Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
REVOGAÇÃO DE SAÍDA JURISDICIONAL
NULIDADE
SINDICÂNCIA DA MATÉRIA DE FACTO
ERRO DE JULGAMENTO
Sumário
I. A decisão revidenda não assume a natureza de sentença, não lhe sendo, assim, aplicável o regime da nulidade a que alude o art. 379º do C.P.P. Na verdade, em apertada síntese, dir-se-á que está em causa decisão prolatada em incidente processual que, manifestamente, não se assemelha nem formal nem substantivamente a uma sentença. II. A questão suscitada - da falta de fundamentação - atenta a natureza da decisão recorrida, terá de ser analisada e decidida nos termos e à luz do prescrito no art. 97º do C.P.P. III. A decisão recorrida contém, de forma completa, a especificação dos factos e os meios de prova a partir dos quais se alicerçou a análise da verificação dos pressupostos para a revogação da licença jurisdicional. IV. A matéria de facto relativamente às decisões sobre a liberdade condicional e, por identidade de ratio, a fixada no âmbito da decisão revidenda, só pode ser impugnada por referência a algum dos vícios a que alude o art. 410º, n.º 2 do C.P.P. V. No âmbito dos vícios de procedimento, tem sido repetidamente afirmado na jurisprudência que não resultando da decisão que o tribunal ficou num estado de dúvida sobre os factos e que ultrapassou essa dúvida, dando-os por provados contra o arguido, fica vedada, neste espectro, a possibilidade de decidir sobre a violação do princípio in dubio pro reo.
Texto Integral
Acordam, em conferência, na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. RELATÓRIO
1. Nos autos em referência, foi proferida decisão, em 4 de Julho de 2024, a revogar a saída jurisdicional, concedida em 3 de Maio de 2024, ao condenado AA.
2. O recluso AA interpôs recurso desta decisão. Extrai da respectiva motivação as seguintes conclusões: «1) A nulidade da decisão recorrida por falta de fundamentação e ausência de exame crítico das provas; 2) Impugnação alargada da matéria de facto (nomeadamente com invocação da violação do princípio in dubio pro reo), por falta de prova para os factos declarados provados; 3) A falta da enunciação, especificada, dos meios de prova que serviram para formar a convicção do tribunal, a referência à credibilidade que os mesmos mereceram ao tribunal. Termos em que deve o presente Recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser alterada a Decisão Recorrida de Revogação da saída jurisdicional»
3. O recurso foi admitido, por despacho de 25 de Setembro de 2024.
4. O Ex.mo Magistrado do Ministério Público, na primeira instância, apresentou resposta ao recurso interposto. Extrai da motivação as seguintes conclusões: «1º AA, veio recorrer da Decisão que revogou a licença de saída jurisdicional, nos termos do disposto no artº. 196º. nº.3 do Código da Execução das Penas (CEP), 2º Invocou que, a decisão de revogação de Licença de Saída Jurisdicional [LSJ], se trata de uma decisão final, e, como tal carece de fundamentação, tal como o prescreve o n°. 5 do artº. 97.° do Cód. Processo Penal [CPP] (o qual incorpora uma exigência constitucional) referindo que "os atos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão"; 3º Porém a decisão ora recorrida teve na base exame direto aos objetos apreendidos, e a apreciação dos fatos à luz das regras de experiência. 4. Pois ouvido o recluso, este nega ter tentado entrar com os mencionados objetos, alegando que foram os guardas prisionais que, na altura da sua admissão e revista, colocaram os mesmos nos ténis que trazia calçados e que foi obrigado a descalçar e a entregar. 5º Ora, e após visionamentos dos ditos objetos, é manifesto não poder colher a tese do recluso. Os ténis que envergava continham um laborioso trabalho de descasque das respetivas solas, construindo dois compartimentos aptos a esconder os telemóveis e demais objetos. 6º Por outro lado, os telemóveis em questão são em formato de paralelepípedo e muito rígidos, o que permite perfeitamente aguentar com o peso do recluso em cima, ao caminhar. Acresce que para além da palmilha própria do calçado, trazia ainda um outro par, adquirido e em estado novo, manifestamente não usado antes, não tendo referido este facto e muito menos apresentado explicação para o mesmo. 7º Urge, pois, tão só perceber qual a razão de tal para a final se determinar se existe ou não conduta infratora. Ora, diretamente se diga, a desculpa do condenado é tão original como descabida. De facto, nem o mais naïf dos cidadãos, aquele que é apático na visualização dos padrões sociais mínimos, aceita a justificação do condenado. Mais o juiz, cidadão a quem incumbe administrar a justiça em nome do povo (assim a Constituição da República Portuguesa o rege) e ter presente a regra de experiência de vida que traduza o normal e mediado sentir da sociedade. De facto, não é pela via que o condenado apresenta como indutora do resultado positivo que o mesmo operou, assim o dizem as regras de experiência comum, das quais o juiz se serve. 8º De facto, a suspeita, dúvida, certeza, evidência, são as etapas de um caminho até à verdade, o que, logicamente é da natureza das coisas, pelo que do mesmo modo que não dá o tribunal «saltos no escuro», antes usa, valora, se conduz e se rege por critérios de normalidade, os quais passam pelo recurso ao conjunto das provas, por si mesmas, entre si mesmas e na globalidade valoradas de modo que se atinge a certeza e a consequente evidência da ocorrência dos factos, bem para além do limite de qualquer dúvida, sendo que se logra aceder à prova positiva dos factos através do encaixe em todas as peças que, não se socorrendo, nem o podendo fazer, de situações de presunções ou situações de dúvida sobre factos, mas antes através do concreto e efetivo encaixe de situações que resultam dos elementares raciocínios lógico-dedutivos, ou demonstrativos, elaborados a partir de «indícios» ou factos indiretamente relevantes para alcançar a verificação dos «factos juridicamente relevantes». 9º A esse patamar chegou o Tribunal. 10º Por isso, como a maioria das ações puníveis, no momento do processo, estas apenas são apreensíveis pelo tribunal através de diferentes manifestações (ou efeitos) posteriores. Daí que são principalmente as regras da experiência e as conclusões logicamente muito complexas que tornam possível a verificação dos factos. 11º No confronto das provas obtidas, por recurso aos tais processos lógicos, pode o Tribunal obter a positividade da prova, a afirmar a autoria dos factos por parte do condenado, sem que tal tenha operado pela via que o mesmo explana, mas antes operado pela via de querido e desejado, o que faz bem para além de qualquer dúvida. Há, pois, que concluir que o condenado não alegou nem provou qualquer justificação válida para tal grave incumprimento. 12º Ora já havíamos referido no nosso parecer que; Compulsados os autos, e nomeadamente as obrigações verifica-se gritante violação das mesmas pois existiu premeditação na introdução dos objetos, pois que do exame efetuado se verificou uma elaborada forma de introduzir os objetos no EP. 13º Factos que o recluso não assumiu apresentando tese desfasada da realidade porque nunca os guardas teriam tempo nem oportunidade de proceder ao corte dos ténis de forma elaborada, isto numa postaria de prisão nem teriam na sua posse os objetos necessários. A versão apresentada é e sempre sai rebuscada e inoperante, até dada a natureza dos telemóveis, pequenos e adaptáveis ao interior das solas dos ténis * Assim a decisão ora recorrida encontra-se devidamente fundamentada, alicerçada em meios objetivos de prova e foi feita uma análise critica da prova estando a decisão devidamente fundamentada sem ofensa de qualquer princípio constitucional.»
5. Neste tribunal, a Sra. Procuradora-Geral Adjunta, louvada na resposta, é de parecer que o recurso deve ser julgado improcedente.
6. Cumprido o disposto no art. 417º, n.º 2 do C.P.P., nada mais sobreveio aos autos.
7. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, agora, decidir.
II - FUNDAMENTAÇÃO
1. O objecto do recurso, tal como demarcado pelo teor das conclusões da respectiva motivação, reporta às questões (alinhadas segundo um critério de lógica e de cronologia) de saber se a decisão revidenda é nula por falta de fundamentação e se o Sr. Juiz do Tribunal a quo violou o princípio in dubio pro reo ao dar como assente a materialidade que sustentou a decisão de revogação da saída jurisdicional.
2. A decisão levada, na instância, é do seguinte teor: «Ao condenado AA, melhor identificado nos autos, foi instaurado o presente incidente de incumprimento de licença de saída jurisdicional que, por decisão de 03/05/2024, lhe foi concedida e da qual regressou dentro do prazo que lhe fora determinado, trazendo consigo de forma oculta objectos de utilização proibida dentro do Estabelecimento Prisional. Cumpria – e cumpre –, no Estabelecimento Prisional da Carregueira, a seguinte sucessão de penas:
• 10 anos e 6 meses de prisão; (Proc. 2629/09.2TABRR1, do Juízo Central Criminal de Almada – Juiz 3)
• 9 anos de prisão; (Proc. 2629/09.2TABRR2, do Juízo Central Criminal de Almada – Juiz 3)
• 186 dias de prisão subsidiária3; (Proc. 13906/10.0TDPRT, do Juízo Local Criminal de Sintra – Juiz 4) O processo foi convenientemente instruído. O condenado foi ouvido na presença da sua mandatária. Foi efectuado exame directo aos objectos apreendidos. O Ministério Público alegou, pugnando pela revogação da licença de saída jurisdicional concedida. Não existem nulidades ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa. Cumpre apreciar e decidir, nada obstando. * Com base nos elementos documentais constantes deste apenso e, também, do processo principal, dão-se como assentes os seguintes factos com interesse para a decisão a proferir:
1. Quando se encontrava no Estabelecimento Prisional da Carregueira em cumprimento de pena de prisão à ordem do processo 2629/09.2TABRR, por decisão proferida em 3 de Maio de 2024, o condenado beneficiou de uma licença de saída jurisdicional de 5 dias, a usufruir entre os dias 17 e 22 de Maio de 2024.
2. Foi ao mesmo fixada, entre o mais, a obrigação de «manter conduta social adequada, com observância dos padrões normativos vigentes, nomeadamente sem incorrer na prática de quaisquer crimes».
3. O condenado saiu daquele Estabelecimento Prisional no dia e hora previstos, apresentando-se dentro do limite fixado.
4. Na reentrada no Estabelecimento Prisional, e na sequência de revista, o recluso trazia dissimulado nos ténis que calçava 2 telemóveis, 5 cabos de dados e duas chaves para cartão SIM.
5. Ouvido o recluso, este nega ter tentado entrar com os mencionados objectos, alegando que foram os guardas prisionais que, na altura da sua admissão e revista, colocaram os mesmos nos ténis que trazia calçados e que foi obrigado a descalçar e a entregar. Cumpre, agora, aplicar o Direito. Nos termos do disposto no artigo 85.º, n.º 1 do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade «[s]e, durante a licença de saída, o recluso deixar de cumprir injustificadamente qualquer das condições impostas, pode a entidade que a concedeu fazer-lhe solene advertência, determinar a impossibilidade de apresentação de novo pedido durante seis meses ou revogar a licença de saída». Verificado que o condenado no regresso ao Estabelecimento Prisional tentou introduzir objectos de uso proibido, concretamente dois telemóveis e respectivos acessórios, factos estes que o condenado contesta na sua validade e existência. Ora, e após visionamentos dos ditos objectos, é manifesto não poder colher a tese do recluso. Os ténis que envergava continham um laborioso trabalho de descasque das respectivas solas, construindo dois compartimentos aptos a esconder os telemóveis e demais objectos. Por outro lado, os telemóveis em questão são em formato de paralelepípedo e muito rígidos, o que permite perfeitamente aguentar com o peso do recluso em cima, ao caminhar. Acresce que para além da palmilha própria do calçado, trazia ainda um outro par, adquirido e em estado novo, manifestamente não usado antes, não tendo referido este facto e muito menos apresentado explicação para o mesmo. Urge, pois, tão só perceber qual a razão de tal para a final se determinar se existe ou não conduta infractora. Ora, directamente se diga, a desculpa do condenado é tão original como descabida. De facto, nem o mais naif dos cidadãos, aquele que é apático na visualização dos padrões sociais mínimos, aceita a justificação do condenado. Mais o juiz, cidadão a quem incumbe administrar a justiça em nome do povo (assim a Constituição da República Portuguesa o rege) e ter presente a regra de experiência de vida que traduza o normal e mediado sentir da sociedade. De facto, não é pela via que o condenado apresenta como indutora do resultado positivo que o mesmo operou, assim o dizem as regras de experiência comum, das quais o juiz se serve. De facto, a suspeita, dúvida, certeza, evidência, são as etapas de um caminho até à verdade, o que, logicamente é da natureza das coisas, pelo que do mesmo modo que não dá o tribunal «saltos no escuro», antes usa, valora, se conduz e se rege por critérios de normalidade, os quais passam pelo recurso ao conjunto das provas, por si mesmas, entre si mesmas e na globalidade valoradas de modo que se atinge a certeza e a consequente evidência da ocorrência dos factos, bem para além do limite de qualquer dúvida, sendo que se logra aceder à prova positiva dos factos através do encaixe em todas as peças que, não se socorrendo, nem o podendo fazer, de situações de presunções ou situações de dúvida sobre factos, mas antes através do concreto e efectivo encaixe de situações que resultam dos elementares raciocínios lógico-dedutivos, ou demonstrativos, elaborados a partir de «indícios» ou factos indirectamente relevantes para alcançar a verificação dos «factos juridicamente relevantes». A esse patamar chegou o tribunal. Por isso, como a maioria das acções puníveis, no momento do processo, estas apenas são apreensíveis pelo tribunal através de diferentes manifestações (ou efeitos) posteriores. Daí que são principalmente as regras da experiência e as conclusões logicamente muito complexas que tornam possível a verificação dos factos. No confronto das provas obtidas, por recurso aos tais processos lógicos, pode o Tribunal obter a positividade da prova, a afirmar a autoria dos factos por parte do condenado, sem que tal tenha operado pela via que o mesmo explana, mas antes operado pela via de querido e desejado, quão conscientemente prevaricador consumo de estupefacientes, o que faz bem para além de qualquer dúvida. Há, pois, que concluir que o condenado não alegou nem provou qualquer justificação válida para tal grave incumprimento. Resulta, assim, e em consequência, que violou, sem que nada o justifique, culposamente o referido dever de se comportar de acordo com os normativos vigentes, sendo que tinha conhecimento dessa obrigação, a qual lhe foi comunicada aquando da entrega da guia de licença de licença de saída jurisdicional. Tal situação de per si tem como corolário a aplicação de uma das seguintes situações: a) advertência; b) impossibilidade de apresentação de novo pedido de licença durante 6 meses; ou c) a revogação da licença concedida. No caso concreto temos por manifesta a insuficiência da solene advertência, bem como da impossibilidade de apresentação de novo pedido durante seis meses. De facto, face à gravidade da conduta – no que não é alheia a carência absoluta de justificação –, apenas a sociedade aceita, e a lei permite, o que legitima a decisão, que se aplique a revogação da licença de saída jurisdicional concedida. * Face ao exposto, e ao abrigo do preceituado nos artigos 79.º, 85.º e 195.º, todos do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, decidimos revogar a licença de saída jurisdicional, concedida em 3 de Maio de 2024 ao condenado AA, com os demais sinais dos autos e, consequentemente, determinamos o desconto no cumprimento da pena que se encontra a cumprir da totalidade do tempo que gozou de licença de saída jurisdicional (artigo 85.º, n.º 4 do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade), ou seja, desde 17/05/2024 até 22/05/2024, inclusive. Mais determinamos, em face do preceituado no n.º 5 do citado artigo 85.º do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, que o condenado não poderá apresentar novo pedido de licença de saída jurisdicional antes de 03/11/2024, salvaguardado o limite de termo de pena se o mesmo antes operar. Condenamos o recluso no pagamento da taxa de justiça pelo máximo legal – artigos 153.º e 154.º do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, 513.º, 514.º e 524º do Código de Processo Penal e Tabela III de reporte ao artigo 8.º, n.º 5 do Regulamento das Custas Processuais (processo especial, com ou sem oposição, consoante o caso), acrescida dos encargos previstos no artigo 16.º do Regulamento das Custas Processuais e custos processuais referidos no anexo I ao artigo 15.º da Portaria n.º 419-A/2009, de 17 d Abril. Cumpra o disposto no artigo 195.º, n.º 3 do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade. Transitada a presente decisão, junte ao processo de concessão de liberdade condicional cópia, abrindo vista ao Ministério Público, para os fins do preceituado nas disposições conjugadas dos artigos 85.º, n.º 4, 141.º, al. j) e 195.º, n.º 4, todos do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade».
3. Do recurso interposto
3.1. Da alegada falta de fundamentação
O recorrente propugna que a decisão recorrida padece de falta de fundamentação. Em síntese, invoca na motivação recursiva que: «VI- O Tribunal não pode deixar de se pronunciar sobre a verificação/não verificação de todos os factos que lhe são levados ao conhecimento, o que resulta quer do teor do auto de noticia, quer da audição do condenado, ora Recorrente; esta ultima não foi valorada na decisão ora em apreço; VII- O Tribunal nãoelencou asprovas,nem delasfez uma análise critica, onde alicerçou a sua convicção e, subsequente decisão de revogação de Licença de Saída Jurisdicional [LSJ]; VIII- A falta de fundamentação, in casu, configura uma violação do disposto do nº. 2 do artº. 374º. e do nº. 4 do art. 97º., ambos do C.P.Penal, configurando uma inconstitucionalidade por inviabilizaçãode uma garantia fundamental de defesa – a fundamentação, como tal consagrado na 1ª parte do nº. 1 do art. 32.º da Constituição da República Portuguesa [CRP]; a aludida violação configura a nulidade da alínea a) do artº. 379º., nulidade esta, insanável, já que, não contem a sentença no seu todo qualquer facto que possa explicar a opção da condenação; [Acórdão, datado de 18.01.2011, da Relação de Lisboa extraído no âmbito do processo 1670/07.4TAFUN-A.L1-5], disponível em www.dgsi.pt: IX- O tribunal não motivou a sua decisão, ou seja, não deu a conhecer as razões, racionais e objetivas, da decisão, sendo que o dever de fundamentação constitui um travão a uma apreciação caprichosa, arbitrária da prova como efetivamente aconteceu».
Vejamos, pois.
Preliminarmente, cumpre esclarecer que, na senda daquilo que tem sido o entendimento maioritário da jurisprudência relativamente às decisões sobre a liberdade condicional4, a decisão revidenda não assume a natureza de sentença, não lhe sendo, assim, aplicável o regime da nulidade a que alude o art. 379º do C.P.P.5
Na verdade, em apertada síntese, dir-se-á que está em causa decisão prolatada em incidente processual que, manifestamente, não se assemelha nem formal nem substantivamente a uma sentença.
Ou seja, a questão suscitada - da falta de fundamentação - atenta a natureza da decisão recorrida, terá de ser analisada e decidida nos termos e à luz do prescrito no art. 97º do C.P.P.
Num Estado de Direito, os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão6.
No dizer do Prof. Germano Marques da Silva o objectivo de tal dever de fundamentação, imposto pelos sistemas democráticos, é permitir «a sindicância da legalidade do acto, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decidente a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, actuando por isso como meio de autodisciplina.»
Como referia Alberto dos Reis, uma decisão sem fundamentos equivale a uma conclusão sem premissas.7
Com efeito, o art. 97º, n.º 4 do C.P.P. determina que os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.
«O que aqui a lei exige é que o juiz indique, de forma compreensível, os factos e o direito relevante para o que decidiu, relativamente à questão concreta apreciada no acto decisório sendo, pois, esta questão concreta que deve ser objecto do seu [do juiz] discurso argumentativo. Quando tal não acontece, quando este discurso não contemplou a questão concreta submetida ao conhecimento do julgador, foi cometida omissão de pronúncia, desrespeitando aquele o comando ínsito no nº 4 do art. 97º do C. Processo Penal»8
Em sentido idêntico, foi consignado no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 258/20019 que «a fundamentação (da decisão) tem, pela natureza das coisas, de estar reportada e conexionada com a própria matéria que constitui objecto de decisão, ou seja, a fundamentação tem de aparecer estruturada em função daquilo que se decide ou da matéria questionada/decidida»
Sabendo-se que no regime geral das nulidades em processo penal vigora o princípio da tipicidade/legalidade (art. 118º, n.º 1 e 2, do C.P.P.), na senda da jurisprudência sedimentada, a falta ou insuficiência de fundamentação redundará em (mera) irregularidade10, mas de conhecimento e declaração oficiosas pelo Tribunal ad quem, nas situações que assumem particular gravidade, designadamente as que sejam susceptíveis de afectar direitos fundamentais dos sujeitos processuais 11.
Todavia, no caso, é manifesta a falta de razão do recorrente quanto à arguida nulidade/irregularidade por falta de fundamentação.
Com efeito, é inequívoco, a decisão recorrida (como se verifica da transcrição integral acima efectuada) contém, de forma completa, a especificação dos factos e os meios de prova a partir dos quais se alicerçou a análise da verificação dos pressupostos para a revogação da licença jurisdicional.
Ou seja, pese embora a discordância do recorrente, não há dúvidas de que a decisão revidenda enumera os factos e explicitou o suporte probatório correspondente - que, ademais, no caso, se cinge à circunstância objectiva de ao recorrente terem sido apreendidos dois telemóveis e demais equipamento e à circunstância de não ter merecido qualquer credibilidade a explicação inusitada que foi, para o efeito, apresentada por aquele - discorrendo, depois, o argumentário que pautou o juízo negativo subjacente à licença jurisdicional concedida e, em consonância, a conclusão pela revogação.
Isto é, resulta à evidência que a decisão recorrida mostra-se fundamentada, com respeito pelo disposto, maxime, nos artigos 205.º n.º 1, da C.R.P., e 97.º n.º 5, do C.P.P.
Termos em que, improcede o recurso, neste segmento.
3.2. Da invocada violação do princípio in dubio pro reo
Neste conspecto, o recorrente conclui pela «Impugnação alargada da matéria de facto (nomeadamente com invocação da violação do princípio in dubio pro reo), por falta de prova para os factos declarados provados» e, na motivação, queda-se pela invocação que: «XI- O princípio do “in dubio pro reo” é um princípio fundamental que decorre da presunção constitucional de inocência e consiste em: na dúvida sobre os factos a provar, o tribunal decide em favor do arguido/condenado, o que no caso ora em apreço não se verificou [absolvição, não agravação, atenuação, etc.]. Ou seja, XII- Ocorre violaçãodoreferidoprincípio quandoformanifesto que ojulgador, perante uma dúvida relevante, decidiu contra o condenado Recorrente, acolhendo a versão que o desfavorece ou quando, embora se não vislumbre que o tribunal tenha manifestado ou sentido dúvidas, da análise e apreciação objetiva da prova produzida, à luz das regras da experiência e das regras e princípios aplicáveis em matéria de direito probatório, resulte que as deveria ter tido».
Antes de mais, urge referir que, como tem sido sufragado pacificamente pela jurisprudência, a matéria de facto relativamente às decisões sobre a liberdade condicional e, por identidade de ratio, a fixada no âmbito da decisão revidenda, só pode ser impugnada por referência a algum dos vícios a que alude o art. 410º, n.º 2 do C.P.P. 12
E assim sendo, atentemos então.
«Os vícios da decisão – a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova – previstos, por esta ordem, nas três alíneas do nº 2 do art. 410º do C. Processo Penal, constituem fundamento para recurso da matéria de facto [e isto, independentemente de a lei o restringir à matéria de direito] e são de conhecimento oficioso, conforme jurisprudência fixada pelo Acórdão nº 7/95, de 19 de Outubro (DR, I-A, de 28 de Dezembro de 1995).
Estamos perante defeitos estruturais da própria decisão penal, razão pela qual a lei exige que a sua demonstração resulte do respectivo texto por si só, ou em conjugação com as regras da experiência comum. No âmbito da revista alargada – comum designação do regime – o tribunal de recurso não conhece da matéria de facto – no sentido da reapreciação da prova –, antes limita a sua actuação à detecção dos vícios que a sentença, por si só e nos seus precisos termos, evidencia e, não podendo saná-los, determina o reenvio do processo para novo julgamento.
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ocorre quando a factualidade provada não permite, por exiguidade, a decisão de direito ou seja, quando a conclusão [decisão de direito] ultrapassa as respectivas premissas [decisão de facto]. Dito de outra forma, existe o vício quando a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direitoadoptada porque o tribunal, desrespeitando o princípio da investigação ou da descoberta da verdade material, não investigou toda a matéria de facto contida no objecto do processo e relevante para a decisão, e cujo apuramento conduziria à solução legal (cfr. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Edição, 2007, Rei dos Livros, pág. 69).
A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão consiste, basicamente, numa oposição na matéria de facto provada [v.g., dão-se como provados dois ou mais que dois factos que estão entre si, em oposição sendo, por isso, logicamente incompatíveis], numa oposição entre a matéria de facto provada e a matéria de facto não provada [v.g., dá-se como provado e como não provado o mesmo facto], numa incoerência da fundamentação probatória da matéria de facto [v.g., quando se dá como provado um determinado facto e da motivação da convicção resulta, face à valoração probatória e ao raciocínio dedutivo exposto, que seria outra a decisão de facto correcta], ou ainda quando existe oposição entre a fundamentação e a decisão [v.g., quando a fundamentação de facto e de direito apontam para uma determinada decisão final, e no dispositivo da sentença consta decisão de sentido inverso].
Existe erro notório na apreciação da prova quando o tribunal valora a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, por ser grosseiro, ostensivo, evidente (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª, Edição, Editorial Verbo, pág. 341). Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas, que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cfr. Simas Santos e Leal Henriques, ob. cit., pág. 74)»13
Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 22 de Setembro de 2015, processo n.º 2619/12.8GBABF.E1, in www.dgsi.pt., «(…) o invocado vício de erro notório reporta a um defeito in procedendo, resultante, à evidência, da própria decisão, que subscreve, designadamente, uma falha grosseira na análise da prova (…).
(…) Assim, o juiz que, em 1.ª instância, julga de facto, goza de ampla (conquanto vinculada) liberdade de movimentos ao erigir os meios de que se serve na fixação dos factos provados, de harmonia com o princípio da livre convicção e apreciação da prova.
Nos termos expressamente prevenidos no artigo 127.º, do CPP, as provas são livremente valoradas pelo juiz sem obediência a regras pré-fixadas.
Ora, há-de conceder-se, essa liberdade de apreciação com base no conjunto do material probatório recolhido pela percepção global, traduzido numa síntese decisória, é insindicável por este Tribunal.
Como assim, o Tribunal de recurso só em casos excepcionais de manifesto erro de apreciação da prova poderá comutar a decisão levada na instância – será, por exemplo e caricatura, o caso de o depoimento de uma testemunha ter um sentido diametralmente oposto ao que foi considerado na sentença recorrida.
Vale dizer que, por força do referido princípio da livre apreciação da prova (não estando em causa, como, no caso, não está, prova tarifada ou legal), o processo de formação da livre convicção do julgador na apreciação da prova não é questionável pelo tribunal de recurso.
A esta instância caberá apenas indagar se tal apreciação e julgamento são contrariados pelas regras da experiência comum ou pela lógica do homem médio (diga-se mesmo, do julgador médio) suposto pela ordem jurídica».
No caso, é de consignar, desde já, que, do texto da decisão recorrida, não resulta qualquer dos vícios a que alude o art. 410.º n.º 2, do C.P.P.
Com efeito, não se vislumbra que a matéria de facto provada seja insuficiente para fundar a solução de direito atingida, que se tenha deixado de investigar toda a matéria de facto com relevo para a decisão, que exista qualquer inultrapassável incompatibilidade entre os factos dados como assentes ou entre estes e os factos considerados não provados ou entre a motivação e a decisão, e, igualmente, não sobressai da decisão, por si só e/ou com recurso às regras da experiência comum, qualquer falha evidente na análise da prova ou qualquer juízo ilógico ou arbitrário.
Ao invés, a motivação subjacente à decisão mostra-se conforme aos princípios da legalidade das provas e da livre apreciação, está devidamente ancorada na prova validamente produzida e foi valorada de modo objectivo, racional e lógico.
Por último, e sendo este o argumentário eleito pelo recorrente, não se vê que o Sr. Juiz do Tribunal a quo se tenha debatido com qualquer estado de dúvida e que o tenha resolvido violentando o princípio in dubio pro reo.
Ademais, no âmbito dos vícios de procedimento, tem sido repetidamente afirmado na jurisprudência que não resultando da decisão que o tribunal ficou num estado de dúvida sobre os factos e que ultrapassou essa dúvida, dando-os por provados contra o arguido, fica vedada, neste espectro, a possibilidade de decidir sobre a violação do princípio in dubio pro reo.
Tanto basta, pois, para se concluir que o recurso interposto não pode, de todo, lograr provimento.
III – DISPOSITIVO
Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se:
a) Negar provimento ao recurso interposto pelo condenado AA e, em consequência, manter a decisão recorrida que revogou a saída jurisdicional concedida.
b) Condenar o recorrente no pagamento de taxa de justiça que se fixa em 3 UC.
Notifique.
Lisboa, 5 de Dezembro de 2024
Ana Marisa Arnêdo
Paula Cristina Bizarro
Jorge Rosas de Castro
_______________________________________________________________
1. Processo que, em primeiro cúmulo, além da própria, englobou as penas aplicadas nos Procs. 13906/10.0TDPRT, 542/10.0PBCTB, 708/09.5TAOAZ, 216/12.7TABRG, 1880/11.0PLSNT e parte da pena do 68/12.7TACTB.↩︎
2. Processo que, em segundo cúmulo, englobou as penas aplicadas nos Procs. 1269/12.3TACBR e 1238/12.3TALRA e parte da do 68/12.7TACTB.↩︎
3. Pena integralmente cumprida e já declarada extinta.↩︎
4. Cuja argumentação, por maioria de razão, será também de acolher em sede de decisão revogação de saída jurisdicional.↩︎
5. Neste sentido, entre muitos outros, os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 4/7/2012, processo n.º 1751/10.7TXPRT.H. P1, da Relação de Coimbra de 22/5/2013, processo n.º 850/10.0TXCBR-G.C1, de 25/9/2013, processo n.º 1080/10.6TXCBR-H.C1, de 11/11/2015, processo n.º 382/12.1TXCBR-G.C, de 8/11/2023, processo n.º 164/22.2TXCBR-E.C1 e da Relação de Lisboa de 19/1/2012, processo n.º 440/11.0TXLSB-P.L1-5, todos in www.dgsi.pt.↩︎
6. O Tribunal Constitucional tem vindo a afirmar que: «A fundamentação das decisões judiciais, em geral, cumpre duas funções: a) uma, de ordem endoprocessual, que visa essencialmente impor ao juiz um momento de verificação e controlo crítico da lógica da decisão, permitir às partes o recurso da decisão com perfeito conhecimento da situação, e ainda colocar o tribunal de recurso em posição de exprimir, em termos mais seguros, um juízo concordante ou divergente; b) outra, de ordem extraprocessual, já não dirigida essencialmente às partes e ao juiz ad quem, que procura, acima de tudo, tornar possível um controlo externo e geral sobre a fundamentação factual, lógica e jurídica da decisão - que procura, dir-se-á por outras palavras, garantir a transparência do processo e da decisão» cf. Acórdãos n.º 55/85, 135/99 e 408/2007.↩︎
7. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 23/3/2015, processo n.º 863/11.4GAFAF.G1, in www.dgsi.pt.↩︎
8. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24/5/2023, processo n.º 22/21.8PFLRA-J.C1, in www.dgsi.pt.↩︎
9. Publicado no DR II série, de 2 de Novembro de 2001.↩︎
10. Neste sentido, Vinício Ribeiro, Código de Processo Penal - Notas e Comentários, 2ªed., Coimbra, 2011, pág.277 e jurisprudência citada e Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Lisboa, 2007, pág. 564.↩︎
11. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal, 15ª ed., Coimbra, 2005, pág. 306 e o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 21/1/2013, processo n.º 13/11.7GAGMR-A.G1, in www.dgsi.pt.↩︎
12. Entre outros, os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 14/1/2015, proc. n.º 1855/10.6TXPRT-T.P1 e de 8/2/2017, proc. n.º 749/14.0TXPRT-E.P1, do Tribunal da Relação de Lisboa, 14/4/2016, proc. n.º 1 290/11.9TXLSB-L.L1-9 e de 7/3/2023, processo n.º 6680/10.1TXLSB-R.L1-5 e do Tribunal da Relação de Évora de 24/1/2023, proc. n.º 357/16.1TXEVR-J.E1, todos in www.dgsi.pt.↩︎
13. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 18/5/2016, processo n.º 1/14.1GBMDA.C1, in www.dgsi.pt.↩︎