I - Tem responsabilidade na eclosão do acidente, que se entende corresponder a 20%, o condutor de um motociclo que, ao seguir atrás de um veículo que em determinado momento se encostou à berma para não colidir com um outro, o qual, circulando em sentido contrário, o fazia ocupando parte da sua hemifaixa de rodagem, apenas se apercebeu da presença deste veículo em momento já subsequente ao início da ultrapassagem daquele primeiro.
II - Mostra-se equitativo o valor de € 70 000,00 para ressarcimento do dano biológico no referente a lesado que à data do acidente tinha 41 anos de idade e que ficou afectado com um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 15 pontos, sendo que, em função das concretas sequelas implicadas nesse défice, não mais conseguirá desempenhar com a mesma agilidade do que antes do acidente as funções que exerce como chefe de equipa numa empresa de caminhos-de-ferro, precisando de um esforço acrescido.
III - Mostra-se igualmente equitativo o valor € 29 000,00, para compensação do sofrimento físico e psicológico que o acidente lhe implicou, em função de cinco intervenções cirúrgicas e demais tratamentos já realizados e futuros, de consultas e de períodos de incapacidade que lhe implicaram 10 meses sem trabalhar, prejuízo estético e dores sofridas acima do ponto médio (4 em 7 pontos).
I) Relatório
1. AA, instaurou ação declarativa, com processo comum, contra Crédito Agrícola Seguros – Companhia de Seguros de Ramos Reais, SA, pedindo que:
1 – Seja o Condutor da viatura ..-..-BB considerado o único e exclusivo culpado na produção do acidente.
2 – Seja a Ré condenada a pagar ao A. € 3 984,65, acrescidos de juros desde a citação até integral e efetivo pagamento, correspondentes aos danos sofridos pela viatura, resultantes do acidente para o Autor.
3 – Seja a Ré condenada ao pagamento de € 5 000,00 pela privação de uso do veículo do Autor.
4 – Seja a Ré condenada ao pagamento da quantia de € 17 000,00 pelas perdas salariais decorrentes e rendimentos perdidos.
5 – Seja a Ré condenada ao pagamento da quantia de € 1 000,00 pelos dias que esteve internado no Hospital de ....
6 – Seja fixada a Incapacidade Permanente Parcial do Autor em, pelo menos, 20% e, em consequência, seja a Ré condenada ao pagamento da quantia de € 50 000,00.
7 – Seja a Ré condenada ao pagamento da quantia de € 6 000,00 pelo quantum doloris.
8 – Seja a Ré condenada ao pagamento da quantia de € 30 000,00 pelos esforços acrescidos que terá que fazer para o desempenho da sua função.
9 – Seja a Ré condenada ao pagamento da quantia de € 7 000,00 pelo dano estético.
10 – Seja a Ré condenada ao pagamento das despesas médicas e de transportes que teve de suportar em consequência do acidente, num total de € 3 157,70.
11 – Seja a Ré condenada ao pagamento de juros vencidos e vincendos até integral e efetivo pagamento, relativamente a todas as quantias.
12 – Seja a Ré condenada no pagamento das despesas hospitalares, na quantia que se vier a apurar, feitas na sequência do acidente.
13 – Seja a Ré condenada ao pagamento das despesas que venham a ser realizadas em consequência dos tratamentos a que o Autor tenha que vir a ser submetido no futuro.
14 – Seja a Ré condenada a proceder ao pagamento de indemnização pela requalificação laboral do Autor, caso tal se venha a verificar, na quantia que vier a ser apurada.
Alegou a ocorrência de um acidente de viação entre o motociclo com a matrícula ..-..-RU (doravante RU), propriedade dele e por ele conduzido, e o veículo automóvel ligeiro de mercadorias, com a matrícula ..-..-BB (doravante BB), bem como a intervenção nesse acidente do veículo ligeiro de mercadorias, com a matrícula ..-PH-.. (doravante RH), atribuindo a culpa exclusiva do mesmo ao condutor do BB, segurado na R., e ter sofrido com o mesmo danos, quer de ordem patrimonial, quer não patrimonial.
2. A R. contestou, imputando a culpa pela verificação do sinistro ao próprio A., e impugnou a extensão dos danos alegados.
3.Realizado julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo a R. do pedido.
4.O A. apelou e impugnou a matéria de facto.
5. A Relação, por acórdão de 16.2.2013, anulou a decisão recorrida e ordenou a reabertura do julgamento com a realização de prova por inspecção judicial e de várias outras diligências probatórias referentes ao apuramento das dimensões dos veículos.
6.Cumpridas as diligências probatórias ordenadas, foi proferida nova sentença, que, de novo, julgou a acção improcedente, absolvendo a R. do pedido.
7 .O A. apelou novamente, e de novo, impugnou a matéria de facto.
8 . A Relação, por acórdão de 12.06.2024, conhecendo e alterando a matéria de facto, revogou a decisão recorrida e, considerando que o acidente se ficou a dever à culpa exclusiva do segurado da R., condutor do BB, condenou a R. a indemnizar o A. no montante global de 123.142,35 €, assim discriminado:
a) - a título de danos patrimoniais emergentes do acidente, na quantia total de 24.142,35 euros;
b) - a título de dano biológico, na quantia de 70.000,00€;
c) - a título de danos não patrimoniais, na quantia de 29.000,00€.
Determinando ainda que,
Sobre as quantias referidas são devidos juros de mora à taxa legal, contados desde a data da citação sobre as quantias referidas em a) e b) e desde a presente data no que se refere à quantia referida em c).
9 - Interpôs a R. recurso de revista, formulando as seguintes conclusões (transcrição):
1.ª - Vem o presente recurso impugnar a decisão proferida quanto ao apuramento da responsabilidade pela ocorrência do sinistro, atenta a matéria de facto provada, assim
como as indemnizações atribuídas a título de dano biológico e danos não patrimoniais, com as quais não se conforma;
2º- Em face do teor dos factos provados, relativos à dinâmica em que ocorreu o acidente de viação, constantes do douto acórdão, a responsabilidade deve ser atribuída, em igual proporção, aos condutores dos veículos ..-..-RU, tripulado pelo Autor e ..-..-BB, seguro na ora recorrente e conduzido por BB;
3º- A origem da eclosão do acidente esteve na manobra de ultrapassagem, efetuada pelo condutor do motociclo RU, o ora Autor, ao veículo ..-PH-.., quando este se encostou à berma da via em que circulava para evitar que o BB lhe embatesse;
4º- O veículo BB circulava na EM 313-2, no sentido Vila R.../Vila S..., ocupando parcialmente a hemi-faixa de rodagem contrária ao seu sentido de marcha;
5º- O condutor do PH, tendo avistado o BB a ocupar parte da sua faixa de rodagem, encostou-se à berma;
6º- O Autor, condutor do RU, ao verificar que o PH estava encostado à berma, prosseguiu a sua marcha, ultrapassando o PH, ocupando, na realização desta manobra, a hemi faixa pela qual circulava o BB, não se apercebendo da presença do veículo BB a ocupar parcialmente essa mesma hemi faixa, indo o RU embater no farolim traseiro do lado esquerdo do PH, dando-se de seguida o embate entre a frente do motociclo na frente esquerda do BB;
7º- O embate do RU no BB ocorreu junto ao eixo da via;
8º- O Autor, antes de iniciar a ultrapassagem, não se apercebeu do veículo BB, que circulava em sentido oposto ao seu, o que significa que não estava a conduzir de forma atenta e cuidada, pois se assim o estivesse a fazer ter-se-ia apercebido do BB, podendo desviar-se deste, evitando embater no BB;
9º- Na via onde ocorreu o embate não existia qualquer obstáculo ou impedimento que não permitisse ao Autor avistar o BB;
10º- O veículo BB circulava a ocupar parcialmente a faixa de rodagem contrária, mas o Autor, antes de ultrapassar o veículo PH, não se apercebeu do BB a circular em sentido contrário, sendo que nada o impedia de avistar o BB, tal como aconteceu com o condutor do PH;
11º- O condutor do PH avistou o BB a circular em sentido contrário, pelo que o Autor poderia e deveria ter avistado o BB;
12º- Resulta dos factos provados que o condutor do BB, seguro na ora recorrente, “guinou” esse veículo o mais à direita possível, de forma a evitar o embate;
13º- Resulta dos factos provados que condutor do BB conduzia este veículo a ocupar parcialmente a faixa de rodagem contrária, mas também resulta desses factos que o Autor, antes de iniciar a manobra de ultrapassagem ao PH, não se apercebeu da presença do BB a circular em sentido contrário;
14º- Nos termos do nº 1, do artº 38º do Código da Estrada, o condutor de veículo que pretenda realizar a manobra de ultrapassagem, antes de o fazer, deve-se certificar que não existe perigo de colisão com os veículos que circulem em sentido contrário;
15º- O Autor, antes de iniciar a ultrapassagem ao PH, não se certificou que em sentido contrário circulava o BB; se o tivesse feito, ao avistar o BB em sentido contrário, não efetuava a ultrapassagem ao PH, não ocorrendo o embate no BB;
16º- Perante o teor dos factos provados constantes, do douto acórdão recorrido, a responsabilidade pela ocorrência do acidente em causa, deve ser imputada, em igual proporção, ao condutor do veículo BB, seguro na Ré e ao Autor, tripulante do motociclo;
17º- Ao assim não decidir, o douto acórdão em crise violou o disposto no artº 38º, do Código da Estrada;
18º- Decidindo-se pela atribuição da responsabilidade, em igual proporção, ao condutor do veículo seguro na Ré e ao Autor, condutor do motociclo, devem as respetivas indemnizações fixadas ser reduzidas a metade;
19º- A ora recorrente, não se conforma com os montantes indemnizatórios fixados no douto acórdão recorrido, a título de dano biológico e danos não patrimoniais;
20º- Em relação ao dano biológico, Importa ponderar que:
- O lesado passou a padecer de um défice funcional de 15 pontos;
- O Autor auferia mensalmente a quantia de € 1.600,00;
- A idade do autor à data do acidente – 41 anos;
- O limite de vida ativa que se pode situar nos 66 anos.
21º- Pelo que, afigura-se-nos ajustada a compensação, do dano biológico, no valor de € 50.000,00, devendo ser atribuído ao Autor metade deste valor, ou seja, € 25.000,00;
22º- Relativamente ao montante fixado para os danos não patrimoniais (€ 29.000,00), face aos factos dados como provados, consideramos esse valor indemnizatório exagerado;
23º- O montante pecuniário da compensação deve fixar-se equitativamente, tendo em atenção as circunstâncias a que se reporta o artigo 494º do Código Civil (artigo 496º, n.º 3, 1ª parte, do Código Civil);
24º- A apreciação da gravidade do referido dano, embora tenha de assentar, como é natural, no circunstancialismo concreto envolvente, deve operar sob um critério objetivo, num quadro de exclusão, tanto quanto possível, da subjetividade inerente a particular sensibilidade humana;
25º- Consideramos que a atribuição de uma indemnização de € 18.000,00 é justa e equitativa, tendo em conta os danos não patrimoniais que o Autor sofreu, devendo ser atribuída, ao Autor, a título de danos não patrimoniais, metade desse valor, ou seja, € 9.000,00;
26º- Ao assim não decidir, violou o acórdão recorrido, entre outras disposições legais, o disposto nos artºs 562º e 566º, ambos do Código Civil.
Termos em que, deve a decisão recorrida ser revogada, proferindo-se Acórdão que determine que a responsabilidade pela verificação do acidente pertenceu, em igual medida, ao Autor e ao segurado da recorrente e, em consequência, sejam os montantes indemnizatórios fixados, reduzidos para metade do seu valor, ou seja:
- € 1.992,32, pela reparação do veículo;
- € 8.500,00, de perdas salariais;
- € 1.578,85, de despesas
Em relação às importâncias atribuídas a título de dano biológico e danos não patrimoniais, devem os mesmos ser reduzidos para € 50.000,00 e € 18.000,00, respetivamente, fixando-se ao Autor metade destas importâncias, ou seja, € 25.000,00 e € 9.000,00. Caso se venha a decidir que a responsabilidade pela ocorrência do acidente pertenceu, exclusivamente ao condutor do veículo seguro na Ré, o que só por mera cautela se admite, então devem as indemnizações a título de dano biológico e danos não patrimoniais, serem reduzidas para € 50.000,00 e € 18.000,00, respetivamente.
10. Em contra-alegações a A. defendeu a improcedência da revista, concluindo:
1 – Face à matéria de facto dada como provada e não provado, que se tem por assente, resulta claro que a responsabilidade na produção do acidente é, integralmente, do veículo BB, segurado da Recorrente.
2 – Como se concluiu no Acórdão recorrido, não fora o facto de o BB circular em contramão, utilizando a hemi faixa destinada à circulação do PH e do RU, o PH não se teria desviado, encostando-se à berma e o RU não teria iniciado a manobra de ultrapassagem.
3 – Sendo que, o RU para ultrapassar o PH utilizou apenas a sua hemi faixa, sem transpor o eixo da via, e, por isso, sem que tenha violado qualquer norma do código da estrada.
4 – Na verdade, a manobra realizada pelo RU não se trata de uma ultrapassagem, tal como ela é entendida pelo código da estrada, conquanto, não precisava utilizar a hemi faixa destinada ao trânsito de veículos que se deslocavam em sentido contrário.
5 – As alegações de Recurso apresentadas pela R. consubstanciam uma incorreta interpretação da matéria de facto provada e não provada, com deturpação dos factos a favor da tese que pugna.
6 – O Condutor do BB violou, além do mais, as normas constantes do n.º 1, do artigo 13.º e do n.º 2, do artigo 18.º, do CE, pelo que se presume a culpa na produção do acidente.
7 – Ao passo que o condutor do RU não violou qualquer norma jurídica – até porque, repete-se por não ser despiciendo, não fora o facto de o BB circular em contramão, nunca o PH teria encostado à berma e, consequentemente, nunca o RU teria necessidade de ultrapassar este último (ainda que, como vimos, o tenha feito apenas e só pela sua hemi faixa de rodagem).
8 – Não existe qualquer fundamento para alterar os valores das indemnizações fixadas na decisão recorrida, conquanto, além do mais, foram tidos em conta valores de indemnização fixados em situações semelhantes.
9 – Acresce que, a Recorrente não adianta qualquer motivo válido para que se verifique a requerida alteração.
10 - Pelo que, se deve manter-se integralmente a decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Guimarães.
II) Objecto do Recurso
Considerando o acórdão recorrido e as conclusões do recurso, são as seguintes as questões a apreciar:
- a responsabilidade pelo acidente;
- a indemnização pelo dano biológico e pelos danos não patrimoniais.
III) Fundamentação de facto
A- Factos Provados
1. O Autor é proprietário do motociclo de marca Kawasaki, modelo V 800 Classic, com a matrícula ..-..-RU.
2. No dia ... de março de 2019, pelas 17:25h na Estrada Municipal ...3-2, no Lugar da Estrada, na união das freguesias de ... e ..., concelho de ..., ocorreu um acidente de viação em que foram intervenientes os seguintes veículos:
- o veículo ligeiro de matrícula ..-..-BB, conduzido por BB, seguro na ora Ré;
- o veículo ligeiro de mercadorias de matrícula ..-PH-.., propriedade de C..., Unipessoal, Lda., conduzido por CC; e
- o motociclo Kawasaki, modelo VN800 de matricula ..-..-RU, conduzido pelo Autor.
3. No local do acidente a estrada é regular, apresenta-se uniforme nas dimensões da faixa de rodagem entre bermas, é uma curva ligeira, o piso à data do acidente encontrava-se seco e limpo e sem qualquer obstáculo ou obra.
4. A faixa de rodagem é composta por uma via para cada um dos sentidos de marcha.
5. Apesar de a via comportar dois sentidos de trânsito, não apresenta qualquer tipo de marcação (linha longitudinal) a demarcar a faixa de rodagem, conquanto foi apagada com o passar do tempo.
6. O piso é betuminoso e encontra-se em razoável estado de conservação.
7. Pelas duas margens da Estrada Municipal ...3-2, no Lugar da Estrada, antes de chegar ao local do acidente, para quem circula em qualquer dos seus dois sentidos de marcha, existiam casas de habitação, todas com os seus respetivos acessos a deitar diretamente para a faixa de rodagem da referida via.
8. Na altura as condições atmosféricas eram boas, era de dia e o piso encontrava-se seco.
9. No local e na hora mencionadas em 2., o Autor conduzia o motociclo de matricula ..-..-RU e deslocava-se no sentido Vila S... =» Vila R...
10. Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, circulava um veículo ligeiro de mercadorias, de marca Toyota, modelo Dyna, seguro na ré, com a matrícula ..-..-BB, propriedade de BB e por ele conduzido, no sentido Vila Real =» Vila Seca de Poiares.
11. Circulava, ainda, a viatura ligeira de mercadorias de marca Renault, modelo Kangoo, com a matrícula ..-PH-.., propriedade de C..., Unipessoal, Lda., conduzida por CC, que se deslocava no sentido Vila S...=»Vila R..., à frente do Autor.
12. O veículo com a matrícula ..-PH-.. circulava à frente do motociclo do autor, de matrícula ..-..-RU, o que já acontecia desde que ambos, o PH e o Autor, entraram na via onde ocorreu o acidente, provindos de um cruzamento situado a 155 metros do local do embate, cruzamento de ... – estrada M...93.
13. A viatura BB circulava no sentido Vila R... /Vila S..., pelo meio da estrada, ocupando parcialmente a hemi-faixa de rodagem contrária ao seu sentido de marcha.
14. A viatura PH, porque viu o BB a ocupar parte da sua faixa de rodagem, encostou-se à berma, no local representado no croquis do acidente, com ambas as rodas do lado direito já fora do asfalto, ocupando-a totalmente com a sua parte frontal, para evitar que aquele lhe embatesse.
15. A berma do lado direito, atento o sentido de marcha do PH, tem uma largura máxima de 90 (noventa) centímetros.
16. O condutor do RU, ao verificar que a viatura PH se encostou à berma, segue a sua marcha, iniciando a manobra de ultrapassagem do PH pela hemi-faixa em que circulava, atento o seu sentido, sem se aperceber da presença do BB a circular em sentido contrário ocupando parcialmente essa mesma hemi-faixa.
17. Nesse momento, apercebendo-se que o veículo BB circulava em sentido contrário ocupando parcialmente a sua hemi-faixa de rodagem, o motociclo RU veio a embater no farolim traseiro do lado esquerdo do PH, dando-se de seguida o embate entre a frente do motociclo por si conduzido na frente esquerda do veículo de matrícula ..-..-BB.
18. No momento do embate a viatura BB, que circulava no sentido Vila R.../ Vila S..., ocupava parcialmente a hemi-faixa de rodagem destinada à circulação do autor, na qual se deu o embate junto ao eixo da via.
19. O condutor do veículo seguro na Ré “guinou” o mais à direita possível o veículo automóvel que conduzia, de forma a evitar o embate.
20. O local do embate caracteriza-se por ser uma curva à esquerda, com razoável visibilidade e é ligeiramente descendente, atento o sentido de marcha Vila R... – Vila S....
21. No local onde se deu o embate a via tem 5,70 metros de largura (ou seja, 2,85 metros cada faixa de rodagem).
22. Após o embate, a frente da viatura BB ficou imobilizada a cerca de 1,20 metros da berma, atento o seu sentido de marcha.
23. A viatura BB tem uma largura máxima de 1,695 metros.
24. A traseira da viatura BB, após o embate, ficou imobilizada a 1,55 metros da berma, atento o seu sentido de marcha.
25. O veículo PH tem uma largura de 2,138 metros, com os retrovisores incluídos.
26. O veículo Kawasaki conduzido pelo Autor tem a largura de 0,94 metros.
27. Após o acidente, as viaturas ficaram imobilizadas como se descreve no croqui do acidente, sendo certo que o motociclo do autor foi retirado do local, antes da chegada da GNR.
28. Ao local do sinistro deslocou-se a GNR do Posto territorial de ..., tomando conta da ocorrência.
29. Dado que o Autor ficou ferido, foi transportado para o Centro Hospitalar de ... e ..., em ....
30. Nesse local, entre outras coisas, submeteram o condutor do motociclo ao teste de álcool, e ao exame de rastreio em amostra biológica da urina, sendo o resultado positivo a opiáceos, utilizando para isso o equipamento Branan Oratec III, aprovado pela ANSR, que terá sido consequência da medicação que lhe foi dada após o acidente.
31. Do acidente resultaram danos para as viaturas e, bem assim, para o Autor.
32. No âmbito da sua atividade, a Ré celebrou com BB um contrato de seguro do ramo automóvel titulado pela apólice n.º ...13 em que este transferiu para aquela a responsabilidade civil emergente da circulação rodoviária de um veículo ligeiro de matrícula ..-..-BB.
33. O sinistro foi comunicado à Ré, que iniciou um processo de averiguações tendente a verificar o preenchimento dos pressupostos de que depende a sua intervenção.
34. De acordo com peritagem feita pela Ré, os danos na viatura do Autor, ascendem a € 3 984,65 (três mil novecentos e sessenta e cinco euros).
35. A viatura do Autor está imobilizada desde o dia do acidente até à presente data, uma vez que ainda não foi reparada, na oficina S..., Lda., com o NIPC ...90, sita na Av. ..., em ....
36. O Autor ficou privado do uso da viatura a partir do momento do acidente.
37. Diligenciou junto da Ré para obter a reparação do veículo sinistrado.
38. A Ré mandou vistoriar a viatura.
39. A Ré orçou a reparação em € 3 984,65 (três mil novecentos e sessenta e cinco euros).
40. A Ré não aceita a responsabilidade do seu segurado na produção do acidente, pelo que declinou o pagamento.
41. A seguradora da viatura PH, considerou que a responsabilidade pela produção do acidente cabia exclusivamente à viatura BB, segura pela Ré.
42. O Autor, em consequência direta e necessária do acidente, sofreu várias lesões, tendo sido transportado de ambulância para o hospital de ..., inconsciente.
43. Em consequência direta do acidente, o Autor esteve sem trabalhar desde o dia do acidente, 15 de Março de 2019, até ao dia 6 de Janeiro de 2020.
44. O Autor auferiu no ano de 2016 a quantia de € 21 457,66, no ano de 2017 a quantia de € 24 011,87 e no ano de 2018 a quantia de € 28 830,32.
45. À data do acidente, o Autor tinha um vencimento base de € 1 082,00, acrescido de uma quantia fixa de prémio de risco de € 306,00 (paga todos os meses) e de ajudas de custo e subsídios de alimentação, deslocação e noturno de montantes variáveis, mas pagos com caráter de regularidade, num valor médio mensal ilíquido superior a € 2 000,00, a que corresponde uma quantia liquida mensal média de € 1 600,00.
46. No decorrer deste período, mais precisamente no mês Abril de 2019, o seu salário base foi aumentado para € 1 240,00, o que ia, naturalmente, levar ao aumento do seu salário liquido para a quantia média mensal de € 1 800,00.
47. Valores que deixou de auferir em consequência do acidente, até ao dia 6 de janeiro de 2020, data em começou a trabalhar.
48. Durante este período, o Autor não auferiu qualquer quantia a qualquer outro título.
49. Em consequência direta e necessária do acidente, o Autor deu entrada na urgência do hospital de ... apresentando as seguintes lesões: luxação do tornozelo com exposição do mameolo tibial, lesão da artéria tibial posterior e rotura do complexo ligamentar externo; fratura colo do astrágalo; fratura do radio direito; luxação acromioclavicular grau III ombro esquerdo.
50. Esteve internado desde o dia 15 de março ao dia 1 de abril de 2019, num total de 18 dias. Teve um período de défice funcional temporário total fixável em 19 dias; um período de défice funcional temporário parcial de 275 dias e um período de repercussão na actividade profissional total fixável num período total de 294 dias. A consolidação médico-legal das lesões foi fixada em 2.01.2020.
51. Foi submetido a cinco cirurgias, nos dias 16, 25 (duas cirurgias) e 31 de março e 2 de outubro de 2019.
52. Na cirurgia de 16 de março fez inserção de dispositivo de fixação externa com placas rígidas.
53. Nas cirurgias de 25 de março fez redução fechada de fratura com fixação interna, tarso e metatarso e redução aberta de fratura da tíbia e perónio, com fixação interna.
54. Na cirurgia de 31 de março fez redução aberta de luxação de tornozelo.
55. Na cirurgia de 2 de outubro de 2019, feita no hospital de ..., fez extração prótese de fixação interna, tíbia e perónio.
56. Há ainda a possibilidade de o Autor voltar a ser intervencionado ao tornozelo.
57. Em consequência das lesões sofridas, o Autor ficou com um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 15 pontos.
58. O autor não mais conseguirá desempenhar as suas funções com a mesma agilidade que antes do acidente, precisando de um esforço acrescido.
59. O autor é chefe de equipa numa empresa de caminhos-de-ferro, desempenhando funções durante a noite e que exigem força física elevada.
60. Em consequência direta e necessária das lesões sofridas e das intervenções cirúrgicas a foi sujeito, o Autor esteve engessado e andou de canadianas, fazendo marcha com dificuldade e apoio, claudicando e sentindo dores.
61. Ficou impossibilitado de sair de casa e grande parte das coisas que fazia durante o seu dia-a-dia careciam do apoio da sua mulher, mormente para se vestir, despir, tomar banho, levantar-se da cama, o que fez com que se sentisse um incapaz.
62. Sentiu, como sente ainda, dores quando faz esforços com a perna, teve de fazer vários meses de fisioterapia, tendo para tanto, que deslocar-se de ..., local onde mora, para ....
63. As dores que sofre e sofreu, particularmente durante os dias de internamento e nas sessões de fisioterapia, correspondem a um quantum doloris de grau 4 numa escala crescente de 7 graus.
64. Em consequência do acidente e das diferentes intervenções cirúrgicas a que foi sujeito, o Autor ficou com marcas visíveis na pele, mormente no tornozelo, no pulso e na clavícula que não mais vão deixar de existir.
65. Em consequência direta e necessária do acidente, o Autor teve várias consultas no hospital de ... e centro de saúde ..., pelas quais teve que proceder ao pagamento das taxas moderadoras, conforme se descrevem:
- 15/04/2019 - €4,50
- 08/05/2019 - €2,50
- 23/05/2019 - €14,20
- 07/06/2019 - €4,50
- 07/06/2019 - €30,50
- 04/09/2019 - €4,50
- 19/09/2019 - €7,00
- 24/09/2019 - €5,00
- 08/10/2019 - €4,50
- 10/10/2019 - €1,40
- 14/10/2019 - €2,40
- 06/11/2019 - €6,00
- 06/11/2019 - €4,50
- 14/11/2019 - €7,20
- 25/11/2019 - €7,00
- 03/12/2009 - €4,50
- 10/12/2019 - €4,50, num total de € 114,70.
66. Foi ainda submetido a noventa sessões de fisioterapia, bem como uma consulta de fisiatria, na F..., Unipessoal, Lda., tendo despendido a quantia de € 930,00.
67. Uma vez que não podia conduzir, as suas deslocações para as consultas e para a fisioterapia, na sua maioria, foram feitas de táxi, tendo para tanto contratado a L..., Lda., e despendido a quantia de € 1 693,00.
68. A 28 de outubro e 30 de dezembro de 2019 foi consultado no Hospital da ..., Clínica de ..., em consulta de Ortopedia para cálculo da IPP, tendo despendido a quantia de € 420,00.
69. O autor nasceu em ....05.1978.
B- Factos Não Provados:
a) A viatura PH imobilizou-se no local.
b) O Autor de forma brusca, súbita, imprevista e inopinada, transpôs, com o motociclo que circulava o eixo divisório da faixa de rodagem da Estrada Municipal ...3-2.
c) E passa a circular com o motociclo de matrícula ..-..-RU ocupando parte da faixa de rodagem oposta à sua.
d) Sendo certo que o condutor do motociclo de matrícula ..-..-RU, transpôs o eixo divisório da faixa de rodagem da Estrada Municipal ...3-2 e invadiu, a metade esquerda da faixa de rodagem da Estrada Municipal ...3-2, tendo em conta o sentido Vila R... – Vila S..., aí se dando a colisão.
e) O condutor do veículo seguro, a circular na referida via, atento o sentido de marcha Vila R... – Vila S..., deparou-se com o motociclo de matrícula ..-..-RU em sentido contrário, isto é, a circular no sentido Vila S... – Vila R....
f) O Autor fletiu repentinamente o motociclo que conduzia para a esquerda, iniciando a manobra de ultrapassagem a um veículo que se encontrava a circular à sua frente, o veículo de matricula ..-PH-.., sem atentar na presença do veículo seguro, a circular em sentido contrário.
g) Ao condutor do BB, foi-lhe impossível evitar o acidente, dada a forma repentina com que o autor iniciou a ultrapassagem.
h) O condutor da viatura BB conduzia de forma desatenta, não se tendo apercebido que circulava na via a viatura PH e a do Autor e, por isso, conduz pelo meio da estrada.
i) A viatura PH tem uma largura aproximada de 1,60 metros, sendo que as rodas direitas estavam fora do limite do alcatrão sobrando, pelo menos, 1,25 metros de via de trânsito destinada à circulação do Autor.
j) O custo diário de uma viatura de características semelhantes à do Autor é de cerca de € 95,01.
k) Em consequência das lesões sofridas, o Autor ficou com uma incapacidade permanente parcial de 20%, de acordo com o disposto na Tabela Nacional de Incapacidades prevista no DL 352/2007, de 23 de outubro.
l) As dores que sofre e sofreu, particularmente durante os dias de internamento e nas sessões de fisioterapia, correspondem a um quantum doloris de nível 7.
m) O autor sofreu um dano estético de nível 5/7, que tem, como terá, repercussões no seu dia-a-dia, principalmente pela forma como passou a ser visto pelos amigos e família, em particular a sua mulher.
n) Pelas suas duas margens, a faixa de rodagem da Estrada Municipal ...3-2, no Lugar da Estrada, apresentava bermas também pavimentadas em asfalto.
o) O BB circulava com as luzes de cruzamento do veículo (médios) ligadas.
p) Circulava ainda o veículo seguro na Ré o mais à direita da sua hemi-faixa de rodagem.
q) Rigorosamente com os seus rodados direitos a uma distância não superior a 0,50 metros da berma do mesmo lado.
r) O autor circulava a uma velocidade nunca inferior a 80Km/h.
s) Sem assinalar luminosamente a sua intenção de ultrapassar ou contornar os veículos que seguiam ou estavam à sua frente.
t) O motociclo de matrícula ..-..-RU surgiu ao condutor do veículo de matrícula ..-..-BB, de forma súbita e repentina, a uma distância nunca superior a 5 metros.
u) Cortando por completo o sentido de marcha do veículo de matrícula ..-..-BB, conduzido pelo BB.
v) O condutor do veículo seguro na Ré ainda travou a fundo de forma a evitar o embate.
w) Embate esse que ocorreu a cerca de 0,55 metros da linha divisória das duas hemi- faixas de rodagem, tendo em conta o sentido de marcha do BB, uma vez que foi aí que ficaram os vestígios, nomeadamente peças, vidros, plásticos dos veículos.
x) O A. não necessita de reconversão profissional.
y) O condutor do veículo de matrícula ..-..-BB, conduzia o veículo seguro a uma velocidade nunca superior a 30- 40 Km/H, atentas as características da via e do local.
III) Fundamentação de direito
A - Da responsabilidade pelo acidente
Cabe, obviamente, ter presente que a compreensão da dinâmica do acidente – indispensável para a formulação do juízo de censura ínsito à culpa – se tem de fazer em função da matéria de facto atrás assinada – a que resultou do acórdão da Relação de que vem interposto o presente recurso de revista - estando ultrapassada a versão do acidente em que essencialmente se baseou o Exmo Juiz da 1ª instância ao situar o local de embate na faixa de trânsito correspondente ao veículo seguro na R., com o inerente comportamento do A. ter passado a transitar nessa faixa de trânsito.
Lembremos estar em causa um acidente de viação numa EM com 5,70 m de largura, com dois sentidos de trânsito, sem linha longitudinal a demarcar as faixas de rodagem (porque apagada com o tempo), e em que circulavam em sentido contrário, por um lado, no sentido Vila S.../Vila R..., o A., com a Kawasaki RU, e à sua frente, o ligeiro de mercadorias PH, e por outro, no sentido Vila R.../..., o BB, também ele ligeiro de mercadorias.
Resulta dos factos provados que, em determinada altura, numa curva à esquerda, atento o sentido de marcha do BB, curva essa com razoável visibilidade e (com piso) ligeiramente descendente, o referido veiculo circulava ocupando parcialmente a hemi-faixa de rodagem contrária ao seu sentido de marcha, e que o PH, porque viu o BB a ocupar parte da sua faixa de rodagem, se encostou à berma, com ambas as rodas do lado direito já fora do asfalto, para evitar que aquele lhe embatesse, sendo que o condutor do RU, que, como se referiu, seguia atrás do PH, ao verificar que a viatura PH se encostou à berma, seguiu a sua marcha, iniciando a manobra de ultrapassagem do PH pela hemi-faixa em que circulava, atento o seu sentido, sem se aperceber da presença do BB a circular em sentido contrário ocupando parcialmente essa mesma hemi-faixa. –factos 13 a 16. Dizendo-se, no subsequente facto 17, que, «nesse momento, apercebendo-se que o veículo BB circulava em sentido contrário ocupando parcialmente a sua hemi-faixa de rodagem, o motociclo RU veio a embater no farolim traseiro do lado esquerdo do PH, dando-se, de seguida, o embate entre a frente do motociclo por si conduzido na frente esquerda do veículo de matrícula ..-..-BB. E no seguinte facto 18, que, o embate se deu junto ao eixo da via, porque, como resulta do imediato facto 19, O condutor do veículo seguro na Ré “guinou” o mais à direita possível o veículo automóvel que conduzia, de forma a evitar o embate».
Face a esta matéria de facto, entendeu o Tribunal da Relação, ancorado no pressuposto, que se tem por indiscutível em matéria de acidentes de viação, de que estes se constituem, por definição, como fenómenos dinâmicos 1, que foi o facto do BB circular «imediatamente antes do embate a ocupar parcialmente a hemi faixa de rodagem contrária por onde circulavam o motociclo do A. e o veiculo PH (que o precedia)», que «gerou e ocasionou quer a manobra do PH, que direccionou o seu veículo para a berma direita atento o seu sentido para evitar que aquele BB consigo colidisse, quer a subsequente manobra do RU que, vendo o veiculo PH afastar-.se para a berma e sem que se apercebesse da presença do BB a circular em sentido contrário na sua (RU) hemi-faixa, iniciou a manobra de “ultrapassagem “ do PH, dando-se o embate de seguida».
Melhor sustentando este ponto de vista quando assinala que, «tratando-se de um motociclo com uma altura de assento baixa em relação à altura total do veiculo que o precedia, a manobra de ultrapassagem deste veiculo (que se afastou para a berma) surge, com alta probabilidade, porque o condutor do RU não se apercebe, num momento inicial, da presença do BB a ocupar parcialmente essa hemi faixa do PH e do RU», referindo em parêntesis, que «poderá até, como refere com asserto o condutor do PH nas suas declarações, ter o condutor do RU pensado que o RH lhe estava a dar passagem». E mais refere o acórdão, em abono do seu entendimento, ser «tal situação absolutamente consonante com o facto de que no momento em que inicia a ultrapassagem, o RU embate no farolim traseiro do lado esquerdo do PH (veja-se que o farolim traseiro do veiculo ligeiro de mercadorias Renault kangoo se situa na “quina” esquerda traseira do veiculo) evidenciando que se terá apercebido nesse momento da presença do BB a ocupar parcialmente a sua hemi-faixa», concluindo «que a invasão, ainda que parcial da hemi -faixa do PH e do RU foi o elemento influenciador da dinâmica subsequente dos veículos PH e RU e dos comportamentos destes», e atribuindo ao condutor do BB a violação do disposto no art 13º/1 e 18º/2 do CE.
Em função deste percurso argumentativo e, valendo-se do que há muito se consolidou na jurisprudência em matéria da responsabilidade civil por factos ilícitos decorrentes de acidentes rodoviários- a prova da inobservância de leis ou regulamentos estradais faz presumir a culpa na produção dos danos decorrentes de tal inobservância, dispensando a prova da concreta falta de diligência -, concluiu que «não tendo a R. logrado provar factos que permitissem demonstrar que essa actuação violadora das normas estradais foi estranha à vontade do seu segurado, autor dessas contravenções, ou tão pouco que não foi causal do acidente, deverá arcar com toda a culpa na produção do sinistro nos autos».
Tanto mais que entendeu, na sequência das observações atrás referidas, que «a factualidade provada, no contexto sequencial descrito em que surge o embate, não permite, outrossim, evidenciar um comportamento censurável do condutor do motociclo (RU), atentas as circunstâncias concretas e imprevisíveis em que se deparou com a presença do BB, a circular em contra mão ocupando parcialmente a hemi-faixa de rodagem por onde o RU circulava e que se mostrava liberta pelo PH (que nesse momento se havia encostado totalmente a berma) não fora a conduta contra-ordenacional do BB ao ocupa-la.»
Tem, no entanto, este tribunal opinião diversa, embora sem embargo da manifesta conduta contra-ordenacional do BB já referida.
Se foi, obviamente, causal do acidente a circunstância do BB ter “cortado a curva” que se lhe apresentava à esquerda invadindo a hemi faixa de rodagem em que circulavam os veículos PH e RU, foi também causal do acidente, o facto do condutor do RU não se ter apercebido da presença do BB a circular em sentido contrário ocupando parcialmente essa mesma hemi-faixa, quando a isso estava naturalmente obrigado se circulasse com atenção, porque, efectivamente, nada consta da matéria de facto que em rigor lhe retirasse essa possibilidade, e apenas se tivesse apercebido dessa presença quando tinha já tomado a iniciativa de seguir a sua marcha e iniciar a manobra de ultrapassagem do PH pela hemi-faixa em que circulava, atento o seu sentido. Foi apenas «nesse momento»- já subsequente ao inicio da ultrapassagem - que se apercebeu que o veículo BB circulava em sentido contrário ocupando parcialmente a sua hemi-faixa de rodagem, o que terá motivado que tivesse embatido primeiro no farolim traseiro do lado esquerdo do PH, e depois embatesse no BB junto ao eixo da via, visto que entretanto este, corrigira já, parcialmente, a sua trajectória para a sua direita.
Não pode, pois, obliterar-se a manobra efectuada pelo condutor do motociclo RU que, do nosso ponto vista, não deixa de corresponder ao conceito legal de ultrapassagem, não obstante não ser realizada na hemi-faixa contrária ao sentido seguido, mas ainda dentro daquela em que seguia, aqui se repristinando, em parte, o entendimento da 1ª instância nas duas sentenças proferidas.
Como resulta do art 36º do CE, a ultrapassagem deve efetuar-se pela esquerda, como regra geral, estabelecendo o art 38º, a respeito da realização dessa manobra, que «o condutor de veículo não deve iniciar a ultrapassagem sem se certificar de que a pode realizar sem perigo de colidir com veículo que transite no mesmo sentido ou em sentido contrário» (nº 1), e que, «o condutor deve, especialmente, certificar-se (entre o mais) de que: a) A faixa de rodagem se encontra livre na extensão e largura necessárias à realização da manobra com segurança; b) Pode retomar a direita sem perigo para aqueles que aí transitam» (nº 2), estabelecendo o nº 3, que, «Para a realização da manobra, o condutor deve ocupar o lado da faixa de rodagem destinado à circulação em sentido contrário (…)».
È que, na dinâmica do acidente, tal como a mesma resulta dos factos provados – concordando-se com a Relação quando assinala que «tudo se passa em segundos» 2– os três veículos encontravam-se em progressão simultânea: o veiculo RH não estava parado na berma quando o motociclo o avistou, mas seguiam ambos na mesma direcção quando o mesmo encostou à berma, o que implica o necessário movimento para esse efeito. Só, porque distraído, o condutor do RU poderia pensar que tal seria uma “cortesia” para lhe facilitar a ultrapassagem e não uma manobra de recurso para não colidir frontalmente com o BB que vinha fora de mão. E ainda que - admita-se sem convicção -, a largura e altura do PH não lhe permitissem visualizar a totalidade da semi-faixa de rodagem, porque seguisse do lado direito da sua hemi-faixa, e que, por isso, não lhe fosse possível visualizar a marcha do BB, nem por isso poderia ter iniciado a manobra de ultrapassagem sem se certificar de que a poderia realizar sem perigo de colidir com veículo que transitasse em sentido contrário, devendo, especialmente, certificar-se de que a faixa de rodagem se encontrava livre na extensão e largura necessárias à realização da manobra com segurança – referido art 38º CE.
Entende-se, pois, que os dados objectivos disponíveis, valorados à luz das regras do direito estradal, permitem-nos concluir que a R. demonstrou factos de que decorre que o acidente de viação se não ficou a dever à sua exclusiva culpa, mas também à culpa do A. lesado, procedendo, neste concreto conspecto, a revista.
Há que proceder à repartição da culpa, quando concorrente, em função da ilicitude ínsita a um e a outro dos comportamentos contra-ordenacionais e a maior ou menor causalidade que, em concreto, implicaram no desenlace do sinistro.
A ilicitude de um e outro comportamento estradal dir-se-á que se equipara, mas, indiscutivelmente, o nível de causalidade implicado na conduta condutiva do BB é muito superior, pois que se não se encontrasse a circular fora de mão, o acidente certamente não teria ocorrido, afigurando-se-nos adequado, nesta perspectiva, graduar as culpas em 80% para o condutor do BB e 20% para o A.
B - Dos montantes indemnizatórios
Dano Biológico
Relativamente aos montantes indemnizatórios, apreciar-se-á, primeiro, a adequação do referente ao dano biológico.
Contrapõe a R. ao valor de € 70.000,00 fixado pela Relação, o de € 50.000,00.
Importa nesta matéria ter presente que o A., à data do acidente, com 41 anos de idade, ficou com um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 15 pontos, sendo que em função das concretas sequelas implicadas nesse défice não mais conseguirá desempenhar com a mesma agilidade do que antes do acidente as funções que exerce como chefe de equipa numa empresa de caminhos-de-ferro, precisando de um esforço acrescido.
O que significa que ficou com sequelas compatíveis com o exercício da sua actividade profissional habitual, mas que implicam esforços suplementares no respectivo exercício.
Está em causa a afectação do lesado na sua capacidade laboral genérica, que é uma das situações que reclama a tutela do designado dano biológico 3. A ideia é a de compensar as vítimas «em nome do princípio da reparação integral dos danos» e «diversamente do que sucedia no passado», «não apenas pela perda de capacidade laboral específica para a profissão exercida à data do evento lesivo, mas também pela perda de capacidade laboral geral que as afectará ao longo do resto da sua vida» 4.
Daí que se deva atender à esperança média de vida do lesado (à data do acidente) e não à sua previsível idade de reforma, na medida em que a afectação da capacidade geral tem repercussões negativas ao longo de toda a vida do lesado, tanto directas, como indirectas 5.
O dano biológico consiste numa lesão na integridade do sujeito enquanto pessoa, na sua globalidade psicofísica, representando uma alteração morfológica do lesado, nas palavras do já remoto Ac R P 07.04.19976, «limitativa da sua capacidade de viver a vida como a vivia antes do acidente por violação da sua personalidade humana».
Enquanto dano que implica a lesão da integridade físico psíquica do lesado - integridade psicofísica que é tutelada no art 25º/1 da CRP e no art 70º/1 CC- constitui-se ontologicamente como matriz dos restantes danos que dele são consequência, sendo que enquanto que estes outros danos ulteriores podem ter natureza temporária, o dano evento subsiste, marcando irrevogavelmente a integridade física do lesado.
Na categoria do dano biológico em que nos movemos – aquele em que as sequelas no exercício da actividade profissional da vitima à data do evento se mostram compatíveis com o exercício da actividade habitual, mas implicam esforços suplementares – percebe-se, facilmente, que tendo o dano em causa óbvia repercussão no ânimo do lesado nas actividades da sua vida diária familiar e social, e, por isso, devendo ser também valorado em sede de danos não patrimoniais, tal dano implica uma significativa vertente patrimonial, falando-se, a esse nível de rebate profissional. E este constitui-se como um dano futuro de ordem patrimonial, que, porque previsível, merece autónoma ressarcibilidade, pois, ainda que não impeça o lesado de continuar a trabalhar, e que, por isso, dela não resulte perda de vencimento, pelo maior sacrifício e penosidade que lhe implica o exercício da profissão afecta indirectamente a respectiva potencialidade de ganho, podendo interferir também na progressão na função ou dificultar a mudança de profissão, suprimindo-lhe ou restringindo-o de aceder a outras oportunidades profissionais, podendo, inclusivamente, reflectir-se na necessidade que o mesmo venha a sentir de aceder mais cedo à reforma.
«A perda relevante de capacidades funcionais – mesmo que não imediata e totalmente reflectida no valor dos rendimentos pecuniários auferidos pelo lesado – constitui uma verdadeira “capitis deminutio” num mercado laboral exigente, em permanente mutação e turbulência, condicionando-lhe, de forma relevante e substancial, as possibilidades de exercício profissional e de escolha e evolução na profissão, eliminando ou restringindo seriamente a carreira profissional expectável - e, nessa medida, o leque de oportunidades profissionais à sua disposição, - erigindo-se, deste modo, em fonte actual de possíveis e futuramente acrescidos lucros cessantes, a compensar, desde logo, como verdadeiros danos patrimoniais».7
O dano biológico é sempre indemnizável, em si mesmo, como dano futuro, independentemente da sua categorização dogmática como dano patrimonial, não patrimonial ou um tertium genus, mas na jurisprudência surge mais frequentemente ressarcido em função da sua vertente patrimonial, procurando encontrar-se, para tanto, o valor da perda da capacidade geral de trabalho.
Fala-se, a esse nível, de danos patrimoniais indetermináveis 8, sendo que quando não exista, como sucede no caso dos autos, limites de danos que o tribunal tenha dado como provados 9, apenas através da equidade é possível a fixação da indemnização devida, ainda que o julgador se possa servir de cálculos matemáticos para balizar aquele seu juízo.
Do que não se deverá abdicar nesse juízo, é da consideração de decisões judiciais sobre casos análogos, com vista a alcançar uma decisão razoável, que respeite o princípio da igualdade e o da segurança jurídica.
Desiderato este, para que inegavelmente contribui a consideração dos mesmos factores que têm sido evidenciados, como os seguintes 10: a idade do lesado e a consequente ponderação da esperança média de vida à data do sinistro; o seu grau de incapacidade geral permanente; as suas potencialidades de aumento de ganho, antes da lesão, tanto na profissão habitual, como em profissão ou actividades económicas alternativas, aferidas, em regra, pelas suas qualificações e competências; a conexão entre as lesões físico-psíquicas sofridas e as exigências próprias da actividade profissional habitual do lesado, assim como de actividades profissionais ou económicas alternativas (também aqui tendo em conta as suas qualificações e competências.
Refere o acórdão recorrido enquanto «factos relevantes do caso concreto, por forma à aferição do dano em apreciação»:
-Em consequência direta e necessária do acidente, ocorrido em 15.03.2019, o Autor deu entrada na urgência do hospital de ... apresentando as seguintes lesões: luxação do tornozelo com exposição do mameolo tibial, lesão da artéria tibial posterior e rotura do complexo ligamentar externo; fratura colo do astrágalo; fratura do radio direito; luxação acromioclavicular grau III ombro esquerdo.
-O autor, à data do acidente, exercia a actividade profissional como chefe de equipa numa empresa de caminhos-de-ferro, desempenhando funções durante a noite e que exigem força física elevada.
- Em consequência das lesões sofridas, o Autor ficou com um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 15 pontos.
- O autor não mais conseguirá desempenhar as suas funções com a mesma agilidade que antes do acidente, precisando de um esforço acrescido.
- Em consequência das lesões sofridas o autor sentiu, como sente ainda, dores quando faz esforços com a perna.
- O autor nasceu em 16.05.1978.
- O autor retornou ao trabalho em 6.01.2020.
Ponderou o tribunal recorrido os valores encontrados pela jurisprudência em situações próximas à dos presentes autos, elencando, para o efeito, várias decisões 11.
Vindo a concluir, em função das circunstâncias concretas do caso em apreciação - a idade do autor, 41 anos à data do acidente, a data da alta, a expectativa de vida de acordo com os dados do INE, situada nos 78,1 anos e, portanto, considerando uma vida activa de mais 37 anos, o respectivo défice funcional de 15 pontos, a sua actividade profissional e salário auferido, a repercussão dos danos na sua vida pessoal e de laser, os quais são determinantes de consequências negativas ao nível da actividade geral do lesado, quer os actos do seu dia a dia, quer a actividade profissional - ter «por ajustado e em linha com os padrões da jurisprudência, a valoração do dito dano biológico pela incapacidade funcional do autor/recorrente, na quantia de 70.000,00€ (setenta mil euros)».
Tem sido considerado pelo Supremo Tribunal de Justiça que «a aplicação de puros juízos de equidade não traduz, em bom rigor, a resolução de uma “questão de direito”»12. E que, por isso, quando este tribunal é chamado a pronunciar-se sobre “o cálculo da indemnização” que “haja assentado decisivamente em juízos de equidade”, não compete ao Supremo Tribunal de Justiça «a determinação exacta do valor pecuniário a arbitrar (…), mas tão somente a verificação acerca dos limites e pressupostos dentro dos quais se situou o referido juízo equitativo, formulado pelas instâncias face à ponderação casuística da individualidade do caso concreto “sub iudicio”».
Mas, como tem sido igualmente evidenciado, a equidade não dispensa a observância do princípio da igualdade, o que obriga ao confronto com indemnizações atribuídas em outras situações. Referindo-se a este respeito que, «Os tribunais não podem nem devem contribuir de nenhuma forma para alimentar a ideia de que neste campo as coisas são mais ou menos aleatórias, vogando ao sabor do acaso ou do arbítrio judicial. Se a justiça, como cremos, tem implícita a ideia de proporção, de medida, de adequação, de relativa previsibilidade, é no âmbito do direito privado e, mais precisamente, na área da responsabilidade civil que a afirmação desses vectores se torna mais premente e necessária, já que eles conduzem em linha recta à efectiva concretização do princípio da igualdade consagrado no artº 13º da Constituição» 13.
À margem da jurisprudência seleccionada pelo tribunal recorrido sempre se dirá que se encontram outros exemplos de decisões em situações de facto similares às dos autos que apontam para um valor pelo dano biológico mais consentâneo com o fixado por aquele tribunal.
Assim e por exemplo:
- Ac STJ 01.03.2023, proc 10849/17.0T8SNT.L1.S1, em que está em causa um lesado com 43 anos à data do sinistro; com défice funcional permanente de integridade físico-psíquica de 15%; sem impossibilidade do exercício da actividade profissional, mas com esforços acrescidos no seu desempenho, passando a registar limitação nas tarefas profissionais que obrigam a permanência prolongada na posição de sentado (por exemplo, trabalho à secretária ou exercício da condução), com impossibilidade de realização de viagens de trabalho longas; auferindo no anterior emprego a remuneração no valor bruto de € 110 238,05, que passou agora, no seu novo emprego, para montante sensivelmente inferior; tendo perdido a oportunidade de manter uma carreira ao nível em que se encontrava ao tempo do acidente e de vir a desenvolvê-la em termos de valorização profissional.Tendo-se entendido como equilibrada e equitativa a fixação da indemnização de € 115 000,00 a título de dano biológico (incluindo perda da capacidade de ganho no valor de € 40 000,00);
-Ac STJ 25.05.2017, proc 2028/12.9TBVCT.G1.S1, em que está em causa um lesado com 41 anos à data do acidente; com défice funcional permanente da integridade físico psíquica fixado em 29 pontos; exercia profissão (trolha na construção civil) que exige elevados níveis de força e destreza físicas, tendo as lesões sofridas determinado, que ficasse com dificuldade de marcha, não consiga “acelerar” o passo, correr, agachar-se ou mesmo colocar-se de joelhos; com dor no joelho direito, tal como na região lombar, tipo “moedeira”, permanente, agudizada com esforços de carga e marcha, que o obrigam a tomar diariamente analgésicos; tendo ficado a padecer ao nível do membro inferior direito de limitação da flexão do joelho a 110º . Tendo-se entendido justo e adequado fixar em € 170.000 a indemnização por perda geral de ganho/dano biológico.
- Ac STJ 16.1.2024, proc 3527/18.4T8PNF.P2, em que está em causa um lesado com 27 anos de idade à data do acidente; com défice funcional permanente da integridade físico psíquica fixado em 15 pontos; que, por virtude das sequelas de que ficou a padecer, ficou impossibilitado de exercer a sua profissão habitual (carpinteiro de cofragem), na qual auferia retribuição anual global de €20.636,70, ainda que continuando a poder trabalhar, com menor remuneração, noutro ramo de actividade (motorista). Tendo-se entendido justo e adequado fixar em € 170.000 a indemnização para ressarcir o dano patrimonial futuro.
Mais, em função dos casos aqui referidos do que relativamente aos seleccionados no acórdão recorrido, entende-se ser de concluir que a indemnização fixada por aquele acórdão se compreende no padrão indemnizatório actualista e evolutivo seguido por este tribunal, pelo que não cabe censurar o montante ali determinado.
Danos Não Patrimoniais
Relativamente aos danos não patrimoniais sofridos pelo A., entendeu o tribunal da Relação indemnizá-los em função da atribuição patrimonial de € 29.000, pugnando a R./recorrente pelo valor de 18.000 €, que entende que reflecte melhor (de forma equitativa) a importância dos valores não patrimoniais afectados com as lesões que contraiu.
Lembrou o tribunal recorrido que os danos não patrimoniais «afectam bens não patrimoniais (bens da personalidade), insusceptíveis de avaliação pecuniária ou medida monetária, porque atingem bens, como a vida, a saúde, a integridade física e bem estar, a perfeição física, a liberdade, a honra, a beleza, de que resultam o inerente sofrimento físico e psíquico, o desgosto pela perda, a angústia pela vivência de determinada situação, os vexames, o sofrimento causado pelas dores, pelos tratamentos, intervenções e cirurgias, tudo constituindo prejuízos que não se integram no património do lesado, apenas podendo ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente, sendo mais uma satisfação do que uma indemnização, assumindo o seu ressarcimento uma função essencialmente compensatória, de modo a atenuar o sofrimento derivado das lesões e a amenizar a dor física e psíquica sofrida, razão pela qual, quanto a estes, a sua avaliação não poderá ser balizada pela teoria da diferença» . E evidenciou deverem «ser valorizados os diversos componentes do mesmo, quer ao nível do sofrimento/dor no período de doença, com tratamentos, intervenções cirúrgicas, internamentos, a analisar através da extensão e gravidade das lesões e da complexidade do seu tratamento clínico; o “dano estético”, que simboliza o prejuízo anátomo-funcional associado às deformidades e aleijões que resistiram ao processo de tratamento e recuperação da vítima; a privação das satisfações e prazeres da vida, como sejam, a renúncia a actividades extraprofissionais, desportivas, lúdicas ou artísticas; o dano respeitante à inserção social do lesado, nas suas variadas vertentes (familiar, profissional, sexual, afectiva, recreativa, cultural, cívica); os danos irreversíveis na saúde e bem-estar da vítima».
Tendo recorrido à equidade como único critério utilizável para alcançar a compensação pelos danos em causa – art 496º/4 14 - houve que ponderar as circunstâncias referidas no art 494º, por remissão do nº 3 do art 496º do CC, em que avulta a dimensão da lesão e a importância do bem jurídico violado, fazendo concreta referência, «a todo o sofrimento quer em termos objectivos com os tratamentos (já realizados e futuros), intervenções cirúrgicas (no caso cinco), consultas, períodos de incapacidade com relevância assinalável e dores sofridas acima do ponto médio (4 em 7 pontos), também o sofrimento psicológico do autor, na plenitude da vida e que à data do acidente contava 41 anos e cujas sequelas necessariamente se repercutem na sua imagem e vivência social, com todas as consequências que as sequelas carreiam nas limitações que destas decorrem como dano moral».
Como acima já se referiu a propósito da indemnização do dano biológico, porque a aplicação de puros juízos de equidade não traduz, em bom rigor, a resolução de uma “questão de direito”, quando o Supremo Tribunal de Justiça «é chamado a pronunciar-se sobre “o cálculo da indemnização” que “haja assentado decisivamente em juízos de equidade”, não lhe “compete a determinação exacta do valor pecuniário a arbitrar (...), mas tão somente a verificação acerca dos limites e pressupostos dentro dos quais se situou o referido juízo equitativo, formulado pelas instâncias face à ponderação casuística da individualidade do caso concreto «sub iudicio» 15.
Não obstante, evidencia-se, como se viu também a respeito da indemnização do dano biológico, que, na sequência do estabelecido no art 8º/3 do CC, «a sindicância do juízo equitativo não afasta a necessidade de ponderar as exigências do princípio da igualdade, o que aponta para uma tendencial uniformização de parâmetros na fixação judicial das indemnizações, sem prejuízo da consideração das circunstâncias do caso concreto».
Importa, pois, verificar, se a compensação que o tribunal da Relação fixou para os danos de natureza não patrimonial acima referidos se não revela «colidente com os critérios jurisprudenciais que generalizadamente vêm sendo adoptados, em termos de poder pôr em causa a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade», sempre tendo em consideração que os danos de natureza patrimonial devem ser condignamente compensados, devendo a natureza e a intensidade das lesões servir como factor-base da ponderação.16
Convocam-se aqui, para o efeito, as decisões jurisprudências citadas no recente acórdão deste tribunal de 19.09.2024 (proc. 347/21.2T8PNF.P1.S1), todas consultáveis em www.dgs.pt, que apresentam similitude com a situação em causa nos autos, e em que foi fixada compensação pelos danos não patrimoniais em quantias superiores.
Assim:
-No acórdão de 11.01.2024, proc. 76/13, considerou-se proporcional aos danos não patrimoniais sofridos pela Autora/sinistrada, com 37 anos de idade à data do acidente, com défice funcional de integridade psíquico-físico de 9 pontos; consolidação das lesões cerca de 3 anos após o acidente, “quantum doloris” avaliado em 4 numa escala de 7; submetida a terapêuticas medicamentosas agressivas durante cerca de um ano, apresenta um quadro de humor depressivo, com episódios de ansiedade, necessitando de apoio psicológico, e deixado a prática desportiva (caminhadas e bicicleta), a indemnização de € 45.000,00.
-No acórdão de 07/05/2024, proc 807/18, considerou-se equitativa a quantia de € 55.000,00 a título de danos não patrimoniais, no quadro factual em que o sinistrado tinha 37 anos à data do acidente e 40 anos à data da consolidação das lesões; com défice funcional de integridade psíquico-físico de 17 pontos; “quantum doloris” de grau 6/7; dano estético de grau 3/7; repercussão na actividade sexual de grau 3/7; repercussão na actividade desportiva e de lazer de grau 3/7; irritabilidade constante, desconforto e ansiedade.
- No acórdão 07.4.2016, considerando que a vitima (i) esteve internada durante três semanas, tendo mantido o repouso após a alta hospitalar; (ii) passou a ter incontinência urinária; (iii) as suas lesões estabilizaram em 13-04-2012; (iv) o quantum doloris foi fixado em 4 numa escala de 1 a 7; (v) o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica foi fixado em 8%; (vi) as sequelas são compatíveis com o exercício da actividade habitual mas implicam esforços suplementares; (vii) o dano estético foi fixado em 3 numa escala de 1 a 7; (viii) a repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer foi fixada em 1 numa escala de 1 a 7; (ix) sofreu angústia de poder vir a falecer e tornou-se uma pessoa triste, introvertida, deprimida, angustiada, sofredora, insegura, nervosa, desgostosa da vida e inibida e diminuída física e esteticamente, quando antes era uma pessoa dinâmica, expedita, diligente, trabalhadora, alegre e confiante, fixou-se a compensação, a título de danos não patrimoniais, no montante de € 50 000.
- No acórdão 09.05.2023 relativamente a lesado com 33 anos e 6 meses na data do acidente, portador de um Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica de 6 pontos, Quantum doloris fixável no grau 4/7, Dano estético Permanente fixável no grau 3/7, Repercussão Permanente na Actividades Desportivas e de Lazer fixável no grau 4/7 , fixou-se a compensação por danos não patrimoniais em € 40.000,00.
Constatando-se que também aqui o valor fixado pelo tribunal recorrido para os danos não patrimoniais não contrasta com os montantes acima indicados, mantendo-se dentro dos critérios jurisprudenciais que vêm sendo adoptados para situações similares na recente jurisprudência, há que manter a indemnização arbitrada.
C) - Repartição das indemnizações arbitradas
Atendendo ao grau de culpa que atrás se atribuiu ao A. na eclosão do acidente - 20% - caberá à R. seguradora suportar em 80% o valor dos montantes indemnizatórios fixados.
Em primeiro lugar, no referente ao de € 24.142,35, que respeita aos danos por reparação do veiculo, perdas salariais e outras despesas; depois, referentemente aos acima referidos, respectivamente, de € 70.000,00 e € 29.000,00, pelo dano biológico e pelos danos não patrimoniais.
Cabendo à R. suportar 80% desses valores, deverá a mesma ser condenada a pagar ao A. os valores, respectivamente, de 19.313,88, € 56.000,00 e € 23 200,00, logo, o montante global de € 98.513,88.
IV) DECISÃO
Pelo exposto, julga-se a revista parcialmente procedente, revogando-se correlativamente o acórdão recorrido, condenando a R. a pagar ao A. a quantia de € 98.513,88. (noventa e oito mil quinhentos e treze euros e oitenta e oito cêntimos), mantendo o demais decidido.
As custas, na revista e nas instâncias, serão suportadas por A. e R., na proporção do vencimento e decaimento.
Lisboa, 26 de Novembro de 2024
Maria Teresa Albuquerque (Relatora)
Cristina Coelho
Luís Correia de Mendonça
_____________________________________________
2. - Como se acentua no Ac STJ de 20.01.2010, atrás citado, «como fenómeno dinâmico que é, um qualquer acidente e viação, o seu processo causal não é, muitas vezes, de fácil apreensão, impondo.se ao julgador uma tarefa mental de recreação ou reconstituição a partir de todos os elementos disponíveis carreados ao processo, já não para atingir a evidência ou a certeza integral, mas para chegar aquele grau de probabilidade bastante para fundar uma convicção, para consentir as crenças quanto às causas do evento».↩︎
3. - Como a reclamam, segundo Maria da Graça Trigo, O conceito de dano biológico como concretização jurisprudencial do principio da reparação integral dos danos - Breve contributo, “Julgar”, nº 46, 2022, os lesados de menor idade que, em razão da idade, não exercem qualquer profissão no momento do evento danoso, e os que, em razão de circunstâncias várias de idade, saúde, dedicação à família etc, não exercem profissão à data da ocorrência da lesão.↩︎
4. - Maria da Graça Trigo, artigo atrás citado, p 269.↩︎
5. - Cfr, por exemplo, Ac STJ 12.01.2022, Proc 6158/18.5T8SNT.L1.SI, acessível em www.dgsi.pt↩︎
6. - CJ Ano XXII, Tomo II, 1997, p.204↩︎
7. - Veja-se, à cabeça, o Ac STJ 20.05.2010, proc. 103/2002.L1S1, ou ainda o Ac STJ de 10.10.2012, proc. 632/2001.G1.S1, do mesmo relator, e tantos outros, mais recentes deste Tribunal, vg, 07.03.2023, proc. 766/19.4T8PVZ.P1.S1; 14.03.2023, proc. 11575/18.8T8LSB.C1.S1; 04.07.2023, proc. 342/19IT8PVZP1.S1;11.01.2024, proc. 713/15.9T8SNT.L1.S1; 07.05.2024, proc. 817/18.2T8VFR.P1.S1↩︎
8. Cf. Ac STJ 14/12/2016, proc. 246/12.9TBMMV.CL.S1↩︎
9. - Se o tribunal tiver dado como provados factos referentes aos danos, o tribunal, no juízo equitativo, actuará «dentro dos limites que tiver por provados», nos termos do nº 3 do art 566º CC , Ac 14.12.2016, proc. 37/13,oTBMTR.G1.S1; 01.03.2018, proc. 773/07.OTBALR,E1.S1; 12.01.2022, proc. 6158/18.5T8SNT.L1.S1↩︎
10. -Ac 12.01.2022, atrás referido. No mesmo sentido, Ac 20.10.2011, proc. nº 428/07.5TBFAF.G1.S1, de 10.10.2012, proc. nº 632/2001.G1.S1, de 07.05.2014, proc. nº 436/11.1TBRGR.L1.S1, de 19.02.2015, proc. nº 99/12.7TCGMR.G1.S1, de 04.06.2015, proc. nº 1166/10.7TBVCD.P1.S1, de 07.04.2016↩︎
11. - Concretamente, as seguintes:
-Ac. STJ de 24-02-2022, lesado 34 anos à data do sinistro; défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 9 pontos tendo apenas sido feita prova do seu rendimento anual ao tempo do acidente (€ 7.798,00); com elevada probabilidade, as lesões por ele sofridas terão significativa repercussão negativa sobre o desempenho da profissão de serralheiro, fixou-se o valor da indemnização pelo denominado “dano biológico” em € 50.000,00.
- Ac. STJ de 30.06.2020, lesado de 49 anos na data da alta, que ficou a padecer de incapacidade permanente geral de 12 pontos que obriga a esforços suplementares no exercício da atividade profissional habitual e que aufere um rendimento anual líquido de € 11.877,84. Foi fixado o valor de 30.000€ - por dano biológico [Revista n.º 313/12.9TBMAI.P1.S1 - 1.ª Secção (Cível)]
- Ac. S.T.J. 17.10.2019, lesado com 35 anos à data do acidente; Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica de 11 pontos, que implica esforços suplementares e maior penosidade no desempenho de atividades profissionais, bem como restrições à realização de atos normais da vida corrente, familiar e social; à data do acidente, exercia a atividade de motorista de transportes públicos, que não ficou impossibilitado de continuar a exercer, foi fixada em 40.000,00€ - indemnização a título de dano biológico [ac. STJ. Rel. Maria Olinda Garcia, 17.10.2019, Revista n.º 3717/16.4T8STB.E1. S1 - 6.ª Secção (Cível)];
- Ac. STJ 14.12.2016, lesado com 43 anos de idade à data do acidente; IPP de 11 pontos; limitação que se repercute na sua actividade profissional (agente de inseminação artificial de bovinos) com um esforço suplementar; e esforços acrescidos para o exercício das actividades comuns, foi considerado que a indemnização pelo dano biológico, na vertente patrimonial, poderia ascender – em função dos parâmetros adoptados pelo STJ – a quantia superior a € 30 000; porém, não tendo o autor recorrido do acórdão da Relação, fica a mesma limitada ao valor de € 22 000 que aí foi fixado a esse título.
- Ac. R.P. de 9.12.2020, lesada com 53 anos; empregada doméstica; défice funcional permanente na integridade físico-psiquica de 11 pontos, sem repercussão na actividade profissional mas com esforços acrescidos, foi atribuída uma indemnização pelo dano biológico na vertente de dano patrimonial de € 22.000€;
- Ac. STJ de 12.10.2023, Processo 1969/19.7T8PTM.E1.S1, in www.dgsi.pt tratando-se de uma mulher com 47 anos de idade à data do acidente, a sua esperança de vida laboral e biológica, bem como o nível de limitação de que passou a ser portadora, que, de forma indelével, a marcou na sua personalidade e na sua capacidade para o desenvolvimento da sua actividade laboral, sendo certo que deixou de trabalhar em 2020 (sendo que à data do acidente, em 2017, auferia o salário mensal de € 1330€, acrescido de subsídio de alimentação de €6.60 diários, tendo no ano de 2018 passado a auferir o salário mensal de € 1360 e o subsídio de alimentação de €6.80), e o défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica fixável em 15 pontos de que portadora, ainda a circunstância de a Autora ter perdido a sua natural alegria de viver, mercê das sequelas no corpo e no espírito para o resto da vida, o dito “pretium juventutis, deixando de poder fazer as viagens de lazer que fazia mensalmente, também as deixando de fazer como guia turística, devido às lesões sofridas e incapacidade provocada por elas, tornando-se uma mulher angustiada, amargurada, instável e frustrada, mercê da incapacidade de que se viu definitivamente vitimada, pois as lesões serão permanentes, sob o ponto de vista da plena realização das suas tarefas, deixando de ter a vida ativa e plena que gozava antes do acidente, revela-se adequado o montante indemnizatório fixado pelo Tribunal recorrido em 65.000,00 €, correspondente aos danos biológico e futuros sofridos pela Autora.
- Ac. STJ de 21.03.2013, processo 565/10.9TBPVL.S1, in www.dgsi.pt num acidente de viação ocorrido em 10 de março de 2009, lesado com 47 anos, sofreu traumatismo da cervical com afetação de C6 e C7 e várias escoriações pelo corpo, ficando a padecer de uma incapacidade permanente geral de 15 pontos com esforços acrescidos, auferia como profissional de seguros a remuneração ilíquida mensal de 1.071,68€, e enquanto único trabalhador independente na impressão e venda de brindes publicitários auferia um lucro não concretamente apurado, sendo, porém, o rendimento global de 35.000€, em que 50% corresponde ao custo da matéria prima, foi fixada uma indemnização no montante de 60.000€ (sessenta mil euros).
- Ac. STJ de 12.12.2023, processo 393/17.0T8PVZ.P1.S1, in www.dgsi.pt que fixou a indemnização pelo dano biológico em 54.000,00€, lesada de 33 anos à data do acidente, (e uma esperança de vida aproximada de 50 anos) uma IPG de 15% e um vencimento mensal de €679).↩︎
12. - Cfr. Ac STJ 06.4.2015, proc. nº 1166/10.7TBVCD.P1.S1, com remissão para o acórdão de 28.10.2010, proc. nº 272/06.7TBMTR.P1.S1, e para o acórdão de 05.11.2009, proc. nº 381/2002.S1, todos consultáveis em www.dgsi.pt. Por todos, Ac STJ, Proc 1330/17.8T8PVZ.P1.S1, em cujo sumário se refere: « Esse «juízo de equidade das instâncias, alicerçado, não na aplicação de um estrito critério normativo, mas na ponderação das particularidades e especificidades do caso concreto, não integra, em bom rigor, a resolução de uma questão de direito, pelo que tal juízo prudencial e casuístico das instâncias deverá, em princípio, ser mantido. IV – Só assim não acontecerá, se o julgador se não tiver contido dentro da margem de discricionariedade consentida pela norma que legitima o recurso à equidade – muito em particular, se o critério adoptado se afastar, de modo substancial e injustificado, dos critérios ou padrões que generalizadamente se entende deverem ser adoptados, numa jurisprudência evolutiva e actualística, abalando, em consequência, a segurança na aplicação do direito, decorrente da necessidade de adopção de critérios jurisprudenciais minimamente uniformizados e, em última análise, o princípio da igualdade». ↩︎
13. - Ac STJ de 21.02.2013, proc. n.º 2044/06.0TJVNF.P1.S1; Ac 21.01.2021, proc 6705/14.1T8LRS.L1.S1↩︎
14. - Entre tantos, cfr Ac STJ de 28.01.2016, proc. 7793/09.8T2SNT.L1.S1, consultável em www.dgsi.pt:↩︎
15. - Cita-se aqui o Ac STJ de 06.04.2015, proc. 1166/10.7TBVCD.P1.S1, que remete para o de 28.10.2010, proc. 272/06.7TBMTR.P1.S1 e para o de 05.11.2009, proc. 381/2002.S1; cfr também o de 10.11.2022, proc 239/20.2T8VRL.G1.S1↩︎
16. - Ac STJ de 14.02.2023, proc. 4452/130TBVLG.P1.S1; Ac STJ 14.03.2023, proc. 11575/18.8T8LSB.L1.S1↩︎