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INVENTÁRIO
PROCESSO DE INVENTÁRIO
PARTILHA
CONFERÊNCIA DE INTERESSADOS
AUDIÊNCIA PRÉVIA
Sumário
Sem prévio despacho judicial a fixar uma tramitação, determinada e previsível, alternativa à legal, depois de ouvidas as partes sobre ela, incluindo com eventual direito ao recurso contra essa decisão (artigos 6/1, 547 e 630/2 do CPC), o juiz não pode, num inventário judicial, dar a forma à partilha e convocar uma conferência de interessados, se ainda está pendente uma audiência prévia para tentar obter o acordo dos interessados sobre uma série de questões controvertidas, se estas questões ainda não foram decididas e se os interessados não foram notificados para se pronunciarem sobre a forma à partilha.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados
A 19/05/2023, P intentou contra a sua ex-mulher, M, um processo especial de inventário judicial para partilha de bens em consequência do divórcio.
Indicou-se para cabeça-de-casal, juntou declaração de compromisso de honra do fiel exercício das funções de cabeça-de-casal, relação de bens e do passivo, incluindo dívidas do património comum e da interessada ao requerente, instruída com 15 documentos, procuração e documento comprovativo do apoio judiciário que lhe foi concedido.
A 05/06/2023, foi proferido despacho a confirmar o requerente como cabeça-de-casal e a determinar a citação da interessada M para deduzir oposição ao inventário, apresentar reclamação à relação de bens ou impugnar os créditos e as dívidas.
A 31/08/2023, a interessada apresentou reclamação contra a relação de bens, impugnou vários dos factos alegados pelo requerente/cabeça-de-casal e parcialmente o passivo, requereu o aditamento de uma dívida (do património comum a ela), declarou não aceitar o valor dado aos bens, requereu a avaliação deles e indicou prova testemunhal. Juntou procuração, 9 documentos e comprovativo de concessão de apoio judiciário.
A 03/10/2023, o cabeça-de-casal respondeu à reclamação, impugnando parte dos factos e dos documentos, corrigiu o valor de uma verba, impugnou a pretensão de aditamento ao passivo, alegou a intempestividade da reclamação. Renovou o requerimento probatório constante do requerimento inicial; requereu o depoimento de parte da interessada e a prestação de declarações de parte por si, cabeça-de-casal, arrolou testemunhas e requereu a avaliação de um terreno e a junção de 17 documentos.
A 24/11/2023, foi proferido o seguinte despacho:
Analisados os autos, considerando o devir já neles anteriormente observado, e lançando mão de um esforço de gestão processual e de adequação formal, poderes-deveres previstos nos artigos 6/1 e 547, ambos do CPC, cumpre designar uma data para a realização da audiência prévia (artigo 1109 do CPC). Para tanto, designa-se o próximo dia 08/01/2024, pelas 14:30, com as seguintes finalidades: 1- Proceder à tentativa de acordo sobre a partilha ou acerca de alguma ou algumas das questões que possam, ainda, estar controvertidas; 2- Por se nos afigurar útil ouvir os respectivos interessados na partilha. No dia da audiência prévia (08/01/2024), com a presença do cabeça-de-casal e da interessada e dos respectivos mandatários, iniciada a mesma pelas 14h45, por acordo dos mandatários foi dispensada a gravação da audiência prévia, nomeadamente nas diligências tendentes à composição do litígio por acordo, ficando documentadas na presente acta os requerimentos e respectivas respostas, despachos e decisões que venham a ter lugar e, depois, foi pedida a palavra pela interessada que disse que não aceita o valor indicado para o imóvel relacionado como verba n.º 3 (cf. fl. 4v da relação de bens), pugnando pela respectiva avaliação […], porquanto considera que há necessidade de se aferir o concreto valor de mercado, o que será importante para os ulteriores termos a observar no âmbito do presente processo de inventario, mormente no que respeita à eventual possibilidade de o processo terminar com um acordo. Depois, o Sr. juiz proferiu o seguinte despacho: “Transcritos os autos, e face à posição aqui assumida pela interessada, verifica-se que a mesma requer a avaliação da verba n.º 3 (imóvel). Assim, e uma vez que não há acordo quanto ao valor indicado para a mesma, determino a avaliação por perito único, nos termos do artigo 1114/3, do CPC. Quanto ao objecto, qual o valor do mercado da verba n.º 3. […] Logo, foram todos os presentes notificados do despacho que antecede, tendo a conferência sido declarada encerrada quando eram 15h30.
A 16/01/2024 foi apresentada relatório pericial, notificado aos interessados no dia a seguir. A 23/02/2024 foi proferido o seguinte despacho:
Fls. 123 e segs.:
Tomei conhecimento.
Dê pagamento.
*
Compulsados os autos, e por entender que esta será útil enquanto concretização de (eventual) acordo, passa-se a dar a seguinte forma à partilha:
Da forma à partilha
Procede-se a inventário para separação de meações subsequente ao divórcio de P […] e M […]
Os interessados foram casados no regime da comunhão de adquiridos, tendo o divórcio sido decretado.
Os bens a partilhar são os que constam da relação de bens de fls. 4 e segs. [com as precisões decorrentes do devir observado na audiência prévia].
Existe passivo.
*
Assim, determino que a partilha se efectue da seguinte forma:
Os bens a partilhar são os que constam da relação de bens. Somam-se os valores dos bens relacionados e sujeitos à partilha, levando-se em consideração o aumento proveniente da licitação (que eventualmente venha a ter lugar na conferência de interessados), do qual deverá ser abatido o passivo.
O total assim obtido divide-se em duas partes iguais, adjudicando-se uma a cada um dos interessados, por corresponder à respectiva meação (artigos 1689/1 do CC).
*
Cabe designar dia para realização da conferência de interessados, ao abrigo do disposto no artigo 1110/1-b do CPC, a qual se destinará à composição amigável dos bens/direitos que devam integrar as meações de cada um dos interessados ou, caso não haja acordo, para eventuais licitações, nos termos do artigo 1113/1 do CPC.
Assim, para a realização da conferência de interessados designo o dia 03/04/2024, pelas 14h30, neste tribunal.
Contacte telefonicamente os mandatários nos termos e para os efeitos previstos no artigo 151/2 do CPC.
Nada sendo oposto, notifique com menção do objecto da conferência e advertindo do disposto no artigo 1110, n.ºs 5, 6 e 7 do CPC e que se não for conseguido acordo sobre o valor e composição das meações, se seguirá de imediato o acto de licitações, nos termos do artigo 1113/1 do CPC.
D.N.
Os credores foram citados pela secção de processos para reclamarem créditos por carta elaborada a 04/03/2024.
Face à impossibilidade dos mandatários da cabeça-de-casal e da interessada, a 05/03/2024 foi designada nova data para a conferência de interessados.
Este despacho foi notificado por carta elaborada a 06/03/2024.
A 19/03/2024, o Banco C-SA, reclama créditos.
A 28/03/2024, o Banco S-SA, reclama créditos. A 02/04/2024, o cabeça-de-casal recorre do despacho de 23/02/2024.
Diz que o mesmo tem subida imediata, em separado e efeito suspensivo, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 638/1, 644/2-h, 645/2, 646, 647/2, 1123/1-2b-3, do CPC. Termina o recurso dizendo que deve declarar-se a nulidade do despacho em apreço (forma à partilha e convocação da conferência de interessados) com as legais consequências; em qualquer caso deve revogar-se todo o despacho (forma de partilha e convocação da conferência de interessados) substituindo-se por outro que designe data para a audiência prévia seguindo-se os ulteriores termos.
Objecto
O presente recurso tem por objecto a decisão de 23/02/2024, que deu forma à partilha e determinou a realização da conferência de interessados para 08/04/2024.
Fundamentos
Conforme flui do exposto [o cabeça-de-casal faz um relatório coincidente, no essencial, com aquele que foi feito por este TRL], o tribunal a quo passa directamente de uma audiência prévia não concluída para um despacho de forma à partilha.
Para tal, não conclui a audiência prévia, não realizou as finalidades da mesma, omite diligências instrutórias requeridas e não se pronuncia, entre o mais, sobre os créditos que o recorrente alega ter sobre o património comum.
A decisão sob apreciação, pelos motivos sumariamente apontados e que a seguir se concretizarão, não é admissível.
Vejamos.
Na audiência prévia deveria apurar-se se existe o acordo sobre a partilha ou acerca de alguma ou algumas das questões que possam ainda estar controvertidas.
Esta finalidade não foi realizada.
Deste modo, impõe-se dar continuidade à audiência prévia.
Não havendo acordo, deve o tribunal a quo ouvir os interessados e subsequentemente proceder às diligências instrutórias necessárias designadamente, produzir a prova requerida pelos interessados em ordem a recolher os elementos probatórios que lhe permitam em momento subsequente, o do saneamento, decidir (cf. artigos 1109, nºs 1 e 3 e 410 do CPC).
Como assim não sucedeu verifica-se preterição de formalidades essenciais, nomeadamente o de dar continuidade à audiência prévia para discussão das questões que constituem o objecto da mesma, o que configura uma nulidade processual que expressamente se invoca para todos os efeitos legais.
Por outro lado, o estado dos autos não permitia avançar para um despacho de forma à partilha e de convocação da conferência de interessados, porque não estavam suficientemente discutidas as questões de facto e de direito relativamente à relação de bens e em especial às dívidas do património comum para com o recorrente.
Com efeito, não foram realizadas quaisquer diligências de instrutórias, designadamente as diligências probatórias requeridas pelo recorrente e bem assim as requeridas pela interessada M.
Ao não ter atendido ao requerimento probatório do recorrente e a outros que fossem eventualmente apresentados em sede de audiência prévia, a decisão sob apreciação constitui uma decisão surpresa, configurando aqui também uma nulidade processual.
Atende-se ainda que a decisão sobre a forma à partilha foi proferida sem que os interessados tivessem sido notificados para querendo, se pronunciarem sobre esta, tendo-se infringido assim o disposto no artigo 1110/1-b do CPC, o que configura nulidade processual por omissão de formalidade relevante.
Acresce que a não audição dos interessados e a omissão da produção dos restantes meios de prova requeridos vicia a decisão de nulidade, por violação do princípio do dispositivo, do contraditório e do direito à prova.
Por isso importa recentrar a tramitação processual na retoma da audiência prévia.
Caso não haja acordo no âmbito da referida audiência seguem-se as diligências instrutórias necessárias para dirimir as questões controvertidas (artigos 1109 e 1110 do CPC).
E só depois de realizadas as diligências instrutórias necessárias é que o juiz deverá decidir todas as questões susceptíveis de influir na partilha e na determinação dos bens a partilhar (artigo 1110/1-a do CPC) proferindo despacho de saneamento do processo.
Ora, como já se viu não foi isso que sucedeu.
Com a decisão em crise o Sr. juiz passou directamente de uma audiência prévia que não cumpriu as finalidades propostas para a decisão sobre a forma da partilha e a convocação da conferência de interessados, com omissão das diligências instrutórias requeridas pelos interessados, com omissão da pronuncia e da fundamentação sobre as diversas questões susceptíveis de influir na partilha, nomeadamente as relativas às dívidas do património comum ao recorrente e sem que tenha havido notificação dos interessados para, querendo, se pronunciarem sob a forma à partilha.
No caso vertente, impõe-se decidir sobre as questões que possam influenciar na partilha, com especial relevo para o que aqui interessa, para a determinação das dívidas do património comum ao recorrente.
Também nesta perspectiva a decisão em apreço enferma de nulidade por falta de pronuncia e de fundamentação de facto e de direito conforme artigo 615/-b-d, respectivamente do CPC.
Acresce dizer que o despacho recorrido, entendendo que podia proferir decisão de forma à partilha, sem audição dos interessados para proceder à delimitação do litígio e para obtenção de eventual acordo sobre alguma ou algumas das questões de partilha como havia sido determinado e sem produzir a prova apresentada nos articulados, incorreu em erro de julgamento.
Em razão disso, o despacho em crise deve ser revogado e substituído por outro que designe data para a audiência prévia, seguindo-se os ulteriores termos no caso de inexistência de acordo. A 08/04/2024 tem lugar a conferência de interessados com o cabeça-de-casal, a interessada e os respectivos mandatários.
Iniciada a presente conferência de interessados, pelas 14h:35m, logo o Sr. juiz proferiu despacho:
Iniciada a presente conferência de interessados, e como ponto prévio, importa tecer algumas considerações no que respeita à oportunidade da marcação da presente conferência. É verdade, como resulta do recurso interposto a fl. 161, que se encontram pendentes algumas questões a serem apreciadas, mormente no que respeita ao alegado crédito de que o cabeça-de-casal se arroga sobre a interessada e que encontra o seu sustento legal 1676/2 do CC, sendo certo que a marcação da diligência foi norteada pelo objecto que está definido no inerente despacho (que se encontra a fls. 131 e seguintes), e no qual, entre outros, é dito que tal diligência se destinará à composição amigável dos bens/direitos que devem integrar as meações de cada um dos interessados. Tal despacho foi proferido no uso dos poderes-deveres a que aludem os artigos 6/1 e 547, ambos do CPC, não esquecendo que, por regra, o reconhecimento do passivo relacionado ou reclamado deverá ocorrer, normalmente, na fase dos articulados (artigos 1097/3-b, 1102/1-a, 1104/1-e, 1105/1, 1106/1 e 1107/1-2, todos do CPC). Em todo o caso, a metodologia observada teve subjacente o acto de gestão processual que está nas mãos do juiz, que, neste caso, entendeu desde logo relegar o conhecimento de tais questões que ainda se mostram controvertidas para o presente momento processual, o que se fará em seguida. Notifique.
Nessa sequência, e pedida a palavra pelas partes, pelas mesmas foi dito que reconhecem a dívida reclamada pelo credor Banco C, a qual, neste momento, ascende a 23.733,98€, e que respeita à aquisição da verba relacionada com o n.º 2 (veículo automóvel, de marca T, de matrícula […], do ano 2015), da relação de bens que está junta a fls. 3 e seguintes.
Nessa sequência, e após diálogo entre as partes, as mesmas mantêm as posições já espelhadas nos respectivos articulados, no que se prende aos alegados créditos que ambos têm reciprocamente.
Assim, profere-se o seguinte despacho:
Compulsados os autos, e face à reclamação apresentada pela interessada, verifica-se que a mesma, entre outras questões, não reconhece a existência dos alegados créditos de que o cabeça-de-casal se arroga sobre si, e que se prendem com o seguinte: a) Dívida no montante de 65.000€, correspondente ao valor dos pagamentos efectuados por este interessado, com dinheiro próprio, na construção da moradia a que se refere a verba n.º 3 (relação de bens de fls. 3v e segs.); b) Dívida correspondente ao valor de 13.500€, respeitante à actualização do valor alegadamente despendido na construção da moradia (e melhor descrito nos artigos 16 a 18 do articulado de resposta que se encontram junto a fls. 103 e segs.); c) Dívida no valor de 12.500€, respeitante a dinheiro próprio e que foi usado (alegadamente) nas despesas comuns do casal, mormente no pagamento de parte do preço da compra do veículo automóvel de marca T, com matrícula […] (como melhor descrito nos artigos 22 a 32 do já referido articulado de resposta).
Por seu turno, o cabeça-de-casal não reconhece a dívida que a interessada se arroga sobre si, no valor de 10.200,19€, valor que respeita, alegadamente, a despesas feitas com material usado nas obras da moradia comum do casal (como resulta do artigo 10 do articulado junto a fls. 45 e segs.).
Apreciando, já que nada a isso obsta:
No processo de inventário, decorrente da alteração introduzida pela Lei 117/2009, de 13/09, vigora um efeito cominatório semipleno, decorrente do não exercício do direito de oposição no prazo legalmente fixado, acrescendo, ainda, um efeito preclusivo, resultante da estrutura sequencial que se atribuiu ao processo de inventario e, em especial, à regra da concentração de todas as impugnações e meios de defesa que a parte pretenda suscitar.
Contudo, e no rito processual vigente, nas alternativas decisórias, e que se prendem com a apreciação de eventuais reclamações, importa que a instancia incidental seja suficiente para acautelar a defesa dos interesses das partes, aliás como resulta das disposições conjugadas nos artigos 1105/3, 1902 e 1903, todos do CPC. Por outro lado, não podemos esquecer que esta instância incidental comporta regras, regras essas no que respeita à indicação das provas que devem instruir as respectivas peças processuais, como resulta cristalinamente do disposto no artigo 293 do CPC.
Ora, e aqui chegados, serve o que antecede para referir que o objecto dessa instância incidental está definido pelas referidas peças processuais, sendo certo que os elementos de prova são apenas os que possam já se encontrar junto aos autos. Como sabemos, regra geral e por força do artigo 549/1 do CPC, o efeito cominatório associado às situações de (eventual) inércia é o que decorre do regime contido no processo declarativo comum, como decorre do disposto nos artigos 566 e 567/1 do CPC, para a situação de revelia, e no artigo 574/1 para o incumprimento do ónus de impugnação. O que for alegado ou exposto no articulado “contestação”, artigo 1104.º, considera-se admitido por acordo se não for contraditado no articulado de resposta (artigo 1105/1 do CPC), salvo se essa admissão estiver em oposição ou contradição com a contestação ou com o que fora referido no requerimento inicial, ou, ainda, se o facto não admitir confissão ou exigir prova documental (artigo 587/1, do CPC).
Retornando à situação em apreço, e como resulta do já anteriormente referido, consideramos que as questões que constituem as respectivas causas de pedir dos incidentes atinentes a verem reconhecidos os alegados créditos (quer por parte do cabeça-de-casal sobre a interessada, quer da interessada sobre o cabeça-de-casal), não permitem que a decisão das mesmas se baste apenas com a força dos documentos que se encontram juntos nas respectivas peças processuais, impondo, na verdade, que os documentos e outras provas a produzir permitam um critério decisório suficiente e que sustente uma pronúncia segura sobre a existência das alegadas dívidas. Consideramos que, neste caso, as relações creditícias carecem de um verdadeiro acto circunstanciador dos factos constitutivos das concretas causas de pedir e que permitam a produção de prova (testemunhal ou outra), que no caso aqui em apreço não se basta apenas, a título de exemplo, com a declaração que está junta como doc. n.º 7 (e outros), junto com o requerimento inicial, nem, por outro lado, com os documentos que a interessada juntou no seu articulado de reclamação.
Acresce que, e nos termos do disposto no artigo 1093/1 do CPC, o juiz pode abster-se de decidir incidentalmente a questão (ou questões), e remeter as partes para os meios comuns, quando inerente complexidade da matéria possa tornar-se inconveniente (o que acontece, desde logo, considerando que os montantes que constituem as alegadas dívidas se prendem principalmente com valores despendidos pelo cabeça-de-casal e pela interessada na construção da casa de morada de família, e que constitui o bem imóvel relacionado como verba n.º 3, da RB de fls. 3v e segs.), sendo certo que o cumprimento das regras processuais e na óptica das garantias de que as partes beneficiam no processo declarativo comum de uma melhor posição de molde a permitir uma pronúncia segura sobre a matéria in casu, desde logo pelos meios ao dispor das partes em tal tipo de espécie processual.
Deste modo, e face ao referido, remetem-se as partes para os meios comuns no que concerne à apreciação da existência/reconhecimento dos alegados créditos.
Notifique.
*
Nessa sequência, pelas partes foi, ainda, dito que reconhecem a dívida ao BS-SA, respeitante ao empréstimo bancário contraído para a compra do imóvel relacionado como verba n.º 3, e que neste momento ascende ao montante de 79.158,61€; e por fim, pela interessada foi dito que reconhece ser devedora ao cabeça-de-casal do montante de 3.497€, correspondente a metade do pagamento das prestações bancárias suportadas pelo cabeça-de-casal.
*
Seguidamente, pelo mandatário do cabeça-de-casal, […] foi pedida a palavra, o que lhe foi concedida, tendo o mesmo dito: o cabeça-de-casal nos autos presentes, considerando que as questões constantes do despacho que remete as partes para os meios comuns, a decidir nestes meios constituem questões prejudiciais relativamente aos presentes autos, por um lado, e por outro afectam a forma significativa a utilidade prática da partilha, mesmo que apenas parcial, vem nos termos do disposto alem do mais no artigo 1903/2 do CPC, requerer que seja determinada a suspensão da instancia com efeitos imediatos até à decisão das questões à apreciar nos meios comuns.
Pede deferimento.
*
Nessa sequência, foi dada a palavra ao mandatário da interessada, tendo o mesmo dito:
A interessada descorda que as questões a decidir nos meios comuns afectem, de forma significativa, a utilidade pártica da partilha, uma vez que se tratam de questões acessórias que devem e bem ser decididas em processo comum com outros meios de prova ao dispor. Para além disso, os bens estão perfeitamente identificados no activo e passivo da relação de bens, e podem desde já ser partilhados pelos interessados.
Pede deferimento.
*
Seguidamente, o Sr. juiz proferiu despacho:
Compulsado o requerimento ora apresentado pelo cabeça-de-casal, e face à resposta apresentada pelo mandatário da interessada cumpre referir que a suspensão da instância só ocorre a requerimento de qualquer interessado ou por decisão oficiosa, se o juiz entender que a questão a decidir afecta, de forma significativa, a utilidade prática da partilha, como decorre do artigo 1093/2 do CPC. O artigo in casu recorre a vários conceitos indeterminados: a questão a decidir afecta “de forma significativa” a “utilidade prática da partilha”.
Contudo, a utilidade prática da partilha não se mostra colocada em causa, tanto mais que os bens a partilhar e que constituem o acervo do casal estão definidos, e a decisão das questões remetidas para os meios comuns não afectam de forma significativa a utilidade prática dos presentes autos, tanto mais que os mesmos respeitam ao reconhecimento dos créditos que reciprocamente, quer o cabeça-de-casal, quer a interessada se arrogam. Deste modo, e sem necessidade de maiores considerandos, vai indeferida a requerida suspensão da instância, prosseguindo os autos os seus termos quanto aos bens já relacionados, atento o disposto nos artigos 1105/5 e 1111, ambos do CPC.
Notifique.
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Nessa sequência, foi pedida a palavra pelos mandatários dos interessados, tendo os mesmos dito no que respeita à verba n.º 3 (Prédio urbano […]), acordam na respectiva venda, venda esta a ser promovida pela imobiliária H […], pelo valor mínimo de 180.0000€.
Por outro lado, pelos interessados foi ainda acordado na venda do veículo relacionado como verba n.º 2 (veículo automóvel, de marca T, de matrícula […], do ano 2015), pelo montante avaliado de 14.934€, desde que a própria seguradora aceite ficar com tal salvado.
Em consequência, e de modo à concretização de tal venda, fica o cabeça-de-casal obrigado a diligenciar, no prazo de 20 dias, junto da seguradora no sentido da concretização da referida venda.
*
Seguidamente, o Sr. juiz proferiu o seguinte despacho:
Considerando o acordo dos interessados presentes, e ao abrigo do disposto no artigo 1111/2-c do CPC, determino que se proceda à venda da verba n.º 3 […] em conformidade com a posição assumida. Em consequência, determino que a venda da verba n.º 3 seja feita pelo encarregado da venda indicado […]. Quanto ao preço mínimo: a venda será realizada pelo valor nunca inferior a 180.000€. Prazo: 90 dias.
*
Assim, e antes de mais, dê cumprimento ao disposto no artigo 786, ex vi do n.º 2 do artigo 549, ambos do CPC.
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Logo, foram todos os presentes notificados do despacho que antecede, tendo a conferência sido declarada encerrada quanto eram 17h:35m.
A presente acta, processada e revista, vai ser assinada.
*
A 23/04/2024, foi proferido o seguinte despacho:
Fls. 160 e segs.:
Compulsados os autos, verifica-se que foi realizada a conferência de interessados que incidiu sobre o objecto do recurso interposto, bem como foram tomadas decisões quanto ao ulterior prosseguimento dos autos.
Em consequência, notifique o recorrente para, em 10 dias, vir informar se mantém interesse prosseguimento do recurso interposto, nos termos do artigo 632/5 do CPC.
* A 29/04/2024, o cabeça-de-casal veio informar que:
Mantém interesse no prosseguimento do recurso interposto, porquanto o conhecimento dos pedidos ali formulados é relevante para a boa decisão da causa e para salvaguarda dos direitos e interesses do recorrente (cf. fundamentos e pedidos deste recurso bem como do recurso interposto a 23/04/2024).
Importa ainda sublinhar que no início da conferência de interessados o mandatário do recorrente informou que a presença deste na referida conferência não significava de modo algum renúncia ao recurso interposto ou do direito ao recurso (decisões posteriores).
Mais adiante, após o indeferimento do requerimento de suspensão da instância, o mandatário do recorrente declarou que aquela decisão estava ferida de ilegalidade inquinando todos os actos e decisões que se lhe seguissem. A 02/05/2024, foi proferido despacho pelo tribunal recorrido a não admitir o recurso. A 15/05/2024, o cabeça-de-casal apresentou uma reclamação contra este despacho (de 02/05/2024) para este TRL nos termos do disposto no artigo 643 do CPC, para que fosse substituído por outro que admita o recurso interposto. A interessada não contra-alegou nem respondeu à reclamação.
Por decisão deste TRL de 24/09/2024, transitada em julgado, foi revogado o despacho reclamado. Depois do trânsito, foi, a 16/10/2024, pedido ao tribunal recorrido a remessa do processo para este TRL, tendo que ser feita duas insistências para o efeito, a 31/10/2024 e a 06/11/2024. O processo acabou por só chegar a 08/11/2024 e só depois das 15h de 08/11/2024 (6.ª feira) ficou disponível para despacho.
* Questão que importa decidir: se o despacho de 23/02/2024 deve ser revogado e substituído por outro que determine o prosseguimento da audiência prévia de 08/01/2024, quase um ano depois de ela ter sido convocada (por despacho de 24/11/2023).
* Apreciação:
No despacho de 23/02/2024, dá-se forma à partilha (o despacho final de uma das fases do processo de inventário) e convoca-se uma conferência de interessados (o acto inicial da segunda fase do processo de inventário), isto sem antes se terem realizado as diligências instrutórias necessárias à decisão de todas as questões susceptíveis de influir na partilha e na determinação dos bens a partilhar, como era pressuposto ter sido feito (artigos 1105/3, 1109/3, 1100/1-2 e 1123/2-b-3-4 do CPC), e sem se ter dado aos interessados a oportunidade de, em 20 dias, proporem a forma da partilha, como era imposto pelo art. 1110/1-b do CPC.
O despacho em causa não cumpre, por isso, as regras processuais, sendo ilegal.
O cabeça-de-casal invoca ainda a omissão da continuação da audiência prévia.
No despacho que convocou a audiência prévia – que é o de 24/11/2023 -, indicaram-se os objectivos a atingir com ela, indicação feita com reprodução do teor do art. 1109/1, 1.ª parte, do CPC: obtenção de acordo sobre a partilha ou acerca de alguma ou algumas das questões controvertidas (para além de genericamente se dizer que se entendia ”útil ouvir os interessados”, sem mais, isto é, sem se dizer sobre o quê, sendo que o art. 1109/1, parte final, do CPC, só dá legitimidade à convocação da audiência, neste caso, quando está concretizada a questão sobre a qual os interessados serão ouvidos, o que, como se vê, não foi o caso).
Ora, na acta da audiência prévia de 08/01/2024, nada se diz sobre o que aconteceu quanto às tentativas de acordo em causa, nem sequer se elas foram feitas, e a dispensa, por acordo dos mandatários, da gravação da audiência prévia (como resulta da acta), não é uma dispensa da documentação daquilo que aconteceu quanto a tais tentativas.
O que é relevante porque, havendo audiência prévia, só depois da falta de acordo dos interessados sobre as questões controvertidas, é que o juiz deve proceder à realização das diligências instrutórias necessárias para decidir as matérias que tenham sido objecto de oposição ou de impugnação (art. 1109/3 do CPC).
Tendo o juiz convocado a audiência prévia para tentar obter acordo sobre a partilha ou acerca de alguma ou algumas das questões controvertidas e não se sabendo nada sobre a realização dessas tentativas de acordo, que o cabeça-de-casal diz que não se realizaram, o juiz não podia decidir nada sobre as matérias de oposição e de impugnação, tanto mais que até determinou a realização de uma diligência (uma perícia entretanto realizada e de que já se sabe o resultado) que a interessada considerava importante “mormente no que respeita à eventual possibilidade de o processo terminar com um acordo.”
A não realização de um acto que o juiz determinou, acto esse que se tornou, com essa determinação, pressuposto da subsequente tramitação processual (incluindo da decisão sobre as matérias de oposição e de impugnação), representa a violação de um despacho judicial e dos direitos dos interessados à realização daquele acto.
O despacho recorrido viola, por tudo isto, e por duas vias, uma série de normas, impondo-se a sua revogação.
O facto de o tribunal recorrido, num despacho posterior, ter tentado justificar o despacho recorrido com a invocação dos poderes de gestão processual e de adequação formal (artigos 6/1 e 547 do CPC), não pode salvar o despacho recorrido.
Um despacho que viola uma série de disposições legais, só não será ilegal se se tiver posto a coberto, antes de ser proferido, de uma tramitação processual alternativa à tramitação processual legal sobre a qual as partes tiverem tido a oportunidade de se pronunciar e de influenciar (e eventualmente de recorrer: art. 630/2 do CPC) e que seja equitativa e adequada a assegurar a justa composição do litígio em prazo razoável.
Nos termos do acórdão do Tribunal Constitucional 604/2018 (lembrado no ac. do STJ de 03/10/2024, proc. 6381/19.5T8ALM.L1-A.S1):
“A garantia do processo equitativo comporta […] uma dimensão de segurança e previsibilidade dos comportamentos processuais, tutelando adequadamente a possibilidade de conhecimento das normas com base nas quais são praticados os actos e formalidades processuais, assim como as expectativas em que as partes fazem assentar a sua estratégia processual. Com efeito, o processo surge como um imperativo de segurança jurídica ligado a duas exigências: a determinabilidade da lei e a previsibilidade do direito. O processo justo e equitativo é também aquele cuja regulação prevê que a sequência dos actos que formam o processo esteja pré-determinada ao pormenor pelo legislador, em termos de ser possível assegurar com previsibilidade que as partes são titulares de poderes, deveres, ónus e faculdades processuais e que o processo é destinado a finalizar com certo tipo de decisão final. Os dois elementos são indissociáveis: a previsibilidade das consequências da prática dos actos processuais pressupõe que as normas processuais sejam claras e suficientemente densas, atributos sem os quais ficará violado o princípio da segurança jurídica.
Um processo equitativo é também um processo previsível. Uma forma processual só é justa quando o conjunto ordenado de actos a praticar, bem como as formalidades a cumprir, tanto na propositura, como especialmente no desenvolvimento da acção, seja expresso por meio de normas cujos resultados sejam previsíveis e cuja aplicação potencie essa previsibilidade. Para que haja previsibilidade são, porém, necessárias duas condições: que o esquema processual fixado na lei seja capaz de permitir aos sujeitos do processo conhecer os poderes e deveres que conformam a relação processual; e que haja univocidade de interpretação das normas processuais. É que se os sujeitos do processo não se encontram em condições de compreender e calcular previamente as consequências das suas acções, o processo é inidóneo à realização da tutela jurídica. A idoneidade funcional do processo implica, pois, que ele seja construído em termos de possibilitar aos sujeitos processuais o conhecimento das normas com base nas quais calculam o seu modo de agir.”
A lei, como decorre do art. 1123/4 do CPC, quer que quando o juiz dá a forma à partilha estejam realizadas todas as diligências instrutórias necessárias para decidir todas as matérias que tenham sido objecto de oposição ou de impugnação, isto é, que lhe permitam resolver todas as questões susceptíveis de influir na partilha e na determinação dos bens a partilhar e que todas estas questões estejam decididas.
Neste sentido, dizem Miguel Teixeira de Sousa e outros, O novo regime do processo de inventário […], Almedina, 2020, pág. 139: “O n.º 4 estabelece que devem ser interpostos conjuntamente com a apelação do despacho de saneamento (art. 1110.º, n.ºs 1 e 2) os recursos em que se pretendam impugnar decisões interlocutórias que tenham sido proferidas até esse momento. Esta solução visa valorizar a estabilidade da instância do processo de inventário, possibilitando o trânsito em julgado de todas as decisões interlocutórias proferidas até esse momento e evitando discussões futuras sobre as questões nelas apreciadas. Trata-se de uma solução inovadora, em linha com a introdução de preclusões destinadas a disciplinar o processo e a obrigar a que a discussão das questões mais relevantes para a partilha seja feita ate ao momento em que se encerra a fase dos articulados.”
O juiz não pode alterar tudo isto, deixando de lado, sem qualquer justificação, a audiência prévia que tinha convocado para tentar obter o acordo dos interessados sobre as questões controvertidas, e, sem decidir essas questões como a lei lhe impunha e sem o acordo dos interessados, bem como sem a audição destes sobre a forma à partilha (também prevista na lei), dar logo a forma à partilha e convocar uma audiência de interessados.
Como já se disse no despacho que revogou o despacho que não admitiu o recurso, “um despacho que segue uma tramitação alternativa à prevista da lei, pressupõe, entre o mais, (i) a prévia demonstração de que a tramitação processual legal não é a adequada para aquele caso concreto (não para todos os casos, pois que então do que se trata é de o juiz entender que a lei está errada e que não a deve seguir, o que não pode fazer: art. 8/2 do CC), (ii) que o juiz oiça os interessados sobre a tramitação que propõe que o processo passe a seguir, e (iii) que esta seja equitativa [respeitando as indicadas exigências de determinabilidade e de previsibilidade nos termos do ac. do TC citado acima] e adequada a assegurar a justa composição do litígio em prazo razoável.
O despacho recorrido traduz-se, de facto, numa tramitação alternativa à legal, não dada a conhecer às partes e sem que estas tenham tido a oportunidade de sobre ela se pronunciar, tramitação indeterminada e imprevisível, com o alcance ainda de pôr de lado a tramitação legal, ficando pois as partes sem saber o que é se ia passar a seguir e por isso sem poderem programar o caminho a seguir para a defesa dos seus direitos (substantivos e processuais), saindo de uma fase processual ainda não terminada e passando a entrar noutra sem estar resolvido tudo o que já devia estar e sem saberem como é que ainda se resolveriam as questões por resolver e como é que poderiam reagir, se é que poderiam reagir, depois, se não tivessem reagido nos termos previstos na lei.
* Consequências da revogação do despacho
Revogado o despacho interlocutório, importa tirar as consequências para o processado posterior, fazendo-se as necessárias adaptações do disposto no art. 195/2 do CPC. No caso, a revogação deste despacho interlocutório vai implicar a anulação do processado posterior na medida e só na medida em que este processado esteja dependente daquele despacho (o post do Prof. Miguel Teixeira de Sousa, de 21/01/2016, no Blog do IPPC, Recurso de decisão interlocutória e suspensão do trânsito em julgado, desenvolve a questão chegando às seguintes conclusões, que têm de ser adaptadas ao caso: “Enquanto estiver pendente um recurso sobre uma decisão interlocutória de cuja decisão depende a correcção da sentença final, esta sentença não pode transitar em julgado; Depois do proferimento da decisão de recurso sobre a decisão interlocutória, pode verificar-se uma de duas situações: (i) O recurso interposto da decisão interlocutória é decidido contra o recorrente; nesta hipótese, a sentença final transita em julgado no momento do trânsito em julgado da decisão de recurso; (ii) O recurso interposto é decidido a favor do recorrente; nesta situação, há que aplicar, por analogia, o disposto no art. 195.º, n.º 2, CPC: a procedência do recurso implica a inutilização e a repetição de todos os actos que sejam afectados por aquela procedência; entre esses actos inclui-se a sentença final.”)
No caso, visto que na audiência prévia a realizar todas as questões controvertidas têm de poder ser resolvidas pelos interessados, tudo aquilo que foi, entretanto, decidido pelo tribunal recorrido, tem de ser anulado por arrastamento em consequência da revogação da decisão recorrida.
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Pelo exposto, revoga-se o despacho recorrido de 23/02/2024 e, por arrastamento, toda a tramitação processual subsequente, de modo a que seja retomada a audiência prévia anteriormente convocada, já com o resultado da perícia entretanto realizada, para se tentar o acordo do cabeça-de-casal e interessada sobre as questões controvertidas no processo.
Custas, na vertente de custas de parte (não há outras), pela interessada M.
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Dê conhecimento imediato ao recurso do apenso B do processo, pendente na 6.ª secção deste TRL.
Lisboa, 21/11/2024
Pedro Martins
Ana Cristina Clemente
Arlindo Crua