da excepção, desempenhando uma função individualizadora ou identificadora”. Já os “complementares e os concretizadores, embora também integrem a causa de pedir ou a excepção, não têm já uma função individualizadora. Assim, os factos complementares são os completadores de uma causa de pedir (ou de uma exceção) complexa, ou seja, uma causa de pedir (ou uma excepção) aglutinadora de diversos elementos, uns constitutivos do seu núcleo primordial, outros complementando aquele”. Por sua vez, os factos concretizadores, têm por função “pormenorizar a questão fáctica exposta sendo, exactamente, essa pormenorização dos factos anteriormente alegados que se torna fundamental para a procedência da acção (ou da excepção)” (in Os Temas da Prova, Cadernos do CEJ, Caderno I, O Novo Processo Civil, dezembro de 2013, p. 245).
No caso, a questão coloca-se nos seguintes termos.
A Recorrida, notificada da relação de bens, dela reclamou acusando, além do mais, o não relacionamento das benfeitorias efetuadas pelo casal em prédio bem próprio do Apelante, benfeitorias essas que, de acordo com o alegado, “consistiram em restauração e ampliação, em mais 2 andares, dessa casa” e que “elevaram, em muito, o valor desse prédio. Considera adequado o valor de 100.000€00”.
Na decisão recorrida, esta alegação foi reproduzida nos factos provados n.ºs 9 e 10, que são do seguinte teor:
“9) O ex-casal, quanto ao prédio referido em 4), que constituiu a casa de morada de família, realizou ainda as obras correspondentes ao serviço de trolha (revestimento de paredes, no interior e exterior, chapisco, massa por causa das humidades e depois a carapinha), pintura das paredes exterior e interior, caixilharia/carpintaria. 10) As obras realizadas em 9) elevaram o valor do prédio a montante não concretamente apurado.”
Cotejando a alegação da Apelada e o teor dos factos vertidos na decisão, constata-se que é, de facto, diversa a redação destes, designadamente, no que tange ao facto provado n.º 9, no qual foram apostos dizeres que não constavam do articulado da Apelada.
Os factos vertidos nos factos provados estão, contudo, contidos na alegação da Apelada. Esta alegara, com efeito, que as benfeitorias tinham consistido em obras que passaram pelo restauro e ampliação em mais dois andares da casa e na decisão recorrida concretizou-se ou pormenorizou-se em que é que parte dessas obras consistiu. Estes mais não são, por conseguinte, do que explicitação daqueles, sem alterar o seu significado útil e essencial.
Além de contidos na alegação da Apelada, constituem esclarecimento ou mera concretização dos mesmos, elucidando que as obras que materializaram as benfeitorias consistiram em revestimento de paredes interiores e exteriores e, nestas, chapisco, massa e carapinha, mais caixilharia e carpintaria.
Os factos em apreço são, assim, claramente, factos que se destinaram a “pormenorizar a questão fáctica exposta [pela Apelada]”, em termos que se revelaram relevantes para a apreciação da questão em litígio e, portanto, factos concretizadores de acordo com a nomenclatura usada pelo legislador na alínea b) do n.º 2 do art.º 5.º do CPC.
Ora, tais factos, como o revela a própria decisão recorrida e não foi posto em causa pela Apelada, resultaram da instrução do processo. A sua consideração pelo tribunal a quo era, pois, legítima, a menos que sobre eles não tivessem as partes tido a possibilidade de se pronunciar, sendo essa a questão que aqui se coloca neste momento.
A este respeito, afigura-se-nos que assim foi. Não há dúvida de que não houve uma decisão específica e formal do tribunal a quo a dar conta aos interessados de que tomaria em consideração os factos em apreço. Mas também não há dúvida de que as partes não só tiveram a oportunidade de se pronunciar sobre tais factos, como se pronunciaram efetivamente sobre eles.
Na verdade, ouvida a produção de prova (declarações de ambos interessados e depoimentos das testemunhas) resulta claro que em todos os depoimentos prestados as questões referentes às obras foram abordadas, tendo ambos os mandatários e, oficiosamente, o próprio tribunal questionado ao mínimo detalhe os declarantes sobre ela. Da simples análise da fundamentação da decisão da matéria de facto contida na decisão recorrida também resulta que assim foi, já que nela a Sr.ª Juíza foi especialmente exaustiva a reproduzir o teor das declarações prestadas e destas é notório que o objeto essencial dos depoimentos prestados consistiu precisamente nas obras realizadas.
Não vemos, assim, como não concluir que a ambos os interessados foi dada a efetiva possibilidade de se pronunciarem sobre os factos em apreço, considerando-se, pois, legítima a sua inclusão no elenco de factos provados pelo tribunal a quo.
Note-se que a alínea b) do n.º 2 do art.º 5.º do CPC não faz depender a consideração dos factos complementares ou concretizadores que resultem da instrução da causa de uma comunicação formal do tribunal a quo de que os vai considerar na decisão a proferir e da concessão da possibilidade de exercício do contraditório sobre essa possibilidade. De acordo com o normativo em questão, o que importa é que as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciar sobre os factos. E que tal ocorreu é, em função do que ficou dito, um dado indesmentível, estando o contraditório relativamente à realidade factual em questão plenamente assegurado.
De resto, na reclamação da Apelada dizia-se que as benfeitorias tinham consistido em restauro e ampliação de um prédio, que elevou o valor deste em € 100.000,00, quando os factos provados n.ºs 9 e 10 retratam apenas uma pequena fração das obras realizadas, que, inclusive, não permitiu aferir o incremento de valor do prédio que acarretaram. Os factos em causa, tal como se encontram vertidos na decisão recorrida, têm, assim, relativamente à sua alegação originária na reclamação à relação de bens, um conteúdo restritivo claramente desfavorável à posição defendida pela Apelada e, pelo contrário, favorável à posição do Apelante. Também por aqui se não vê como não possa reputar-se legítima a sua consideração, tal como o tribunal a quo os considerou.
Em suma, nenhuma censura merece a consideração pelo tribunal a quo dos factos em apreço, improcedendo, consequentemente, a pretensão do Apelante no sentido da anulação da decisão com esse fundamento.
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2.2.- Da indevida consideração como provados dos factos com os n.ºs 9, 10 e 13 e como não provados dos elencados em d) e g)
.- O presente recurso versa sobre o sentido da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida.
Os termos em que a Relação pode conhecer da matéria de facto impugnada em sede de recurso constam, no essencial, do art.º 662.º do Código de Processo Civil.
De acordo com o disposto no n.º 1 deste preceito, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Por seu turno, nos termos do n.º 2, a Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:
a) ordenar a renovação da produção da prova quando houve dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;
b) ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;
c) anular a decisão proferida na 1.ª Instância quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração proferida sobre a decisão da matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta;
d) determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados.
Da leitura de tais dispositivos legais resulta que à Relação é, em sede de recurso em que esteja em causa a impugnação da matéria de facto, conferido um grau de autonomia especialmente relevante.
Na realidade, se, confrontada com a prova globalmente produzida, o seu juízo decisório for diverso do da 1.ª Instância, à Relação incumbe hoje, não a faculdade ou a simples possibilidade, mas um verdadeiro dever de introduzir as alterações que tenha por convenientes ou acertadas.
Por outro lado, se, confrontada com essa mesma prova, reputá-la insuficiente ou mesmo inconsistente, deverá, mesmo sem impulso das partes nesse sentido, o mesmo é dizer oficiosamente, ordenar a renovação de prova já produzida ou mesmo a produção de novos meios de prova.
Em sede de reapreciação da matéria de facto, cabe à Relação, por conseguinte, formar a sua própria convicção quanto à prova produzida, convicção essa que, caso divirja da firmada em 1.ª instância, prevalecerá sobre esta.
Ou seja, e como refere António Santos Abrantes Geraldes, a Relação atua nesta sede com “autonomia decisória” e “como verdadeiro tribunal de instância”, ao qual compete “introduzir na decisão da matéria de facto impugnada as modificações que se justificarem, desde que, dentro dos poderes de livre apreciação dos meios de prova, encontre motivo para tal” (in Recursos em Processo Civil, Almedina, 2022, p. 334).
A posição que a Relação deve adotar quando confrontada com um recurso em matéria de facto deve, pois, ser a mesma da da 1.ª Instância aquando da apreciação da prova após o julgamento, valendo para ambos o princípio da livre apreciação da prova, conforme resulta, aliás, do disposto nos art. ºs 607.º, n.º 5 e 663.º, n.º 2 do CPC.
O mesmo é dizer, com Remédio Marques, que a “Relação tem o poder-dever de formar a sua convicção própria sobre a prova produzida e sobre a correção do julgamento da matéria de facto, não se devendo escusar a fazê-lo com base no princípio da livre convicção do julgador da 1.ª instância” (in Acção declarativa à luz do Código revisto, p. 637-638, apud José Lebre de Feitas, Armando Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. 3.º, p. 172).
Só assim se garantirá, de resto, a efetiva sindicância, por parte da Relação, do julgamento da matéria de facto levado a cabo em 1.ª instância e, com isso, o princípio fundamental do duplo grau de jurisdição (v., neste sentido, e entre muitos outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24-09-2013, de 26-05-2021 e de 04-11-2021, todos disponíveis na internet, no sítio com o endereço www.dgsi.pt).
.- A autonomia decisória com que a Relação deve encarar a reapreciação da matéria de facto não pode implicar, contudo, a consideração genérica e indiscriminada de todos os factos e meios de prova já tidos em conta pela 1.ª Instância, como se aquela reapreciação impusesse a realização de um novo julgamento.
Dispõe, com efeito, o art.º 640.º, n.º 1 do CPC que quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
.- os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados (alínea a);
.- os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnada diversa da recorrida (alínea b);
.- a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (alínea c).
Por outro lado, de acordo com a alínea a) do n.º 2, sempre que os meios de prova que, nos termos da alínea b) do n.º 1 devem ser especificados, tenham sido gravados, incumbe ao recorrente indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
Resulta de tais normativos legais que sobre o recorrente que pretenda ver sindicado pela Relação o julgamento da matéria de facto feito em 1.ª instância recai o ónus de, não só circunscrever e delimitar a concreta matéria de facto de cujo julgamento discorda, como o de enunciar os meios de prova que deveriam ter conduzido a decisão diversa - apontando, neste caso, em se tratando de depoimentos gravados, as passagens da gravação ou procedendo à transcrição dos excertos relevantes - e, ainda, o de indicar o sentido da decisão que, na sua perspetiva, deve ser proferida.
O sistema adotado pelo legislador quanto ao julgamento da matéria de facto pela Relação, ao invés de uma solução pautada pela simples “repetição dos julgamentos” e “pela admissibilidade de recursos genéricos contra a decisão da matéria de facto”, consiste, pois, num sistema caracterizado “por restringir a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente”, como corolário do “princípio do dispositivo que se revela através da delimitação do objeto do recurso (da matéria de facto) através das alegações” (v., neste sentido, António Santos Abrantes Geraldes, in ob. cit., p. 195 e 341).
Isto, aliás, com reflexos na aferição da própria admissibilidade do recurso em matéria de facto, já que, como decorre expressamente do corpo do preceito que acaba de ser transcrito, o ónus que recai sobre o recorrente deve ser cumprido sob pena de rejeição do próprio recurso.
Do sistema assim concebido pelo legislador podemos entrever, em suma, e como se referiu no Acórdão do STJ de 29-10-2015, um “ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação”, bem como de “um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes” (sublinhados nossos; Acórdão disponível na internet, no sítio com o endereço www.dgsi.pt).
.- Sublinhe-se, ainda, que com a impugnação da decisão da matéria de facto proferida em 1.ª instância pretende-se, passe a redundância, alterar o julgamento feito quanto aos factos que, por via da impugnação, se reputam mal julgados.
Isto, contudo, não como fim em si mesmo, mas como meio ou instrumento de, mediante a alteração do julgamento dos factos impugnados, se poder concluir que - afinal - existe o direito que em 1.ª instância não foi reconhecido ou, pelo contrário, que não existe o direito que o foi; o mesmo é dizer, como meio de provocar um diverso enquadramento jurídico dos factos do levado a cabo em 1.ª instância e, com isso, obter uma decisão diversa da nele proferida quanto ao fundo da causa.
A impugnação da decisão da matéria de facto tem, por conseguinte, como referido no Acórdão da Relação de Guimarães de 15-12-2016, “carácter instrumental”, “não se justifica(ndo) a se, de forma independente e autónoma da decisão de mérito proferida, assumindo um carácter instrumental face à mesma” (Acórdão proferido no processo n.º 86/14.0T8AMR.G1, disponível na internet, no local já antes citado).
O seu fim último é, assim, como também referido no Acórdão da Relação de Coimbra de 24-04-2012, naquele citado, “conceder à parte uma ferramenta processual que lhe permita modificar a matéria de facto considerada provada ou não provada”, não com esse único intuito, mas sim “de modo a que, por essa via, obtenha um efeito juridicamente útil ou relevante”.
Por este motivo, o tribunal de recurso não deve conhecer a impugnação da matéria de facto sempre que, como se escreveu no Acórdão da Relação de Coimbra de 27-05-2014, também citado naqueloutro, “o(s) facto(s) concreto(s) objeto da impugnação for insuscetível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente” (sublinhado nosso).
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2.2.- Da indevida consideração como provados dos factos com os n.ºs 9, 10 e 13 e como não provados dos elencados em d) e g)
Liminarmente, e a este respeito, importa dizer que, atenta a natureza instrumental da impugnação da decisão de facto a que acima se fez referência, não há que conhecer da presente impugnação relativamente ao facto provado n.º 13 e ao facto não provado da alínea g).
Com efeito, o facto provado n.º 13 é do seguinte teor: “O respetivo licenciamento ficou em nome de DD, sogro da ora interessada, apenas por, nessa data, tal prédio ser de sua propriedade.”
Por seu turno, no facto não provado da alínea g) diz-se o seguinte: “A outra habitação gémea referida em 14) também foi efetuada pelo pai do Cabeça de Casal.”
Ora, o que verdadeiramente está em causa no recurso é, como se viu, saber quem custeou as benfeitorias realizadas no prédio do Apelante, se o casal, se o pai do Apelante.
A titularidade do licenciamento do prédio do Apelante e a identidade da pessoa que construiu o outro prédio geminado àquele, contudo, nenhum relevo tem para a apreciação de tal questão, na certeza de que o primeiro contende com a propriedade do prédio (que não é sequer controvertida) e o segundo diz respeito a um prédio estranho ao dos autos. Os factos em causa até podem ser relevantes, note-se, enquanto fatores de apreciação da prova produzida quanto aos factos que aqui realmente importa apreciar; todavia, considerados em si mesmo, nenhum efeito útil têm para a solução jurídica a dar à questão decidenda, pelo que se trata de factos inócuos para a decisão do recurso.
Rejeita-se, pelo exposto, a impugnação nesta parte, prosseguindo-se a sua apreciação apenas quanto aos restantes factos.
.- Os factos provados com os n.ºs 9 e 10 e o facto não provado da alínea d) estão intrinsecamente relacionados entre si, pelo que faremos a sua apreciação em conjunto.
Os factos provados n.ºs 9 e 10 são, respetivamente, do seguinte teor:
.- “O ex-casal, quanto ao prédio referido em 4), que constituiu a casa de morada de família, realizou ainda as obras correspondentes ao serviço de trolha (revestimento de paredes, no interior e exterior, chapisco, massa por causa das humidades e depois a carapinha), pintura das paredes exterior e interior, caixilharia/carpintaria.”;
.- “As obras realizadas em 9) elevaram o valor do prédio a montante não concretamente apurado.”
No facto não provado da alínea d), que corresponde, pela negativa, ao facto provado n.º 9, diz-se o seguinte:
.- “As obras realizadas no prédio referido em 4) sempre foram efetuadas a mando e a cargo do pai do ora Cabeça de Casal, Sr. DD, com o seu próprio dinheiro”.
Lida e interpretada a peça recursória do Apelante, este não põe em causa a realização das obras, tal como descritas nos factos provados, mas sim que tenha sido o ex casal a custeá-las, já que, na sua perspetiva, quem o fez foi o pai do Apelante.
A respeito de tal questão, ouvidas integralmente as declarações e depoimentos prestados em 1.ª instância e analisados todos os demais elementos constantes dos autos, tudo devidamente sopesado à luz das regras da experiência da vida, concluímos que não há prova suficiente para que se considere demonstrado que foi o ex casal que custeou as obras, mas também que não há, de todo, prova que evidencie que tais obras tenham sido pagas pelo pai do Apelante.
Vejamos porquê.
A interessada BB depôs no sentido de ter sido o casal a suportar o custo das obras. Assim, referiu que todo o salário de ambos era canalizado para elas, sugerindo que a construção da casa se prolongou durante muitos anos, inclusive depois de o sogro falecer. Afirmou, também, que o marido era poupado e trabalhador e que sempre teve dinheiro para pagar aos trolhas, dinheiro esse que proveio, inclusive, de uma indemnização de trabalho que recebeu e que também empregou na construção. Segundo a declarante, juntavam o dinheiro e faziam as obras.
A testemunha JJ, por seu turno, irmã da interessada BB, referiu que esta e o cunhado foram construindo a casa aos poucos e que o fizeram com dinheiro dos dois. Segundo a testemunha, a sua irmã pedia-lhe dinheiro, já que foi acumulando uma dívida porque o dinheiro era para as obras, na certeza de que a sua irmã também ajudava nas obras. Nunca se apercebeu de que o sogro da irmã fosse quem pagasse as obras, tendo ambos que poupar para a casa.
Já o Apelante AA divergiu desta versão dos factos. De acordo com o mesmo, quando casaram, em 1989, foram morar para a parte de baixo da casa e o pai foi construindo o resto. O pai queria fazer uma doação e continuou sempre a ajudá-los, já que a sua intenção sempre foi ajudar os filhos, o que fez também com a sua irmã. À sexta-feira, o pai deixava-lhe o dinheiro para pagar ao trolha no dia seguinte, sendo que pagava todos os sábados porque o pai mandava. Eles levavam ‘cinco contos por sábado’ e houve material da casa da irmã que sobrou e que ficou para si. A casa foi construída sem crédito bancário, pelo que, não fosse o seu pai, não conseguiriam pagá-la.
A versão do declarante foi, de certo modo, corroborada pelas testemunhas EE e FF, suas irmãs. A primeira referiu que os seus pais deram as casas aos filhos e que à própria compensaram com dinheiro. O pai foi construindo a casa do irmão e via-o a dar-lhe o dinheiro, sendo que o intuito dele era dar a casa aos filhos. A segunda afirmou que os pais trabalharam muito para ajudar os filhos, ajudaram todos por igual. Referiu que foi o pai que pagou tudo, licenças e tudo.
Além destes declarantes, depôs, ainda, CC, trabalhador da construção civil, responsável pela execução das obras de acabamento no exterior e no interior da casa. Segundo a própria, trabalhou na casa em 1993/1994, estando esta, então, em grosso, com tijolo à vista, e construída até ao telhado. Andou lá aos sábados, aos poucos, não se recordando por quanto tempo. O que fez foi o seguinte: primeira massa, ou chapisco; outra massa por causa das humidades; reboco e acabamento, que é carapinha. No interior, fez o reboco, os tetos em gesso e as paredes em estanho. Quando acabou, a caixilharia exterior já estava colocada, sendo que, depois, terá entrado a pintura e a carpintaria. Segundo a testemunha, tirava ‘cinco contos por sábado’, que o declarante AA lhe entregava, não tendo ficado a dever nada. Os materiais, (a testemunha) dizia-lhe o que era preciso e, depois, quando chegava à obra, já estavam lá. Interagiu sempre com o Apelante e o pai deste, que vivia mesmo encostado à obra, ia lá de vez em quando falar com eles, nunca lhe tendo dado ordens sobre a obra.
Ora, do que acaba de ser exposto, deparámo-nos com duas versões contraditórias sobre a responsabilidade pelo custeio das obras. De um lado, a interessada e a irmã atestaram que foi o casal; do outro, o interessado e as irmãs atestaram que foi o pai. Além de contraditórias, as duas versões dos factos foram narradas com a alusão a circunstâncias objetivas que, ainda que não suficientes, para sustentar qualquer uma delas, justificam a razão pela qual foram referidas. Assim, por exemplo, se a irmã da Apelada afirmou que lhe emprestou dinheiro, já as irmãs do Apelante aludiram expressamente à vontade do seu pai de ajudar os filhos e de o ter efetivamente feito, fazendo, inclusive, outra casa para a primeira testemunha e compensando a segunda. O quadro com que aqui nos deparamos é, pois, o de “palavras contra palavras”, acompanhadas da narração de outros factos que, pela sua natureza, tornam inviável apurar qual delas correspondia à verdade.
A única testemunha que depôs à margem deste ‘choque de posições’ foi, como se viu., a testemunha CC, responsável pela execução das obras de acabamento exterior e interior da casa, cujo depoimento, de resto, foi determinante para que a 1.ª instância firmasse a sua convicção. Sucede que, sem prejuízo de se reconhecer objetividade ao depoimento da testemunha, o certo é que o seu teor, no contexto da babel de versões contraditórias acima traçado, não pode ser visto como conclusivo. Na verdade, apesar do facto de o Apelante ter sido, de acordo com a testemunha, a pessoa com quem falou para a realização das obras e a entregar-lhe o dinheiro, o certo é que tal não exclui que a proveniência deste não fosse do seu pai (do Apelante). A versão da testemunha é, pois, em último termo, compatível com ambas as versões. Acresce que estamos a falar de acontecimentos ocorridos há 30 anos, o que constitui um período de tal modo distante que torna legítima a dúvida sobre se a memória da testemunha era realmente assim tão precisa ou se não terá resultado de construção ou suposição posterior. O seu depoimento, apesar da objetividade que o caracterizou, não é, assim, decisivo tal como a 1.ª instância o caracterizou.
De resto, e como a 1.ª instância também referiu na decisão recorrida, aquilo que resulta dos autos é que foi o pai do Apelante que, em 31-08-1990, pediu à Câmara Municipal as licenças para aprovação do projeto apresentado e o destaque do prédio em parcelas destinadas à doação a dois dos seus filhos. Mais relevante, foi o pai do cabeça de casal, não só a pedir as alterações a efetuar na própria construção do prédio aqui em causa, como, também, a beneficiar da prorrogação emitida por aquela entidade administrativa para a realização das obras até ../../1996, data esta posterior àquela em que, segundo a própria testemunha CC, as obras foram realizadas. Temos, assim, que mesmo que se pretendesse ver o depoimento da testemunha CC como propenso a confirmar a versão dos factos da Apelada, os elementos documentais em causa apontam precisamente no sentido contrário.
Perante o exposto, e na ausência de outros elementos de prova mais esclarecedores, é inviável inferir, da prova produzida, qual a efetiva proveniência do dinheiro empregue nas obras, impondo-se, por isso, considerar não provado, quer que tais obras tenham sido custeadas pelo ex casal – aqui procedendo, nessa medida, a impugnação da decisão de facto do Apelante -, quer que o tenham sido pelo pai do Apelante – aqui já improcedendo a reclamação.
De referir, finalmente, quanto ao facto provado n.º 10, que o mesmo, querendo dizer que as obras realizadas aumentaram o valor do prédio, só pode ser considerado provado, tendo presente a natureza das obras em causa e a sua perspetivação à luz da experiência comum. Tratou-se, na verdade, de obras de acabamento interior e exterior de um prédio e, portanto, de obras destinadas à introdução de melhorias no mesmo, sendo lógico, por conseguinte, que, mercê delas, tenha havido valorização do imóvel. Trata-se aqui de facto cujo reconhecimento está, de resto, no limiar da notoriedade.
Impõe-se, pois, a sua manutenção como facto provado, com a consequente improcedência da impugnação em apreço nessa parte.
Em suma, no que diz respeito à decisão da matéria de facto constante da decisão recorrida, há que concluir que a mesma se deve manter nos seus precisos termos, exceção feita quanto ao facto provado n.º 9, que passa a ser do seguinte teor:
“9.- No prédio referido em 4), que constituiu a casa de morada de família, foram realizadas obras correspondentes ao serviço de trolha (revestimento de paredes, no interior e exterior, chapisco, massa por causa das humidades e depois a carapinha), pintura das paredes exterior e interior, caixilharia/carpintaria.”
Consequentemente, ao elenco de factos não provados, será aditado o seguinte, sob a alínea cc):
“cc.- que as obras a que se alude em d) tenham sido custeadas pelo ex casal”.
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3.- Da eliminação ou manutenção do relacionamento das benfeitorias realizadas no prédio bem próprio do Apelante
O quadro com que nos deparamos neste recurso é o seguinte.
Apelante e Apelante casaram entre si em ../../1989, sem convenção antenupcial e, portanto, sob o regime da comunhão de adquiridos (art.º 1717.º do CC).
Tal casamento foi, por sentença proferida em 08-03-2022, transitada em julgado, dissolvido por divórcio, na sequência do qual foi instaurado o presente inventário, para partilha dos bens comuns do dissolvido casal.
É bem próprio do Apelante (não há discussão nos autos a esse respeito) o prédio urbano inscrito na matriz sob o art.º ...78.º e descrito na CRP de Lousada, sob o n.º ..5/19960104, situado em Lugar ..., com a área total de 300m2, sendo coberta de 74m2 e descoberta de 226m2, composto por casa de rés do chão, andar e logradouro, confrontando de norte, nascente e poente com terras que foram de DD e do sul com caminho público.
No pressuposto de nele terem sido realizadas benfeitorias pelo casal, a Apelada, não tendo o Apelante, na qualidade de cabeça de casal, procedido ao seu relacionamento, pugnou por que tal ocorresse, o que mereceu oposição deste, mediante o argumento de que as benfeitorias foram custeadas, não pelo casal, mas pelo seu pai.
Na decisão recorrida, conhecendo-se da reclamação à relação de bens em causa, decidiu-se que houve, de facto, benfeitorias realizadas no prédio, designadamente, entre outras que não estão em causa no recurso, as seguintes: obras correspondentes ao serviço de trolha (revestimento de paredes, no interior e exterior, chapisco, massa por causa das humidades e depois a carapinha), pintura das paredes exterior e interior, caixilharia/carpintaria.
Mais se decidiu, na decisão recorrida, que tais benfeitorias foram realizadas pelo ex casal e que, por conseguinte, se impunha o seu relacionamento.
Inconformado com esta conclusão, interpôs o Apelante o presente recurso, batendo-se por que, em conformidade com aquela que foi a sua posição inicial, as benfeitorias em causa não fossem relacionadas nos autos, porque custeadas pelo seu pai.
A única questão a decidir aqui é, pois – não sendo questionada a natureza de bem próprio do Apelante do prédio benfeitorizado e a de benfeitorias das despesas nele realizadas –, a de saber se foi efetivamente o casal quem realizou as obras e as pagou, tal como propugnado pela Apelada na sua reclamação e atendido pelo tribunal a quo na decisão recorrida.
Ora, enquanto facto constitutivo do direito invocado pela Apelada na sua reclamação à relação de bens, era a esta que incumbia o ónus da prova de que as obras em questão foram efetivamente realizadas e pagas com dinheiro do casal (art.º 342.º, n.º 1 do CC).
A Apelada, contudo, como resulta do teor do facto provado n.º 9 e do não provado da alínea cc), ambos com a redação resultante desta, não logrou fazê-lo, o que conduz forçosamente à improcedência da sua pretensão.
Note-se que não é caso de aplicação aqui da presunção de comunicabilidade prevista no art.º 1725.º do CC, segundo o qual quando haja dúvidas sobre a comunicabilidade dos bens móveis, estes consideram-se comuns. Na verdade, apesar de as obras sido certamente pagas com dinheiro e da natureza móvel desse dinheiro (v. art.ºs 203.º e 205.º do CC), o certo é que a presunção de comunicabilidade em causa só operaria se efetivamente demonstrada a sua proveniência como sendo do ex casal e o certo é que tal não ocorreu.
Soçobra, por conseguinte, a sua pretensão.
E soçobrando, procede o recurso, com a consequente revogação da decisão recorrida na parte em que determinou o relacionamento das referidas benfeitorias.
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Porque vencida, suportará a Apelada as custas da apelação (art.ºs 527.º e 529.º do CPC).
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IV.- Decisão
Termos em que se decide conceder integral provimento ao presente recurso de apelação e, consequentemente, revogando-se a decisão recorrida, julgar improcedente a reclamação à relação de bens da Apelada, no que diz respeito ao dever de relacionamento das benfeitorias realizadas no prédio referido em 4 dos factos provados, correspondentes ao serviço de trolha (revestimento de paredes, no interior e exterior, chapisco, massa por causa das humidades e depois a carapinha), pintura das paredes exterior e interior, caixilharia e carpintaria.
Custas da apelação pela Apelada.
Notifique.
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Porto, 05-12-2024
José Manuel Correia
Carlos Cunha Carvalho
Paulo Duarte Mesquita Teixeira