JUNÇÃO DE DOCUMENTOS EM FASE DE RECURSO
DOCUMENTO SUPERVENIENTE
OBRIGAÇÃO ILÍQUIDA
Sumário

I - Se com o documento cuja junção requer em sede de recurso, a recorrente pretende fazer a prova dos factos que alegou na ação e que aí não ficaram provados, sendo que, tendo em conta a sua natureza, o poderia ter apresentado no momento certo para prova dos fundamentos da ação, não pode, agora, vir apresentar esse documento, sob pena de ocorrer a subversão das regras em matéria probatória.
II - O recurso visa a reapreciação da bondade, ou não, da decisão da primeira instância, pelo que as provas a ter em conta terão necessariamente que ser as mesmas que o Tribunal a quo tinha ao seu dispor para decidir.
III - Sabendo a autora/recorrente que lhe cabia fazer a prova dos fundamentos da ação, e podendo já nessa altura ter pedido o parecer cuja junção agora requer, não pode considerar-se tal documento como objetivamente superveniente para efeitos do art. 651.º do CPC.
IV - Não tendo as partes contratantes fixado o preço, ou seja, a obrigação da ré, tal obrigação é ilíquida e apenas fica liquidada com o trânsito em julgado da decisão judicial que fixa o valor devido, não podendo considerar-se líquida a obrigação com a petição da autora, quando o valor unilateralmente liquidado não é aceite pela ré.

Texto Integral

Apelação 608/23.6T8VFR.P1

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I - RELATÓRIO
A..., Lda., NIPC ..., intentou contra “B..., Unipessoal, Lda.”, NIF ..., ação declarativa de condenação com processo comum, pedindo a condenação da Ré no pagamento à Autora da quantia de €15.423,70, acrescida de juros, à taxa de 7%, relativa a juros comerciais entre sociedades, contabilizados desde a data da citação até efetivo pagamento, e no pagamento das custas e demais encargos.
Alegou, em suma, que no exercício da sua atividade de reparação automóvel, foi contactada pelo gerente da ré, no início de 2021, para executar serviços de chaparia e pintura na carroçaria com a matrícula D ...., correspondente a um veículo ligeiro de passageiros, tendo gasto um total de 287 horas de trabalho, no valor de 9.350,25€, a que acresce o material, no valor de 3.189,34€, acrescido de IVA; que emitiu a fatura nº ... de 14.11.2022, que enviou à Ré e que esta não pagou o preço.

Regularmente citada, veio a Ré deduzir contestação, defendendo-se por exceção, invocando a falta de requisitos legais da petição inicial e a ineptidão da mesma, bem como, a exceção de ilegitimidade ativa, alegando que a autora não tem interesse em demandar a ré, porquanto não foi esta que a contratou, mas sim o seu representante legal, a título pessoal; e por impugnação, alegando, no essencial, que a ré não contratou qualquer serviço com a autora, mas sim AA, o seu representante legal, solicitando-lhe, apenas, a pintura do seu veículo automóvel a título pessoal, e que, quando o recebeu, o mesmo apresentava defeitos e desconformidades que foram comunicados à autora.
Termina, pedindo que deverão as exceções invocadas ser julgadas totalmente procedentes, por provadas, e consequentemente, reconhecer-se a falta de requisitos legais da petição inicial; ou, reconhecer-se a ineptidão da petição inicial; sem prescindir, reconhecer-se a ilegitimidade ativa da Ré; ambas com a cominação legal de absolvição da Ré do pedido contra si formulado. Caso assim não se entenda, pugna pela total improcedência da ação, com a absolvição do pedido contra si formulado, com todas as consequências legais.

Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, na qual se decidiu:
“Pelo exposto, julgo parcialmente procedente por provada a acção, termos em que condeno a Ré no pagamento à Autora da quantia global de € 9.915,45 (dos quais 8.061,34 + iva de 23% de 1.854,11), acrescida dos juros de mora, vencidos e vincendos, a calcular à taxa legal para os juros comerciais, contabilizados desde trânsito da presente decisão e até integral e efectivo pagamento.
No mais, julgo improcedente por não provado o peticionado pela A. absolvendo, consequentemente, a Ré do que, em demais, foi contra si peticionado nestes autos.
Valor da acção: € 15.423,70 (quinze mil, quatrocentos e vinte e três euros e setenta cêntimos) – cfr. art.ºs 297.º e 306.º n.º 2, do CPC.
As custas da acção serão suportadas por Autora e Ré, na proporção dos respectivos decaimentos, fixando-se em 35,71% para a Autora e em 64,29% para a Ré – cfr. art.º 607.º n.º 6, 527.º n.ºs 1 e 2, do CPC.
Registe e Notifique.”

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Não se conformando com o assim decidido, veio a Autora interpor o presente recurso, o qual foi admitido como apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Formulou, a Autora, as seguintes conclusões das suas alegações:
“1ª - Pretende a Autora a revogação da sentença quanto a dois pontos:
a) Ver revogado o ponto 15. dos factos provados, quanto ao concreto tempo gasto em mão de obra de pintura em que o Tribunal “a quo” quantificou em 130 horas de trabalho. A revogação deste ponto deve implicar a eliminação da alínea d) dos factos dados como não provados quanto à mesma questão sobre o tempo gasto em pintura. Ou seja, a recorrente pretende que seja revogada a sentença quanto a esse ponto da matéria de facto.
b) Pretende a Autora que seja dado como provado que a Autora gastou no mínimo 249 horas em mão de obra de pintura, tendo no ano de 2022 despendido 197 horas de trabalho no restauro do veículo entregue pela Ré. Mal andou o Tribunal “a quo” ao determinar que o valor da condenação é apenas na importância de €.9.915,45, devendo esta condenação ser aumentada para o valor respeitante ao somatório dos restantes tempos gastos em pintura, ou seja, na condenação em mais 119 horas de trabalho de pintura, até perfazer as 249 horas peticionadas e descritas na factura n.º ....
c) A Autora pretende também a reapreciação da matéria de direito e a consequente revogação da sentença ao decidir que na condenação no pagamento de juros estes são devidos apenas após o trânsito em julgado da sentença e não apenas a partir da data da citação da Ré, o que ocorreu em 22-02-2023 e fora peticionado pela Autora.
2ª - Mal andou o Tribunal “a quo” ao determinar que o valor da condenação apenas vence juros após o transito em julgado da sentença. Deste modo, em flagrante violação dos normativos legais aplicáveis e infra referidos.
3ª - Os tempos gastos pela Autora na execução da pintura foram os indicados na Petição e que constam da factura emitida pela Autora cujos tempos gastos são os peticionados e resultam da prova produzida nos autos, seja a testemunhal, seja o que se tem de concluir e resulta da análise da melhor literatura técnica que existe sobre o tema da especialidade na questão em apreço nos autos.
4ª - Foi dado como NÃO PROVADO que a reparação tenha sido executada com defeitos. O que em si mesmo desde logo terá de significar que a reparação foi executada corretamente, seguindo as “legis artis” dos trabalhos realizados pela Autora. Aliás,
5ª - Os vários depoimentos das testemunhas ouvidas em audiência de julgamento, apontaram para tempos de trabalhos em pintura a demandar um número de horas bem superior ao arbitrado pela Meritíssima Juiz.
6ª - Como também o confirma o Parecer Técnico, ora junto pela recorrente, permitindo-nos concluir que os tempos debitados na parte da pintura ficam aquém dos valores médios aconselhados pela empresa C..., SA, especialista na matéria.
7ª - Mostram-se violados, entre outros, os artigos 804º, n.º 1, 805º, n.º 1 e 2, alínea a) e 806º, todos do Código Civil.
Termos em que a douta sentença deve ser revogada e substituída por douto Acórdão que revogue a resposta dada ao Ponto 15. dos Factos Provados e o substitua por outro em que considere as 249 horas de tempos gastos na pintura do veículo dos autos, com a consequente condenação da Ré em mais 119 horas de pintura e elimine a alínea d) dos Factos Não Provados, e altere também o decidido na sentença quanto ao início do vencimento dos juros e condene a Ré a pagar juros comerciais a partir da citação, ocorrida em 22-02-2023.”.
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A Apelada apresentou contra-alegações, pugnando pela inadmissibilidade da junção de documento em sede de recurso, e concluindo pela improcedência do recurso e confirmação da sentença recorrida.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II - DO MÉRITO DO RECURSO
1. Objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil.
Atendendo às conclusões das alegações apresentadas pela apelante e pela apelada, as questões a apreciar são as seguintes:
- Se é admissível a junção de documento em sede de recurso;
- Se ocorre erro de julgamento nos termos da impugnação da matéria de facto;
- Se perante a alteração, ou não, da matéria de facto, deve ser alterada a decisão de direito, nomeadamente no que diz respeito ao início da contagem dos juros de mora.
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2. Decisão recorrida
a) A decisão recorrida deu como provados os seguintes factos:
1. A Autora é uma sociedade comercial que se dedica com carácter regular e permanente à reparação e manutenção automóvel, com sede e oficina na Rua ..., Ap. ..., ... ..., Santa Maria da Feira.
2. O veículo automóvel ligeiro de passageiros com a matrícula atual NP-..-.., a que anteriormente correspondia a matrícula ..-YD-.., Mercedes-Benz ..., importado e com a primeira matrícula de 28.02.1978, é propriedade de AA, a favor de quem está registado desde 10.12.2018.
3. A Autora no exercício da sua atividade de reparação automóvel foi contactada pelo gerente da Ré, AA, na qualidade de legal representante daquela com vista à execução de diversos trabalhos de chaparia e pintura na carroçaria do supra, referido veículo.
4. Entre as partes não foi estabelecido prazo para a execução dos trabalhos, nem estabeleceram preço quanto à mão de obra e preço dos materiais de pintura a aplicar, bem como não foi solicitado qualquer orçamento.
5. Para o efeito, a referida carroçaria foi entregue pela Ré na oficina da Autora no início de 2021.
6. A Ré e Autora acordaram verbalmente que esta procederia a diversos trabalhos na referida carroçaria, trabalhos esses que demandaram execução de mão de obra e a compra pela Autora de diversos e diferentes materiais necessários à execução da referida empreitada.
7. Os trabalhos de mão de obra prolongaram-se durante os anos de 2021 e 2022 e ocuparam chapeiros e pintores da Autora, trabalhos esses que não foram executados de forma contínua, uma vez que foram intercalados com outros trabalhos, nomeadamente reparações feitas para outros clientes e seguradoras que trabalham com a Autora.
8. Concluídos os trabalhos da carroçaria, em finais de julho de 2022, a Autora procedeu à entrega da carroçaria à Ré que a recebeu nas suas instalações.
9. Após a Autora emitiu a fatura n.º ..., datada de 27/10/2022 e com vencimento na mesma data, no valor de € 14.407,86, com o nome da Ré e que aqui se dá por reproduzida.
10. A Autora enviou à Ré a supra, referida fatura por carta com vista ao seu pagamento, tendo esta devolvido a mesma, invocando que as horas de mão de obra debitadas eram em número exagerado, bem como o preço/hora, assim como o preço dos materiais aplicados.
11. Face à reclamação da Ré, a Autora procedeu à alteração da fatura, mas agora sem aplicação do desconto comercial de 10% no valor de € 821,70 que havia feito inicialmente, alterando ainda outros campos dos valores da mesma, assim emitiu a fatura nº ..., datada de 14/11/2022 e com vencimento na mesma data, no valor de € 15.423,70, com o nome da Ré e que aqui se dá por reproduzida.
12. Mais uma vez a Ré replicou e recusou-se a efetuar o pagamento dos trabalhos e do material aplicado e discriminado na fatura nº ... supra referenciada, apesar de interpelada para efetuar o pagamento.
13. Além do referido em 7., os trabalhos relativos à recuperação e reparação da carroçaria revelaram-se minuciosos e demorados, pois consistiram nos seguintes infra descriminados:
a) Limpeza da carroçaria, com lixagem e aplicação de epóxido;
b) Desmontagem de guarda-lamas da frente, capot, portas e tampa da mala para decapagem do interior;
c) Limpeza de interiores após decapagem, com lixagem interior e aplicação de epóxido;
d) Colocar carroçaria no banco de ensaio, remendar lastro por baixo dos pedais no canto do lado esquerdo frente inferior;
e) Reparar torpedo, lado direito, lado esquerdo, longarina de chassi na frente, painel esquerdo junto à porta esquerda pelo interior e exterior;
f) Artope lado esquerdo exterior e interior, esticar e endireitar painel, lado esquerdo no canto junto ao farolim traseiro;
g) Desamolgar a cavidade do pneu suplente;
h) Montar portas, capot, guarda-lamas, tampa da mala, artope isto para acertos;
i) Desmontar novamente capot, guarda portas, tampa da mala e artope;
j) Aplicação de betume em todo o exterior, capot interior e cofre do motor (abitaque), lastro interior e exterior, interior e exterior da mala;
k) Lixagem de betumes no interior e exterior do capot, mala, cofre do motor, lastro interior e exterior da mala;
l) Aplicar betume em pistola lavável em todas as peças e carroçaria exterior;
m) Montar de novo portas, guarda-lamas, capot e mala;
n) Taquiar (taco) ou lixagem de toda a carroçaria exterior para corrigir alguns defeitos;
o) Aplicar primário em toda a carroçaria, peças exteriores e interiores, incluindo lastro e cofre do motor;
p) Aplicação de gravilha no lastro inferior;
q) Despolir (lixar) com lixa fina toda a carroçaria interior e exterior, mais peças, excluindo o lastro inferior;
r) Pintar à cor vermelha o interior do cofre do motor, mala interior, lastro exterior e interior, guarda-lamas frente, interior do capot e tampa da mala interior;
s) Montar tampa da mala, capot, portas e guarda-lamas da frente para acertos finais, os guarda-lamas da frente ficaram montados em definitivo;
t) Nova desmontagem da tampa da mala, porta e capot para serem pintados em separado;
u) Pintura exterior da carroçaria, portas, tampa da mala e capot;
v) Montagem das portas, mala e capot;
w) Os trabalhos acima indicados não englobam o artope, aventais dos para-choques e grelha do torpedo e suportes do para-choque;
x) Finalizar trabalhos de pintura e chapa no que respeita à carroçaria;
y) Decapagem exterior á mão do artope e agulhas do torpedo;
z) Lixagem interior e exterior do artope, bagente do artope, aventais interiores dos para-choques, suportes dos para-choques;
aa) Aplicação de epóxido e aplicação de betumes;
bb) Lixagem de betumes e aplicação de primário;
cc) Lixagem do primário;
dd) Aplicar gravilha no interior dos aventais do para-choque;
ee) Pintar interiores do artope e interiores dos aventais do para-choque;
ff) Pintar o exterior do artope, aventais, grelhas, suporte dos para-choques, com a finalização dos trabalhos.
14. Tendo os trabalhos abrangido os anos de 2021 e 2022, o preço devido a título de mão de obra na execução de tais trabalhos corresponderia ao preço unitário de pelo menos 29€/hora.
15. Na execução dos trabalhos acima indicados em 13.-14., a Autora em mão de obra de chapeiro gastou um total de cerca de 38 horas de trabalho e em mão de obra de pintura gastou cerca de 130 horas de trabalho, tudo ascendendo assim ao total de 168 horas.
16. A Autora na execução dos trabalhos acima indicados em 13.-14., empregou em material de pintura o valor de cerca de € 3.189,34.

b) E deu como não provados, os factos seguintes:
a) Que aquando do referido em 3. a 6., o referido AA expressamente interpelou a Autora no sentido de que estes serviços eram alheios à sociedade Ré, do que a A. ficou ciente;
b) Que aquando do referido em 8., não foi colocada qualquer objeção ou reparo sobre a execução dos trabalhos da empreitada.
c) Que além do referido em 14., o preço unitário da mão de obra fosse diferente em função do ano da execução dos trabalhos, sendo que o preço unitário no ano de 2021 seria de 31,50€ e do ano de 2022 seria de pelo menos 33€/hora.
d) Que além do referido em 15., no ano de 2022 gastou 197 horas de trabalho em mão de obra do pintor e que quanto ao chapeiro e pintor se tenha apurado o exato n.º de horas em 2021 e em 2022;
e) Que se tivessem confirmado vários defeitos e desconformidades relacionados com os serviços efetivamente prestados pela Autora.
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3. Decidindo:
a) Considerando as questões a apreciar, comecemos pela admissibilidade da junção do documento pela recorrente.
Pretende a recorrente que lhe seja admitida a junção de um Parecer técnico da empresa C..., SA, credenciada para venda e fornecimento dos materiais próprios e necessários a aplicar na reparação dos veículos que, como o dos autos, exigem critérios “idóneos” na aplicação dos mesmos, seja nos tempos necessários utilizados quer na preparação, quer na aplicação dos mesmos, com vista a uma perfeita reparação na chapa e na pintura nas reabilitações dos automóveis antigos, nomeadamente, quanto à duração dos tempos necessários que devem ser utilizados na dita mão-de-obra de pintura nos restauros de um automóvel idêntico ao dos autos.
Da leitura dos artigos 651.º, n.º 1, 425.º do CPC decorre que as partes apenas podem juntar documentos em sede de recurso de apelação, a título excecional, numa de duas hipóteses: superveniência do documento ou necessidade do documento revelada em resultado do julgamento proferido na 1.ª instância.
No que diz respeito à superveniência do documento, há que distinguir entre os casos de superveniência objetiva – quando ocorre produção posterior do documento, e de superveniência subjetiva – quando ocorre conhecimento posterior do documento.
No caso dos autos, resulta do próprio documento cuja junção a recorrente pretende, que “O presente parecer foi emitido por solicitação da sociedade, A..., Lda., NIPC ..., com sede na Rua ..., Apartado ..., ... ..., santa Maria da Feira, no âmbito do processo n.º 608/23.6T8VFR e destina-se a instruir alegações de recurso no âmbito do referido Processo judicial.”.
Ou seja, o documento, apesar de não estar datado, à partida, é objetivamente superveniente, e a sua junção tornou-se necessária em resultado do julgamento proferido na 1.ª instância (que não deu total razão à recorrente).
Contudo, não cremos que seja admissível nos termos dos preceitos citados.
Sendo certo que com o documento em causa, a recorrente pretende fazer a prova dos factos que alegou na ação e que aí não ficaram provados, não pode, agora, vir apresentar provas que, tendo em conta a sua natureza, poderia ter apresentado no momento certo, já que o parecer que pretende juntar, podia ter sido pedido para prova dos fundamentos da ação, no momento próprio para o efeito, sob pena de ocorrer a subversão das regras em matéria probatória.
O recurso visa a reapreciação da bondade, ou não, da decisão da primeira instância, pelo que as provas a ter em conta terão necessariamente que ser as mesmas que o Tribunal a quo tinha ao seu dispor para decidir.
Sabendo a autora/recorrente que lhe cabia fazer a prova dos fundamentos da ação, e podendo já nessa altura ter pedido o parecer cuja junção agora requere, não pode considerar-se tal documento como objetivamente superveniente para efeitos do art. 651.º do CPC.
Como se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 30-04-2019, Processo 22946/11.0T2SNT-A.L1.S2 (embora a propósito da superveniência subjetiva):
“(…) III. Quando o acesso ao documento está ao alcance da parte, a instrução do processo com a sua apresentação é um ónus, devendo desconsiderar-se a inacessibilidade que seja imputável à falta de diligência da parte, sob pena de se desvirtuar a relação entre a regra e a excepção ditada, nesta matéria, pelo legislador.
IV. No que toca à necessidade do documento, os casos admissíveis estão relacionados com a novidade ou imprevisibilidade da decisão, não podendo aceitar-se a junção de documentos quando ela se revele pertinente ab initio, por tais documentos se relacionarem de forma directa e ostensiva com a questão ou as questões suscitadas nos autos desde o primeiro momento.”.
Não se admite, pois, a junção do documento.
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b) Prosseguindo na apreciação do recurso da Autora, analisemos a impugnação da matéria de facto - erro de julgamento
Nas suas conclusões de recurso veio a autora/apelante requerer a reapreciação da decisão de facto, em relação ao facto provado 15, cuja redação pretende ver alterada, e ao facto não provado d) que entende dever ser eliminado, com fundamento em erro na apreciação da prova.
O art. 640º do CPC estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugna a decisão da matéria de facto, nos seguintes termos:
“1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3. […]”
O mencionado regime veio concretizar a forma como se processa a impugnação da decisão de facto, reforçando o ónus de alegação imposto ao recorrente, o qual terá que apresentar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação em sede de reapreciação dos meios de prova.
Recai, assim, sobre o recorrente, o ónus, sob pena de rejeição do recurso, de determinar os concretos pontos da decisão que pretende questionar, ou seja, delimitar o objeto do recurso, motivar o seu recurso através da transcrição das passagens da gravação que reproduzem os meios de prova, ou a indicação das passagens da gravação que, no seu entendimento, impunham decisão diversa sobre a matéria de facto, a fundamentação, e ainda, indicar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pelo Tribunal da Relação.
No caso concreto, o julgamento foi realizado com gravação dos depoimentos prestados em audiência, a apelante indica os pontos da matéria de facto que pretende ver alterados, as provas que devem ser reapreciadas, bem como a decisão que sugere, pelo que se mostram, suficientemente, reunidos os pressupostos de ordem formal para proceder à reapreciação da decisão da matéria de facto.
Tal como dispõe o nº 1 do art. 662.º do CPC, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto “(…) se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Mantendo-se em vigor, em sede de Recurso, os princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pelo Tribunal da Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ocorrer quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
No presente processo, como referido, a audiência final processou-se com gravação da prova produzida.
Segundo ABRANTES GERALDES, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, pág. 225, e a respeito da gravação da prova e sua reapreciação, haverá que ter em consideração que funcionando o Tribunal da Relação como órgão jurisdicional com competência própria em matéria de facto, nessa reapreciação tem autonomia decisória, devendo consequentemente fazer uma apreciação crítica das provas, formulando, nesse julgamento, com inteira autonomia, uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova.
Assim, compete ao Tribunal da Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, face ao teor das alegações do recorrente e do recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.
E é por isso que o art. 607.º, nº 4 do CPC impõe ao julgador o dever de fundamentação da factualidade provada e não provada, especificando os fundamentos que levaram à convicção quanto a toda a matéria de facto, fundamentação essencial para o Tribunal de Recurso, nos casos em que há recurso sobre a decisão da matéria de facto, com vista a verificar se ocorreu, ou não, erro de apreciação da prova.

Posto isto, cabe analisar se assiste razão à autora/apelante, na parte da impugnação da matéria de facto, tendo sido ouvida a prova gravada e analisada a documentação que consta dos autos.
Como resulta das respetivas conclusões do recurso, a apelante entende que deve ser alterada a matéria de facto dada como provada no ponto 15 e, ainda, que deve ser eliminada a alínea d) dos factos dados como não provados, incidindo a impugnação apenas sobre o tempo gasto em mão de obra de pintura.
São os seguintes os factos impugnados:
Facto provado: 15. Na execução dos trabalhos acima indicados em 13.-14., a Autora em mão de obra de chapeiro gastou um total de cerca de 38 horas de trabalho e em mão de obra de pintura gastou cerca de 130 horas de trabalho, tudo ascendendo assim ao total de 168 horas.
Facto não provado: d) Que além do referido em 15., no ano de 2022 gastou 197 horas de trabalho em mão de obra do pintor e que quanto ao chapeiro e pintor se tenha apurado o exato n.º de horas em 2021 e em 2022;
Pretende a recorrente que seja dado como provado que a Autora gastou no mínimo 249 horas em mão de obra de pintura, tendo no ano de 2022 despendido 197 horas de trabalho no restauro do veículo entregue pela Ré.
Vejamos.
Desde logo, cabe referir que cabia à autora/recorrente o ónus da prova do facto em causa ou seja, do número de horas de trabalho despendidas com os serviços de pintura da viatura, sendo certo que não tendo a ré/recorrida aceitado a fatura que lhe foi enviada, a mesma só por si, não se afigura suficiente para fazer tal prova.
Na falta de outra prova documental, vejamos o que resultou da prova testemunhal.
Ora, as testemunhas BB e CC, não conseguiram indicar um número de horas, sequer aproximado, para a realização do trabalho em questão, apenas referindo que nos restauros não se podem fixar tempos, ou que é muito relativo, ou que cada caso é um caso.
A testemunha DD foi dizendo que se trata de trabalhos demorados, acabando por referir que um homem a trabalhar todos os dias, demora cerca de um mês a um mês e meio para fazer todos os trabalhos de pintura em causa.
EE, por sua vez, disse também que se trata de um trabalho minucioso, por estar em causa um restauro, que o número de horas a despender é muito relativo, mas, tendo em conta os trabalhos de pintura em causa, indicou 220 a 260 horas como necessárias para o efeito.
Ou seja, estas duas testemunhas indicaram um número de horas aproximado, mas sem poderem afirmar qual o número de horas efetivamente despendido com o serviço efetuado pela autora.
A testemunha que se pronunciou em concreto sobre a viatura em causa, foi FF que referiu ter trabalhado na mesma, nomeadamente efetuando, sozinho, os serviços de pintura. Explicou que existe um computador onde cada trabalhador, com um código, regista a abertura e fecho dos trabalhos, com referência a cada viatura, esclarecendo, contudo, que no escritório têm acesso a todos os registos, podendo abrir e fechar os trabalhos, mesmo quando o trabalhador já não o pode fazer. Mais disse que não contabiliza as horas que trabalha em cada viatura, limitando-se a abrir e fechar os tempos, embora tenha afirmado que trabalhou nessa viatura entre um mês e meio e dois meses, até finalizar tudo.
Ora, sobre os factos impugnados consta da fundamentação da decisão recorrida, o seguinte:
Depois, já quanto ao descrito em 7), 8) e 13) a 16), o Tribunal atentou na análise conjugada de toda a prova produzida, bem como na repartição das regras do ónus da prova, temperada ainda com a matéria que afinal ambas as partes não põem sequer em causa. Aqui desde logo relevando que pelo próprio legal representante da Ré é assumido que efetivamente o serviço foi prestado e assume que há valores a pagar, pondo em causa (além do facto de se tratar de uma reparação a título pessoal e sobre o que já acima nos pronunciamos e que aqui agora não importa) o valor que lhe foi no final apresentado e que desta vez considerou absolutamente exagerado, pois que ainda que não lhe tenha pedido qualquer orçamento previamente, tendo apenas sido falado em 10 mil euros para restaurar este tipo de carros, pelo que quando viu a factura a considerou exagerada, bem como das facturas que analisou nunca antes das mesmas constava o preço/hora da mão de obra, sendo também esta para si uma novidade, além do tempo que demorou a conclui-la e que aliás teve que insistir na entrega pois o funcionário que tinha para montar o carro ia-se embora e daí que em abril de 2022 tenha solicitado com urgência isso mesmo. Asseverando que não prendendo eximir-se ao pagamento, entende é que o peticionado está inflacionado.
(…)
Assim, da prova produzida pela Autora aqui resulta que efetivamente a mesma se estribou nas alegadas folhas de obra juntas com o req. de 03.07.2023, de onde constaria de forma descriminada a indicação dos funcionários e das horas despendidas por cada um na execução dos trabalhos. Ora se, por um lado, de tal documentação resulta que foram dois os funcionários da Autora que trabalharam em tal viatura, o GG como chapeiro e o FF como pintor, o que veio a ser corroborado aliás pelos depoimentos de ambos como testemunhas. Todavia, por outro lado, não menos certo é que já quanto ao n.º de horas efetivamente empregues por aqueles com tal viatura, resultou que tais folhas de obra não têm verdadeira correspondência com a realidade, é que aqui ambos descrevem que dias houve em que interrompiam os trabalhos a meio porque eram chamados a outro serviço e aí davam baixa no computador, fechando os tempos respectivos. Ora, todavia, analisada a folha de obras, quanto a tal diga-se que além de se estranhar que as entradas e saídas coincidam sempre com horas certas, não resulta desde logo quanto ao FF essa descrita regularidade no abrir e fechar de tempos da folha de obra por causa doutro serviço, antes resultando jornadas contínuas de manhãs e tarde, em alguns inclusive dias completos, detectando-se apenas no dia 05.07.2022 a entrada às 15:00 e saída às 16:00, como fora das jornadas contínuas.
Donde, aqui chegados e atentos os depoimentos das testemunhas GG e o FF somos a concluir que efectivamente a contabilização das horas com base apenas nas folhas de obras se mostra insuficiente, porque não fidedigna nem quanto aos n.º de horas ali exarado nem tão pouco por não estar sequer ali lançado quais os concretos trabalhos efectuados. Depois atentas as declarações de parte do legal representante da Autora o mesmo não logrou minimamente convencer quanto afinal ao n.º de horas empregues por cada um dos funcionários (…).
Voltando à questão do n.º de horas despendidas por cada um dos referidos GG e o FF, nenhum conseguiu de forma assertiva apontar o n.º de horas em causa, apontando a testemunha GG (chapeiro) para um total de 8 dias a uma semana e meia, ou seja de cerca de 64 horas de chapeiro (8h/dia x 8 dias/úteis = 64 horas), o que igualmente se mostra totalmente desfasado do próprio registo de folha de obra que perfaz um total de 38horas de chapeiro.
As demais testemunhas todas foram unânimes que, quanto ao n.º de horas necessárias, não há uma ferramenta que permita efectuar esse cálculo com exactidão, pois neste tipo de trabalhos cada carro é um carro e é necessário muito trabalho manual, montar, pôr na mestra, afinar, voltar a montar e verificar acertos e mutatis mutandis o mesmo também para o trabalho do pintor no geral não há aqui igualmente uma ferramenta.
Assim, temos que das testemunhas da Autora: DD apontou para cerca de 1 mês a 1mês e 15 dias para a pintura (de 2ª a 6ª, 8/horas dia), ou seja para um total de 160 horas a 240 horas do pintor e já para o chapeiro perguntado se seriam necessárias as 38horas referiu não ser nenhum exagero; EE referiu que quanto à pintura rondará as 220 a 260 horas, depois de totalmente preparado de chaparia e que aqui depende do estado do carro, mas que não há como dar valores certos sem se ter tido uma intervenção efetiva.
Continuando no campo das hipóteses, há que atentar agora na prova da Ré igualmente quanto a tal matéria: HH refere que estando já o carro desmontando, tendo apenas a carroçaria e sem necessidade de reparação de chaparia (pois não sabe o que foi necessário em termos de chaparia e tempos aí despendidos), portanto quanto às 249 horas peticionadas afinal seria necessárias cerca de 94 (com 36h+16h+16+2+8+16 = 94 horas) a 98 horas (ambas, com uma margem de 10% para cima ou para baixo, portanto entre 84-88 a 104-108 horas), a que acresceria mais 8 horas para despolir e pintar, acrescentando ainda cerca de 20horas (valor já bem por cima) para montar e desmontar, concluindo por um total de cerca de 126 horas (com uma margem de 10%, entre 116 a 136 horas) para trabalhos de pintura, das 249 horas peticionadas; II apontou, se o carro estivesse todo pronto de chaparia, para o pintor um total de cerca de 76 horas (2 a 3 dias+1 dia+ 1 dia+2 a 3 dias+3horas+3horas+6 horas+8horas) e de chaparia caso necessário remendos apontou para cerca de 4 horas, mais 4 horas para uma ou outra coisa que fosse necessário, mais referindo que demorou afinal cerca de 2 semanas (nem sempre em jornada contínua) no trabalho que fez inicialmente na carroçaria (decapagem exterior e remendos do que viu), que assumiu poder não ter visto tudo.
Enfim, aqui chegados temos que não logrou a A. provar o efectivo n.º de horas que despendeu na recuperação da viatura, não menos certo é que ambas as partes assumem que efetivamente a reparação foi feita. Assim, por um lado, temos que quanto ao tempo despendido pelo chapeiro como ascendendo ao global peticionado de 38 horas, olhando para a prova produzida na sua globalidade da mesma resultou que efetivamente esse valor estará seguramente contido dentro do que se afigura razoável e necessário, e que portanto resulta como provado o descrito em 15..
Já, por outro lado, quanto ao tempo despendido pelo pintor como ascendendo ao global peticionado de 249 horas, olhando para a prova produzida na sua globalidade da mesma resultou que efetivamente esse valor está manifestamente inflacionado. Sendo que a Ré concluiu que dando de barato as 52 horas iniciais em 2021, e transpondo estas para as tarefas que em 2022 seriam iguais, daí resultando que às 52horas também de 2022, acrescerão 8 horas para pintar, 8 horas para dar aparelho e despolir e 17 horas para dar massas betume e pistolável ficaríamos com total de cerca 85 horas que seria o razoavelmente necessário para trabalhos de pintura do ano 2022, ascendendo o total 52h de 2021+ 85h de 2022, quanto a pintura, a 137 horas.
Assim, aqui chegados temos que efetivamente da prova produzida na sua globalidade, os valores de cerca de 130 horas em trabalho de pintura corresponderão ao razoável para o trabalho de pintura desenvolvido, sendo que o ónus da prova que recaía sobre o Autor quanto a valores superiores, não foi pelo mesmo cumprido que não logrou convencer efetivamente, nomeadamente quanto ao ano 2022 que tenha despendido um total de 197 horas, nem tão pouco diga-se logrou produzir prova no sentido inequívoco do n.º de horas que despendeu num ano e noutro, antes se afigurando ser tal manifestamente inflacionado. Pelo que resultou assim como provado o descrito em 15. e como não provado o descrito sob alínea d).”.
Não podemos deixar de concordar com esta fundamentação, devidamente justificada com base na prova produzida e nas regras do ónus da prova, pelo que improcede a impugnação da matéria de facto, mantendo-se os factos tal como foram dados como provados e como não provados na decisão recorrida.
*
c) Decidindo de direito:
Uma vez improcedente a impugnação da matéria de facto, nada há a alterar quanto à condenação proferida, no que diz respeito ao valor devido pela ré à autora.
Cabe, contudo, apreciar a questão da condenação em juros, mais concretamente, o momento a partir do qual os juros devem ser contados.
A Autora peticiona o pagamento de juros de mora à taxa legal de 7% ao ano, desde a citação da Ré, que ocorreu em 22-02-2023, até efetivo pagamento.
A sentença recorrida, no entanto, decidiu que os juros devem ser contabilizados desde o trânsito em julgado da sentença.
A este propósito consta da decisão recorrida:
“- dos juros de mora:
Além deste pedido principal, a A. pede ainda a condenação da Ré em juros de mora à taxa de 7% relativa a juros comerciais entre sociedades desde a data da citação e até efectivo pagamento.
Com efeito, a mora constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor (artigo 798.º, do CC) e, nas obrigações pecuniárias, essa indemnização corresponde aos juros a contar da constituição em mora, o qual coincidirá normalmente com a data de vencimento da factura (cfr. artigos cfr. artigos 806.º, n.º 1 e 805.º, n.º 2 al a), ambos do CC). Todavia, a A. assumindo que houve devolução da factura por banda da Ré, peticiona os juros a partir apenas da citação no âmbito da presente acção, a qual ocorreu a 22.02.2023.
Ora, considerando que os montantes afinal devidos pela Ré à Autora apenas com a presente acção foram considerados provados pela A., resulta que os juros devidos o são sobre o trânsito da presente sentença.
Sendo a titular dos créditos em causa nos autos uma empresa comercial, os juros moratórios devem calcular-se de acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 806.º do Código Civil, no § 3 do artigo 102.º do Código Comercial, às taxas legais em vigor, desde o respectivo vencimento como supra referido e até que ocorra o pagamento.”.
Posto isto, dispõe o art. 804.º, nº 1 do Código Civil que “A simples mora constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor.”.
Por sua vez, resulta do art. 805.º do mesmo diploma legal, no que para o caso interessa, que o devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir (nº 1), mas também que “Se o crédito for ilíquido, não há mora enquanto se não tornar líquido, salvo se a falta de liquidez for imputável ao devedor; tratando-se, porém, de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, o devedor constitui-se em mora desde a citação, a menos que já haja então mora, nos termos da primeira parte deste número (nº 3).
Finalmente, dispõe o nº 1 do art. 806.º do Código Civil que “Na obrigação pecuniária a indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora.”.
Ora, regra geral, o devedor fica constituído em mora, iniciando-se nessa data a contagem dos juros, com a interpelação, a qual, no caso, teria ocorrido com a citação para a ação.
Contudo, tal como consta do nº 3 do art. 805.º, se o crédito for ilíquido só há mora quando o mesmo se tornar líquido.
É o que entendemos ocorrer no caso em apreciação. Desde logo, as partes não fixaram qualquer prazo para o cumprimento do contrato, como não fixaram o valor a pagar pela realização do serviço. E, não tendo fixado o preço, ou seja, a obrigação da ré, tal obrigação é ilíquida e apenas fica liquidada com o trânsito em julgado da decisão judicial que fixa o valor devido, não podendo considerar-se líquida a obrigação com a petição da autora, quando o valor unilateralmente liquidado não é aceite pela ré.
Neste sentido, vejam-se, entre outros, (todos disponíveis em dgsi.pt):
Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10-10-2019 (Pº 119/14.0T8PNF-B.P1, rel. ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA): “Na responsabilidade contratual, não há mora enquanto o crédito não se tornar líquido, salvo se a falta de liquidez for imputável ao devedor. Essa excepção não se verifica se o devedor impugna fundamentadamente o crédito e vê o tribunal dar-lhe total ou parcial razão na acção em que se discute o montante do crédito”.
Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 29-10-2020 (Pº 951/19.9YIPRT.G1, rel. MARIA CRISTINA CERDEIRA): “Na responsabilidade contratual, se o crédito for ilíquido, não há mora enquanto se não tornar líquido, salvo se a falta de liquidez for imputável ao devedor. Se a obrigação é ilíquida, por não estar ainda apurado o montante da prestação, também a mora não se verifica, por não haver culpa do devedor no atraso do cumprimento. Em situações de iliquidez, os juros moratórios são devidos apenas desde a data da decisão que fixar o valor da obrigação”.
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 24-09-2002 (Processo n.º 03B309): “De harmonia com o disposto no art. 805º, nº 3, do Cód. Civil, se o crédito for ilíquido, não há mora enquanto se não tornar líquido, salvo se a falta de liquidez for imputável ao devedor. A obrigação é ilíquida quando, embora seja certa a sua existência, é incerto o respectivo quantitativo. A obrigação cujo quantitativo seja incerto, nomeadamente porque a lei ou as partes não fixaram antecipadamente critério rígido para a sua determinação, não se transforma em obrigação líquida só porque o credor, tendo procedido a uma avaliação unilateral, formula, em acção judicial que intente, pedido em quantia certa. Neste caso o pedido é certo e líquido, mas a obrigação continua a não o ser. Por isto, em tais hipóteses, o devedor só fica constituído em mora quando o crédito se torna líquido, o que sucede quando houver decisão definitiva do Tribunal. É só a partir deste momento que cabe contar juros de mora, de harmonia com o art. 806º, nº 1, do CC”.
Improcede, pois, o recurso, também nesta parte, devendo manter-se a decisão de 1ª instância.
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III- DISPOSITIVO
Pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da 3.ª Secção deste Tribunal da Relação do Porto em julgar totalmente improcedente a apelação, mantendo a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Custas a cargo da Ré/apelante.

Porto, 2024-12-05
Manuela Machado
José Manuel Correia
António Paulo Vasconcelos