A alegação de factos essenciais na petição não se pode fazer mediante a remessa para documentos inelegíveis
Acordam, em conferência, os Juízes da 1ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça:
Refere que do acórdão em análise consta o seguinte:
“ (…) Reclamou, ainda, o valor de €189.001,80, equivalente a todos os demais alugueres que seriam devidos até ao final do contrato, valor que tendo em consideração que a requerente adquiriu o bem locado para benefício da requerida e tendo em conta a necessidade de compensar os danos emergentes, nomeadamente com o investimento patrimonial perdido pela requerente como resultado da perda de valor do equipamento, custos financeiros com o investimento é equipamento novo objecto da locação e custos administrativos com a celebração e manutenção do contrato .
Todavia, a Autora não alegou nem provou as disposições do contrato que fundamentam a resolução (convencional) e o pedido de pagamento dos alugueres vincendos até ao termo do contrato, tendo-se limitado a remeter para condições gerais que se mostram ilegíveis.”
Porém, sustenta, a afirmação que este Supremo Tribunal faz no sentido de a Autora não ter alegado nem provado as disposições do contrato que fundamentam a resolução convencional e o pedido de pagamento dos alugueres vincendos até termo do contrato, tendo-se limitado a remeter para as condições gerais que se mostram ilegíveis, está em total contradição com vários fundamentos de facto e de direito da decisão invocados várias vezes ao longo do mesmo acórdão.
Assim, invoca que do facto provado com o nº 25 consta: “Em 12.06.2013, entre a Autora e a Ré foi celebrado o contrato de locação n.º...60, cujo objecto era a “Solução Xerox” para disponibilização e manutenção de equipamentos, com uma renda mensal de € 4.846,20 (quatro mil oitocentos e quarenta e seis euros e vinte cêntimos), conforme documentos de fls. 93-97 e 135-139, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais; o facto provado com o nº 30: “Desse contrato resultou para a Ré, que assim aceitou e se comprometeu, a obrigação de amortizar integralmente o custo de aquisição dos equipamentos, de suportar as despesas de execução, do lucro estimado e de restituir o bem locado à Autora após cessação do contrato”.
Refere, ainda, que ao longo da fundamentação da decisão, este Supremo Tribunal alude em várias passagens ao teor do contrato, bem demonstrando que analisou as respetivas cláusulas, aceitando inclusive a qualificação do contrato feita pelo Tribunal da Relação do Porto. É o que sucede quando escreve “a qualificação jurídica do contrato de 12.6.2013 não é motivo de dissenso entre as partes. Assim, considera-se que o contrato em causa é um contrato misto que reúne elementos do contrato de locação e outros de um contrato de locação financeira. Ou seja: é essencialmente um contrato de locação, com uma “particularidade” que o aproxima do tipo locação financeira, na medida em que a “renda abrange o reembolso do investimento efectuado pelo locador, o lucro por este perseguido e as despesas do contrato e é o locatário a escolher os bens e o fornecedor a quem o locador os terá de adquirir” e “outra que o afasta dele, por não existir, no final, opção de compra”. Afigura-se-nos adequada a caracterização do contrato, à qual não opomos, assim, reservas. “
Ou ainda: “É verdade que do contrato constam tais dizeres, que foram assinados pela locatária, designadamente o de que o bem locado lhe foi entregue completo. Pode, nessa medida, argumentar-se que, fazendo o contrato força probatória plena, tal teria de implicar a alteração da factualidade (…)
Considera, portanto, que as passagens do acórdão a que alude e que integram a respectiva fundamentação (de facto e de direito), são totalmente incongruentes com o facto de o Supremo Tribunal vir depois referir que a Autora não alegou nem provou as disposições do contrato que fundamentam a resolução e o pedido de pagamento dos alugueres vincendos, tendo-se limitado a remeter para condições gerais ilegíveis, pois o Supremo Tribunal chegou o inclusivamente a dizer que o contrato dos autos faz força probatória plena.
Como assim, considera que o acórdão é, neste particular, nulo, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 615º, nº 1, c) do CPC.
Porém, não existe qualquer contradição entre a decisão e os fundamentos.
A qualificação jurídica do contrato a que se procede resulta do alegado na petição, dos factos provados e do teor legível dos documentos. Não resulta das condições gerais, que são, de facto, ilegíveis.
É verdade que se refere que do “contrato constam tais dizeres, que foram assinados pela locatária, designadamente o de que o bem locado lhe foi entregue completo “ e que se pode argumentar que “fazendo o contrato força probatória plena, tal teria de implicar a alteração da factualidade (…)”
Porém, os “dizeres” a que se alude no acórdão não constam das condições gerais. Resultam, como do acórdão se vê, do doc. nº 1 junto com o requerimento de 07.03.2019 (que é legível) e do ponto 25 da matéria de facto provada.
E, por isso, a força probatória do contrato a que se alude se reporta a tais dizeres que constam do contrato (que é legível nessa parte) e não às condições gerais que dele constam mas cujo conteúdo essencial para a definição dos direitos (designadamente o da resolução) não foi alegado nem é legível.
Como assim, não se verifica qualquer nulidade por oposição entre os fundamentos e a decisão.
Subsidiariamente, a arguente suscita a reforma quanto à mesma decisão, por ter existido manifesto lapso na determinação da norma aplicável e na qualificação jurídica dos factos, existindo documentos que só por si impõem decisão diversa.
Assim, entende que só por mero lapso o Tribunal pode dizer que: a) a Autora não alegou nem provou as disposições do contrato que fundamentam a resolução (convencional) e o pedido de pagamentos dos alugueres vincendos até ao termo do contrato: b) que as condições gerais se mostram ilegíveis.
Assim, e quanto à legibilidade das condições gerais. entende que, fazendo o contrato dos autos prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor (in casu, dois autores), isto nos termos do disposto no art. 376º do Código Civil (sendo que a ré arguiu a nulidade da cláusula que prevê que em caso de incumprimento a locadora tem direito às rendas vincendas durante todo o período contratual) e tendo em conta o facto 25º , não se pode afirmar que as condições gerais se encontram ilegíveis pois, se assim fosse, não teria seguramente conseguido fazer a qualificação jurídica do contrato ou mesmo afirmar que o mesmo faz prova plena quanto aos respetivos dizeres.
Afrontando, desde logo, o facto 25, verifica-se que o mesmo remete para os “documentos de fls. 93-97 e 135-139, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais”.
Relativamente a esta técnica de mera remissão para documentos tem-se entendido: que ela tem apenas o alcance de dar como provada a existência desses documentos, meios de prova, e não o de dar como provada a existência de factos que com base neles se possam considerar como provados (cfr. Acs. STJ de 3.10.91, BMJ, nº 410, pág. 680, de 29.11.95, BMJ nº 451, pág. 313, de 1.02.95, Col. STJ Ano III, Tomo I, pág. 264, de 3.05.95, Col. STJ . Ano III, Tomo II, pág. 277); que os documentos não são factos, mas meios de prova de factos (cfr. Ac. STJ de 22.4.2015, proc. 2663/10.0TTLSB.L1.S1 e Ac. STJ 4.2. 2010, proc. 155/04.5TBFAF.G1.S1); e que não satisfaz à discriminação dos factos provados “a remessa para documentos, dados como reproduzidos e provados o que deles consta, se nada se explicitar quanto ao seu conteúdo, pois os documentos não são mais que um meio de prova destinado a demonstrar a realidade de certos factos, pelo que na matéria de facto provada só há que consignar os factos eventualmente provados por eles” (cfr. Ac. STJ de 29.11.1995, proc. 004268).
Acresce, porém, aqui, no caso sub judice, um outro problema: o facto 25 remete para um contrato cujas condições gerais são ilegíveis, sendo que o teor dessas condições - que se reporta ao conteúdo fundamental do direito de resolução do contrato, do qual resultam as consequências que foram pedidas- não foi sequer alegado.
Ora, reportando-se os fundamentos da resolução a factos essenciais que integram a causa de pedir (art. 552º, nº 1, al. d) do CPC), a sua alegação e prova não podem fazer-se mediante a remessa para documentos ilegíveis.
Quanto à qualificação jurídica do contrato e à força probatória do mesmo, renova-se aqui a afirmação de que a primeira resulta dos factos provados e do teor dos documentos que são legíveis e de que a segunda se circunscreve à parte conhecida e provada do contrato e não à parte dele que respeita às ditas condições gerais fundamentadoras do pedido de resolução e suas consequências.
Para fazer jus aos alugueres vincendos, alega a requerente que resolveu o contrato de locação, por carta registada que enviou à requerida e que esta recebeu como resultou provado (cfr. factos provados 25., 29., 30., 31., 33.. 34., 35. e 36.); e que reclamou, por via da aludida carta, à requerida, o pagamento das facturas vencidas, bem como dos custos de aviso e demais despesas inerentes ao contrato, os juros de mora às taxas convencionadas, e o valor de € 189.001,80, este equivalente a todos os alugueres que eram devidos até ao termo do contrato (sendo este valor devido tendo em consideração que a requerente adquiriu o bem locado para beneficio da requerida e tendo em conta a necessidade de compensar os danos emergentes, nomeadamente, com o investimento patrimonial perdido pela requerente como resultado da perda de valor do equipamento, custos financeiros com o investimento em equipamento novo objecto da locação e custos administrativos com a celebração e manutenção do contrato, tudo conforme decorre das condições gerais do contrato aceites pelas partes). Alega, ainda, que o motivo da resolução do contrato resulta plasmado sobretudo no facto provado nº 35 (35. A Autora resolveu o contrato de locação por carta registada que enviou à Ré e que esta recebeu com fundamento na falta de pagamento dos alugueres), sendo que as consequências contratuais do incumprimento estão plasmadas nas cláusulas contratuais acima transcritas (mormente cláusula 16º) e que foram reproduzidas nas peças processuais produzidas pela Autora, tendo o contrato bem como todo o seu teor integrado a matéria de facto provada, como resulta do facto provado nº 25.
Porém, como já se frisou, o contrato não faz prova plena relativamente às condições gerais, que não foram alegadas pela autora (e apenas remetidas para documentos ilegíveis).
Alega-se que a ré não colocou em causa o teor do contrato nem a ilegibilidade das cláusulas tendo até arguido a nulidade da cláusula 16ª, do seguinte teor: “ Tendo em consideração que o locador adquiriu o bem locado para benefício do locatário e tendo em conta a necessidade de compensar os danos emergentes , nomeadamente, com o investimento patrimonial perdido pelo locador como resultado da perda de valor do equipamento, custos financeiros com o investimento em equipamento novo objeto de locação e custos administrativos com a celebração de manutenção deste contrato, caso o locador exerça o seu direito de cessação sem aviso prévio o ou o caso o locatário cesse o contrato de acordo com a secção 12, o locador poderá exigir o pagamento de todos os alugueres até ao fim da do contrato”.
Todavia, tais circunstâncias não precludem a necessidade de alegação que não foi feita e, em todo o caso, da remessa para documentos legíveis. O Supremo Tribunal não pode ser obrigado a “ler” documentos cujo teor só as partes conhecem.
Como assim, não existe qualquer lapso (e muito menos manifesto) na afirmação de que os documentos dos autos em causa são ilegíveis e na asserção de que a Autora não alegou as disposições do contrato que fundamentam a resolução convencional e o pedido de pagamento dos alugueres vincendos até ao termos do contrato.
Não está em causa que a Autora tenha resolvido o contrato com fundamento na falta de pagamento dos alugueres, facto que se mostra provado. O que se mostra em causa é antes o não conhecimento cabal dos fundamentos e das consequências da resolução previstos no contrato, sobretudo no que respeita aos alugueres vincendos exigidos até ao termo do contrato,, sendo certo que a situação não se enquadra nos pressupostos da mencionada cláusula 16ª que se reporta ao caso de o locador “exercer o seu direito de cessação sem aviso prévio” e ao caso de o “ locatário cessar o contrato de acordo com a secção 12ª”( sem que, no caso, se conheça o teor da cláusula que permite ao locador exercer “o seu direito de cessação sem aviso prévio”).
Argumenta a requerente que ainda que inexistisse qualquer cláusula penal no contrato, ainda assim este Supremo Tribunal não podia deixar de lhe fixar a indemnização devida em consequência do incumprimento do contrato pela locatária, indemnização esta que nunca poderia ser inferior ao valor dos alugueres contratados até ao termo do contrato, por ser claramente esse prejuízo que a Autora teve com o incumprimento do contrato pela ré, por ser isso o que resulta inequivocamente do disposto no art. 798º do Código Civil .
Porém, a indemnização pedida não é a que resulta do mero incumprimento: é a que resulta da resolução do contrato por incumprimento. Do mero incumprimento do contrato pela locatária, não resulta, necessariamente, a pedida indemnização não inferior ao valor dos alugueres contratados até ao termo do contrato. A resolução é a fundada em convenção, nos termos acordados pelas partes, com as consequências previstas no contrato (art. 432º do CC).
Ainda no que respeita à indemnização pela não devolução do bem locado correspondente ao valor dos alugueres contratados até ao termo do contrato considera a requerente que o Supremo Tribunal devia ter aplicado o art. 1045º, nºs 1 e 2 do CC, o que só não terá sucedido por evidente lapso.
Porém, também aqui não existe qualquer lapso.
A Autora pediu o pagamento das rendas vincendas até ao final do contrato não em consequência do atraso na restituição dos bens locados, a que respeita o art. 1045º do CC, mas em consequência da resolução convencional com fundamento na falta de pagamento das rendas (rectius, alugueres). A causa de pedir reporta-se, assim, à resolução convencional, subordinada a requisitos próprios, que obedecem, como se disse, aos termos acordados pelas partes. E era à Autora que competia provar os fundamentos da resolução e das suas consequências, objectivo que não logrou alcançar.
Não se verificou, por isso, qualquer lapso na determinação das normas aplicáveis.
Pelo exposto, acorda-se em indeferir a arguição da nulidade e o pedido de reforma do acórdão proferido nos autos.
Custas pela requerente, com a taxa de justiça de 3(três ) UCs.
António Magalhães (Relator)
Manuel Aguiar Pereira
Jorge Arcanjo