I - A presente revista tornou-se admissível, não obstante a dupla conforme, porque a recorrente pôs nela em causa a aplicação/interpretação feita pelo tribunal da Relação do disposto no art. 640.º, n.º 1, do CPC, questão esta subsumível «à violação ou errada aplicação da lei de processo», a que se reporta a al. b) do n.º 1 do art. 674.º do CPC.
II - Verificando este tribunal que o da Relação não errou no entendimento e aplicação das normas de direito adjectivo referentes à apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto por se impor a rejeição da pretendida impugnação em face do clamoroso não cumprimento, pela recorrente, enquanto apelante, do ónus constante da al. a) do n.º 1 do art. 640.º do CPC, a revista tem de improceder.
I) RELATÓRIO
1.Horto MJT Lda, intentou ação comum declarativa, sob a forma de processo comum, contra AA e BB, pedindo a sua condenação a pagarem-lhe a quantia de €128.609,20, acrescida de juros de mora cívisl à taxa legal, calculados a partir de 27.02.2021, até integral pagamento.
Como fundamento, alegou, em suma, e no que aqui releva, que nos anos de 2014 a 2019 emprestou aos RR. diversas quantias destinadas a pagar dívidas dos mesmos, no valor total de € 128.609,20, sendo que parte dessas quantias lhes foram entregues por cheque, outras, em função da liquidação de faturas emitidas em nome do R., outras, em virtude de transferências para contas dos RR., e, nalguns casos, por efeito de depósitos em contas bancárias dos mesmos.
Subsidiariamente, invocou o enriquecimento sem causa dos RR., referindo, no penúltimo artigo da petição, que, «subsidiariamente e em última análise, os RR. sempre terão que restituir à A. a quantia de € 128.609,20, por força do principio do não locupletamento à custa alheia ou do não enriquecimento sem causa, consagrado nos arts 473º e ss do CC».
Os RR. contestaram, alegando, em síntese, que em 06.03.2014 o R. Miguel e a A. celebraram um contrato, nos termos do qual a A. ficou com a exploração agrícola de diversos terrenos e equipamentos da lavoura, assumindo, em contrapartida, o compromisso de pagar diversas quantias a várias instituições bancárias, termos em que refutaram a existência de qualquer contrato de mútuo entre as partes e a insubsistência do invocado enriquecimento sem causa.
Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença que julgou improcedente a acção, absolvendo os RR. do pedido.
A A, inconformada com tal decisão, interpôs recurso de apelação, que os RR. contra-alegaram, sustentando a manutenção da decisão recorrida.
A Relação de Lisboa rejeitou o recurso da decisão de facto e julgou improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida, nos seus precisos termos.
Inconformada, a A. recorreu pela presente revista, tendo concluído:
1) –A Recorrente não se conforma com o Acórdão Recorrido na parte em que rejeita o recurso sobre a matéria de facto (e, obviamente, na decisão de jure, como consequência) e a presente revista visa a revogação de tal rejeição.
2) – A razão invocada pelo Acórdão Recorrido foi o incumprimento dos requisitos formais exigidos pelo art. 640º, nº 1, do C.P.Civil, conforme refere expressamente: “nem concretizou os factos que tem por impugnados, nem indicou os concretos meios de prova que justificam tal e impõem uma decisão diversa da recorrida, nem especificou a decisão que no seu entender deve ser proferida quanto à factualidade em causa”.
3) – A Recorrente não concorda e entende que, pelo contrário, cumpriu todos esses requisitos.
É que, Venerandos Conselheiros, acontece esta coisa singular:
4) -O único, repete-se o único, objecto de tal recurso da decisão de facto era a alteração de um simples facto: dar-se como provada a inexistência de causa justificativa na deslocação pecuniária de €128.609,20 do património da A. a favor dos RR., para que a decisão jurídica fosse a procedência do pedido de restituição desse dinheiro por força do princípio do não enriquecimento sem causa.
5) – Toda, repete-se toda, a motivação do recurso de apelação foi dedicada exclusivamente a essa questão fáctica. O mesmo, obviamente, se verifica nas respectivas Conclusões.
6) –A Recorrente cita, no corpo destas alegações de revista, as principais passagens do recurso de apelação e respectivas Conclusões que referem explicitamente o segmento probatório que estava em crise – vide citações em itálico e sublinhado.
7) – O mesmo se diga em relação ao meio probatório que deveria conduzir a uma decisão de facto diversa da recorrida (a presunção judicial, matéria desenvolvida e aprofundada em tais alegações), bem como à decisão que, no entender da Recorrente, deveria ser proferida sobre a questão (única questão) de facto impugnada, a qual decisão devia ter dado como provada a inexistência de causa justificativa para a deslocação pecuniária do património da A. -Recorrente a favor do património dos RR.-Recorridos – vide, i.a., o último parágrafo do petitório do recurso, onde se escreve que: (…) deverá alterar-se o segmento da prova de facto que decidiu dar como não provada a inexistência de causa justificativa para as entregas de dinheiro feitas pela A. a favor dos RR. no sentido de dar como provado esse segmento probatório (…)”.
8) – Pelo exposto, como demonstrado fica no corpo desta motivação de revista, as alegações da apelação continham todos os elementos ou requisitos formais que o Acórdão Recorrido diz estarem em falta, pelo que este merece censura e revogação.
9) – Revogando-se a decisão de rejeição do recurso sobre a matéria de facto, deverá ordenar-se a descida dos autos ao Tribunal da Relação para que este conheça esse recurso e o julgue, que se espera venha a ser julgado pelo provimento do mesmo, como ali se pede, bem como seja alterada, em conformidade, a decisão jurídica do Acórdão Recorrido, no sentido também do provimento do recurso da matéria de direito, ou seja, pela procedência da acção e condenação dos RR. à restituição do valor que receberam, segundo o princípio do não enriquecimento sem causa consagrado no art. 473º do C. Civil, que foi violado pelo mesmo Acórdão Recorrido.
10)– Ao decidir pela rejeição do recurso sobre a matéria de facto, o Acórdão Recorrido aplicou indevida e incorrectamente, violando-o, o disposto no art. 640º, nº 1 do Código de Processo Civil.
Nestes termos e nos mais de direito com que V. Excias. suprirão as insuficiências do patrocínio, deve a presente revista receber total provimento, revogando-se em consequência a decisão que rejeitou o recurso sobre a matéria de facto e ordenando-se a descida dos autos ao Tribunal da Relação para que aí seja conhecido o recurso sobre essa decisão de facto (que se espera seja o respectivo provimento como aí se pede), bem como a subsequente decisão jurídica, que também se espera seja no sentido da procedência da acção segundo o princípio do não enriquecimento sem causa e condenação dos RR. no pedido, em conformidade com o disposto no art. 473º do C. Civil.
Os RR. contra-alegaram, sustentando a manutenção da decisão recorrida.
II) Objecto do Recurso
Constitui objecto do presente recurso, como resulta do confronto das conclusões do mesmo com a decisão recorrida, a aplicação feita no tribunal da Relação do disposto no artigo 640º/1 do CPC.
Como nota prévia referente à sua admissibilidade, assinala-se que, embora se verifique uma situação de dupla conforme decorrente da confirmação pelo tribunal da Relação da decisão da 1ª instância sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, se vem entendendo que aquela deixa de existir, ou é fundadamente posta em causa, quando se invoque, no recurso de revista, questão subsumível «à violação ou errada aplicação da lei de processo» – cfr. al b) do nº 1 do art 674º-, como sucede quando o recorrente pretenda como fundamento da revista a violação de normas (de direito adjectivo) referentes à apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto, como é aqui o caso. Entende-se, nessas circunstâncias, que essa questão - da avaliação da violação daquelas regras por parte do tribunal da Relação constitui ainda uma questão de direito, para a qual este tribunal tem competência 1.
Na sindicabilidade por este Tribunal da aplicação pelo da Relação das regras da impugnação da matéria de facto, podem estar em causa dois aspectos distinguíveis, por um lado, a interpretação ou aplicação por esse tribunal dos ónus impostos ao apelante pelo art 640º, por outro, as condições legalmente definidas pelo art 662º para o exercício dos poderes de controlo da decisão de facto, sendo que, em qualquer dos casos, se está ainda na presença de regras de aplicação de direito que nada têm a ver com as decisões de facto tomadas pela Relação, para a avaliação das quais este tribunal não tem competência, como resulta do nº 4 do art 662º e, conjugadamente, do nº 3 do art 674º e do nº 2 do art 682º, todos do CPC 2.
Na situação da presente revista, importa, pois, avaliar, se foi correcto o juízo formulado pelo tribunal da Relação referentemente à inobservância pela A. (enquanto apelante) dos ónus previstos no art 640º CPC.
III) Fundamentação de facto
Factos Provados
1. A autora é uma sociedade comercial por quotas de responsabilidade limitada, constituída em 4 de março de 2013, com o capital social de €5.000,00 (cinco mil euros), distribuído pelos sócios da seguinte forma: uma quota de valor nominal de €3.500,00, titulada por CC, e outra quota de valor nominal de €1.500,00, titulada por AA, pai daquele, e que tem por objeto a realização de «culturas de leguminosas secas e sementes oleaginosas, viticultura e fruticultura. Comércio de produtos agrícolas»;
2. Durante o ano de 2014 a autora entregou aos réus as seguintes quantias em dinheiro:
a. €6.000,00 (seis mil euros) através de cheque emitido com o n.º 031238, no dia 30 de junho de 2014, e depositado na sua conta bancária na “Caixa de Crédito Agrícola Mútuo”;
b. €3.250,00 (três mil duzentos e cinquenta euros) através de cheque emitido com o n.º 031241, no dia 28 de julho de 2014, e depositado na sua conta bancária na “Caixa de Crédito Agrícola Mútuo”;
c. €1.000,00 (mil euros) através de cheque emitido com o n.º ...42, no dia 29 de julho de 2014, e depositado na sua conta bancária na “Caixa Crédito Agrícola Mútuo”;
d. €300,00 (trezentos euros) através de cheque emitido com o n.º ...43, no dia 31 de julho de 2014, e depositado na sua conta bancária na “Caixa Crédito Agrícola Mútuo”;
e. €6.200,00 (seis mil e duzentos euros) através de cheque emitido com o n.º ...47, no dia 18 de agosto de 2014, e depositado na sua conta bancária na “Caixa Geral de Depósitos”;
f. €1.100,00 (mil e cem euros) através de cheque emitido com o n.º ...48, no dia 19 de agosto de 2014, e depositado na sua conta na “Caixa Geral de Depósitos”;
g. €3.500,00 (três mil e quinhentos euros) através de cheque emitido com o n.º ...49, no dia 28 de agosto de 2014, e depositado na sua conta bancária na “Caixa Crédito Agrícola Mútuo”;
h. (eliminada)3;
i. €1.200,00 (mil e duzentos euros) através de cheque emitido com o n.º ...53, no dia 18 de setembro de 2014, e depositado na sua conta na “Caixa Geral de Depósitos”;
j. €2.600,00 (dois mil seiscentos euros) através de cheque emitido com o n.º ...51, no dia 2 de setembro 2014, e depositado na sua conta bancária na “Caixa Geral de Depósitos”;
k. €1.000,00 (mil euros) através de cheque emitido com o n.º ...69, no dia 27 de novembro de 2014, e depositado na sua conta bancária na “Caixa Geral de Depósitos”;
l. €3.100,00 (três mil e cem euros) através de cheque com o n.º ...72, emitido no dia 9 de dezembro de 2014, e depositado na sua conta na “Caixa Geral de Depósitos”;
m. €700,00 (setecentos euros), através de emissão de um cheque com o n.º...62, no dia 24 de abril de 2014, e depositado na sua conta bancária no “Banco BPI S.A.” e n. € 200.00 (duzentos euros) através da emissão de um cheque com o número ...50, no dia 2 de setembro de 2014, e depositado na sua conta bancária no “Banco BPI S.A.”;
3. No mesmo ano a autora procedeu aos seguintes pagamentos:
a. €932,58 (novecentos e trinta e dois euros e cinquenta e oito cêntimos) através da emissão de um cheque no dia 7 de julho de 2014, com o n.º ...32, à ordem de “R..., S.A.”, para liquidação de 7 (sete) faturas emitidas por esta sociedade dirigidas ao réu e
b. €2.972,04 (dois mil novecentos e setenta e dois euros e quatro cêntimos) através da emissão de um cheque com o n.º ...34 à ordem de “A..., Lda.”, para liquidação de 4 (quatro) faturas dirigidas ao réu;
4. Ainda no mesmo ano a autora procedeu à transferência das seguintes quantias em dinheiro para as contas bancárias tituladas pelos réus:
a. €620,00 (seiscentos e vinte euros) no dia 22 de julho de 2014, para a conta bancária no “Banco BPI, S.A.”;
b. €550,00 (quinhentos e cinquenta euros) no dia 12 de agosto de 2014, para a conta bancária na “Caixa Geral de Depósitos S.A.”;
c. €900,00 (novecentos euros) no dia 26 de agosto de 2014, para a conta bancária no “Banco BPI, S.A.”;
d. €500,00 (quinhentos euros) no dia 15 de setembro de 2014, para a conta bancária na “Caixa Geral de Depósitos S.A.”;
e. €600,00 (seiscentos euros) no dia 14 de outubro de 2014, para a conta bancária na “Caixa Geral de Depósitos S.A.”;
f. €3.500,00 (três mil e quinhentos euros) no dia 14 de outubro de 2014, para a conta na “Caixa Crédito Agrícola Mútuo”;
g. €1.200,00 (mil e duzentos euros) no dia 17 de outubro de 2014, para a conta bancária na “Caixa Geral de Depósitos S.A.”;
h. €900,00 (novecentos euros) no dia 21 de outubro de 2014, para a conta no “Banco BPI S.A.”;
i. €600,00 (seiscentos euros) no dia 4 de novembro de 2014, para a conta bancária na “Caixa Geral de Depósitos S.A.”;
j. €900,00 (novecentos euros) no dia 18 de novembro de 2014, para a conta bancária na “Banco BPI S.A.”;
k. €1.100,00 (mil e cem euros) no dia 18 de novembro de 2014, para a conta bancária na “Caixa Geral de Depósitos S.A.”;
l. €3.200,00 (três mil e duzentos euros) no dia 18 de novembro de 2014, para a conta bancária na “Caixa de Crédito Agrícola Mútuo”;
m. €3.000,00 (três mil euros) no dia 15 de dezembro de 2014, para a conta bancária na “Caixa de Crédito Agrícola Mútuo”;
n. €900,00 (novecentos euros) no dia 19 de dezembro de 2014, para a conta bancária no “Banco BPI S.A.”;
o. €650,00 (seiscentos e cinquenta euros), no dia 16 de junho de 2014, para a conta bancária na “Caixa Geral de Depósitos S.A.”;
p. €900,00 (novecentos euros) no dia 23 de setembro de 2014, para a conta bancária no “Banco BPI S.A.”;
q. €1.100,00 (mil e cem euros) no dia 15 de dezembro de 2014, para a conta bancária na “Caixa Geral de Depósitos S.A.” e
r. €850,00 (oitocentos e cinquenta euros) no dia 31 de dezembro de 2014, para a conta bancária na “Caixa de Crédito Agrícola Mútuo”;
5. Também em 2014 a autora depositou na conta bancária dos réus as seguintes quantias:
a. €400,00 (quatrocentos euros) no dia 30 de setembro de 2014, na sua conta na “Caixa de Crédito Agrícola Mútuo” e
b. €5.000,00 (cinco mil e euros) no dia 27 de novembro de 2014, na sua conta bancária na “Caixa Geral de Depósitos S.A.”;
6. Durante o ano de 2015 a autora emitiu a favor do réu os seguintes cheques, nos seguintes valores, que foram depositados em contas bancárias dos réus:
a. €1.100,00 (mil e cem euros) no dia 19 de janeiro de 2015, com o n.º ...75;
b. €250,00 (duzentos e cinquenta euros) no dia 19 de janeiro de 2015, com o n.º ...76;
c. €2.039,24 (dois mil e trinta e nove euros e vinte e quatro cêntimos) no dia 30 de janeiro de 2015, com o n.º ...03;
d. €500,00 (quinhentos euros) no dia 27 de fevereiro de 2015, com o n.º ...03;
e. €1.100,00 (mil e cem euros) no dia 31 de março de 2015, com o n.º ...08;
f. €1.200,00 (mil e duzentos euros) no dia 28 de abril de 2015, com o n.º ...18;
g. €400,00 (quatrocentos euros) no dia 1 de setembro de 2015, com o n.º ...39;
h. €1.200,00 (mil e duzentos euros) no dia 11 de dezembro de 2015, com o n.º ...81;
i. €500,00 (quinhentos euros) no dia 30 de dezembro de 2015, com o n.º ...88 e
j. €300,00 (trezentos euros) no dia 31 de dezembro de 2015, com o n.º ...89;
7. No mesmo ano a autora transferiu para as contas bancárias tituladas em nome dos réus as seguintes quantias:
a. €2.700,00 (dois mil e setecentos euros) no dia 29 de janeiro de 2015;
b. €1.100,00 (mil e cem euros) no dia 29 de janeiro de 2015;
c. €870,00 (oitocentos e setenta euros) no dia 24 de fevereiro de 2015;
d. €750,00 (setecentos e cinquenta euros) no dia 23 de março de 2015;
e. €420,00 (quatrocentos e vinte euros) no dia 25 de março de 2015;
f. €400,00 (quatrocentos euros) no dia 27 de maio de 2015;
g. €20.000,00 (vinte mil euros) no dia 12 de novembro de 2015;
h. €3.500,00 (três mil e quinhentos euros) no dia 18 de novembro de 2015 e
i. €990,00 (novecentos e noventa euros) no dia 29 de janeiro de 2015;
8. No ano de 2016 a autora emitiu a favor do réu os seguintes cheques, nos seguintes valores, que foram depositados em contas bancárias dos réus:
a. €800,00 (oitocentos euros) no dia 1 de fevereiro de 2016, com o n.º ...59 e
b. €700,00 (setecentos euros) no dia 29 de fevereiro de 2016, com o n.º ...95;
9. No mesmo ano a autora realizou as seguintes transferências em dinheiro para as contas bancárias tituladas em nome dos réus:
a. €6.000,00 (seis mil euros) no dia 17 de fevereiro de 2016;
b. €169,34 (cento e sessenta e nove euros e trinta e quatro cêntimos) no dia 1 de março de 2016;
c. €2.000,00 (dois mil euros) no dia 23 de junho de 2016 e
d. €1.900,00 (mil e novecentos euros) no dia 29 de junho de 2016;
10. Ainda em 2016 a autora depositou as seguintes quantias em contas bancárias tituladas em nome dos réus:
a. €6.150,00 (seis mil cento e cinquenta euros) no dia 29 de dezembro de 2016;
b. €2.200,00 (dois mil e duzentos euros) no dia 29 de dezembro de 2016;
c. €100,00 (cem euros) no dia 27 de outubro de 2016;
d. €350,00 (trezentos e cinquenta euros) no dia 31 de outubro de 2016;
e. €360,00 (trezentos e sessenta euros) no dia 31 de agosto de 2016 e
f. €200,00 (duzentos euros) no dia 30 de junho de 2016;
11. No ano de 2018 a autora realizou as seguintes transferências em dinheiro para as contas bancárias tituladas em nome dos réus:
a. €1.500,00 (mil e quinhentos euros) no dia 30 de maio de 2018;
b. €1.500,00 (mil e quinhentos euros) no dia 28 de junho de 2018 e
c. €1.200,00 (mil e duzentos euros) no dia 29 de novembro de 2018;
12. No mesmo ano a autora pagou e depositou as seguintes quantias a favor dos réus:
a. €156,00 (cento e cinquenta e seis euros), no dia 15 de novembro de 2018, à “Autoridade Tributária e Aduaneira” devidos pelo Réu pela sua Declaração Periódica de IVA;
b. €340,00 (trezentos e quarenta euros) através de depósito em numerário realizado no dia 24 de agosto de 2018 na conta bancária dos réus;
c. €350,00 (trezentos e cinquenta euros) através de depósito em numerário realizado no dia 18 de setembro de 2018 na conta bancária dos réus;
d. €350,00 (trezentos e cinquenta euros) através de depósito em numerário realizado no dia 31 de dezembro de 2018 na conta bancária dos réus e
e. €20,00 (vinte euros) através de depósito em numerário realizado no dia 1 de junho de 2018 na conta bancária dos réus;
13. No ano de 2019 a autora realizou as seguintes transferências em dinheiro para as contas bancárias tituladas em nome dos réus:
a. €1.200,00 (mil e duzentos euros) no dia 10 de janeiro de 2019 e
b. €320,00 (trezentos e vinte euros) no dia 31 de janeiro de 2019;
14. No dia 30 de março de 2020 a autora, por intermédio da sua mandatária, enviou uma carta ao réu, que este recebeu, solicitando-lhe o pagamento de todas as quantias descritas em 2. a 13., acrescidas de juros de mora, no montante total de € 192.056,93 (cento e noventa e dois mil e cinquenta e seis euros e noventa e três cêntimos);
15. No dia 25 de janeiro de 2021 a autora remeteu aos réus uma carta registada com aviso de receção, que estes receberam em 26.01.2021, mediante a qual acionou o disposto no artigo 1148.º, n.º 1, do Código Civil, fixando-lhes o prazo de trinta dias para a restituição das quantias mencionadas na missiva descrita em 14;
16. Os réus não responderam às cartas mencionadas em 14. e 15.;
17. O réu AA vive com a ré BB em economia comum, na mesma casa;
18. Partilham os rendimentos de cada um e as despesas do dia-a-dia;
19. As quantias descritas em 2. e 4. a 13. dos factos dados como provados foram entregues aos réus para pagamento de dívidas e empréstimos bancários contraídos pelos mesmos junto da “Caixa Geral de Depósitos, S.A.”, “Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de ...” e “Banco BPI S.A.”;
20. Em 6 de março de 2014 o réu, na qualidade de primeiro contratante, e a autora, na qualidade de segunda contratante, outorgaram um escrito particular denominado “Contrato de Comodato”, mediante o qual o primeiro cedeu à segunda, que o aceitou, por um período de quinze anos, renováveis quatro prédios rústicos, ficando a cargo da segunda contratante todos os encargos de manutenção ou outros relativos a tais prédios.
Factos Não Provados
A. Durante o ano de 2014 os réus tenham atravessado dificuldades financeiras e que a autora lhes tenha emprestado, ao longo de anos, as quantias em dinheiro descritas em 2. a 13. dos factos dados como provados, que se destinaram a pagar as suas dívidas, contraídas junto da “Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de ...”, da “Caixa Geral de Depósitos S.A.”, do “Banco Português de Investimento S.A.”, da “R..., S.A.”, da “A..., Lda.” e da “Autoridade Tributária e Aduaneira” (artigos 4.º e 5.º da p. i.);
B. O alegado em 6.º da p. i., para além do descrito em 2. dos factos dados como provados;
C. O alegado em 7.º da p. i., para além do descrito em 3. dos factos dados como provados;
D. O alegado em 8.º da p. i., para além do descrito em 4. dos factos dados como provados;
E. O alegado em 9.º da p. i. para além do descrito em 5. dos factos dados como provados;
F. O alegado em 10.º da p. i. para além do descrito em 6. dos factos dados como provados;
G. O alegado em 11.º da p. i. para além do descrito em 7. dos factos dados como provados;
H. As quantias em dinheiro mencionadas nos artigos 12.º a 14.º da p. i. (e descritas nos factos dados como provados sob os n.ºs 8. a 10.) tenham sido entregues aos réus a título de empréstimo;
I. As quantias em dinheiro mencionadas nos artigos 15.º e 16.º da p. i. (e descritas nos factos dados como provados sob os n.ºs 11. e 12.) tenham sido entregues aos réus a título de empréstimo;
J. As quantias em dinheiro mencionadas no artigo 17.º da p. i. (e descritas no facto dado como provado sob o n.º 13.) tenham sido entregues aos réus a título de empréstimo;
k. O alegado no artigo 26.º da p. i. para além do provado sob os n.ºs 17. e 18. e
l. O alegado no artigo 37.º da p. i., para além do que foi dado como provado sob os n.ºs 2. a 13. e 18;
m. Os artigos 14.º, 15.º, 18.º, 21.º e 23.º da contestação
IV- Fundamentação de direito
1. Entende a Recorrente que, constituindo único objecto do recurso da matéria de facto a que procedeu a alteração de Não Provado para Provado relativamente à “inexistência de causa justificativa na deslocação pecuniária de € 128.609,20 do património da A. a favor dos RR.”, e que, porque relativamente a esse (único) objecto de impugnação da decisão da matéria de facto cumpriu integralmente os requisitos formais exigidos pelo art 640º/1 do CPC, o tribunal da Relação não devia ter rejeitado tal impugnação, devendo, por isso, este, admiti-la, e remeter o processo àquele outro, para conhecimento do facto em questão, com a consequente ampliação da matéria de facto.
Acusa o tribunal da Relação (como que) de excesso de pronúncia relativamente ao objecto da impugnação da matéria de facto, salientando ter delimitado claramente a alteração da matéria de facto que pretendia, restringindo-a ao concreto aspecto do seu empobrecimento e do consequente enriquecimento dos RR., em função da provada circunstância daquele valor de €128.609,20 ter saído do seu património e ter entrado no dos RR.
Assim, refere na conclusão 4ª das alegações do presente recurso, que “o único, repete-se o único, objecto de tal recurso da decisão de facto era a alteração de um simples facto: dar-se como provada a inexistência de causa justificativa na deslocação pecuniária de €128.609,20 do património da A. a favor dos RR., para que a decisão jurídica fosse a procedência do pedido de restituição desse dinheiro por força do princípio do não enriquecimento sem causa”. E reporta-se, na conclusão 6ª, a respeito desse objecto do recurso da decisão de facto, “ao segmento probatório que estava em crise”. Referindo, na conclusão 8ª que “as alegações da apelação continham todos os elementos ou requisitos formais que o Acórdão Recorrido diz estarem em falta”.
2. Como se faz notar no acórdão deste Tribunal de 16/11/2023 (proc 31206/15.78LSB.E1.S1), onde igualmente estava em causa a avaliação do adequado cumprimento pelo apelante dos ónus do art 640º/1 CPC, a tarefa do Supremo, para esse efeito, reconduz-se, em termos práticos, a “confrontar” as alegações e conclusões da apelação com as exigências/ónus impostos pelo correcto entendimento/interpretação do art 640º CPC».
Por isso, ainda que sem grande utilidade para a decisão que se perspectiva, transcrevem-se aqui as alegações e conclusões apresentadas no recurso de apelação.
Referiu a Recorrente nas alegações da apelação:
«Vem o presente recurso da sentença que declarou totalmente improcedente a acção que a ora Recorrente instaurou contra os ora Recorridos peticionando a condenação destes no pagamento da quantia de € 128.609,20.
O pedido principal fundou-se num mútuo que, sendo nulo por não ter sido reduzido a escrito, devia conduzir a restituição do valor do empréstimo por força do disposto no art. 286º do C. Civil.
O pedido subsidiário fundou-se no princípio do não enriquecimento sem causa previsto no art. 473º do mesmo Código Civil.
A Sentença Recorrida fez improceder os dois pedidos, criando uma situação fáctica verdadeiramente singular que representa na prática uma VERDADEIRA NEGAÇÃO DE JUSTIÇA.
Como passamos a explicar:
I -MATÉRIA DE FACTO
A Sentença Recorrida deu como provado que a A., ora Recorrente, entregou aos RR., ora Recorridos, as quantias que descrimina nos Pontos 2 a 13 dos Factos Provados, as quais totalizam o valor de € 128.609,20.
Mas a mesma sentença considerou que a A. não provou que as entregas de dinheiro foram feitas com a obrigação de os réus as devolverem.
Por isso fez improceder o pedido fundado em mútuo nulo.
A mesma sentença considerou também que a A. não provou que a deslocação patrimonial (as entregas desses valores pecuniários) foi efectuada sem causa justificativa.
Por isso fez improceder o pedido fundado no princípio do não enriquecimento sem causa.
Paremos aqui e sintetizemos a situação:
OS RÉUS TÊM EM SEU PODER A QUANTIA DE € 128.609,20 QUE SAÍRAM DO PATRIMÓNIO DA AUTORA.
E O TRIBUNAL A QUO, DECIDINDO COMO DECIDIU, INVIABILIZA QUE A AUTORA RECUPERE O QUE É SEU!!
Aprofundemos a questão:
A Sentença Recorrida, no Ponto 19. dos Factos Provados, dá como provado que as quantias entregues pela Autora aos Réus se destinaram a pagar dívidas destes aos Bancos.
É matéria fáctica importante para a decisão da causa, como iremos ver.
Não atacamos o segmento fáctico que julgou não julgados os factos que consubstanciariam a figura jurídica do mútuo nulo.
Impugnamos, sim, a parte decisória que incidiu sobre os factos integrantes do instituto do não locupletamento à custa alheia, designadamente quando a Sentença Recorrida afirma que “a autora não provou que a deslocação patrimonial foi efectuada sem causa justificativa” (entenda-se por deslocação patrimonial: a entrega do dinheiro da autora a favor dos réus).
Nesta decisão fáctica a Mma. Juiz a quo errou clamorosamente e, como se disse, inviabiliza que à Autora seja restituído aquilo que é seu.
Não se nega, claro está, que o ónus da prova da ausência de causa justificativa compete à A. . A A., na qualidade de empobrecida, tem de convencer o Tribunal de que a deslocação do dinheiro a favor dos Réus não tem justificação.
Mas este segmento probatório deve ser apreciado com todo o cuidado, a fim de que se possa fazer justiça.
E para tal, a exigência de factores de prova não pode chegar ao ponto de exigir a “probatio diabolica”, sob pena de se cometer injustiça, em vez da desejada justiça.
II- ERRO DE INTERPRETAÇÃO DA LEI
Ora, o erro mais flagrante da Sentença Recorrida na apreciação deste segmento probatório consistiu na interpretação que deu ao nº 2 do art. 473º do C. Civil, porquanto considerou taxativa a enumeração dos dois casos aí previstos (pagamento indevido e recebimento por uma causa que deixou de existir).
O carácter exemplificativo da norma resulta desde logo da própria letra da lei quando escreve “de modo especial”.
A Sentença Recorrida atribui-lhe, erradamente já se vê, carácter taxativo, pois considera que só esses dois casos substanciam a falta de causa justificativa.
Reproduzimos a passagem da sentença onde fica visível essa errada interpretação da norma: “Quem ínvoca esta figura jurídica tem o ónus de prova de que há um enriquecimento que carece de causa justificativa, ou seja, que a prestação foi feita com a intenção de cumprir uma obrigação e de que a obrigação não existia, ou que a prestação foi feita em função de uma causa que deixou de existir, ou que o resultado se não produziu.
Ora, a autora não provou que fez os pagamentos que demonstrou ter feito para cumprir uma obrigação que não existia ou uma causa que deixou de existir, ou um efeito que não se verificou.
Ou seja, não obstante se ter provado uma deslocação patrimonial da autora para os réus – confr. factos dados como provados sob os nºs. 2 a 13 -, a autora não provou que essa deslocação patrimonial foi efectuada sem causa justificativa”.
E assim, de uma penada, fundando-se numa errada interpretação do nº 2 do citado art. 473º do C. Civil, a Mma. Juiz a quo resolveu em três parágrafos apenas, esta questão delicada – e de máxima importância para a decisão da causa.
Todavia, não!
A figura jurídica do não enriquecimento sem causa não está circunscrita aos dois exemplos referidos no nº 2 do art. 473º.
Longe disso!
Citemos o que nos diz a doutrina:
E teremos de começar com os mestres. Pires de Lima e Antunes Varela, no seu Código Civil Anotado, na nota 3. ao art. 473º, escrevem que “no nº 2 do art. 473º indicam-se exemplificativamente (sublinhado nosso), conforme se sublinhou já, casos especiais (sublinhado nosso) de enriquecimento sem causa”.
Mais claro não pode haver.
Os mesmos insignes autores, anteriormente, na nota 2., já haviam sublinhado que o conceito de causa do enriquecimento é muito controvertido e o art. 473º, intencionalmente, não o define, limitando-se cautelosamente a facultar ao intérprete algumas indicações capazes de, como meros subsídios (sublinhado nosso), auxiliarem a
sua formulação. É essa a principal finalidade do nº 2 do preceito, quando afirma que “a obrigação de restituir tem, de modo especial (itálico dos autores) por objecto o que for recebido por uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou”.
Também o Código Civil Anotado de Ana Prata (coord.) é claríssimo a este respeito.
Na nota 6 ao preceito legal em questão, sobre o requisito negativo da ausência de causa justificativa, pode ler-se: “O nº 2 contém exemplos de faltas de causa, mas está longe de as esgotar. Não há também causa sempre que alguém exerce faculdades de um direito de que outrém é titular e não há qualquer título que autorize, imponha ou justifique a intromissão”.
A jurisprudência tem o mesmo entendimento, que é unívoco. Cita-se o Acórdão da Relação de Évora de 03/02/2003, CJ, 2003, 1º - 241): “O dizer-se, no nº 2 do art. 473º do C. Civil, que a obrigação de restituir tem por objecto o que foi indevidamente recebido, ou o que for recebido por uma causa que deixou de existir, ou em vista de um efeito que não se verificou, tem carácter meramente explicativo” (sublinhado nosso).
Fica assim irrefragavelmente demonstrado que, ao fundar-se no nº 2 do art. 473º como contendo os casos únicos de falta de causa justificativa, o Acórdão Recorrido violou a lei, designadamente esse mesmo preceito legal, bem como violou o princípio da livre apreciação da prova, visto que limitou ilegalmente os casos de falta de causa justificativa.
III Aqui chegados, haverá que averiguar se deve, ou não, ser considerada provada a falta de causa justificativa para o enriquecimento dos RR. à custa da A., já não com a limitação que a Mma. Juiz a quo impôs a essa averiguação, mas com a amplitude que deve ser apanágio do princípio da livre apreciação da prova.
A autora estruturou o seu pedido com base na causa de pedir principal: um mútuo que, por falta de forma, é nulo e que deve conduzir à restituição do prestado.
Todavia, a Sentença Recorrida julgou como não provado que houvesse da parte dos Réus a obrigação de devolverem as entregas de dinheiro feitas a seu favor pela A..
Posto isto, resta a apreciação da causa de pedir do pedido subsidiário, a saber, a condenação dos réus na restituição à Autora dos dinheiros desta recebidos por força do princípio do não enriquecimento sem causa consagrado no art. 473º do C. Civil.
Para a correcta apreciação da prova sobre esta matéria, é importante lembrar qual foi a tese apresentada nos autos pelos Réus para justificar a deslocação patrimonial do dinheiro da A. a favor deles, Réus.
Ora, na sua Contestação, os Réus contrapuseram à tese do mútuo, alegada pela A., uma hipótese que, embora mirabolante, é oportuno lembrar aqui:
Sustentaram os RR. na sua Contestação que as entregas de dinheiro que receberam da A. se destinaram a pagar dívidas suas, o que aliás ficou provado no Ponto 19. dos Factos Provados da Sentença Recorrida. Mas sustentaram também que tais entregas de dinheiro constituíam uma obrigação assumida pela A. como contrapartida da cedência gratuita de alguns prédios rústicos titulada num contrato de comodato que juntaram aos autos. – confr. arts. 11º, 13º e 32º da Contestação.
Hipótese mirabolante, dizemos nós, porque o comodato é definido como cedência gratuita sem qualquer contrapartida. Se houver alguma contrapartida, maxime pecuniária, deixa de ser comodato passando a ser, quiçá, um arrendamento.
Mas o contrato de comodato foi reduzido a escrito e esse documento foi junto aos autos.
Aconteceu que, como era previsível – e verdadeiro -, esta tese foi julgada não provada.
Ou seja:
Foram apresentadas aos autos duas causas que alegadamente justificavam a deslocação pecuniária do património da A. para o património dos RR..
Uma, alegada pela A.: o mútuo.
Outra, alegada pelos RR.: a contrapartida pela cedência de terrenos rústicos.
Qualquer destas versões foi afastada pela Sentença Recorrida, por não provadas.
Foram assim eliminadas duas hipotéticas causas de justificação para a deslocação patrimonial em causa.
Embora o onus probandi pertença nesta sede, como já se disse, à A., seria normal e desejável que os RR., beneficiários das entregas de dinheiro procedentes do património da A., tivessem apresentado em juízo uma razão, um motivo, cabal, lógico, coerente, credível, que as justificasse.
Ao impugnar o mútuo alegado pela A., seria normal que os RR. explicassem ao Tribunal por que razão receberam esses dinheiros, apresentando um motivo real, verdadeiro, credível que justificasse o recebimento de tais dinheiros (avultados dinheiros, lembre-se).
A única justificação que apresentaram foi, como se disse, completamente inverosímil, disparatada até!
Se não alegaram outra causa justificativa, é porque não a têm, é porque ela não existe!
Perante esta situação, em que os próprios RR. não conseguem explicar a razão pela qual receberam da A. tão avultadas quantias, será exigível à A. que apresente mais provas da inexistência da dita causa justificativa?!?
Que provas, se se trata de um facto negativo?
Um julgador céptico poderá sempre dizer que não está convicto da inexistência dessa tal causa justificativa!
Mas é esse cepticismo que um cidadão de boa conduta espera de um julgamento justo?
Será justo exigir que se prove a “probatio diabolica”?
Ou a convicção do julgador deverá ter em conta outros factores, mesmo que indirectos, para fazer justiça?
IV -Os cidadãos recorrem aos Tribunais pedindo uma solução para os seus litígios, pedindo uma decisão justa, equilibrada e razoável.
O julgador possui ao seu dispor mecanismos para alcançar a verdade e formar uma convicção que corresponda ao ideal de justiça que a comunidade espera de si.
Antes de mais, a presunção judicial, que é uma ilação que o julgador tira de um facto conhecido para alcançar e conhecer, e julgar provado um facto desconhecido, em resultado do princípio da livre apreciação da prova.
Trata-se de um recurso cognitivo permitido ao julgador para formar a sua convicção, bastando para se dar como provado o tal facto desconhecido, um juízo de prognose que conclua pela probabilidade da ocorrência do facto probando.
Ora, no caso sub judice, inexistindo, por falta de prova, os dois factos que cada uma das partes apresentou em juízo para justificar a deslocação patrimonial, restaria a hipótese de uma doação, esta também completamente inverosímil até porque às sociedade comerciais está vedada a doação dos seus bens, visto serem, por definição, entidades que têm como objectivo a produção de lucros.
Que outra causa justificativa poderá então existir?
Na formação da sua convicção, o julgador terá de aplicar, além dos princípios gerais do direito, que são regras não escritas que resultam do ideal de justiça dominante na sociedade. E também as regras da experiência comum.
Citamos o Acórdão da Relação de Coimbra de 01/10/2008, proferido no Proc. 3/07.4GAVGS.C2, acessível em linha: “O julgador é livre ao apreciar as provas, embora tal apreciação seja vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica, que se devem incluir no âmbito do direito probatório.
A livre convicção não pode confundir-se com a íntima convicção do julgador, impondo-lhe a lei que extraia das provas um convencimento lógico e motivado, avaliadas as provas com sentido da responsabilidade e bom senso, e valoradas segundo parâmetros da lógica do homem médio e das regras da experiência.”.
O senso comum a aplicar pelo julgador refere-se naturalmente, às máximas da experiência do homem médio e da sociedade em que se insere, observação e conhecimento das coisas e dos factos da natureza e da sociedade.
Este conhecimento está, naturalmente, ligado aos princípios éticos da comunidade: a honestidade, o equilíbrio, a correcção de comportamento – e também, obviamente, em função de tudo isso, à expectativa de um bom e justo julgamento da parte de quem recorre aos Tribunais.
No caso sub judice, louvando-se em todas essas valências éticas e aplicando os recursos cognitivos permitidos ao julgador pelo princípio da livre apreciação da prova, nomeadamente as inferências lógicas próprias das presunções judiciais, a única conclusão possível é a da inexistência de causa justificativa para o enriquecimento dos RR. e o correspondente empobrecimento da A. (aliás patente na sua actual situação financeira à beira da falência, como se mostra nas dívidas constantes do seu pedido de apoio judiciário), pois de contrário estaria a julgar-se justo um enriquecimento injusto e estaria mesmo a cometer-se denegação de justiça!
A decisão Recorrida não aplicou correctamente, violando-as as disposições legais dos números 3, 4 e 5 do art. 607º do C. Proc. Civil.
E nas conclusões da apelação:
«1) – O Tribunal a quo decretou a improcedência da acção, quer no pedido fundado em mútuo nulo e consequente devolução do prestado, quer no pedido fundado no princípio do não enriquecimento sem causa.
2) – O presente recurso visa a alteração da matéria de facto respeitante à questão do não enriquecimento sem causa, designadamente sobre a prova da inexistência de causa justificativa (que a Sentença Recorrida entendeu não ter sido feita).
3) – O Tribunal a quo considerou provado que a A. entregou aos RR. a quantia global de €128.609,20 e que todas as entregas de dinheiro que somam essa quantia se destinaram a pagar dívidas dos RR. – Pontos 2 a 13 e 19 dos Factos Provados.
4) – Todavia, o Tribunal a quo considerou que a Autora não provou que a deslocação patrimonial (as entregas desses valores pecuniários) foi efectuada sem causa justificativa – e, conseguintemente, fez improceder o pedido baseado no princípio do não enriquecimento sem causa.
5) – A decisão recorrida criou esta situação caricata, injusta e que consubstancia um caso de NEGAÇÃO DE JUSTIÇA: os Réus têm em seu poder a quantia de €128.609,20 que lhes foi entregue pela Autora para eles pagarem dívidas suas (deles, réus) e esta está impedida de recuperar aquilo que é seu!
6) – O principal erro da Sentença Recorrida na apreciação deste segmento probatório consistiu na interpretação dada ao disposto no nº 2 do art. 473º do C. Civil, na medida em que considerou taxativa a enumeração dos dois casos aí previstos, quando na verdade é meramente exemplificativo como resulta da própria letra da lei quando escreve “de modo especial” (doutrina e no corpo das alegações).
7) – A sentença jurídica proferida está inquinada por este erro, que entendeu os casos elencados no nº 2 do art. 473º como taxativos e não como exemplificativos.
8) – Ao decidir a matéria de facto e de direito fundando-se erradamente nesse preceito legal, a Sentença Recorrida aplicou-o indevidamente, violando-o; e ao circunscrever os casos de falta de causa justificativa aos enumerados nesse nº 2 do art. 473º do C. P. Civil, limitou ilegalmente o âmbito probatório violando o princípio da livre apreciação da prova consagrado no nº 5 do art. 607º do C. Proc. Civil.
9) – Afastada a limitação imposta a si própria pela Mma. Juiz a quo através do errado entendimento da citada norma legal, há que averiguar se, sim ou não, deve ser julgada provada a falta de causa justificativa dos Réus à custa da Autora. Vejamos, pois:
10) – A A. apresentou em juízo uma justificação para a deslocação pecuniária em causa: um mútuo.
11) – Os RR. apresentaram outra justificação (completamente descabelada, diga-se): a hipotética contrapartida da cedência gratuita de terrenos rústicos. Titulada por um contrato de comodato junto aos autos (hipótese esta votada ab initio ao fracasso, na medida em que o comodato é, por definição, gratuito).
12) - O Tribunal a quo deu como não provadas qualquer destas causas justificativas alegadas pelas partes.
13) – Se existisse um motivo real, verdadeiro, credível, que justificasse a deslocação pecuniária, seria natural que os RR o apresentassem em juízo! Mas não. Apresentaram uma versão completamente inverosímel, disparatada até. Que não convenceu, obviamente, o Tribunal.
14) – Se não alegaram outra causa justificativa, é porque não a têm, é porque ela não existe!
15) – A sociedade espera do julgador uma decisão justa e equilibrada e este possui ao seu dispor mecanismos que lhe permitam alcançar a verdade dos factos e formar uma convicção a partir das regras de experiência comum, nomeadamente através da presunção judicial e do recurso ao senso comum e às máximas da experiência do conhecimento do homem médio e da sociedade em que se insere, observação e conhecimento das coisas e dos factos da natureza e da sociedade.
16) – A presunção judicial é uma ilação que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido, em resultado da livre apreciação da prova; é um meio a que o Juiz deve recorrer para apreciar os factos que não são objecto de prova directa, de modo a formar a sua convicção.
17) – In casu, não é obviamente possível fazer prova directa da não existência de uma causa justificativa para o enriquecimento dos RR. à custa do empobrecimento da A..
18) – O Tribunal deve saber aplicar os seus conhecimentos, as regras da experiência comum para avaliar toda a prova produzida e proferir uma decisão que corresponda ao ideal de justiça que a comunidade espera de si. De outro modo recusar-se-á a tentar descobrir a verdade e estará a cometer denegação de justiça.
19) – No caso sub judice, as duas causas de justificação apresentadas a juízo, uma por cada uma das partes, não lograram ser provadas, pelo que o Tribunal as afastou. A hipótese de doação do dinheiro também terá de ser afastada, na medida em que uma sociedade comercial, por definição, tem como objectivo produzir lucro e, por isso, está-lhe vedada a doação dos seus bens – veja-se o estado de pré-falência em que as entregas de dinheiro colocaram à A., lendo as dívidas mais relevantes que ela referiu no requerimento do apoio judiciário!
20) – Que outra causa justificativa poderá existir para deslocação patrimonial de avultadas somas em dinheiro, do património da A. para o dos RR.? Nenhuma, Venerandos Desembargadores, nenhuma!
21) – A livre apreciação da prova, as regras da experiência comum, o recurso às presunções judiciais e ao mais elementar sentido de justiça, deviam ter conduzido o Tribunal a quo a dar como julgada a falta de causa justificativa para o enriquecimento dos RR. às custa do empobrecimento da A..
22) – Não decidindo assim, a Sentença Recorrida não aplicou correctamente, violando-as as disposições legais dos números 3, 4 e 5 do art. 607º do C. Proc. Civil.
23) – Assim decidindo de facto, a decisão de jure só poderá ser a procedência da acção através do pedido subsidiário, visto estarem reunidos os requisitos legais exigidos pelo art. 473º do Código Civil: um enriquecimento à custa de outrem, em empobrecimento correspondente àquele enriquecimento e a ausência de causa legítima para tal situação, ou seja, a falta de justificação para essa deslocação patrimonial.
24) – Não decidindo assim, a Sentença Recorrida não aplicou, violando-o o disposto nesse art. 473º do C. Civil.
Nestes termos e nos mais de direito com que V. Excias. Doutamente suprirão as insuficiências do patrocínio, deverá alterar-se o segmento da prova de facto que decidiu dar como não provada a inexistência de causa justificativa para as entregas de dinheiro feitas pela A. a favor dos RR., no sentido de dar como provado esse segmento probatório e, conseguintemente, deverá dar-se como totalmente preenchida a factualidade exigida pelo art. 473º do C. Civil que consagra a figura do não enriquecimento sem causa ou do não locupletamento à custa alheira, julgando a acção totalmente procedente por provada, dando-se assim provimento ao recurso e fazendo-se JUSTIÇA!»
3. – O Tribunal da Relação de Lisboa, depois de reproduzir o art 640º CPC no seu nº 1 e na al a) do seu nº 2, rejeitou o recurso da decisão de facto, em função das seguintes considerações:
«Considerando a motivação do recurso e as respetivas conclusões constata-se que a Recorrente não cumpriu qualquer dos indicados ónus de impugnação da decisão de facto: nem concretizou os factos que tem por impugnados, nem indicou os concretos meios de prova que justificam tal e impõem uma decisão diversa da recorrida, nem especificou a decisão que no seu entender deve ser proferida quanto à factualidade em causa.
Num registo assaz genérico, partindo de generalidades, concluiu que in casu inexistia causa justificativa da havida deslocação patrimonial, olvidando que tal juízo conclusivo haveria de deduzir-se de factualidade concretamente alegada e provada.
Paradoxalmente, ao mesmo tempo que alegou constituir seu ónus provar a falta de causa de justificação, entende esta demonstrada por os RR. não terem logrado provar a ocorrência de contrapartida pela cedência de terrenos rústicos.
De todo o modo, a presunção que a Recorrente pretende retirar em tal domínio não se afigura minimamente consistente: do facto de não se ter provado a existência quer de mútuo, invocado pela A, quer de contrapartida pela cedência de terrenos, alegada pelos RR., não se segue necessariamente que a deslocação patrimonial em apreço careça de causa, pois a mesma pode assentar noutros fundamentos para além daqueles alegadas pelas partes, sendo que nessa sede relevava alegar e demonstrar que nunca existiu causa ou que esta deixou, entretanto, por qualquer razão, de subsistir.
Nestes termos e por ser inadmissível na matéria despacho de aperfeiçoamento, conforme artigos 639.º, n.º 3, e 652.º, n.º 1, alínea a), do CPCivil, a contrario, importa rejeitar o recurso da decisão de facto».
4. Apreciando o objecto do recurso:
Dispõe o art 640º do CPC no seu nº 1:
«1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
E no seu nº 2 al a):
«No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a)- Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes».
Sintetiza Abrantes Geraldes4 o sistema que resulta desta disposição legal, frisando, à partida, que, «a) Em qualquer das circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões» (os sublinhados são nossos).
E mais adiante assinala:
«a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria
«(…) A rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão de facto deve verificar-se em algumas das seguintes situações: (…)de facto (arts. 635.º, n.º 4, e 641.º, n.º 2, al. b)); (…)
b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (art. 640.º, n.º 1, al. a)); (…)
c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.); (…)
d) Falta de indicação exacta, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda; (…)».
Não deixando de destacar que, «As referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da auto responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo (…)».
O Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 12/2023, proferido em 17/10/2023, no proc. 8344/17.6T8SNTB.E1-A.S1, uniformizando o entendimento de que «nos termos da alínea c) do nº 1 do art 640º do Código de Processo Civil, o recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações», teve sempre como pressuposto que o recorrente em matéria de facto respeite nas conclusões o art 639º/1 do CPC afirmando a sua pretensão no sentido da alteração da matéria de facto e concretizando os pontos que pretende ver alterados.
O ponto de partida da impugnação da decisão da matéria de facto, reside, como é evidente, na indicação dos pontos de facto cuja modificação é pretendida, organizando-se os demais ónus a que se reporta o indicado art 640º em torno dessa indicação seja a decisão que para os mesmos se pretende, seja a explicitação dos meios de prova que, analisados criticamente, impõem aquela decisão.
O legislador reporta-se, no corpo do art 640º à «especificação» e na al a) do nº 1, aos «concretos pontos de facto», resultando desse conjunto estar em causa “a especificação dos concretos pontos de facto”, e esta terminologia, quer pelo que implica o termo especificação, quer pelo que reside à concretude dos “pontos de facto” (e não apenas à concretude dos factos), afasta, a nosso ver, entendimentos no sentido de ser desnecessário ao cumprimento do ónus da al a) do nº 1 do art 640º a referência aos números de tais pontos. Quer dizer, para que resulte, com a necessária clareza, que matéria se quer pôr em questão em termos de impugnação, será forçoso que o recorrente faça menção ao(s) número(s) do(s) facto(s) em causa, seja por reporte aos factos dados como provados ou não provados, seja aos factos concretamente invocados nos articulados. Apenas se admitindo, e com reservas, que assim possa não ser em situações muito especiais em que seja de todo evidente, para o juiz e para as partes, que aquela clareza se obteve sem a especificação dos concretos pontos de facto. Na verdade, não podem ter-se como aceitáveis dúvidas sobre o que o recorrente pretende na delimitação do objecto do recurso.
A especificação dos concretos pontos de facto tem de se incluir necessariamente nas conclusões, sem embargo de ter sido feita antecedentemente nas alegações stricto sensu, pela simples razão de que são as conclusões que definem o objecto do recurso – nº 4 do art 635º - e este não ser alcançável em matéria de impugnação da matéria de facto sem a referida especificação.
Diz-se no texto do acima referido Acórdão Uniformizador: «Da articulação dos vários elementos interpretativos, com cabimento na letra da lei, resulta que em termos de ónus a cumprir pelo recorrente quando pretende impugnar a decisão da matéria de facto, sempre terá de ser alegada e levada para as conclusões, a indicação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, na definição do objecto do recurso». (O sublinhado é nosso).
Ora, sucede que a aqui Recorrente não concretizou os factos que pretenderia impugnar.
Com efeito, limitou-se, e como acima já se assinalou, a referir, na conclusão 2ª das alegações do recurso de apelação, de modo genérico e inexplícito, que « O presente recurso visa a alteração da matéria de facto respeitante à questão do não enriquecimento sem causa, designadamente sobre a prova da inexistência de causa justificativa (que a Sentença Recorrida entendeu não ter sido feita)»; na conclusão 6ª, indefinidamente, “ao segmento probatório que estava em crise”; e no remate das conclusões, que «se deverá alterar o segmento da prova de facto que decidiu dar como não provada a inexistência de causa justificativa para as entregas de dinheiro feitas pela A. a favor dos RR., no sentido de dar como provado esse segmento probatório (…)» (os sublinhados são nossos).
Nunca definiu, sequer no corpo alegatório ou até no presente recurso, o conteúdo concreto do “segmento da prova de facto” em causa, o que tornou, além do mais, ininteligível a pretensão recursória em matéria de facto, quer em termos de objecto, quer de finalidade.
E não o fez, obviamente, porque nada alegou na petição inicial a respeito dos factos integradores do pretendido enriquecimento sendo que, e como o não desconhece, constitui entendimento consolidado na doutrina e na jurisprudência o de que o ónus da prova no referente ao requisitos do enriquecimento sem causa, e «designadamente da ausência de causa justificativa para o enriquecimento», recai sobre quem se pretende empobrecido e pretende obter a restituição, nos termos do nº 1 do art 342º 5.
Ao contrário do que sustentou, para se reconhecer a obrigação de restituir sustentada no enriquecimento, não é suficiente que se demonstre a obtenção duma vantagem patrimonial, à custa de outrém, sendo ainda exigível mostrar – através de factos - a não existência de uma causa justificativa para essa deslocação patrimonial, quer porque nunca a houve, por não se ter verificado o escopo pretendido, ou, porque, entretanto, deixou de existir, devido à supressão posterior desse fundamento», nas palavras do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04.07.2019, proc. 2048/15.1T8STS.P1.S1, citado na decisão recorrida.
Para poder beneficiar do instituto do enriquecimento, quer por prestação (que é o que mais claramente resulta da letra do n.º 2 do artigo 473.º do Código Civil) quer em qualquer das outras modalidades (intervenção, ou intromissão abusiva no património alheio; despesas efectuadas por outrem, ou benfeitorias em coisa alheia na convicção de pertença ou, ainda, pagamento de dividas alheias; não consideração de património, ou o caso dos artigos 481.º ou 616.º do Código Civil) o autor tem de alegar e provar os requisitos do enriquecimento como “genus”, isto é que ocorreu um locupletamento indevido, em seu prejuízo, por causa que nunca existiu ou deixou de existir ou perspectivando efeito que não ocorreu. Enfim, trata-se de provar, de acordo com o artigo 342.º do Código Civil uma deslocação patrimonial sem qualquer causa ou com escopo que não se verificou- acórdão deste Tribunal de 25.08.2008, proc. 08 A3501.
Evidentemente, que sem factos que consubstanciassem a causa que esteve na origem da deslocação patrimonial e que tal causa ou não existia á data daquela deslocação ou deixou de existir – cf acórdão da Relação de Coimbra de 04.12.2007, proc 862/05.5TBAND.C1 - não podia a A./apelante proceder à especificação dos concretos pontos de facto que considerava incorrectamemte julgados nessa matéria do enriquecimento sem causa.
Como é evidente, a expressão “segmento de prova de facto” ou outras semelhantes utilizadas pela apelante, sem quaisquer outras explicitações, é absolutamente vazia.
Perante a ausência de especificação dos concretos pontos que considerava incorrectamente julgados, ónus este primário e fundamental na relação com os demais, impunha-se a rejeição total da pretendida impugnação da matéria de facto, sendo indiferente que a recorrente a pretendesse dirigir apenas a um qualquer “segmento de prova”, desde o momento em que este ficou por identificar.
É inútil analisar o incumprimento pela A., enquanto apelante, dos demais ónus de impugnação da decisão da matéria de facto a que se reporta o art 640º, por estes estarem necessariamente na dependência do cumprimento do primeiro – a especificação dos concretos pontos de facto que a recorrente considera incorrectamente julgados.
De onde se conclui que bem andou o tribunal da Relação ao rejeitar a pretendida a impugnação da decisão da matéria de facto.
E do que resulta que a esse tribunal não violou a norma de direito adjectivo do art 640º do CPC, pelo que há que negar a revista.
IV – DECISÃO
Pelo exposto, acorda este Tribunal em negar a revista.
Custas pela A.
Lisboa, 26 de Novembro de 2024
Maria Teresa Albuquerque (Relatora)
Cristina Coelho
Luís Espírito Santo
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1. Cf, entre muitos, o acórdão deste Tribunal de 31/5/2016, proc 1572/12.2 TAABT.E1. S1, no qual se cita, a propósito, Alberto dos Reis, em Código de Processo Civil Anotado, V, p 474↩︎
2. Diz-se assim, por exemplo, e ainda no âmbito do CPC anterior, no Ac STJ de 21/1/2012, proc nº 844/18.7T8BNV.E1.S1, acessível em www.dgsi.pt, que, «os poderes do Supremo nesta matéria abarcam ainda o controlo da aplicação da lei adjectiva em qualquer das dimensões destinadas à fixação da matéria de facto provada e não provada - art 671º/1 al b) do CPC – com a restrição que emerge do art 662º/2 CPC, que exclui a sindicabilidade do juízo de apreciação da prova efectuado pelo tribunal da Relação e a aferição da formação da convicção desse tribunal a partir de meios sujeitos a livre apreciação».↩︎
3. A alínea h) foi eliminada em razão de lapso de escrita da decisão recorrida: o que aí se consignou respeitava ainda à alínea anterior, termos em que a alínea h) deixou de referir-se a qualquer facto.↩︎
4. - Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, p. 126↩︎
5. - Cf, entre muitos, os acórdãos deste Tribunal de 25.08.2008, proc. 08 A3501; 16.09.2008, proc. 08B1644; 29.05.2007, proc. 07A 1302; 04.10.2007, proc. 07B2772; 22.01.2004, proc. 03B1815; 11.10.2022 , proc. 2330/20.6T8PRT.P1.S1, todos acessíveis em www.dgsi.pt.↩︎