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ACUSAÇÃO
REJEIÇÃO
Sumário
I - A acusação só deve ser considerada manifestamente infundada, e consequentemente rejeitada, com base na al. d) do nº 3 do artº 311º do CPP, quando resultar evidente, que os factos nela descritos, mesmo que porventura viessem a ser provados, não preenchem qualquer tipo legal de crime. II - Estando em causa, apenas, a omissão na acusação da referência ao tempo e ao lugar da prática dos factos narrados na mesma, estão em causa circunstâncias que não são elemento essencial à constituição do tipo de ilícito penal imputado ao arguido, tendo o seu enquadramento na al. b), do n.º 3, do mesmo dispositivo legal, na medida em se tratam de circunstâncias às quais a lei se refere apenas se possível, nos referidos termos legais. III - As circunstâncias de lugar e tempo podem resultar do contexto da acusação para a determinação do objeto do processo, para o apuramento da competência territorial do Tribunal e contagem do prazo para efeitos de prescrição.
Texto Integral
Acordam os Juízes Desembargadores da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
1. Relatório:
No Processo nº 1065/20.4SILSB, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Juízo Local Criminal de Lisboa - Juiz 12, foi proferido despacho, com o seguinte teor: «O artigo 311º do Código de Processo Penal estabelece o seguinte: 1. Recebidos os autos em tribunal o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer. 2. Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido: a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada; b) De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.º 1 do artigo 284.º e do n.º 4 do artigo 285.º, respetivamente. 3. Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada: a) Quando não contenha a identificação do arguido; b) Quando não contenha a narração dos factos; c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou d) Se os factos não constituírem crime. In casu, na acusação pública formulada a fls. 115 dos autos, em que é imputada ao arguido a prática de um crime de falsas declarações, p. e p. pelo artigo 348º-A, nº 1 do Código Penal, consta uma narração factual manifestamente insuficiente, o que coloca em causa uma correcta determinação do objecto do processo e, como tal, equivale a falta de narração dos factos, e impede, desde logo, o apuramento da competência territorial do Tribunal e contagem do prazo para efeitos de prescrição. Com efeito nada se refere no libelo acusatório quanto à data e ao local em que os factos em apreço terão ocorrido. Note-se que, como o tem vindo a afirmar reiteradamente a jurisprudência, a acusação não é susceptível de ser aperfeiçoada na sequência de convite para o efeito. Efectivamente, não cabe ao Tribunal suprir tal falta, sob pena de se permitir ilicitamente uma inclusão de factos novos na acusação, susceptível de despoletar uma eventual alteração substancial de factos, com a inerente nulidade da decisão. Nessa medida e por tudo o exposto e de harmonia com as normas legais citadas, rejeito a acusação deduzida pelo Ministério Público. Sem custas. Notifique e, oportunamente, arquivem-se os autos.»
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Inconformado, recorreu o Ministério Público, formulando as seguintes conclusões:
1. O presente recurso tem como objeto o Douto Despacho sob a ref. CITIUS 431334408, de 09/01/2024, que rejeitou a Acusação deduzida pelo Ministério Público, em que é arguido AA, por considerar nela constar uma narração factual manifestamente insuficiente, nomeadamente, por não haver referência quanto à data e ao local em que os factos ocorreram, colocando em causa uma correta determinação do objeto do processo, equivalendo à falta de narração dos factos, impedindo o apuramento da competência territorial do Tribunal e a contagem do prazo para efeitos de prescrição.
2. É precisamente dessa decisão que o Ministério Público recorre, porquanto, confrontado com os factos versados na Acusação, se entende não se encontrar em consonância com o disposto no artigo 311.º, n.º 2, alínea a), e n.º 3, alínea b), do Código de Processo Penal, considerando ser a narração dos mesmos suficiente para integrar o crime de falsas declarações, previsto e punido pelo artigo 348.º-A, n.º 1, do Código Penal.
3. É nosso entendimento que se encontram suficientemente enquadradas as circunstâncias de tempo e de lugar em que os factos ocorreram, não se verificando qualquer nulidade ao abrigo do artigo 311.º, n.º 3, alínea b), do Código de Processo Penal, que obste à apreciação do mérito da causa.
4. Ademais, o artigo 283.º, n.º 3, alínea b), do Código de Processo Penal, estabelece que a Acusação do Ministério Público deve incluir a narração do lugar e do tempo, se tal não se mostrar possível. Logo, por maioria de razão, não se trata de um elemento obrigatório que acarrete o vício de nulidade.
5. A Acusação do Ministério Público, nos factos 1. e 2., refere expressamente que “no dia 15.03.2020, cerca das 11h03, o veículo com a matrícula ..-UD-.., conduzido pelo arguido, foi registado pelos radares de controlo de velocidade, na Calçada de Carriche, sentido Lisboa/Odivelas, por circular a uma velocidade de, pelo menos, 84 km/h, correspondente à velocidade de 89 km/h registada, numa zona em que a velocidade máxima permitida é de 50 km/h” (sublinhado nosso), “no âmbito do processo de contraordenação instaurado na sequência da infração descrita em 1., a ANSR notificou BB para que identificasse o condutor do mesmo.”
6. A data da prática dos fatos ocorreu posteriormente à data que deu origem ao processo contraordenacional e que se encontra cabalmente determinada, isto é, a data do cometimento do crime de falsas declarações pelo arguido ocorreu posteriormente a 15.03.2020.
7. Assim, o procedimento criminal não se extingue em data anterior a 15.03.2025, em cumprimento com o disposto nos artigos 118.º, n.º 1, alínea c), e 119.º, n.º 1, ambos do Código Penal, sem prejuízo da verificação de qualquer causa de suspensão da prescrição, nos termos do artigo 120.º, do Código Penal.
8. Apesar de não constar expressamente na Acusação, resulta dos factos 3. e 4. que terá sido na morada da notificação para o proprietário do veículo de matrícula ..-UD-.., isto em Lisboa, que o arguido AA teve acesso à referida notificação e preenchido “os campos destinados à identificação do condutor utilizando os dados de identificação de BB”, cuja remessa atestou, perante a ANSR, como sendo este o responsável no âmbito do processo contraordenacional, bem sabendo que tal informação não correspondia à verdade.
9. O documento preenchido pelo arguido, no qual consta, falsamente, a identificação de outrem como sendo o responsável pela infração rodoviária, foi remetido para a Divisão de Trânsito da Polícia de Segurança Pública (PSP), sita na Av. Maria Helena Vieira Silva, em Lisboa. Deste modo, poder-se-á considerar ter sido perante esta autoridade pública que o arguido atestou falsamente a informação, considerando-se a competência do Juízo Local Criminal de Lisboa para julgar o crime de que o arguido vem acusado.
10. A entidade responsável pelo processamento dos processos contraordenacionais rodoviários é a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR), com sede na Av. Casal de Cabanas, em Barcarena-Oeiras. Posto isto, poder-se-á levantar a questão da eventual competência territorial do Juízo Local Criminal de Oeiras.
11. Não obstante, sempre teria de se atender ao critério supletivo previsto no artigo 21.º, do n.º 1, do Código de Processo Penal, considerando-se a competência do Juízo Local Criminal de Lisboa para julgar o crime de que o arguido vem acusado, por ter sido onde primeiro houve notícia do crime.
12. De todo o exposto decorre que o Tribunal a quo não podia rejeitar a acusação deduzida pelo Ministério Público, devendo receber a mesma pela prática de factos suscetíveis de integrar o cometimento de um crime de falsas declarações, previsto e punido pelo artigo 348.º-A, n.º 1, do Código Penal.
13. O despacho proferido nos autos sob a ref. CITIUS 431334408, de 09/01/2024, ao rejeitar a acusação deduzida pelo Ministério Público violou o disposto nos artigos 311.º, n.º 2 alínea a) e n.º 3 alínea b), do Código de Processo Penal e 348.º-A, n.º 1, do Código Penal.
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Notificado para o efeito, o arguido não respondeu.
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Neste Tribunal da Relação de Lisboa foram os autos ao Ministério Público tendo sido emitido parecer no sentido da procedência do recurso, devendo o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que receba a acusação pública.
Concordamos, sendo que do teor da motivação do recurso resultam demonstrados os fundamentos da impugnação do despacho judicial, de forma clara, detalhada e suficiente, com uma correta apreciação dos factos em causa, bem como uma adequada interpretação do direito aplicável.
Cumprido o disposto no art.º 417.º/2 do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta ao parecer.
Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, teve lugar a conferência.
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Objeto do recurso:
Nos termos do art.º 412.º do Código de Processo Penal, e de acordo com a jurisprudência há muito assente, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação por si apresentada. Não obstante, «É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito» [Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 7/95, Supremo Tribunal de Justiça, in D.R., I-A, de 28.12.1995]
Desta forma, tendo presentes tais conclusões, são as seguintes as questões a decidir: se encontram suficientemente enquadradas as circunstâncias de tempo e de lugar em que os factos ocorreram, não se verificando qualquer nulidade ao abrigo do artigo 311.º, n.º 3, alínea b), do Código de Processo Penal, que obste à apreciação do mérito da causa.
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2. Fundamentação:
Cumpre decidir se o despacho proferido nos autos sob a ref. CITIUS 431334408, de 09/01/2024, ao rejeitar a acusação deduzida pelo Ministério Público violou o disposto nos artigos 311.º, n.º 2 alínea a) e n.º 3 alínea b), do Código de Processo Penal e 348.º-A, n.º 1, do Código Penal.
Em ordem a tomar conhecimento e decidir da questão enunciada, importa atentar na seguinte cronologia processual:
Em 27 de junho de 2023 foi proferida a seguinte acusação - Referência: 426335145:
«O Ministério Público, nos termos do artigo 283.º do CPP, para julgamento perante Tribunal Singular e em Processo Comum, deduz acusação contra:
AA, filho de CC e de DD, nascido em ...-...-1979, solteiro, ..., titular do passaporte com o n.º ..., residente na ....
Porquanto, resulta fortemente indiciado que:
1. No dia 15.03.2020, cerca das 11h03, o veículo com a matrícula ..-UD-.., conduzido pelo arguido, foi registado pelos radares de controlo de velocidade, na Calçada de Carriche, sentido Lisboa/Odivelas, por circular a uma velocidade de, pelo menos, 84 km/h, correspondente à velocidade de 89 km/h registada, numa zona em que a velocidade máxima permitida é de 50 km/h.
2. No âmbito do processo de contraordenação instaurado na sequência da infração descrita em 1., a ANSR notificou BB para que identificasse o condutor do mesmo.
3. Não obstante, e apesar de ter plena consciência de que era o condutor do veículo no momento da infração, o arguido preencheu os campos destinados à identificação do condutor utilizando os dados de identificação de BB.
4. O arguido agiu com o propósito, concretizado, de preencher pelo seu próprio punho o formulário de identificação do condutor com os dados de outra pessoa, bem sabendo que no momento da infração o veículo era conduzido por si, assim atestando perante a ANSR e para efeitos de identificação do arguido no âmbito de um processo de contraordenação informação que sabia não corresponder à verdade.
5. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, querendo agir como agiu, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei e criminalmente punida.
Com o comportamento descrito, o arguido cometeu, em autoria material e na forma consumada (artigo 26.º, 1.ª parte do Código Penal), um crime de falsas declarações, previsto e punido pelo artigo 348.º-A, n.º 1, do Código Penal.»
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Dispõe o artigo 311º nº 2 do CPP que «se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
b) de não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.º 1 do artigo 284º e do n.º 4 do artigo 285º, respectivamente».
A acusação considera-se manifestamente infundada, segundo a norma do nº 3 do referido artigo:
a) quando não contenha a identificação do arguido;
b) quando não contenha a narração dos factos;
c) se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam;
d) se os factos não constituírem crime».
Conforme acórdão nº 282/16.6GAACB.C1 proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra em 10/07/2028, relatado por Isabel Valongo (IGFEJ, Bases Jurídico documentais) «(…)O modelo processual penal vigente em Portugal desde 1987 estrutura-se no princípio do acusatório, mitigado pelo princípio da acusação (artigo 2º n.º 2 ponto 4 da Lei 43/86 de 26 de Setembro, Lei de Autorização legislativa em matéria de processo penal) traduzido numa nítida separação entre acusação e julgamento, entre a função de acusar e a de julgar, com incidência constitucional, com expressa indicação da entidade que tem a seu cargo a fase investigatória eventualmente a culminar numa acusação e da entidade que julga, em audiência pública e contraditória, os factos objecto de tal acusação.
Porém e como se alerta no Ac desta Relação, de 14-04-2010, na vigência da redacção originária do art.º 311º do CPP suscitaram-se dúvidas sobre os poderes do juiz de julgamento, no despacho inicial, quando recebe o processo sem que tenha sido requerida a instrução – caso em que o J.I.C. goza de amplos poderes da apreciação dos indícios do crime acusado, mas não pode, por outro lado, intervir na fase de julgamento, - e porque a lei não apresentava qualquer esboço de definição do conceito de manifesta improcedência. Com efeito, o nosso sistema penal consagra uma estrutura acusatória do processo, ou seja, o juiz tem de ser imparcial relativamente às posições assumidas pela acusação e pela defesa e, por isso, não pode nunca assumir a veste de acusador, ainda que indirectamente, provocando a acusação pelo Mº Pº ou definindo-lhe os termos – cfr. Germano M. Silva, Curso de Processo Penal, I, 58. Daí que perante as dúvidas e questões de constitucionalidade do preceito que se vinham suscitando (cfr., em síntese, Maia Gonçalves, CPP Anotado, 16ª ed. em anotação ao citado art.º 311º) na revisão operada pela Lei 59/98 de 25.08, o legislador tenha sentido a necessidade de aditar ao preceito o actual n.º 3, com a redacção supra reproduzida, que contém, precisamente, a definição do que o legislador considera manifesta improcedência, para efeito de rejeição da acusação. De que resultou a inequivocidade do modelo pretendido para o processo penal e a caducidade do Assento do STJ n.º 4/93.
Logo, sem pôr em causa o modelo acusatório estabelecido, o legislador elencou os casos de rejeição por manifesta improcedência e definiu-os taxativamente no n.º 3 do art.º 311º.
“Impediu-se assim, entre outras situações, que o juiz quando profere o despacho ao abrigo do artigo 311º, tenha um papel equivalente ao sujeito processual “Ministério Público” fazendo um juízo sobre a suficiência ou insuficiência de indícios que sustentam a acusação proferida.” – Ac. Rel. Coimbra de 25 de março de 2010.
Por outro lado, importa considerar que as referidas previsões do n.º 3 do art.º 311º CPP têm correspondência nas alíneas do nº 3 do artigo 283º, CPP que definem as nulidades da acusação.
O referido art.º 283º, nº 3, prevê, de forma genérica, as nulidades da acusação - as quais, na falta de preceito que as regule especificamente, deverão ser tratadas de acordo com o regime geral das nulidades processuais, por referência ao regime da taxatividade e, por isso dependentes de arguição e sanáveis.
O art.º 311º nº 3 CPP prevê apenas os casos extremos pois a rejeição liminar só se justifica em casos limite insusceptíveis de correcção sem prejudicar o direito de defesa fundamental, que a falta dos elementos referidos naquelas alíneas acarretaria. Trata-se de um tipo de nulidade sui generis, extrema, insuperável ou insanável, ainda que susceptível de correcção pelo Ministério Público, a ponto de permitir ao juiz de julgamento a intromissão na acusação, de forma a evitar um julgamento sem objecto fáctico e probatório [al. b) e segunda parte da al. c) - provas], sem acusado [al. a)], sem incriminação [al c)], ou sem objecto legal [al. d)].
Daí que o regime de qualquer outro vício da acusação - previsto no art. 283º ou eventualmente em outras disposições legais - terá que ser procurado, fora da previsão do n.º 2, al. a) do art.º 311º, por não coberto nem pela letra nem pelo espírito do referido preceito na perspetiva de inserção no direito de defesa e na estrutura acusatória do processo – Ac. Cit. de 14-04-2010.
Assim, o nº 3 do artigo 311º do Código de Processo Penal, - ainda que o legislador não o diga de forma expressa, - veio consagrar um específico regime de nulidades da acusação que, face à gravidade e à intensidade da violação dos princípios processuais penais contidos na Constituição da República Portuguesa, são insuperáveis/insanáveis enquanto a acusação mantiver o mesmo conteúdo material. Assim se entende que a rejeição liminar apenas possa ter lugar naquelas situações típicas extremas e não relativamente a outros vícios de menor densidade.
Decorre da taxatividade legalmente estabelecida, um obstáculo inultrapassável à substituição por outra interpretação que não aquela que o legislador pretendeu.
Quanto às alíneas a) a c) não se suscitam grandes dúvidas sobre o seu conteúdo e quanto à alínea d) o limite da interpretação do seu conteúdo coincide com o que a estrutura dos princípios processuais admite, a significar que o Tribunal só pode declarar a acusação manifestamente infundada e rejeitá-la quando a factualidade respetiva não consagra de forma inequívoca qualquer conduta tipificadora do crime imputado ou de qualquer outro, pois pode constituir crime diverso do que é imputado na acusação – caso em que, no decurso do julgamento, se procederá como determina o art. 358º do Cód. Proc. Penal.
“Sublinhe-se que este juízo tem que assentar numa constatação objectivamente inequívoca e incontroversa da inexistência de factos que sustentam a imputação efectuada. Não se trata, nem se pode tratar de um juízo sustentado numa opinião divergente, por muito válida que seja. Só assim, numa interpretação tão restritiva se assegura o princípio do acusatório, na vertente referenciada.” – Ac Rel Coimbra de 25 de Março de 2010.
Em suma, o poder de sindicância da acusação pelo juiz do julgamento engloba no seu âmbito apenas o controlo dos vícios estruturais graves da acusação referidos no art.º 311º, nº 3, do CPP - (cfr PP Albuquerque Com CPP pág. 790).
A irrelevância penal dos factos imputados ao arguido, tem de ser manifesta, indiscutível, evidente, inequívoca, não bastando que seja meramente discutível por uma das várias correntes seguidas pela jurisprudência.
Ora, como é sabido, o tipo legal de crime é conformado pelos elementos constitutivos objetivos e subjetivos.
Estabelece o n.º 1 deste artigo, sob a epígrafe de “Falsas declarações”:
Quem declarar ou atestar falsamente à autoridade pública ou a funcionário no exercício das suas funções identidade, estado ou outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos, próprios ou alheios, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.
Se as declarações se destinarem a ser exaradas em documento autêntico o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa.
O bem jurídico protegido com a incriminação é a autonomia intencional da autoridade pública ou do funcionário no exercício das suas funções, que pode ser posta em causa quando o funcionário ou a autoridade pública não conhece a pessoa que se lhe dirige.
Trata-se de um crime de “perigo abstrato, quanto ao grau de lesão do bem jurídico protegido” e de “mera atividade quanto à forma de consumação do ataque ao objeto da ação” (Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código Penal, 3ª versão atualizada, p. 1215).
Ao nível do tipo objetivo exige-se:
- a declaração ou atestação falsa à autoridade pública ou a funcionário no exercício das suas funções;
- que, essa declaração ou atestação seja, sobre «identidade», «estado» ou «outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos», próprios ou alheios.
No n.º 2 acrescenta-se um outro elemento, que tem como consequência uma punição mais grave, que é o de a declaração ou atestação se destinar a ser exarada em documentos autênticos.
A falsidade da declaração ocorre quando o conteúdo do declarado não corresponde à realidade fáctica que o mesmo descreve ou exara relevando, portanto, a falsidade ideológica.
O conteúdo relevante da falsa declaração ou atestação tem de respeitar à «identidade», «estado» ou «outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos», próprios ou alheios, sem que se precise o concreto âmbito de cada um destes elementos, o que gera algumas dificuldades, em especial quanto ao que é abrangido por «outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos».
Segundo Paulo Albuquerque (ob. Citada, p. 1216), a «identidade» inclui a identidade do declarante ou de terceiro”; o «estado» inclui o estado civil do declarante ou de terceiro e «a outra qualidade a que a lei atribui efeitos jurídicos» inclui a filiação, a naturalidade, a nacionalidade, a data de nascimento, a profissão, a residência e o local de trabalho, do declarante ou de terceiros.
Este tipo legal de crime foi aditado pela Lei n.º 19/2013, de 21/02 (que introduziu alterações ao Código Penal), na sequência de um parecer da Procuradoria Geral da República sobre «a tutela de falsas declarações e eventuais lacunas carecidas de intervenção legislativa em matéria de falsas declarações perante autoridade pública», elaborado por Paulo Dá Mesquita (Publicado na Revista do Ministério Público, nº134, págs. 79-116 e acessível na anotação ao artigo 348.º-A em https://www.pgdlisboa.pt.) com vista a suprir as lacunas punitivas carecidas de intervenção legislativa em matéria de falsas declarações perante autoridade pública, tais como os artigos 45.º, n.º3 e 253.º, n.º 2 do Código de Registo Civil, o artigo 153.º do Código de Registo Predial, o artigo 97.º do Código de Notariado, declarado inconstitucional pelo acórdão do TC n.º 379/2012, o artigo 47.º do Decreto-Lei n.º 83/2000, o artigo 2.º-A da Lei n.º7/2001, na redacção dada pela Lei n.º23/2000 e o artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, que por sua vez resultou da revogação dos artigos 22.º a 24 do Decreto-Lei n.º33725 de 21 de Junho de 1944, operada pela Lei n.º33/99 e da constatação da existência em legislação penal extravagante de exemplos de normas penais completas que tipificam e punem situações específicas de falsas declarações fora de quaisquer processos judiciários, tais como o artigo 17.º, n.º1 da Lei n.º104//2009, de 14 de Setembro (que regula o regime de concessão de indemnização às vítimas de crimes violentos e de violência doméstica), do artigo 43.º, n.º1, alínea b) da Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro (Lei da Protecção de Dados Pessoais) e do artigo 39.º, n.º2 da Lei n.º 2/99, de 13 de Janeiro (Lei de Imprensa), entre outras.
Nesse parecer realçou-se que a “ausência de tutela penal das falsas declarações perante autoridade pública afecta a autonomia intencional do Estado, nomeadamente nas áreas dos registos, notariado, concursos públicos e múltiplos procedimentos sancionatórios”.
Na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 75/XII/1, apresentada na sequência desse parecer, e também para introduzir outras alteração ao Código Penal, escreve-se como justificação para a nova disposição (artigo 348.º-A), que se manteve com a mesma redação que foi proposta e com a que hoje está formulada, o seguinte:
«Aproveita-se para clarificar o tipo do crime de falsas declarações, que deixa de se confinar às declarações recebidas como meio de prova em processo judiciário, ou equivalente, passando a constituir ilícito criminal igualmente as falsas declarações que sejam prestadas perante autoridade pública ou funcionário público no exercício das suas funções e se destinem a produzir efeitos jurídicos. Protege-se desta forma a autonomia intencional do Estado e dá-se conteúdo normativo às múltiplas remissões feitas na legislação avulsa para este tipo de crime». Tribunal da Relação de Lisboa, processo 1634/21.5T9ALM.L1-5, relatado por Maria José Machado de 28/3/2023 – IGFEJ- Bases Juridico- documentais.
Vertendo ao caso que nos ocupa a acusação contém todos os elementos do tipo referenciado.
No âmbito do processo de contraordenação instaurado na sequência da infração descrita em 1., a ANSR notificou BB para que identificasse o condutor do mesmo.
Não obstante, e apesar de ter plena consciência de que era o condutor do veículo no momento da infração, o arguido preencheu os campos destinados à identificação do condutor utilizando os dados de identificação de BB.
O arguido agiu com o propósito, concretizado, de preencher pelo seu próprio punho o formulário de identificação do condutor com os dados de outra pessoa, bem sabendo que no momento da infração o veículo era conduzido por si, assim atestando perante a ANSR e para efeitos de identificação do arguido no âmbito de um processo de contraordenação informação que sabia não corresponder à verdade.
O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, querendo agir como agiu, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei e criminalmente punida.
Indica a disposição legal violada, as provas que a fundamentam, narra os factos e faz a identificação completa do arguido. A descrição factual não contendo diretamente a data da ocorrência do crime de falsas declarações inclui o período de tempo em que os factos ocorreram - mas como refere o Ministério Público, na suas alegações «A data da prática dos fatos ocorreu posteriormente à data que deu origem ao processo contraordenacional e que se encontra cabalmente determinada, isto é, a data do cometimento do crime de falsas declarações pelo arguido ocorreu posteriormente a 15.03.2020»
Quanto ao lugar dos factos - Resulta dos factos 3. e 4. que terá sido na morada da notificação para o proprietário do veículo de matrícula ..-UD-.., isto em Lisboa, que o arguido AA teve acesso à referida notificação e preenchido “os campos destinados à identificação do condutor utilizando os dados de identificação de BB”, cuja remessa atestou, perante a ANSR, como sendo este o responsável no âmbito do processo contraordenacional, bem sabendo que tal informação não correspondia à verdade.
A acusação só deve ser considerada manifestamente infundada, e consequentemente rejeitada, com base na al. d) do nº 3 do artº 311º do CPP, quando resultar evidente, que os factos nela descritos, mesmo que porventura viessem a ser provados, não preenchem qualquer tipo legal de crime.
Assim sendo não estamos perante o disposto na al. d), do n.º 3, deste normativo, estando em causa apenas a omissão na acusação da referência ao tempo e ao lugar da prática dos factos narrados na mesma, tratando-se, assim, de circunstâncias que não são elemento essencial à constituição do tipo de ilícito penal imputado ao arguido.
A situação em análise não tem, igualmente, enquadramento na al. b), do n.º 3, do mesmo dispositivo legal, na medida em se tratam de circunstâncias às quais a lei se refere apenas se possível, nos referidos termos legais.
De todo o modo e como refere o Ministério Publico, embora não de forma objetiva e direta, os factos constantes da acusação permitem delimitar o tempo e o lugar da ocorrência dos factos, para a determinação do objeto do processo, para o apuramento da competência territorial do Tribunal e contagem do prazo para efeitos de prescrição.
Assim sendo e em conformidade, a decisão em causa deve ser substituída por outra que não rejeitando a acusação, por inadmissibilidade legal, designe data para julgamento, se não se verificarem outras circunstâncias que impeçam a designação dessa data.
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3. Decisão:
Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o recurso, revogando a decisão recorrida, devendo a senhora Juiz, caso não encontre qualquer outro motivo que imponha a rejeição da acusação, dar seguimento aos termos do processo, tendo em conta o artigo 311º do CPP.
Sem custas.
Notifique.
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Lisboa, 5 de dezembro de 2024.
Alexandra Veiga
Ester Pacheco dos Santos
Paulo Barreto