COMPETÊNCIA MATERIAL
COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
RESPONSABILIDADE DE CONCESSIONÁRIA DE AUTO-ESTRADA
Sumário

A acção que tem por objecto responsabilizar a concessionária de uma auto-estrada pelos danos decorrentes da colisão de um veículo que nela circulava com um animal que se introduziu na respectiva faixa de rodagem é da competência material dos tribunais administrativos por força artigo 4.º, n.º 1, alínea h), do ETAF.

Texto Integral

RECURSO DE APELAÇÃO
ECLI:PT:TRP:2024:3731.24.6T8VNG.P1

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SUMÁRIO:
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ACORDAM OS JUÍZES DA 3.ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

I. Relatório:
AA, contribuinte fiscal n.º ..., titular do cartão de cidadão n.º ..., residente em ..., Vila Nova de Gaia, instaurou acção judicial contra a A..., S.A., pessoa colectiva com n.º de identificação e de matrícula ..., com sede em ..., ..., pedindo a condenação da ré a pagar-lhe €3.883,67, acrescido de juros moratórios à taxa legal em vigor até integral pagamento.
Alegou, para o efeito, que quando circulava com o seu veículo automóvel na auto-estrada ... da qual a ré é concessionária e cuja conservação e manutenção está obrigada a fazer, foi surpreendida pelo aparecimento súbito de um cão na faixa de rodagem, tendo embatido contra o mesmo, em resultado do que o seu veículo sofreu danos, para cuja indemnização reclama o valor pedido.
A ré foi citada e apresentou contestação, defendendo a sua ilegitimidade por a concessão rodoviária em causa ser de outra sociedade que não a ré, e impugnando por desconhecimento os factos alegados.
Ouvidas as partes quanto à competência material do tribunal, foi proferido despacho manifestando o entendimento de que a causa se «enquadra na previsão do artigo 1.º, n.º 5, da Lei 67/2007» e que «por força do disposto no artigo 4.º, n.º 1, alín. i), do ETAF», a competência para julgar a causa é dos «tribunais da jurisdição administrativa e fiscal», razão porque se decidiu, «ao abrigo do disposto nos arts. 101.º, 102.º, n.º 1, 105.º, n.º 1, 493.º, n.º 2, 494.º, alín. a), 288.º, n.º 1, alín. a), todos do CPC» que o tribunal onde a acção foi instaurada é «materialmente incompetente para o conhecimento da presente acção», absolvendo-se a ré da instância.
Do assim decidido, a autora interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
A. A função jurisdicional encontra-se confiada aos Tribunais, como órgãos de soberania, nos termos do artigo 110.º n.º 1, e 202.º n.º 1, ambos da Constituição da República Portuguesa.
B. Sobre os tribunais Judiciais impende o dever de administração da justiça, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 152.º do Código de Processo Civil.
C. Os tribunais judiciais constituem a regra dentro da organização judiciária e, por isso, gozam de competência genérica não discriminada, enquanto os restantes tribunais, têm a sua competência limitada às matérias que lhes são especialmente atribuídas, conforme artigo 211.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa e artigo 18.º da LOFTJ.
D. Nessa esteira, o artigo 64.º do Código de Processo Civil, concretiza o princípio da plenitude da jurisdição comum atribuindo competência aos tribunais judiciais para todas as causas que não sejam especificamente atribuídas a outra ordem jurisdicional.
E. Por seu turno, os tribunais administrativos e fiscais apenas são competentes para dirimir litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, conforme artigo 212º nº 3 da Constituição da República Portuguesa e artigo 1º nº 1 do ETAF.
F. A conjugação do artigo 212.º n.º 3 da Constituição da República Portuguesa com o artigo 1.º n.º 1 do ETAF estabelece como critério de delimitação da jurisdição administrativa, a natureza administrativa das pretensões ou relações jurídicas que sejam submetidas à apreciação e julgamento dos tribunais, sendo certo que o artigo 4º do ETAF enuncia, de forma exaustiva, as questões ou litígios, sujeitos ou excluídos do foro administrativo, umas vezes de acordo com a cláusula geral do artigo 1.°, outras em desconformidade com ela.
G. A presente acção tem por fundamento a responsabilidade civil emergente de acidente de viação, entre uma pessoa singular e uma pessoa colectiva de direito privado e, como tal, sempre seria da competência dos tribunais comuns.
H. A competência dos tribunais administrativos no que concerne às acções de responsabilidade civil extracontratual de pessoa colectiva de direito privado implica uma análise da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas, instituído pela Lei n.º 67/2007 de 31/12, cujo art.1º nº5 deste diploma prevê que “As disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas colectivas de direito público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas colectivas de direito privado e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo.”
I. O Acórdão do Venerando Tribunal Conflitos de 18/12/2013 qualifica a concessão rodoviária como um acto de gestão privatizado, uma vez que o seu conteúdo é contratualmente transferido para uma pessoa colectiva de direito privado, como acto de gestão privada e não decorrente do exercício de poderes públicos, concluindo que “este quadro factual não se enquadra juridicamente na previsão do artigo 1º/ 5 da Lei 67/2007” e, consequentemente, para dirimir o litígio, seria competente a jurisdição civil”.
J. No mesmo sentido, remete-se para os seguintes arestos do Venerando Tribunal da Relação de Coimbra: de 07.09.2010 no processo nº125/09.7TBIDN.C1; de 20.06.2012, no processo nº486/11.8TBCTB-B.C1; de 20.04.2016, no processo 1/16.7T8CNF.C1 e de 09.05.2017, no processo 4/17.4T8CLB. C1.
L. Importa citar ainda o Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Coimbra de 26/02/2018 no processo 63/15.4T8MLD.C1, que expende: «O critério para a atribuição da competência material aos tribunais administrativos, é o litígio fundar-se numa relação jurídico-administrativa, por a esta se aplicarem normas de cariz administrativo e/ou, na acção, ser parte ente público que actue ou invoque poderes de “jus imperii” que o coloquem numa posição de superioridade. Se, ao invés, a apreciação do pedido depender, exclusiva ou essencialmente, da interpretação e aplicação de normas de índole jurídico-privada e, na acção, o ente publico actue, no processo, despojado de tais poderes, ou seja, em paridade e com igualdade de armas relativamente à outra parte, emerge a competência residual dos tribunais judiciais comuns. Em casos de dúvida ou de fronteira, deve atribuir-se a competência ao tribunal que, perante a natureza da causa petendi, do pedido e das demais circunstâncias do caso, esteja em melhor posição para, presumivelmente, decidir com maior celeridade, eficácia e propriedade.»
M. Nos casos ambíguos, duvidosos ou fronteiriços, deve, pois, prevalecer o argumento de eficácia, celeridade e boa decisão da causa invocado nos Acórdãos do Venerando Supremo Tribunal de Justiça de 12.02.2009 no processo 08A4090; de 27.05.03, no processo 03A1376, de 11.12.03 no processo 03B3845 e do Venerando Tribunal da Relação de Coimbra de 07.09.2010 e de 20.06.2012 nos seguintes moldes: «A atribuição da competência em razão da matéria será daquele tribunal que estiver melhor vocacionado para apreciar a questão colocada pelo autor, projectando um critério de eficiência que só poderá ser aferido em função do pedido deduzido e da causa de pedir, donde, portanto, a necessidade de verificar se existe norma que atribua a competência a um tribunal especial e, não havendo, caberá ela, subsidiária e residualmente, aos designados “tribunais comuns”»
N. Sendo certo que uma razão utilitarista e de consecução da justiça material, atinentes à celeridade e eficácia da decisão conferem ao Meritíssimo Tribunal “a quo” melhores condições do que o tribunal administrativo para mais adequadamente e depressa julgar a causa.
O. Para além dos argumentos vertidos nos arestos supra citados importa realçar que o artº 1º nº 5 da Lei nº 67/2007 de 31/12 e a al. i) do artº 4º do ETAF não têm aqui aplicação, uma vez que o requisito necessário, para a sua aplicação é o ente, público ou privado, ter actuado no «exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam regulados por disposições ou princípios de direito administrativo”.».
P. Ora, no caso dos autos actuação apenas se colocaria por força do contrato de concessão, nas relações entre o Estado e a empresa concessionária, e nunca nas relações entre esta empresa e os utentes da via, cujas regras são inteira e inequivocamente, cíveis, não deixando dúvidas que a competência caberá aos tribunais comuns.
Q. Sendo certo que a ré não se apresenta no processo numa posição de superioridade relativamente à autora AA decorrente através de uma actuação imbuída de um poder público, de "jus imperii", pelo que terá que caber ser ao Meritíssimo Tribunal “a quo” o dever de apreciar e decidir o pleito, conforme sufraga o Acórdão do Venerando Supremo Tribunal de Justiça de 26.05.2015, no processo 1798/09.6TBCSC.L1.S1.
R. Bem como o Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Guimarães de 3200/12.7 no processo TBBCL.G111/07/2013 quando alerta que “ a Lei n.º 24/2007 de 18 de Julho não definiu a natureza da responsabilidade da concessionária perante o utente, o mesmo é dizer que esse diploma, per se, não impede que se entenda que entre a concessionária e o utente se pode estabelecer uma relação contratual, nos termos atrás mencionados. Então podemos, desde já, dizer que a decisão recorrida, ao enquadrar os factos na responsabilidade civil extracontratual, assenta num pressuposto que, salvo melhor juízo, no caso dos autos não ocorre. E, recorda-se, esse é o pilar em que tudo o mais se alicerça. Inexistindo responsabilidade civil extracontratual não se aplica o disposto nos artigos 4 n.º 1 i) do ETAF e 1.º n.º 5 da Lei 67/2007 de 31 de Dezembro.”
S. Assim apreciou o Acórdão do Venerando Supremo Tribunal de Justiça 22-06-04 no processo 1299/04 referindo que «o contrato celebrado entre o utente que pretende aceder à auto-estrada e a B…, sua concessionária, apresenta-se como uma afloração da relevância das relações contratuais de facto: as relações entre a B…- concessionária e o utente não envolvem nenhuma declaração de vontade expressa, antes uma proposta tácita por parte do utente em aceder à auto-estrada, traduzida no pagamento da "taxa-portagem" e na aceitação tácita da B… a permitir a utilização da auto-estrada por parte do utente. Trata-se de um contrato inominado em que o utente tem como prestação o pagamento de uma taxa e a B… a contraprestação de permitir que o utente "utilize" a auto-estrada, com comodidade e segurança. »
T. Conclui-se, pois, que não há norma alguma que atribua competência aos tribunais administrativos para julgarem a presente causa, para a qual competente, em razão da matéria, o Meritíssimo Tribunal “a quo”.
U. No mesmo sentido decidiu também o Acórdão do Venerando Tribunal de Conflitos de 26-4-2007 no processo 015/06 onde refere que "para conhecer da responsabilidade civil, contratual ou extracontratual, da A..., SA, em consequência de qualquer actividade decorrente da concessão para a construção, conservação e exploração de auto-estradas, são competentes os tribunais judiciais e não os tribunais administrativos."
V. O entendimento maioritário sufraga, pois, a atribuição da competência em razão da matéria aos tribunais comuns.
Nestes termos, e nos melhores de direito que V. Exas. doutamente suprirão, deverá ser revogada a douta sentença recorrida, e declarado competente, em razão da matéria, o Meritíssimo Tribunal “a quo”, determina-se o prosseguimento da acção, assim se fazendo inteira e sã Justiça.
A recorrida não respondeu a estas alegações.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II. Questão a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida se é dos tribunais judiciais ou dos tribunais administrativos e fiscais a competência em razão da matéria para preparar e julgar uma acção instaurada contra a concessionária de uma auto-estrada imputando-lhe responsabilidade por não ter impedido um animal de entrar no espaço de circulação da auto-estrada e atravessar-se à frente de um veículo causando-lhe danos.

III. Fundamentação de facto:
Relevam os factos atinentes à caracterização da acção que se descrevem no relatório.

IV. Matéria de Direito:
Como vimos, a questão a decidir é apenas se a competência em razão da matéria para a preparação e julgamento da acção em causa cabe aos tribunais da jurisdição comum ou aos tribunais da jurisdição administrativa.
Os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo (artigo 202º da CRP). Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional (artigos 211º, nº1, da CRP, 64º do CPC, 40º, nº 1, da Lei nº 62/2013, de 26.08). Aos tribunais administrativos cabe, por sua vez, a competência para julgar as causas emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais (artigos 212, nº 3, da CRP, e 1º, nº 1, do ETAF).
Os tribunais judiciais têm por isso competência genérica e residual: são competentes, por exclusão, para «todas as causas» que «não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional». Os tribunais administrativos têm competência limitada aos litígios que emerjam de «relações jurídicas administrativas», mas são os tribunais comuns em matéria administrativa, tendo «reserva de jurisdição nessa matéria, excepto nos casos em que, pontualmente, a lei atribua competência a outra jurisdição» (cf. Acórdãos do Tribunal de Conflitos nº 508/94, de 14.07.94, proc. nº 777/92, e nº 347/97, de 29.04.97, proc. nº 139/95).
Cada uma destas jurisdições, comum e administrativa, tem, portanto, uma parcela do poder jurisdicional dos «tribunais», a qual é demarcada basicamente em função da natureza das matérias versadas nos diferentes litígios carentes de tutela jurisdicional.
É incontroverso que a competência dos tribunais em razão da matéria se afere em função da configuração da relação jurídica controvertida, isto é, em função dos termos em que é deduzida a pretensão do autor na petição inicial, incluindo os seus fundamentos (cf. Alberto dos Reis, in Comentário ao Código de Processo Civil, volume I, pág. 111; Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 91; Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, in Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 3ª edição, pág. 125; Acórdãos da Relação de Guimarães de 18/01/2018, proc. nº. 2367/17.2T8VCT, e da Relação do Porto de 7/04/2016, proc. nº. 340/14.1T8PVZ-A; in www.dgsi.pt).
Por esse motivo, a competência em razão da matéria resolve-se em função do modo como o autor estrutura a causa e manifesta a sua pretensão, não importando para o efeito se a pretensão devia ser estruturada de outro modo ou noutros termos, sendo certo que não é no momento da avaliação da competência que cabe qualquer juízo sobre o mérito do objecto da acção.
A autora demanda a ré no pressuposto de que esta é, como alega, concessionária de uma auto-estrada e pretende responsabilizá-la pelos danos que sofreu no seu veículo automóvel quando, ao circular com ele nessa auto-estrada, se deparou com um animal na via e não conseguiu evitar colidir com ele, o que foi causa dos danos, qualificando esse facto como uma violação dos deveres da concessionária de manter a auto-estrada em condições de segurança e daí fazendo emergir o dever de indemnização.
O objecto da acção é assim a responsabilidade civil (contratual ou extracontratual não importa para aqui) de um concessionário de uma auto-estrada pela violação dos deveres que o contrato de concessão lhe impõe de manter a estrada em condições de segurança e livre de obstáculos à circulação rodoviária.
Já se disse que cabe aos tribunais administrativos «administrar a justiça, em nome do povo», nos «litígios emergentes de relações jurídicas administrativas» (artigos 212, nº3, da CRP, 1º, nº 1, do ETAF). Vieira de Andrade, in Lições de Direito Administrativo, 2000, página 79, afirma que «a relação jurídica administrativa é aquela em que um dos sujeitos, pelo menos, é uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido». Diogo Freitas do Amaral, in Curso de Direito Administrativo, vol. II, 4.ª Edição, 2021, pág. 138, afirma que a «relação jurídica administrativa» é «toda a relação entre sujeitos de direito, públicos ou privados, que actuem no exercício de poderes ou deveres públicos, conferidos por normas de direito administrativo». Daqui resulta que a relação jurídica administrativa pode ter como sujeitos, pessoas de direito privado, como as pessoas singulares ou as sociedades comerciais particulares.
O artigo 4º do ETAF, na redacção Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, elenca os litígios cuja apreciação deve ser feita pelos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal.
Entre eles contam-se os litígios que tenham por objecto apurar a «responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público» - alínea h) -.
O artigo 1.º, n.º 5 da Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro, que aprovou o regime da responsabilidade civil extracontratual do estado e demais entidades públicas, estabelece que «as disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas colectivas de direito público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas colectivas de direito privado e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo».
Deste modo, apesar de não ser pessoa colectiva de direito público, a ré, enquanto concessionária de um serviço público de transportes, pode ser responsabilizada por uma conduta danosa na jurisdição administrativa. Para o efeito, é apenas necessário que a conduta danosa tenha sido praticada no exercício do poder público ou que a acção seja regulada por disposições ou princípios de direito administrativo.
A concessão da construção, conservação e exploração da auto-estrada entre ... e os ..., denominada ..., foi outorgada à A..., S. A., ao abrigo do Decreto n.º 467/72, de 22 de Novembro, cujas bases foram sucessivamente alteradas pelo Decreto Regulamentar n.º 5/81, de 23 de Janeiro, pelo Decreto-Lei n.º 458/85, de 30 de Outubro, pelo Decreto-Lei n.º 315/91, de 20 de Agosto, pelo Decreto-Lei n.º 294/97, de 24 de Outubro, e por alterações posteriores deste diploma, actualmente em vigor.
Estes diplomas assinalam que a concessão incide sobre «obra pública» (Base II), que os imóveis expropriados pela concessionária para a construção, conservação e exploração da auto-estrada se integram «imediatamente no património do Estado» e a zona da auto-estrada fica a pertencer ao «domínio público do Estado a partir da data em que for aberta ao tráfego» (Base IV) que a concessionária se obriga a manter, durante a vigência do contrato de concessão, a auto-estrada em «bom estado de conservação e perfeitas condições de utilização, realizando, nas devidas oportunidades, todos os trabalhos necessários para que as mesmas satisfaçam cabal e permanentemente o fim a que se destinam, em obediência a padrões de qualidade que melhor atendam os direitos do utente» (Base XXXIII), que são «da inteira responsabilidade da concessionária todas as indemnizações que, nos termos da lei, sejam devidas a terceiros em consequência de qualquer actividade decorrente da concessão» (Base XLIX).
O contrato de concessão de construção, conservação e exploração de auto-estradas a celebrar entre o Estado e a A..., S. A., cuja minuta foi aprovada Resolução do Conselho de Ministros n.º 198-B/2008, de 31 de Dezembro, repete em grande medida o que consta das referidas Bases da concessão e refere na cláusula 47.º, n.º 1, que «serão da inteira responsabilidade da concessionária todas as indemnizações que, nos termos da lei, sejam devidas a terceiros em consequência de qualquer actividade decorrente da concessão».
Embora a omissão de que a autora retira a responsabilidade da ré (não ter impedido que o animal se introduzisse na zona da auto-estrada – ou não ter diligenciado prontamente pela sua retirada dessa zona – e constituísse um obstáculo para a circulação, afectando a segurança que a auto-estrada deve possuir) não traduza, em si mesma, isoladamente considerada, o exercício ou uma prerrogativa de direito público, essa omissão está abrangida pelos deveres de conservação da obra pública que oneram a concessionária para a qual o Estado Português lhe concedeu claras prerrogativas de direito público.
A concessão que tornou a ré responsável por esses deveres respeita a uma obra pública, cuja exploração e conservação prossegue o interesse público, em cuja exploração e conservação pontificam princípios de direito administrativo e em que a concessionária exerce prerrogativas de direito administrativo.
Desse modo, parece dever concluir-se que o objecto do litígio se integra na previsão do artigo 4.º, n.º 1, alínea h), do ETAF, razão pela qual a competência material para dele conhecer cabe aos tribunais administrativos.
Este entendimento é aquele que de forma maioritária tem sido acolhido nas várias decisões jurisdicionais conhecidas que se pronunciaram sobre a matéria.
É o caso dos Acórdãos do Tribunal de Conflitos de 27-02-2014, proc. n.º 048/13, de 12-03-2015, proc. n.º 049/14, de 07-05-2015, proc. n.º 05/15, de 12-11-205, proc. n.º 024/15, de 21-04-2016, proc. n.º 06/16, de 23-11-2017, proc. n.º 010/17, 05-07-2018, proc. n.º 013/17, de 22-11-2023, proc. n.º 0135/22.9T8STR.S1, todos in www.dgsi.pt. É também o caso dos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 08-10-2015, proc. n.º 1085/14.8TBCTB-A.C1.S1, de 01-03-2018, proc. n.º 1203/12.0TBPTL.G1.S1, e de 15-03-2018, proc. n.º 0644/11. E ainda o caso dos Acórdãos da Relação de Lisboa de 14-02-2012, proc. n.º 5715/10.2TCLRS.L1-1, de 12-06-2014, proc. n.º 547/13.9TBRGR.L1-2, de 28-05-2015, proc. n.º 9839/13.6TCLRS.L1-6, de 24-01-2017, proc. n.º 52/14.6T8ALQ.L1-1, os Acórdãos da Relação de Coimbra de 05-05-2015, proc. n.º 27/13.2TBALD.C1, de 03-11-2015, proc. n.º 69/14.0T8CNT.C1, de 12-01-2016, proc. n.º 26/14.7T8CNT.C1, de 16-03-2021, proc. n.º 36/20.5T8ALD.C1, desta Relação do Porto de 10-03-2015, proc. n.º 528/10.4TBVPA.P1, todos in www.dgsi.pt.
De referir que no Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 19-05-2021, proc. n.º 06/20, in www.dgsi.pt, se afirma a propósito de uma questão aproximada que «sobre a matéria de responsabilidade civil de um concessionário por incumprimento dos deveres resultantes do contrato de concessão, nomeadamente o dever de assegurar em boas condições de segurança e comodidade a circulação nas auto-estradas, a jurisprudência do Tribunal dos Conflitos tem afirmado de forma pacífica que ela se insere no âmbito de aplicação do art. 1º, nº 5 da Lei nº 67/2007 e a sua apreciação compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal nos termos do art. 4º, nº 1, al. h) do ETAF».
Nessa medida, o recurso improcede.

V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação julgar o recurso improcedente e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.
Custas do recurso pela recorrente, as quais correspondem apenas à taxa de justiça já paga.
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Porto, 5 de Dezembro de 2024.
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Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 863)
Manuela Machado
Judite Pires

[a presente peça processual foi produzida pelo Relator com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas]