CONHECIMENTO DO MÉRITO NO DESPACHO SANEADOR
PONDERAÇÃO DAS DIFERENTES SOLUÇÕES PLAUSÍVEIS DE DIREITO
Sumário

I - O conhecimento imediato do mérito no despacho saneador só é legítimo se o processo possibilitar esse conhecimento, o que não ocorre se existirem factos controvertidos que possam ser relevantes segundo as soluções plausíveis da questão de direito.
II - Ao despacho saneador (proferido no âmbito do art. 61º, nº 2 do CPT) não cabe antecipar qualquer solução jurídica e, muito menos, desconsiderar quaisquer factos que sejam relevantes segundo outros enquadramentos possíveis do objecto da acção.
III – Ou seja, não se deve passar desde logo ao conhecimento do mérito, com base naquele normativo, se esse conhecimento apenas tiver na base alguns dos elementos alegados, com omissão porém da discussão da causa de factos, também alegados, nessa fase ainda controvertidos, indispensáveis para a apreciação do mérito, ponderando as diferentes soluções plausíveis de direito.
IV - De modo que, se os elementos fornecidos pelo processo não justificarem essa antecipação, o processo deve prosseguir os seus ulteriores termos, realizando-se após a instrução, a apreciação do mérito na sentença final.

Texto Integral

Proc. Nº 3846/23.8T8AVR.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro Juízo do Trabalho de Aveiro - Juiz 2
Recorrente: AA
Recorridos: BB e outros

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO
A A., AA, contribuinte fiscal n.º ..., residente na Rua ..., ... ..., Ovar, instaurou acção declarativa sob a forma de processo comum, emergente de contrato de trabalho contra o Réu, BB, residente na Travessa ..., ..., Lugar ..., ... ..., na qual requer que seja julgada totalmente procedente, por provada e, em consequência, peticiona o seguinte:
“a) Reconhecer o(s) contrato(s) de trabalho supra descrito(s);
b) Condenar o Réu no pagamento dos créditos emergentes do(s) referido(s) contrato(s) de trabalho e não pagos, acrescidos de juros de mora e/ou actualização monetária, referentes a:
i. Remuneração;
ii. Dias de férias vencidas e não gozadas, bem como o respectivo subsídio;
iii. Subsídio de Natal;
iv. Trabalho suplementar prestado em dias úteis, Domingos e em feriados obrigatórios;
v. Dias de férias vencidos e não gozados;
relegando-se a liquidação de tais valores para ampliação do pedido ou liquidação de sentença, tudo com as demais consequências legais, designadamente quanto a custas.”.
Mais, requereu a citação urgente do Réu, para o caso e com os fundamentos expostos nos artigos 90º a 92º desta P.I.
Fundamenta o seu pedido alegando, em síntese, como se lê na decisão recorrida que, “em 1957, foi admitida com 13 anos ao serviço da família ... (composta por CC, DD e a respetiva filha menor de idade EE) como criada de servir, tendo-lhe sido prometido um salário de 100 escudos, acrescido de alojamento e alimentação.
Alega, ainda, que passou a ali residir e tomar as refeições e a cultivar os terrenos da família, a recolher pasto para o gado, a tratar dos animais e, bem assim, a tratar das lides da casa da família (limpeza e roupa). Afirma que o fez com periodicidade diária, inicialmente começando o dia por volta das 5h30 da manhã, e que trabalhava mais de 10 a 12 horas por dia, com exceção do domingo, em que, depois da missa, se trabalhava até à hora de almoço. E que as tarefas eram feitas pelos 4.
Nos primeiros 3 anos, ainda terá tratado dos pais do sr. CC, que se encontravam muito debilitados/acamados, ajudando-os na sua alimentação, movimentação e higiene.
Explica que, após ter casado, em 1973 (16 anos depois), saiu da casa da família ... e passou a viver com o marido numa casa arrendada, mantendo as suas rotinas de trabalho iguais, apenas tendo deixado de ali comer e pernoitar, regressando a casa pelas 20h ou 21h.
A autora alega que nunca recebeu o salário prometido ou qualquer outro valor e que aquilo que o patrão CC lhe dizia era que, quando esta se casasse, lhe dava um terreno onde poderia construir a sua própria casa, como forma de retribuição, o que aceitou por ser menor de idade, de condição modesta e origens humildes, não tendo alternativa.
Explica que após ter casado, começou a falar no terreno e que o casal ... dizia que trataria do assunto, mas o tempo foi passando.
Relata que em data que não se recorda, teve de pernoitar cerca de duas semanas em casa da família ... para cuidar do patrão, que se encontrava debilitado e acabou por falecer, após o que regressou a sua casa.
Adia que nesse momento iniciou uma segunda fase da sua vida laboral, pois o mesmo trabalho passou a ser feito por 3 (em vez de 4 pessoas) e que, de vez em quando questionava DD acerca da retribuição prometida e que esta lhe assegurou que mantinha a promessa do terreno para construir a sua casa. Promessa essa que nunca se concretizou.
Acrescenta que, em 1995 ou 1996, após DD ter sofrido um AVC, que a impossibilitou de continuar a realizar o trabalho doméstico e de gerir o que quer que fosse, se iniciou uma terceira fase da sua vida de trabalho, pois passou a ser responsável também pela preparação das refeições, estando praticamente sozinha a tratar de tudo o resto, o que fazia diariamente. Alega que nessa fase uma quantidade significativa do trabalho foi sendo aliviada, pois os terrenos foram dados a cultivar a outros, deixaram de ter vacas e porcos, mantendo apenas galinhas e animais domésticos e a roupa para lavar e passar reduziu. Nesse momento passou a fazer companhia a EE, passando a ser o seu grande apoio.
Alega que, quando questionava EE pelo pagamento do seu trabalho, essa sempre lhe disse que honraria a promessa dos seus pais e que, além disso, lhe deixaria algum ouro, que havia herdado da sua mãe.
Em 2022, foi diagnosticado a EE um cancro, tendo esta transmitido à autora a informação de que iria fazer um testamento, e que a incluiria neste, para lhe deixar, por esta via, o prometido terreno e as jóias em outro. Explica que passou a fazer-lhe os curativos e as tarefas básicas diárias de higiene e alimentação de EE, tendo passado a pernoitar na sua casa para a poder apoiar, tarefas que acresceram às que já tinha.
Que em outubro de 2022 passou a ter o apoio de uma enfermeira para os tratamentos e curativos necessários, tendo EE falecido em 02 de novembro de 022, após o que o réu se lhe apresentou como sendo o único e universal herdeiro testamentário.
Conclui que executava as tarefas na residência e nos terrenos da família, sempre em benefício dos seus membros e sob a direção, instruções e fiscalização com recurso aos materiais e equipamentos desta família. Alega a existência de contrato de trabalho que caducou com a morte de EE, e que inicialmente era agrícola e doméstico e, depois, se reduziu ao trabalho doméstico.
Afirma que lhe é devido o valor de 100$00 mensais até à instituição do salário mínimo nacional (em 1974), e que a isso acrescerão o alojamento e as refeições e, também, os direitos a férias e subsídio correspondente a partir do mesmo ano, em que foram instituídos. Que nunca gozou férias. E que lhe é devido trabalho suplementar, pois foi instituída a jornada diária de 8 horas, aplicável aos trabalhadores agrícolas desde 1962, e a partir de 1996, tal limite passou a ser de 40 horas semanais.” (fim de citação).

*
Deferido que foi o pedido de citação urgente do requerido e designada a realização da audiência de partes, ficou a mesma sem efeito, nos termos que constam da acta datada de 13.11.2023, tendo a Mª Juíza “a quo” proferido o seguinte despacho:
“Face à informação constante no site dos CTT, fica sem efeito a audiência de partes.
Aguarde a devolução do expediente, repetindo a citação agora com a nova data, e com cópia da presente ata, designando-se, desde já, o próximo dia 05 de Dezembro, pelas 10:50 horas, para a realização da audiência de partes, de acordo com a disponibilidade de agenda do ilustre mandatário da autora.
*(…).
Ao abrigo dos princípios da economia processual e da adequação formal, antecipa-se o convite de aperfeiçoamento que seria dirigido à autora em momento ulterior (cf. o artigo 61.º do Código de Processo do Trabalho e que sempre poderia ter sido feito de acordo com o artigo 54.º do mesmo diploma, e que não se fez atenta a urgência na citação), fazendo-o neste momento, para que junte aos autos articulado de aperfeiçoamento da petição inicial, onde conste a concretização/quantificação de cada um dos pedidos.
Com efeito, a mesma é absolutamente genérica na alegação, designadamente quanto aos valores peticionados, quanto ao n.º de dias de férias por gozar em cada ano, e quanto ao valor que a autora auferia em cada momento, devendo ser suprida a insuficiência, para que dela passem a constar todos os valores de cada um dos pedidos, porquanto não se justifica remeter para incidente de liquidação de sentença algo que é quantificável neste momento. Na verdade, o incidente de liquidação de sentença destina-se a liquidar algo já alegado e concretizado cabalmente e só se justifica nos casos em que a quantificação da alegação não é viável ab initio ou mesmo até ao final da audiência de discussão e julgamento.
Ademais, os valores em causa terão reflexo no valor da ação.
O convite poderá ser cumprido na nova data de audiência de partes.
(…).
*
Notifique.”.
*
Conforme consta da acta datada de 05.12.2023, nesta data ocorreu o “Adiamento” da Audiência de Partes, dado o réu ter apresentado uma habilitação de herdeiros e um testamento, onde constam outros legatários, …, tendo no mesmo acto, a Mª Juíza “a quo” proferido o seguinte despacho:
“Atendendo a que os legatários de EE, alegada entidade patronal da aqui autora, além do réu, são, ainda, as pessoas indicadas pelo réu nesta diligência – a saber: FF, GG e HH –, como decorre da habilitação de herdeiros e testamento juntos agora pela mandatária do réu e cuja junção se admite, determino que a presente audiência de partes prossiga no próximo dia 8 de janeiro de 2024, pelas 09:30 horas, … –, ordeno ainda a citação de FF, GG e HH, para comparecerem pessoalmente no dia e hora acima referidos ou, na impossibilidade de comparência, para se fazer representar por mandatário judicial com poderes especiais para confessar, desistir ou transigir, e para os representar em audiência de partes, sob pena de, não sendo justificada a falta, ser condenada como litigante de má fé (cf. artigo 54.º, n.ºs 3 e 5 do Código do Processo de Trabalho).
Instrua as citações com os duplicados da petição inicial e cópia dos documentos que a acompanham – artigo 54.º do Código de Processo de Trabalho.
Advirta da necessidade de patrocínio judiciário.
Notifique.”.
*
Na nova data, a A. juntou o articulado de aperfeiçoamento da petição inicial e como consta da acta de 08.01.2024, realizada a audiência de partes, não foi possível a sua conciliação, nela ficando consignado o seguinte:
“Aberta a audiência, pedida a palavra pelo mandatário da autora e sendo-lhe concedida no seu uso disse:
1º - No início da anterior audiência de partes tendo sido suscitado pelo réu a questão da sua ilegitimidade em virtude da existência de demais herdeiros e tendo sido determinado o seu chamamento aos autos foi suspensa a aludida audiência para que nesta data pudesse a mesma ter continuação já com todos os demandados.
Nessa mesma audiência por faltarem ainda os herdeiros que iriam ainda ser chamados a autora não apresentou no imediato a P.I. aperfeiçoada, aguardando o início da audiência com todas as partes para o fazer até porque nessa data já a tinha e da qual deu conhecimento informal à mandatária do réu.
Requer-se por isso a V.ª Ex.ª que malgrado qualquer lapso de entendimento da autora quanto ao que seria o momento adequado para a junção do articulado seja relevado por isso se digne a aceitar a P.I. aperfeiçoada que ora se junta.
(…).
Seguidamente, a Sr.ª Juiz proferiu o seguinte:
DESPACHO
Sem prejuízo da decisão que oportunamente se proferirá sobre a tempestividade do requerimento de junção do articulado aperfeiçoado da autora, concede-se aos réus oportunidade para se pronunciarem sobre a matéria, o que devem fazer no prazo da contestação.
(…).
Notifique.”.
*
Os RR. vieram, nos termos do requerimento junto em 18.01.2024, com os fundamentos que neste alegam, dizer que, notificados da nova petição apresentada pela autora no dia 08.01.2023, invocam a intempestividade da sua apresentação e requerer o respetivo desentranhamento, e restituição à autora.
*
Após, em 22.01.2024, os RR. vieram apresentar contestação, por excepção e impugnação, onde, como se lê, na decisão recorrida, “Iniciam por alegar a manifesta inviabilidade/improcedência da ação, por a petição inicial não conter factos suficientes para que se possa concluir pela existência de um contrato de trabalho, por não conter identificação da retribuição, elemento essencial do contrato de trabalho.
Alegam que a autora não invocou a distribuição dos legados, por forma a que os pedidos possam ser imputados aos réus, nessa qualidade, e que não aproveitou o convite ao aperfeiçoamento para aperfeiçoar a sua petição inicial convenientemente.
Acrescentam que falta nexo lógico entre a causa de pedir e os pedidos, que redundam numa manifesta inviabilidade da ação, que permite conhecer de imediato do mérito da causa.
Por cautela de patrocínio, defende-se alegando que o acordo entre a autora e a família ... foi substituído por uma promessa de terreno, o que não configura contrato de trabalho, e que a autora não alega qualquer vínculo contratual com EE, não elencando os elementos típico do contrato de trabalho.
Acrescentam a prescrição dos créditos referentes aos dois primeiros vínculos, terminados em 1995 e em 2001.
Invocam a caducidade do contrato por força da reforma da autora por velhice, e por força da impossibilidade absoluta e definitiva do alegado contrato, em virtude da obesidade e dificuldades de locomoção e movimentação da autora, que inviabiliza o desempenho das funções que invoca.
Alegam a prescrição dos créditos que peticiona com fundamento na impossibilidade de prova, atento o disposto no artigo 337.º, n.º 2 do Código do Trabalho.
Terminam pugnando pela inexistência de contrato de trabalho, antes sim de uma relação de amizade e proximidade quase familiar, com prestação de serviços pela autora, e alegando o abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, por ter estado 65 anos sem reclamar quaisquer créditos, vindo agora fazê-lo.” (fim de citação).
E, concluem: “Perante a factualidade alegada pela autora, atento o quadro normativo aplicável à pretensão formulada, falta o nexo lógico entre a causa de pedir e os pedidos, pelo que existe manifesta inviabilidade da ação, que permitirá a V. Exa. conhecer, de imediato, do mérito da causa, proferindo sentença que julgue a ação totalmente improcedente e não provada e que absolva os réus BB e FF dos pedidos formulados pela autora.
Com a exposta fundamentação, deverá proferir-se sentença que julgue a ação totalmente improcedente e não provada, e que absolva os réus BB e FF dos pedidos formulados pela autora.
Sem conceder, e por mera cautela de patrocínio:
Deve julgar-se procedente a invocada exceção da prescrição, com a consequente absolvição dos réus BB e FF dos pedidos no segmento dos alegados créditos relativamente a CC e a DD, alegadas entidades patronais da autora.
Deverá julgar-se procedente a alegada exceção de caducidade em 12.12.2008 do contrato alegadamente celebrado com EE, exceção que os réus BB e FF invocam e requerem que seja declarada.
Deverá julgar-se procedente a alegada exceção de prescrição, porquanto se mostram prescritos os alegados créditos reclamados pela autora, nos termos do nº 1 do art.º 337º do Código do Trabalho, prescrição que os réus BB e FF invocam e requerem que seja declarada por V. Exa., com a consequente absolvição dos réus BB e FF dos pedidos deduzidos pela autora.
Deverá julgar-se procedente a alegada exceção de caducidade, pois os réus invocam que o alegado contrato de trabalho com EE cessou por caducidade em setembro de 2022, nos termos do art.º 343º alínea b) do Cód. Trabalho, por impossibilidade absoluta e definitiva de a autora prestar quaisquer serviços a EE.
Deve, em qualquer caso, a ação ser julgada improcedente, e, em consequência, os réus BB e FF devem ser absolvidos dos pedidos.
Sem conceder, e por cautela de patrocínio, devem julgar-se prescritos o reclamado crédito correspondente a dias de férias alegadamente não gozadas e respetivo subsídio, o reclamado crédito por trabalho suplementar, vencidos há mais de cinco anos, e, em consequência, devem julgar-se improcedentes os pedidos formulados relativamente aos mesmos.
Com a exposta fundamentação, a presente ação deve ser julgada totalmente improcedente e não provada, e, em consequências os réus BB e FF devem ser absolvidos dos pedidos formulado pela autora.
Pelo exposto ocorre a exceção perentória do abuso de direito, extintiva do direito a que a autora se arroga, devendo proferir-se decisão que absolva os réus dos pedidos formulados pela autora na presente ação.”.
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Notificada da contestação, em 24.01.2024, a A., veio apresentar o requerimento, junto em 08.02.2024, onde informa e requer, em síntese, o seguinte:
“Chegado o processo a esta fase em que deverá Vª.Exª. proferir despacho pré-saneador, nos termos do artigo 61º nº1 do CPT, e podendo não ser convocada audiência prévia, a Autora apresenta o presente requerimento para as seguintes finalidades:
(…)
c) requerer o depoimento de parte da Ré GG, aos factos alegados nos artigos 1º a 48º, 51º, 54º, 56 e 77º da P.I. (factos que por serem do conhecimento directo da Ré admitem confissão), depoimento este que não poderia ter sido requerido na P.I. já que a intervenção da Ré depoente apenas foi suscitada e admitida em fase ulterior;
d) informar, por fim, que a Autora pretende responder à matéria de excepção deduzida pelos RR. BB e FF nos termos previstos no artigo 60º nº5 do C.P.T., se não for antes convidada para esse efeito.”.
*
De seguida, conclusos os autos, em 14.02.2024, a Mª Juíza proferiu o seguinte despacho:
“Atenta a quantia de exceções invocadas pelos réus, ao abrigo do disposto nos artigos 3.º, n.º 3, 6.º, 130.º e 547.º do Código de Processo Civil, ex ui o artigo 1.º, n.º 2, al. a), do Código de Processo do Trabalho, notifique a autora para, em 10 dias, responder às mesmas – a saber:
- intempestividade do aperfeiçoamento,
- manifesta improcedência da ação,
- prescrição dos créditos (em relação aos empregadores originários e ainda por cessação dos serviços em setembro de 2022),
- caducidade do contrato (por morte dos empregadores originários, por doença com impossibilidade definitiva de prestação de atividade da autora, por reforma por velhice da autora),
- abuso de direito.
Mais deverá a autora, nesse prazo, querendo, juntar aos autos os documentos de que disponha para prova dos créditos de que se arroga com antiguidade superior a 5 anos.”.
*
Notificado aquele despacho, a autora veio responder, em 29.02.2024, nos termos do requerimento, refª 15812638, como se lê na decisão recorrida, reiterando “a tempestividade da apresentação do articulado aperfeiçoado, na medida em que a audiência de partes continuou, ainda, numa terceira data, e em que o despacho de convite referiu que o mesmo podia ser cumprido na audiência de partes.
Contraria o argumento da manifesta improcedência da ação, afirmando que a admitir-se a improcedência com base no fundamento da ausência do elemento retribuição, tal corresponderia a uma lacuna para a legalização do trabalho escravo.
Acrescenta que a presunção de laboralidade do artigo 12.º do Código do Trabalho não exige a verificação de todos os indícios.
Esclarece que não alargou os pedidos aos demais réus porque isso extravasaria o convite do Tribunal, e que o convite foi cumprido em momento anterior à situação de litisconsórcio.
Contraria a possibilidade de conhecimento imediato do mérito da causa e a apreciação da manifesta inviabilidade da ação, por inexistir qualquer exceção que a tanto conduza.
Contraria a caducidade dos créditos, por os novos empregadores terem sucedido aos anteriores e porque EE assumiu a posição dos seus pais. Nega por isso a prescrição e a caducidade dos créditos que peticiona, e acrescenta que a caducidade invocada pelos réus por impossibilidade física da autora de cumprir as suas funções não corresponde exatamente à realidade pois continuou a ser capaz de fazer algumas tarefas, e que, tendo permanecido em funções após fazer 70 anos, o contrato se convolou em contrato a termo.
Reconhece a impossibilidade de prova por documento escrito dos créditos com mais de 5 anos, e declara reduzir o pedido formulado, dele excluindo tais créditos.
Acrescenta que não deve proceder a exceção de prescrição com fundamento em não terem sido peticionados os créditos contra a ré FF, pois à data não sabia que esta era legatária, sendo que a perceção de que o réu era herdeiro universal lhe foi incutida pelo próprio. Diz que instaurou a ação em tempo com base na realidade que conhecia, assim interrompendo o prazo prescricional, sendo que não entende como possível concluir-se pela renúncia do direito quanto a um interveniente e não quanto a outro.
Conclui rejeitando a existência de abuso de direito, pois se há expectativas legítimas a acautelar, são da autora que trabalhou sem receber.” (fim de citação)
Termina afirmando que, “deverão as exceções invocadas pelos Demandados e não aceites pela Autora, sejam julgadas totalmente improcedentes.”.
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Após, em 09.04.2024, a Mª Juíza “a quo”, proferiu despacho, dispensando a convocação de audiência prévia, referindo que, “existem condições para decidir imediatamente, porquanto foi já amplamente concedido o contraditório”, fixando o valor da ação em € 30.000,01, saneador tabelar, quanto à competência do Tribunal, capacidade e legitimidade das partes e inexistência de nulidades, pronuncia-se quanto à questão prévia, “da intempestividade do articulado de aperfeiçoamento” e determina o desentranhamento da (petição inicial aperfeiçoada), por extemporânea, e a sua devolução à autora, admitiu a redução do pedido, declarado pela A. e, por último, pronuncia-se e decide quanto à apelidada, “Da manifesta improcedência da ação”, terminando com o seguinte: “V. Dispositivo
Em face do exposto, julga-se a presente ação manifestamente improcedente e, em consequência, absolvem-se os réus dos pedidos.
Custas processuais a cargo da autora, por ter decaído integralmente.
Dão-se sem efeito as datas agendadas para a audiência de discussão e julgamento.
Registe, notifique e desconvoque.”.
*
Inconformada a A. interpôs recurso, nos termos das alegações juntas, que terminou com as seguintes: “CONCLUSÕES
1- A Apelante foi notificada do despacho saneador que conheceu, de imediato, do mérito da causa e, por não se conformar nem com a decisão nem com os seus fundamentos, interpôs o presente recurso que versa sobre dois pontos: a inadmissibilidade do conhecimento imediato do mérito da causa e a tempestividade do articulado de aperfeiçoamento.
2- O Tribunal a quo entendeu que estavam reunidas as condições para decidir, de imediato, do mérito da causa por considerar que os factos alegados pela Autora não teriam a menor possibilidade de ser acolhidos quer face à lei em vigor, quer face à sua interpretação por parte da doutrina e jurisprudência.
3- Em sentido oposto, a Autora entende que nem nenhuma das matérias apontadas é absolutamente incontroversa ou indiscutível, nem o Tribunal a quo levou em consideração tudo quanto a Autora alegou, chegando até a estribar-se em factos alegados pelos Apelados mas que, por não terem sido aceites, se mantêm controversos.
4- O primeiro, e um dos principais argumentos da decisão em crise, é o da ausência de remuneração fixa e periódica que seria suficiente para descaracterizar o vínculo invocado como sendo próprio de uma relação laboral.
5- Tal entendimento radica num errado enquadramento legal do que foi efectivamente alegado pela Apelante no artigo 1º da P.I.,: que a Autora tinha admitida ao serviço contra o pagamento de 100 escudos mensais, acrescido de alojamento e alimentação.
6- Como se assume na decisão em crise, a retribuição característica de uma relação de trabalho configura uma obrigação periódica de dare, de conteúdo patrimonial e pelo menos parcialmente pecuniário.
7- E a Apelante na presente acção, veio reclamar os valores pecuniários nunca recebidos mas assumindo declaradamente que a retribuição em espécie, essa sim, foi sempre cumprida (com maior incidência, nos artigos 63 a 65º da P.I.) pois usufruiu do alojamento até se casar e das refeições ao longo de todo o período que durou a toda relação laboral até ao seu fim – assumindo os Apelados esta realidade nos artigos 73º, 112º, 126º e 170º da sua Contestação.
8- O que significa que se há matéria de facto que se pode dar até por incontroversa é que a Autora desde 1957 sempre recebeu o que correspondia à componente em espécie da retribuição que tinha sido acordada, faltando sim a componente pecuniária e que é a que se reclama nos presentes autos.
9- A indubitável inclusão do alojamento e da alimentação no contrato de trabalho de serviço doméstico, como fazendo parte da retribuição, é assumida na jurisprudência de que se citou exemplo concreto.
10- Aliás, tais prestações presumem-se constituir retribuição, nos termos do o artigo 258º nº3 do C.T.
11- Por estes motivos, considera a Apelante que, no mínimo, é absolutamente seguro concluir que nesta fase do processo, sem que existisse matéria de facto confessada e sem produzir a prova requerida pelas partes, o Tribunal a quo não podia considerar desde já que não existia forma alguma de retribuição.
12- Continua depois o Tribunal a quo com outros argumentos sumariando-os na seguinte locução: “A partir do momento em que a relação se alterou, com o acordo de uma contrapartida que se esgota num terreno – e tendo a autora deixado de pernoitar na casa da família – opera uma convolação do contrato alegadamente vigente para um contrato de prestação de serviços”.
13- Tais conclusões não são mais do que o resultado de uma visão muito restritiva por parte do Tribunal a quo, que arriscou, e de forma prematura, na sua própria interpretação dos factos e no enquadramento muito redutor dos mesmos, sem considerar a amplitude de considerações e soluções distintas que se oferecem, ainda para mais sem sequer ter analisado a prova que se exigia fazer, para poder chegar legitimamente a qualquer tipo de conclusão definitiva.
14- Desde logo, atendendo à subsistência da retribuição em espécie, não poderia nunca o Tribunal a quo considerar que a partir de dado momento a contrapartida pelo trabalho se esgotava meramente num terreno prometido.
15- Depois porque a retribuição em espécie sempre existiu e a Apelante nunca dela abdicou.
16- Para além disso, nunca a Apelante aceitou substituir a sua retribuição por um terreno. Aceitou sim receber um terreno como forma de pagamento da retribuição pecuniária que havia sido combinada desde início (dação em cumprimento).
17- E ainda, porque se considera que tal conclusão do Tribunal a quo encerra em si uma violação ao princípio da irredutibilidade da retribuição.
18- De facto, o Tribunal a quo considera que a Apelante teria trocado toda a retribuição que lhe era devida, vencida e vincenda, por um terreno (o que não se aceita), que, por muito que valesse, não deixaria de significar uma diminuição da retribuição que tinha sido efectivamente acordada, assim violando aquele princípio.
19- A Apelante considera-se admirada com a facilidade e ligeireza com que o Tribunal a quo, neste processo e nesta fase processual, conseguiu concluir pela existência de uma convolação de um contrato de trabalho (que reconhece que foi alegado) para um contrato de prestação de serviços – e tudo isto sem margem para qualquer dúvida ou discussão.
20- A questão de aferir se determinada relação contratual é de âmbito laboral ou civil, sempre foi matéria em discussão nos nossos tribunais. Mas não é o que acontece no caso desta decisão. O Tribunal a quo, aqui foi muito mais longe do que isso: assume que aquilo que vem alegado assume de início as características de um contrato de trabalho para depois operar uma inaudita conversão dessa relação de trabalho numa relação de prestação de serviços, sempre e só com base na ausência de retribuição que (como já suficientemente alegado nem sequer se verifica) e com base numa suposta confissão da Autora que também não existiu.
21- Entende ainda o Tribunal a quo, por fim, que mesmo que se considerasse existir em vigor um contrato de trabalho, a acção sempre teria de improceder por abuso de direito da modalidade de suppressio, pelo facto de só agora a Apelante vir reclamar créditos datados já de 1957 em diante.
22- Esta linha de argumentação não é nova, tendo já sido invocada diversas vezes noutros processos judiciais. Contudo, a jurisprudência tem também vindo, de forma reiterada e uniforme, a negar provimento a tal pretensão, quer negando categoricamente a figura do abuso de direito nestes casos em concreto, quer com base nas severas restrições, já há muito estabelecidas, à disponibilidade e renunciabilidade pelos trabalhadores da sua retribuição na vigência do contrato de trabalho, como o demonstram os arestos citados na motivação do recurso.
23- Se a tudo isto se acrescentar que a Apelante interpôs a acção dentro do prazo legal para o efeito e ainda o facto de não deixar de ter alegado que ao longo dos anos a Apelante nunca ter deixado de pedir o cumprimento dos seus créditos, então considera-se que em nenhuma fase deste processo poderia o Tribunal a quo julgar verificado que a Apelante incorreu em abuso de direito, ao interpôr a presente acção.
24- Aqui chegados, afigura-se razoavelmente evidente e demonstrado que: quase não existem factos incontroversos; a quase totalidade dos factos respeitantes à relação contratual mostra-se impugnada; a decisão do Tribunal a quo não assenta em factos aceites ou assentes; a apreciação dos fundamentos da manifesta improcedência da acção está directamente ligada com a apreciação do mérito da causa e consequentemente com a prova a produzir e existem várias soluções plausíveis para a aplicação do direito, para além daquelas em que assenta a sentença.
25- Ora, de acordo com o preceituado no artigo 61º nº2 do C.P.T. e com a interpretação que lhe vem sendo dada de forma unânime nos nossos Tribunais, sempre que se verifiquem tais circunstâncias, está vedado ao julgador conhecer de imediato do mérito da causa, nos termos do artigo 61º nº2 do C.P.T., devendo antes relegar a decisão para final.
26- Mostrando-se assim violado o previsto no artigo 61º nº2 do C.P.T., pugna a Apelante pela revogação da decisão sobre a manifesta improcedência da acção e a sua substituição por uma outra que ordene o prosseguimento dos ulteriores termos da presente acção.
27- Por último, não pode a Apelante deixar de referir que a decisão ora em crise encerra em si uma iniquidade: a descaracterização precoce desta relação de trabalho, impossibilitando a Apelante não só de produzir a prova de que dispõe, mas também de ver esta sua pretensão apreciada à luz das regras do direito do trabalho, não deixa de lhe causar um prejuízo efectivo, pois o facto de lhe restar apenas o recurso aos meios comuns civis, impede-a também de usufruir dos especiais direitos e prerrogativas processuais que aos trabalhadores são assegurados no direito laboral português. E nessa medida, a confirmação desta decisão poderá configurar uma violação do direito a um processo equitativo, previsto no artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, o que expressamente se invoca nos termos e para os efeitos do revisto no artigo 35º da CHDH.
28- Quanto ao segundo tema do presente recurso, na decisão em apreço, determinou-se o desentranhamento do articulado de aperfeiçoamento (petição inicial aperfeiçoada), por extemporâneo. Em suma, o Tribunal a quo entende que o convite que dirigiu à Apelante teria imperativamente que ser cumprido nunca para além da audiência do dia 05.12.2023.
29- Analisados os factos atinentes a esta matéria, decorre, na opinião da Apelante, que o convite do Tribunal foi cumprido tempestivamente, pois
30- Trata-se de um convite que poderia ser formulado até momento bem ulterior do processo, em despacho pré-saneador, tendo o Tribunal a quo decidido, e bem, antecipar o momento processual;
31- Nesse convite não foi fixado um prazo específico para responder ao convite, o que se determinou foi que o convite poderia ser cumprido na nova data da audiência de partes, tendo sido entendido, legitimamente crê-se, que a tónica não estava na data já designada mas sim na própria audiência em si;
32- A apresentação da P.I. aperfeiçoada, no momento em que o foi, não causou qualquer constrangimento ou atraso processual, nem poderia, pois foi efectuada no decurso da Audiência de Partes, como havia sido determinado no convite.
33- No limite, de acordo com a perspectiva do Tribunal a quo se tivesse sido dada sem efeito a diligência do dia 05 de Dezembro, isso significaria o absurdo de a Apelante estar para sempre impedida de responder ao convite.
34- A Apelante quis por isso responder ao convite que lhe foi endereçado, e não só o fez, como considera que respondeu ao convite no momento processual que havia sido determinado.
35- Mostra-se assim violado o preceituado nos artigos 61º do C.P.T. e 139º nº3 do C.P.C., pugnando a Apelante pela revogação deste segmento da decisão e sua substituído por outro que admita a junção da Petição Inicial aperfeiçoada.
36- Nestes termos e nos mais de direito, requer-se a Vas.Exas. que se dignem conceder total provimento ao presente recurso, alterando a sentença ora em crise nos sentidos supra enunciados, só dessa forma fazendo a mais sã e elementar JUSTIÇA.”.
*
Notificados os RR. vieram contra-alegar, nos termos que constam das alegações juntas, terminando com as seguintes CONCLUSÕES:
I. Intempestividade do articulado de aperfeiçoamento como decidiu a douta sentença recorrida ou tempestividade do articulado de aperfeiçoamento como defende a recorrente:
1. Frustrada a citação do réu BB, a Meritíssima Juiz proferiu o douto despacho de aperfeiçoamento de 13.11.2023, em que decidiu o seguinte:
Aguarde a devolução do expediente, repetindo a citação agora com a nova data, e com cópia da presente ata, designando-se, desde já, o próximo dia 05 de Dezembro, pelas 10:50 horas, para a realização da audiência de partes, de acordo com a disponibilidade de agenda do ilustre mandatário da autora.
Mais fica o Exmo. mandatário da autora notificado para em 10 dias informar o estado do pedido de apoio judiciário formulado pela autora e, caso seja de indeferimento, informar se o vai impugnar, bem assim como para juntar procuração com poderes especiais ou ratificação do processado.
Ao abrigo dos princípios da economia processual e da adequação formal, antecipa-se o convite de aperfeiçoamento que seria dirigido à autora em momento ulterior (cf. o artigo 61.º do Código de Processo do Trabalho e que sempre poderia ter sido feito de acordo com o artigo 54.º do mesmo diploma, e que não se fez atenta a urgência na citação), fazendo-o neste momento, para que junte aos autos articulado de aperfeiçoamento da petição inicial, onde conste a concretização/quantificação de cada um dos pedidos.
Com efeito, a mesma é absolutamente genérica na alegação, designadamente quanto aos valores peticionados, quanto ao n.º de dias de férias por gozar em cada ano, e quanto ao valor que a autora auferia em cada momento, devendo ser suprida a insuficiência, para que dela passem a constar todos os valores de cada um dos pedidos, porquanto não se justifica remeter para incidente de liquidação de sentença algo que é quantificável neste momento. Na verdade, o incidente de liquidação de sentença destina-se a liquidar algo já alegado e concretizado cabalmente e só se justifica nos casos em que a quantificação da alegação não é viável ab initio ou mesmo até ao final da audiência de discussão e julgamento.
Ademais, os valores em causa terão reflexo no valor da ação.
O convite poderá ser cumprido na nova data de audiência de partes- agendada para o dia 05 de Dezembro, pelas 10:50 horas.
2. Pelo que a possibilidade de suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada e de concretização/quantificação dos pedidos limitada pelo âmbito do mesmo convite, deveria ter sido cumprida pela autora no prazo concedido pelo Tribunal até dia 05.12.2023, data previamente agendada para a audiência de partes e que se realizou em 05.12.2023.
3. No despacho de aperfeiçoamento, a Meritíssima Juiz concedeu benevolentemente o prazo alargado de 21 dias (de 13.11.2023 a 05.12.2023), quando em regra o prazo é o prazo legal de 10 dias. Ora, impendia sobre a autora o dever e a diligência particularmente qualificada no cumprimento do despacho de convite ao aperfeiçoamento, demonstrando o cumprimento minimamente diligente desse dever de sanar deficiências da petição suscetíveis de comprometer o êxito da ação. Diligência que a autora não teve.
4. O convite de aperfeiçoamento dirigido à autora, poderia ter sido feito de acordo com o artigo 54º nº 1 do C.P.T. e a Meritíssima Juiz a quo não o fez atenta a urgência da citação, como fez constar no douto despacho de 13.11.2023. No caso dos autos houve um primeiro despacho liminar que se circunscreveu à questão do deferimento da citação urgente e houve o despacho de aperfeiçoamento, por não poder ter sido feito de acordo com o artigo 54º nº 1 do C.P.T, atenta a urgência da citação.
5. O convite de aperfeiçoamento foi dirigido à autora e foi-lhe concedido um prazo perentório para o fazer, estando na livre disponibilidade da autora responder com plenitude ao despacho de aperfeiçoamento da Meritíssima Juiz a quo, atendendo às irregularidades da petição inicial, expressas para sanação no despacho de aperfeiçoamento.
6. Contrariamente ao que a recorrente defende, como consta do douto despacho de aperfeiçoamento de 13 de novembro de 2023, o convite para a autora apresentar um articulado de aperfeiçoamento da petição inicial, onde constasse a concretização/qualificação de cada um dos pedidos, deveria ter sido cumprido pela autora no prazo concedido pelo Tribunal, até ao dia 05.12.2023, data agendada para a audiência de partes, que se realizou em 05.12.2023.
7. Ou seja, o objetivo pretendido pelo douto despacho de aperfeiçoamento era que no dia 5 de dezembro de 2023 (o dia marcado para a nova audiência prévia) a ação estar “em condições de prosseguir” (nº 2 do art.º 54º do C.P.T.), por forma a que o réu, ao ser citado, recebesse não só o duplicado da petição na sua versão originária, mas, também, as correções ou aclarações que tivessem sido introduzidas na sequência do convite ao aperfeiçoamento.
8. Tendo o convite para aperfeiçoar a petição sido efetuado em 13/11/2023, não podia a autora vir em 08/01/2024, 56 dias depois apresentar a petição aperfeiçoada pretender que fosse deferida a sua apresentação.
9. A douta sentença recorrida determinou o desentranhamento do articulado de aperfeiçoamento (petição inicial aperfeiçoada), por extemporâneo. Em suma, o Tribunal a quo entendeu que o convite que dirigiu à recorrente teria imperativamente que ser cumprido até à audiência de partes agendada para o dia 05.12.2023 e nunca para além da data agendada para a audiência de partes.
10. Ao decidir como decidiu, a douta sentença recorrido decidiu com acerto e plena observância da lei, interpretando e aplicando o disposto nos art.ºs 54º e 61º do C.P.T. e no art.º 139º nº 3 do C.P.C., não tendo violado qualquer das disposições legais elencadas pela recorrente, nem quaisquer outras.
II. Admissibilidade do conhecimento imediato do mérito da causa por manifesta improcedência da ação como decidiu a douta sentença recorrida ou inadmissibilidade do conhecimento imediato do mérito da causa como defende a recorrente.
11. Na sua contestação, os réus BB e FF invocaram a manifesta improcedência da ação por não se estar perante um contrato de trabalho, na medida em que se encontra em falta um seu elemento essencial: a retribuição. Por outro lado, por faltar nexo lógico entre a causa de pedir e os pedidos formulados pela autora.
12. O Tribunal a quo considerou ser possível conhecer de imediato do mérito da causa, perante a factualidade alegada, concretamente, a inexistência de retribuição, sendo manifesta a falta de tal elemento, essencial no contrato de trabalho, afastando totalmente a possibilidade de estar perante um contrato de trabalho, pois a autora não prestava os seus serviços mediante a contrapartida de uma retribuição certa, determinada, periódica e regular, mas prestava-os, segundo alegou, mediante a promessa de que receberia um terreno quando cassasse, o que não aconteceu.
13. Como a autora alega nos art.ºs 1º, 19º e 20º da petição, o alegado “salário” de 100$00 por mês, nunca lhe foi pago e que “aquilo que o patrão CC lhe dizia era que em vez de lhe pagarem, quando a autora casasse, eles davam-lhe um terreno onde poderia construir a sua própria casa, como forma de retribuição”.
14. A autora alega, no art.º 20º da petição, que CC e DD tinham prometido beneficiá-la em doação com um terreno, e que a autora aceitou. Ora se a autora aceitou receber um terreno em doação de CC e DD, tal confissão da autora confirma que não foi celebrado contrato de trabalho entre os referidos CC e DD.
15. A confirmar, ainda, que não foi celebrado qualquer contrato de trabalho e que não se estabeleceu uma relação de trabalho entre a autora, por um lado, e CC e DD, por outro, está o facto de durante a vida de CC e de DD, a autora nunca ter reclamado qualquer retribuição por alegados serviços prestados aos pais de EE.
16. O que significa que desde 1957 até 06.09.1995 e até 01.01.2001, datas dos óbitos, respetivamente, de CC e de DD, ou seja, durante 44 anos, a autora prestou serviços a CC e de DD, aceitando como contrapartida a promessa de doação de um terreno.
17. A autora invoca na petição a frustração da expetativa da autora de receber de CC e de DD a doação de um bem por gratidão de amizade ou até da alegada prestação de serviços, causa de pedir que não é fonte de quaisquer créditos laborais.
18. A autora alega no art.º 36º da petição, que “quando a autora questionava EE sobre o pagamento do seu trabalho, esta sempre lhe disse que ia honrar a promessa que seus pais tinham feito e que além disso também iria receber algum ouro, que EE havia herdado da sua mãe DD”.
19. O que não é compaginável com a existência de um contrato de trabalho celebrado entre a autora e a falecida EE.
20. O que significa, também, que como a autora alega, desde 01.01.2001 (data de óbito de DD) até 02.11.2022, data do óbito de EE, filha dos alegados “patrões”, ou seja, durante mais de 21 anos, a autora não recebeu qualquer retribuição.
21. O que permite concluir, com base na factualidade alegada pela autora, que a alegada relação que se estabeleceu entre a autora e os referidos CC e DD e que a alegada relação que se estabeleceu entre a autora e a falecida EE, não podem ser qualificadas nem se compaginam com a existência de um contrato de trabalho.
22. A autora invoca como causa de pedir a frustração da expetativa da autora de receber de CC e de DD um bem em doação, invoca como causa de pedir a frustração da expetativa da autora de receber de EE a doação de algum ouro, que EE havia herdado da sua mãe DD, sendo que os pedidos que a autora formulou com base nessa causa de pedir são manifestamente improcedentes.
23. A autora alega na petição de que a alegada colaboração ou prestação de serviços não tinha qualquer retribuição monetária certa e regular e que a autora aceitou colaborar ou prestar serviços a CC e a DD mediante a promessa de transmissão no futuro de um terreno, que a autora alegadamente teria pedido a EE que cumprisse.
24. A autora alega na petição que a alegada colaboração ou prestação de serviços a EE não tinha qualquer retribuição monetária certa e regular e que a autora aceitou colaborar e prestar serviços a EE mediante a promessa de que viria a receber algum ouro de que EE tinha recebido da mãe.
25. Ou seja, do alegado pela autora, resulta que a autora prestou serviços e colaboração a CC e a DD mediante a promessa da doação de um terreno por parte de CC e de DD e resulta a confissão de que a autora prestou serviços e colaboração a EE mediante a promessa de doação de algum ouro de EE, que esta tinha recebido da mãe.
26. A forma de remuneração alegada nos art.ºs 20º e 36º da petição inicial não pode qualificar-se de retribuição laboral, não podendo existir relação de trabalho doméstico ou agrícola sem retribuição monetária certa e regular.
27. Do exposto resulta, ainda, a inexistência de retribuição, o que afasta a possibilidade de qualificação do contrato/acordo celebrado entre CC e a DD, por um lado, e da autora, por outro, como contrato de trabalho.
28. Do exposto resulta a inexistência de retribuição, o que afasta a possibilidade de qualificação do contrato/acordo celebrado entre EE, por um lado, e da autora, por outro, como contrato de trabalho.
29. Na verdade, a relação que se estabeleceu entre CC e DD, por um lado, e a autora por outro, não pode ser qualificada como contrato de trabalho, pois não foi ajustada nem foi paga ao longo dos anos qualquer retribuição, sendo certo que a autora foi acolhida em casa dos mesmos como filha, beneficiando dos cuidados, do convívio e do conforto material que lhe foi proporcionado por aqueles.
30. Importa reconhecer que a omissão de pagamento e de recebimento da retribuição durante cerca de 65 (sessenta e cinco) anos, de 1957 a 2022, tantos quantos, alegadamente, perduraram os contratos alegados pela autora, com a completa passividade da autora perante tal omissão, não se compagina minimamente com a existência de contratos de trabalho.
31. Mal se compreende, com efeito, que a autora se permita passar a sua vida profissional ativa sem receber, uma única vez, a contrapartida da sua prestação – o salário – que constitui, afinal, a razão primeira e última dessa prestação.
32. Perante a evidência de que a autora nunca recebeu qualquer salário, deverá concluir-se que a atividade desenvolvida pela autora não se insere no âmbito de um contrato de trabalho.
33. Como referiu a douta sentença recorrida, a autora alega – ainda que de forma parca e algo distribuída entre factos e direito – os três elementos essenciais do contrato de trabalho quanto ao contrato alegadamente celebrado com CC em 1957. Porém, também alega, confessando, que, a dada altura não concretizada, lhe terá sido prometido um terreno para construção, em lugar da retribuição que nunca recebeu.
34. Sendo que a relação manteve-se nesse pressuposto, tendo sido com base nessa contraprestação que a relação se desenrolou com as patroas que sucederam a CC, já que – a própria admite – DD e EE sempre lhe asseguraram que a promessa do terreno seria cumprida e foi tudo quanto disseram sobre a contrapartida das tarefas executadas pela autora.
35. Ora, a entrega de um terreno como contraprestação de uma atividade não pode, de todo, ser considerada como retribuição de um contrato de trabalho, a qual é, por natureza, uma prestação periódica e regular e pelo menos parcialmente em dinheiro. Tem de encontrar cadência e habitualidade, na medida em que o contrato de trabalho se prolonga no tempo, sendo de execução continuada.
36. Como referiu a douta sentença recorrida, Este contrato vigorou por tempo que a autora não concretiza até à morte de CC. Com a morte, o contrato caducou, pois que não existia um contrato de trabalho, antes sim de prestação de serviços.
37. Mantendo-se em vigor a relação, pois que a autora permaneceu na execução das tarefas, existirá um acordo tácito nos mesmos termos que o anterior, tanto assim que a autora voltou a assentir, junto de DD, que a compensação da sua prestação seria a concessão do terreno. E isso mesmo se repetiu com a morte de DD e continuação de prestação de serviços para com EE.
38. O que vigorou foi um contrato de prestação de serviços, ou como alegaram os réus, uma relação de amizade quase familiar, distinta da relação laboral e que com ela não se confunde.
39. Não tendo sido celebrado qualquer contrato de trabalho entre a autora e os referidos CC e DD, nunca se estabeleceu uma relação de trabalho entre CC e DD, por um lado, e a autora, por outro, pelo que a autora não tem direito a reclamar quaisquer créditos por alegada remuneração, não tem direito a quaisquer créditos por alegadas férias não gozadas, não tem direito a receber subsídio de férias nem subsídio de Natal, nem tem o alegado direito a receber quaisquer quantias a título de alegado trabalho suplementar, que não prestou.
40. Não tendo sido celebrado qualquer contrato de trabalho entre a autora e EE, nunca se estabeleceu uma relação de trabalho entre EE, por um lado, e a autora, por outro, pelo que a autora não tem direito a reclamar quaisquer créditos por alegada remuneração, não tem direito a quaisquer créditos por alegadas férias não gozadas, não tem direito a receber subsídio de férias nem subsídio de Natal, nem tem o alegado direito a receber quaisquer quantias a título de alegado trabalho suplementar, que não prestou.
41. O exposto para concluir que não existe qualquer fundamento para ser reconhecida a existência dos alegados contratos de trabalho, e, consequentemente, não existe qualquer fundamento para ser reconhecido à autora qualquer alegado direito de crédito por alegada remuneração, nem quaisquer alegados direitos de crédito por alegadas férias não gozadas, nem por alegados subsídios de férias, nem quaisquer alegados direitos de crédito por alegados subsídios de Natal, e nem qualquer direito de crédito por alegado trabalho suplementar pelo motivo de não serem devidos.
42. Por fim, mesmo que se considerasse que o contrato de trabalho existiu e se manteve, e que se transferiu para a mulher e a filha de CC por morte, a ação teria de improceder por abuso de direito, na modalidade de suppressio, como refere a douta sentença recorrida.
43. A autora esteve desde 1957 até 06.09.1995 e até 01.01.2001, datas dos óbitos, respetivamente, de CC e de DD, ou seja, durante 44 anos, a prestar alegados serviços a CC e a DD, aceitando como contrapartida a promessa de doação de um terreno, quando a autora se cassasse.
44. A autora casou-se a autora e nada recebeu. A autora interpelou a mulher daquele, DD, após a sua morte, e, após a morte desta, interpelou a filha de ambos, que mantiveram a intenção de lhe doar o terreno. A autora conformou-se e perpetuou os trabalhos.
45. Segundo a autora alega, “durante mais de 6 décadas diariamente continuou a exercer as funções naquela casa e terrenos e nunca reagiu à ausência de pagamento. Veio, 67 anos depois do contrato original, peticionar os seus direitos, num momento em que todos os herdeiros legitimários faleceram já e em que nenhuma das pessoas envolvidas se encontra viva por forma a poder depor.
46. Dito de outro modo: no caso em apreço, a autora adotou condutas contraditórias, durante 65 anos aceitou prestar serviços como pessoa de família, que sempre foi considerada e tratada, aceitando por contrapartida as promessas referidas de doação de um terreno, e 66 (sessenta e seis) anos depois, vem a defraudar a legítima confiança criada em CC, em DD e em EE, relativamente às suas pretensões, reclamando o que nunca antes tinha invocado nem reclamado.
47. Pelo que tal atitude da autora, configura abuso do direito, na modalidade de supressio (supressão), no sentido de que a posição jurídica assumida pela autora de invocar a celebração de contrato de trabalho e de direitos inerentes que nunca expressou durante 65 anos, não mais a pode fazer, por contrariar o princípio da boa fé.
48. Pelo que mesmo que se provasse tudo quanto vem alegado pela autora, a sua pretensão não procederia, a ação teria de improceder por abuso de direito na modalidade de supressio.
49. Pelo exposto ocorre a exceção perentória do abuso de direito, extintiva do direito a que a autora se arroga, devendo proferir-se decisão que absolva os réus dos pedidos formulados pela autora na presente ação.
50. O exposto para concluir, também, que, contrariamente ao que a recorrente defende, a douta sentença recorrida decidiu com acerto e plena observância da lei, não violou o disposto no art.º 61º nº 1 do C.P.T., nem violou o direito a um processo equitativo previsto no art.º 6 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, nem violou qualquer outra disposição legal.
51. Pelo que deverá negar-se provimento ao recurso, mantendo-se in totum o decidido na douta sentença recorrida.
COMO É DE DIREITO E INTEIRA JUSTIÇA”.
*
O Tribunal “a quo” admitiu a apelação, com efeito meramente devolutivo e ordenou a sua subida a esta Relação.
*
O Ex.mo Procurador Geral Adjunto teve vista nos autos, nos termos do art. 87º nº3, do CPT, emitindo parecer no sentido de ser concedido provimento ao recurso, sob a consideração de que, “assiste razão à Recorrente, pelo que acompanhamos a alegação e conclusões do recurso, para que se remete.
2.1. Com efeito, sendo a Recorrente convidada a aperfeiçoar o articulado, a petição inicial, e a fazê-lo até à audiência de partes, entende-se que como refere “a tónica não estava na data já designada, mas sim na própria audiência em si, o que a Recorrente cumpriu.
2.2. Depois a Recorrente/autora alega a existência de um contrato de trabalho de serviço doméstico (como “criada de servir”).
Alega que acordado um salário de 100$00 por mês mais alimentação e alojamento.
Estes elementos são, salvo melhor opinião, elementos típicos e suficientes caracterizadores de um contrato de trabalho de serviço doméstico.
Por isso, deveria o processo prosseguir para julgamento para apreciação e decisão.
O facto de não lhe ser paga, neste caso, a retribuição não significa que não estivesse fixada.
A retribuição estava devidamente quantificada e que agora a Recorrente/autora pede: 100$00 por mês até 1974 e depois o valor do salário mínimo.
Não lhe pagando a retribuição acordada, os RR, sucessivamente lhe prometiam o pagamento com outros valores, nomeadamente um terreno para construção de uma casa e peças de ouro.
Mas estes bens não faziam parte do contrato acordado; o acordado foi aquela retribuição referida, mais a alimentação e o alojamento.
Estes bens destinavam-se a pagar aquelas retribuições em falta e não a pagar o trabalho doméstico recebido.
Senão, estamos, na verdade, como a recorrente refere, em presença de “trabalho escravo.”
2.3. Compreendendo a posição da Recorrente, só concretizou o pedido depois de cessar a relação de trabalho, o que por regra acontece, atenta a relação de dependência do trabalhador em relação ao empregador.
Não pode, pois, falar-se de abuso de direito, mas sim do seu exercício, quando possível.”.
Notificadas deste, responderam os recorridos, nos termos do requerimento junto em 03.09.2024, defendendo que, deve manter-se a decisão recorrida.
*
Cumpridos os vistos, há que apreciar e decidir.
*
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente, cfr. art.s 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, (diploma a que pertencerão todos os dispositivos a seguir mencionados, sem outra indicação de origem) aplicável “ex vi” do art. 87º, nº 1, do Código de Processo do Trabalho, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado.
Assim, as questões a apreciar e decidir consistem em saber, se o Tribunal “a quo” errou e, nesses termos, deve ser alterada a decisão recorrida e, consequentemente, determinado o prosseguimento dos ulteriores termos da presente acção e a admissão da petição inicial aperfeiçoada, como defende a recorrente.
*
II - FUNDAMENTAÇÃO
Os factos a considerar, com interesse para a decisão, são os que decorrem do relatório que antecede, os quais se encontram devidamente documentados nos autos.
Vejamos.
Comecemos, pela segunda parte da questão colocada pela recorrente, referente à pretendida admissão da petição inicial aperfeiçoada que, por extemporânea, foi ordenado pela Mª Juíza “a quo” o seu desentranhamento, como os seguintes argumentos que se transcrevem:
«O autor foi convidado a juntar aos autos articulado de aperfeiçoamento da petição inicial, tendo sido determinado pelo Tribunal que «o convite pode ser cumprido na nova data da audiência de partes».
Escuda-se no termo pode para fundamentar a junção tardia do documento e na ausência de interpelação, no decurso desta diligência, para cumprir o convite anteriormente dirigido.
Cumpre apreciar e decidir.
Como é sabido, a todos os atos sem prazo especificamente definido por lei, corresponde o prazo supletivo legal plasmado no artigo 149.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, ex vi o artigo 1.º, n.º 2, al. a), do Código de Processo do Trabalho, a menos que o Juiz conceda um prazo distinto.
Tal prazo, que a própria lei identifica como sendo regra geral, é de 10 dias (sem prejuízo das dilações legais). Daqui decorre que, efetivamente, o Tribunal concedeu uma alternativa à autora, de apresentação do seu articulado aperfeiçoado na nova data de audiência de partes, que havia acabado de agendar para o dia 05 de dezembro de 2023.
Daqui decorre que, em alternativa ao prazo de 10 dias, que a autora teria para cumprir o convite, o Tribunal concedeu-lhe generosamente a possibilidade de o cumprir praticamente no dobro do tempo, o que a autora não cumpriu.
Jamais poderá a autora concluir, da expressão «o convite pode ser cumprido na nova data da audiência de partes», que o pode cumprir quando quiser, nessa ou noutra data. E isso não se pode extrair, nem por recurso às normas jurídicas (designadamente ao artigo 149.º do Código de Processo Civil, cf. se explanou), nem sequer por recurso ao senso comum, de acordo com a teoria da impressão do destinatário (artigo 236.º do Código Civil), que é a aplicável, também, na interpretação das sentenças e despachos. O homem médio, sabendo que a audiência seria no dia 05/12/2023, e que a mesma foi declarada aberta, não deixaria de cumprir o convite do Tribunal.
O prazo era perentório, pelo que o seu decurso conduz à preclusão do direito – artigo 139.º, n.º 3 do Código de Processo Civil.
A audiência de partes estava marcada para o dia 05 de dezembro e realizou-se, embora não se tenha concluído, nessa data. Competia à autora cumprir o convite nesse momento, ou até esse momento, e não o fez. Se não o fez, sibi imputet.
Por conseguinte, determina-se o desentranhamento do articulado de aperfeiçoamento (petição inicial aperfeiçoada), por extemporâneo, e a sua devolução à autora.» (Fim de citação).
Como já dissemos, desta, discorda a recorrente, com os argumentos que invoca nas suas alegações e conclusões reiterando e defendendo, ter cumprido tempestivamente o convite que lhe foi efectuado, através do articulado de aperfeiçoamento, apresentado em 08.01.2024, tal como o fez na pronuncia deduzida a este respeito, no seu requerimento de 29.02.2024, em sua opinião, porque: “- trata-se de um convite que poderia ser formulado até momento bem ulterior do processo, em despacho pré-saneador, tendo o Tribunal a quo decidido, e bem, antecipar o momento processual;
- não foi fixado um prazo específico para responder ao convite, o que se determinou foi que o convite “poderia” ser cumprido na nova data da audiência de partes, tendo sido entendido, legitimamente, que a tónica não estava na data já designada mas sim no decurso da audiência de partes;
- a apresentação da P.I. aperfeiçoada, no momento em que o foi, não causou qualquer constrangimento ou atraso processual, nem poderia pois foi efectuada no decurso da Audiência de Partes, como havia sido determinado no convite.”.
Considera então e alega que, respondeu ao convite no momento processual que havia sido determinado, razão porque pugna pela revogação do segmento da decisão que não admitiu a junção da Petição Inicial aperfeiçoada.
Mas, não tem razão.
Senão, vejamos.
Ao contrário do que defende, é nossa opinião que, como se considerou na decisão recorrida, foi fixado um prazo específico para responder ao convite, ao determinar-se que, “o convite poderá ser cumprido na nova data da audiência de partes”.
Nova data da audiência de partes, que se verifica, foi no mesmo acto designada para 05.12. E, mais se verifica que, nessa data, realizou-se a audiência de partes, ainda que não tenha terminado.
Logo, dúvidas não pode haver de que, só se pode entender que a A. devia ter cumprido o convite, nessa data, como bem se refere na decisão recorrida, o que não fez.
Não se compreendendo a alegação da recorrente quando diz ter entendido “legitimamente, que a tónica não estava na data já designada mas sim no decurso da audiência de partes”, nem se compreende, porque não apresentou a P.I. aperfeiçoada, naquela data, face ao que veio alegar, dizendo que, “Nessa data a Apelante até tinha a P.I. aperfeiçoada pronta, tanto que nessa data até entregou cópia da mesma à Ilustre Mandatária do Apelado BB”.
Assim, não tendo a mesma cumprido, atempadamente, o convite que lhe foi feito, sem necessidade de outras considerações, mantém-se este segmento da decisão recorrida, com o qual se concorda e, consequentemente, improcedem as conclusões 28 a 34 da apelação.
*
Passemos, agora, à questão, segundo invoca a recorrente, da inadmissibilidade do conhecimento imediato do mérito da causa e apreciar se lhe assiste ou não razão.
A este propósito, consta da decisão recorrida, sob a epígrafe, “Da manifesta improcedência da ação” o seguinte:
«Como se referiu, invocam os réus BB e FF, a manifesta improcedência da ação por não se estar perante um contrato de trabalho, na medida em que se encontra em falta um seu elemento essencial, a saber: a retribuição. Por outro lado, alegam faltar nexo lógico entre a causa de pedir e os pedidos.
A autora discorda, ancorando-se no argumento do trabalho escravo.
Cumpre apreciar e decidir, uma vez que o contraditório foi já concedido.
Dita o artigo 61.º, n.º 2 do Código de Processo do Trabalho que, após os articulados, o Juiz pode, além do mais, decidir do mérito da causa.
A história narrada pela autora na sua petição inicial compõe o objeto do processo, traçando as questões a decidir pelo Tribunal. Quando a história seja ostensivamente improcedente, ainda que contenha os factos essenciais para a subsunção ao instituto jurídico invocado, então, o Tribunal pode decidir do mérito, julgando a ação manifestamente improcedente.
Neste contexto, dita o acórdão do venerando Tribunal da Relação do Porto de 01 de junho de 2010, processo n.º 5735/09.0TBMTS.P1, disponível, como os demais sem indicação de origem, em www.dgsi.pt, que «A improcedência é manifesta quando, à vista da petição e dos factos alegados, for evidente que a tese do autor não tem condições para vingar nos tribunais, seja por carecer de suficiente apoio legal ou por não ter quem a defenda na jurisprudência ou na doutrina. II – O pedido será manifestamente improcedente quando for evidente que, pelos fundamentos apresentados (causa de pedir) o demandante não tem o direito a que se arroga. III- Tem, por isso, de ser ostensiva, de uma evidência irrecusável, a falta de fundamento jurídico da pretensão apresentada pelo demandante.».
Dito de outro modo, «A manifesta improcedência do pedido reconduz-se aos casos em que a tese propugnada pelo autor não tenha possibilidades de ser acolhida face à lei em vigor e à interpretação que dela façam a doutrina e a jurisprudência.» (cf. o acórdão do venerando Tribunal da Relação de Coimbra de 09 de fevereiro de 2010, processo n.º 4993/09.4T2AGD.C1).
Teremos, pois, de estar perante questão absolutamente incontroversa, indiscutível, segundo todas as questões plausíveis de direito.
Neste sentido, o acórdão do venerando Tribunal da Relação de Coimbra de 02 de março de 2010, processo n.º 682/07.2YXLSB.C1, conclui que « A terminologia de pedido manifestamente improcedente tem a significância de ‘evidente, patente, notória, pública’ ou, como afirma a jurisprudência, de ‘ostensiva, indiscutível, irrefutável, unânime, incontroversa, isenta de dúvidas’, ou, noutra formulação, quando seja inequívoco que o procedimento nunca poderá proceder, qualquer que seja a interpretação jurídica que se faça dos preceitos legais.».
Vejamos, então.
A causa de pedir do pedido ainda remanescente/ vigente consiste num contrato mediante o qual a autora presta atividade doméstica e agrícola a EE, contra o cumprimento da promessa de doação de um terreno. Entre elas, foi esse o acordo que se celebrou, o qual não configura um contrato de trabalho, desde logo por ausência de remuneração fixa e periódica, elemento essencial daquele (e cf. infra se escrutinará melhor).
Ademais, também não foi invocado, quanto a EE, quaisquer factos que se subsumam à subordinação jurídica. E se é certo que os mesmos factos sempre poderiam ser aditados ao abrigo do disposto no artigo 72.º do Código de Processo do Trabalho, por estarmos perante processo laboral, não é menos certo que, que além de a relação laboral já ter terminado por morte de EE, a verdade é que só faria sentido lançar mão do artigo 72.º do Código de Processo do Trabalho se o demais alegado na ação conduzisse – em conjunto com os factos essenciais a aditar pelo Tribunal – ao quadro jurídico traçado pela autora.
O que, na ausência de remuneração periódica, não se verifica.
Mesmo que se remontasse ao início da relação, a conclusão seria a mesma. Se não vejamos.
A autora invoca uma primeira relação laboral, com a família ..., e que materializa na pessoa de CC, para prestação de trabalho doméstico e agrícola, mediante o pagamento de $100,00, além de pernoita e de alimentação. Trabalho esse prestado na casa e nos terrenos da família, e em seu benefício.
Invoca, ainda, que nunca recebeu qualquer salário e que, interpelado o chefe de família, este lhe transmitiu que, em vez do salário receberia um terreno quando se casasse. O qual igualmente não recebeu.
A relação remonta a 1956, data em que se encontrava em vigor a Lei n.º 1952, de 10 de março, publicada no Diário do Governo n.º 57/1937, de 10/03/1937, em cujo artigo 1.º se pode ler que «contrato de trabalho é toda a convenção por força da qual uma pessoa se obriga, mediante remuneração, a prestar a outra a sua actividade profissional, ficando, no exercício desta, sob as ordens, direcção ou fiscalização da pessoa servida.».
Seguiram-lhe diversos diplomas legais, como sejam o Decreto-Lei n.º 47032, de 27 de maio, o Decreto-Lei n.º 49408, de 24 de novembro, sendo que em todos eles, e até aos dias de hoje (com o Código do Trabalho na redação à data da morte da última dos alegas patrões da autora, 2022), se manteve como característica essencial do contrato de trabalho, o pagamento de uma retribuição.
O mesmo se diga do contrato de serviço doméstico, regulado autonomamente no Decreto-Lei n.º 508/80, de 21 de outubro, em cujo artigo 2.º, n.º 1 se contemplou a retribuição como elemento essencial do tipo contratual, característica igualmente mantida no Decreto-Lei n.º 235/92, de 24 de outubro (artigo 2.º, n.º 1).
Também o Código Civil, no seu artigo 1152.º, dita que o «Contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua atividade intelectual ou manual a outra pessoa, sob a autoridade e direção desta.».
É um contrato sinalagmático – embora imperfeito, na medida em que nem todas as prestações têm necessária contraprestação associada (o empregador paga a disponibilidade do trabalhador, ainda que, em dados momentos, não esteja a produzir/em prestação efetiva de trabalho) – e intuitus personae.
O contrato de trabalho é sempre oneroso, e consiste numa obrigação de meios, pelo trabalhador (a sua força de trabalho), sendo que este se encontra sujeito à autoridade da contraparte, a entidade empregadora.
Os três grandes elementos caracterizadores do contrato de trabalho são:
- a atividade laboral (intelectual ou manual), enquanto dever principal do trabalhador, e que consiste na prestação de facto primacialmente positiva, mas que também comporta situações de inatividade, desde que o trabalhador mantenha uma disponibilidade real (não meramente aparente) ao serviço do empregador). A atividade deverá ser continuada, pressupondo a disponibilização da força e da energia de trabalho ao serviço da entidade patronal (configurando, assim, uma obrigação de meios). Em regra, o risco da não obtenção de resultados é suportado pelo empregador. O conteúdo exato da atividade é definido pelo empregador.
- a retribuição, enquanto dever principal do empregador, e que configura uma obrigação periódica (artigo 258.º, n.º 2) de dare, de conteúdo patrimonial, e pelo menos parcialmente pecuniário (artigo 276.º, n.º 1 do Código do Trabalho). O método de cálculo da retribuição – porque abrange outras prestações patrimoniais a cargo do empregador que não a mera contrapartida da prestação laboral – distingue-o de outros tipos contratuais, embora seja um mero fator indiciário.
- a subordinação jurídica do trabalhador, que se encontra sujeito à organização e autoridade, e à autoridade e direção, do empregador. Nisto se manifesta o que PALMA RAMALHO, Maria do Rosário, no seu Delimitação Do Contrato De Trabalho E Presunção De Laboralidade No Novo Código Do Trabalho – Breves Notas, no E-book do CEJ Trabalho Subordinado E Trabalho Autónomo: Presunção Legal E Método Indiciário, 2.ª edição, 2016, p. 55, chama de «binómio subjectivo subordinação jurídica / poderes laborais», sendo este o elemento mais fulcral na densificação do contrato de trabalho, o que, ao nível nacional, é absolutamente unânime, quer na doutrina, quer na jurisprudência.
A autora alega – ainda que de forma parca e algo distribuída entre factos e direito – os três elementos essenciais do contrato de trabalho quanto ao contrato originariamente celebrado com CC em 1956. Porém, também alega, confessando, que, a dada altura que não concretiza, lhe terá sido prometido um terreno para construção, em lugar da retribuição que nunca recebeu.
E daí por diante a relação manteve-se nesse pressuposto, tendo sido com base nessa contraprestação que a relação se desenrolou com as patroas que sucederam a CC, já que – a própria admite – DD e EE sempre lhe asseguraram que a promessa do terreno seria cumprida e foi tudo quanto disseram sobre a contrapartida das tarefas executadas pela autora.
Ora, a entrega de um terreno como contraprestação de uma atividade não pode, de todo, ser considerada como retribuição de um contrato de trabalho, a qual é, por natureza, uma prestação periódica e regular e pelo menos parcialmente em dinheiro. Tem de encontrar cadência e habitualidade, na medida em que o contrato de trabalho se prolonga no tempo, sendo de execução continuada.
Neste pressuposto, pode ler-se no acórdão do colendo Supremo Tribunal de Justiça de 08 de outubro de 2015, processo n.º 292/13.5TTCLD.C1.S1, que «a jurisprudência e a doutrina consideram uniformemente que, se a retribuição for determinada por tempo de trabalho, em função do período de tempo durante o qual se exerce e desempenha a actividade, será de pressupor que se está perante um contrato de trabalho; porém, se o pagamento for feito em função da tarefa, em função do resultado, fixado à hora ou em função do tempo utilizado na execução da tarefa, será um contrato de prestação de serviço.
Inexistindo o pagamento de uma quantia fixa, certa e determinada como contrapartida pela actividade prestada, não se pode considerar como preenchido este requisito de laboralidade.».
E negar a natureza laboral de um contrato quando não contemple a retribuição não significa a admissão de trabalho escravo, como alega a autora, pois uma coisa é a contemplação, outra, bem distinta, é o cumprimento; e o trabalho escravo haverá de ser apreciado noutra sede. Na verdade, ou bem que é um contrato com uma retribuição regular – ainda que não seja paga – e aí (reunidos que sejam os demais pressupostos) poder-se-á falar de contrato de trabalho; ou bem que inexiste uma remuneração periódica e cadente e, então, já não se estará perante uma relação de trabalho.
A partir do momento em que a relação se alterou, com o acordo de uma contrapartida que se esgota num terreno – e tendo a autora deixado de pernoitar na casa da família –, opera uma convolação do contrato alegadamente vigente para um contrato de prestação de serviços.
O contrato de prestação de serviços é definido como «aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição», vem plasmado no artigo 1153.º do Código Civil e conhece diversas modalidades, de entre as quais o contrato de mandato, (cf. os artigos 1154.º, 1555.º, e 1157.º, e seguintes do Código Civil).
Nos termos do artigo 1157.º do Código Civil, «o mandato é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais atos jurídicos por conta da outra», presumindo-se a sua onerosidade quando os atos sejam praticados a título profissional (artigo 1158.º, ambos do Código Civil).
Sendo oneroso, configura um contrato sinalagmático, com obrigações recíprocas para ambas as partes.
Este contrato vigorou por tempo que a autora não concretiza até à morte de CC. Com a morte, o contrato caducou, pois que não estávamos já perante um contrato de trabalho, antes sim de uma prestação de serviços.
Mantendo-se em vigor a relação, pois que a autora permaneceu na execução das tarefas, existirá um acordo tácito nos mesmos termos que o anterior, tanto assim que a autora voltou a assentir, junto de DD, que a compensação da sua prestação seria a concessão do terreno.
E isso mesmo se repetiu com a morte de DD e continuação de prestação de serviços para com EE.
O que vigorou foi um contrato de prestação de serviços – ou, no limite, caso vingue a tese dos réus, uma relação de amizade quase familiar –, distinta da relação laboral e que com ela não se confunde.
Note-se que a esta conclusão se chegará quer se aplique – como fazem os autores – a presunção legal do artigo 12.º do Código do Trabalho, quer não. Aqui, importa recordar que a presunção legal nem sempre vingou, sendo que apenas com o surgimento do Código do Trabalho (aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro), o legislador optou pela contemplação de uma presunção de laboralidade, em respeito pela Recomendação feita no Livro Branco das Relações Laborais, Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social, 2007, e na Recomendação da OIT n.º 198.
Foi instituída após diversas tentativas goradas, em projetos e anteprojetos e nem sempre conheceu a mesma configuração.
Mas as relações (quer a originária, quer as posteriores) remontam a momento bem anterior ao início de vigência do Código do Trabalho, pelo que por princípio nem sequer se deverá avocar a presunção ali instituída para apreciar a relação sub iudice. Cremos que nem sequer a mesma seria usada, mesmo que se entendesse aplicar-se aos autos, já que, como se mencionou supra, é a própria autora quem confessa a inexistência de um dos elementos da relação laboral (concretamente, a retribuição). A presunção é ilidível e configura como que um atalhar da prova, permitindo extrair-se a conclusão de laboralidade a partir de determinados indícios, sem necessidade de prova de todos os elementos do contrato. Porém, tal não se confunde com as situações em que a inexistência de um dos elementos do contrato de trabalho vem assente e confessada, pois nesse caso a presunção está arredada na origem.
Não se nega que à autora possam assistir direitos ou legítimas expectativas emergentes do que lhe foi prometido e do que prestou a cada um dos elementos da família .... Mas essa sua pretensão não será enquadrável como a configura, nem se concretiza em créditos laborais, pelo que, nesta ótica, é manifestamente improcedente.
Por fim, e ainda que se não tenha produzido prova, o Tribunal não pode deixar de concordar que, mesmo que se considerasse que o contrato de trabalho existiu e se manteve, e que se transferiu para a mulher e a filha de CC por morte, a verdade é que sempre a ação improcederia por abuso de direito, na modalidade de suppressio (e não de uenire contra factum proprium, cf. alegado pelos réus).
Com efeito, o instituto do abuso de direito, previsto no artigo 334.º, do Código Civil, constitui uma cláusula de salvaguarda, que procura inibir as condutas que, sustentadas no exercício de um direito, se desviem do sistema jurídico, no sentido de excederem a boa fé, os bons costumes e o fim económico e social.
Configura um instituto de utilização residual, que funciona como último reduto e garante da legalidade e da justiça, e que, devendo embora ser usado com parcimónia, ainda assim deve ser avocado quando perante circunstâncias de gritante violação da boa fé.
Nas palavras de MENEZES CORDEIRO, ob. cit., p. 24, «O abuso do direito reside na disfuncionalidade de comportamentos jurídico-subjectivos por, embora consentâneos com normas jurídicas permissivas concretamente em causa, não confluírem no sistema em que estas se integrem.» e é exatamente a circunstância aqui em apreço.
Trata-se de uma atuação manifestamente abusiva do direito, crassamente ofensiva da justiça, e que (entende unanimemente a jurisprudência dos tribunais superiores) é de conhecimento oficioso – uide o acórdão do venerando Tribunal da Relação de Coimbra de 08/02/2011 (Processo n.º 2022/08.4TBFIG.C1).
Poderá assumir diversas vestes (cf. MENEZES CORDEIRO, António, no seu Do abuso do direito: estado das questões e perspectivas, disponível online em https://www.oa.pt/conteudos/artigos/detalhe_artigo.aspx?idsc=45582&ida=45614, (consultado em 08/04/2024), mas tem aplicação residual, devendo ser chamado quando nenhum outro se adeque.
Conforme ensina MENEZES CORDEIRO, ob. Cit., p. 20, «A suppressio (supressão) abrange manifestações típicas de “abuso do direito” nas quais uma posição jurídica que não tenha sido exercida, em certas circunstâncias e por certo lapso de tempo, não mais possa sê-lo por, de outro modo, se contrariar a boa fé. […] a suppressio é uma forma de tutela do beneficiário, confiante na inacção do agente. Teríamos, no fundo, uma espécie de venire, em que o factum proprium seria constituído por uma simples inacção. Esta, porém, nunca poderá ser tão clara e óbvia como um comum factum proprium. Por isso, o correspondente modelo de decisão será um pouco mais complexo do que o da habitual tutela da confiança:
— um não-exercício prolongado;
— uma situação de confiança, daí derivada;
— uma justificação para essa confiança;
— um investimento de confiança;
— a imputação da confiança ao não-exercente.
O quantum do não-exercício será determinado pelas circunstâncias do caso: o necessário para convencer um homem normal, colocado na posição do real, de que não mais haveria exercício. A justificação será reforçada por todas as demais circunstâncias ambientais capazes de conformar essa convicção, legitimando-a.
Quer isto dizer que, no fundo, o confiante ex bona fide, vê surgir, na sua esfera, uma nova posição jurídica: será a surrectio (surgimento)(106), contraponto da suppressio.» (negrito e sublinhado nossos).
No caso dos autos, a autora terá iniciado funções em 1956 sem nunca ter recebido qualquer quantia. Interpelada a sua alegada entidade patronal, na pessoa de CC, por este foi dito que, em vez de salário, receberia um terreno quando se casasse, com o que a autora se conformou.
Casou-se e nada recebeu. Interpelou a mulher daquele, após a sua morte, e, após a morte desta, interpelou a filha de ambos, que mantiveram a intenção de lhe doar o terreno.
Conformou-se e perpetuou os trabalhos.
Segundo alega, durante mais de 6 décadas diariamente continuou a exercer as funções naquela casa e terrenos e nunca reagiu à ausência de pagamento. Veio, 67 anos depois do contrato original, peticionar os seus direitos, num momento em que todos os herdeiros legitimários faleceram já e em que nenhuma das pessoas envolvidas se encontra viva por forma a poder depor.
Os réus são legatários da falecida EE, sedo-lhes perfeitamente razoável e legítimo esperar que, não tendo os direitos sido exercidos ao longo de 67 anos, não mais o sejam. Ademais, é contrário à boa fé o seu exercício num momento tão tardio que além de ter legitimado a convicção de que não o seria, também inviabiliza ou pelo menos dificulta substancialmente a prova da parte contrária.
Por conseguinte, ainda que a pretensão da autora não claudicasse com base no primeiro argumento – que é nossa convicção firme – sempre claudicaria por abuso de direito na modalidade de supressio, sendo, assim, manifestamente improcedente a presente ação.
Dito de outro modo: mesmo que se prove tudo quanto vem alegado pela autora, a sua pretensão não vingará.
Ficam prejudicadas as demais questões levantadas, nomeadamente de prescrição e caducidade.» (Fim de citação).
Desta discorda a apelante, com base nos argumentos que invoca, concluindo que se afigura, “razoavelmente evidente e demonstrado que: quase não existem factos incontroversos; a quase totalidade dos factos respeitantes à relação contratual mostra-se impugnada; a decisão do Tribunal a quo não assenta em factos aceites ou assentes; a apreciação dos fundamentos da manifesta improcedência da acção está directamente ligada com a apreciação do mérito da causa e consequentemente com a prova a produzir e existem várias soluções plausíveis para a aplicação do direito, para além daquelas em que assenta a sentença” e conclui, ainda, que se mostra “violado o previsto no artigo 61º nº2 do C.P.T.”, assim, pugnando pela revogação da decisão sobre a manifesta improcedência da acção e a sua substituição por uma outra que ordene o prosseguimento dos ulteriores termos da presente acção.
Desta opinião, de que o processo deveria prosseguir para julgamento, partilha o Ex.mo Procurador, conforme decorre do parecer emitido nos autos.
E, na nossa opinião, cremos assistir-lhes razão.
Analisados os autos e como resulta do alegado, a presente questão, traduz-se em saber se o Tribunal “a quo”, quando conheceu do mérito da causa, nos termos em que o fez, detinha todos os elementos necessários para o efeito, ou se, ao invés, tal não sucedia e deveria a acção ter prosseguido para instrução, com produção probatória.
Questão que nos leva a apreciar em que condições tem de estar o julgador para poder conhecer do mérito da causa, em fase de saneamento dos autos, sem que se mostre necessária a realização de audiência de julgamento, ou seja, sem a produção de quaisquer outras provas.
Pois, nos termos do nº 2, do art. 61º, do CPT, “Se o processo já contiver os elementos necessários e a simplicidade da causa o permitir, pode o juiz, sem prejuízo do disposto nos nºs 3 e 4 do artigo 3º do Código de Processo Civil, julgar logo procedente alguma exceção dilatória ou nulidade que lhe cumpra conhecer, ou decidir do mérito da causa”. E, de igual modo, permitindo que o juiz o faça, no despacho saneador, dispõe o art. 595º, nº 1, al b) do CPC, o seguinte: “Conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória.”.
Decorre destes que, o juiz conhecerá, total ou parcialmente, do mérito da causa no despacho saneador quando não houver necessidade de provas adicionais, para além das já processualmente adquiridas nos autos, em concreto, se (o processo já contiver os elementos necessários e a simplicidade da causa o permitir), encontrando-se, por isso, já habilitado, de forma cabal, a decidir conscienciosamente sobre o mérito da causa.
Ou seja, o conhecimento imediato do mérito só se realiza no despacho saneador se o processo possibilitar esse conhecimento, o que não ocorre se existirem factos controvertidos que possam ser relevantes, segundo outras soluções igualmente plausíveis da questão de direito. Pois, ao despacho saneador não cabe antecipar qualquer solução jurídica e, muito menos, desconsiderar quaisquer factos que sejam relevantes segundo outros enquadramentos possíveis do objecto da acção. De modo que, se os elementos fornecidos pelo processo não justificarem essa antecipação, o processo deve prosseguir para a fase da instrução, realizando-se a apreciação do mérito na sentença final.
Como se lê, no (Ac. do TRG de 22.10.2020. Proc. nº 1002/19.9T8VNF-A.G2, relator Desembargador Ramos Lopes), “Decorre do art. 595º, nº 1, b) do CPC, que o julgamento da causa no saneador, findos os articulados, tem como pressuposto estarem já apurados todos os factos relevantes para a decisão da causa – o que não acontece quando provas admissíveis e aptas à demonstração (e contraprova) de parte deles não foram ainda produzidas em vista de proceder ao julgamento sobre a sua veracidade”. E, em idêntico sentido, no sumário, do (Ac. desta Relação e secção, de 22.05.2019, Proc. nº 3610/18.6T8MTS.P1, relator, Desembargador Nelson Fernandes e subscrito pela, agora, relatora, ambos in www.dgsi.pt) sintetizou-se o seguinte: “I - O conhecimento do mérito no despacho saneador pressupõe que não existam factos controvertidos indispensáveis para esse conhecimento, ponderando as diferentes soluções plausíveis de direito.
II - Face ao referido em I, apesar do juiz se considerar habilitado a conhecer do mérito da causa segundo a solução que julga adequada, com base apenas no núcleo de factos incontroversos, caso existam factos controvertido com relevância para a decisão, segundo outras soluções também plausíveis de direito, deve abster-se de conhecer, na fase de saneamento, do mérito da causa.”.
Regressando ao caso, verifica-se que a Mª Juíza “a quo”, invocando o nº 2 daquele referido art. 61º, supomos, no entendimento de que o processo continha já todos os elementos indispensáveis ao conhecimento do mérito do pedido, conheceu logo dele e julgou improcedente a presente acção.
Mas, analisando o caso, cremos não ser essa a situação.
Senão, vejamos.
Sem dúvida, como bem o refere a apelante, na petição inicial foi alegada factualidade pela mesma que, tendo sido impugnada pelos Réus na contestação, teremos de ter nesta fase como controvertida, aí se incluindo, para além do mais, e desde logo, a alegada nos artigos 1º a 3º, em que se invoca, designadamente, que foi admitida ao serviço da família ... como “criada de servir” (na terminologia da época), tendo-lhe sido prometido um salário de 100 escudos por mês, (Que acabou por nunca ser pago nem parcial nem totalmente), acrescido de alojamento e alimentação, que a família ... era então composta por CC e esposa DD e ainda pela filha, menor, EE, que toda a família ... residia na mesma casa sita na Rua ..., em ..., onde a Autora também passou a residir e a tomar as refeições.
Pois bem, sendo deste modo e sendo verdade que na contestação os réus invocam considerar que a atividade desenvolvida pela autora não se inseria, como a mesma reclama, num contrato de trabalho, alegando que, “desde 1957 até 06.09.1995 e até 01.01.2001, datas dos óbitos, respetivamente, de CC e de DD, ou seja, durante 44 anos, a autora prestou serviços a CC e a DD, aceitando como contrapartida a promessa de doação de um terreno, ou seja, durante mais de 21 anos”, que “a autora não recebeu qualquer salário, seguramente porque a autora considerava que não tinha direito de o receber”, invocando, ainda, assim, a prescrição dos créditos laborais da A., não é menos verdade, como bem demonstra o supra referido, que foi alegada na petição inicial factualidade que demonstra que, desde sempre a A. recebeu, pelo menos, parte da alegada retribuição, de início até ao seu casamento, traduzida no alojamento e alimentação e, depois daquele, durante toda a vigência do alegado contrato, através da alimentação (veja-se artigo 63º da p.i.), já que, depois de casada, apenas, em situações pontuais (de doença dos elementos da família) voltou a pernoitar na casa da família ....
Parece-nos, assim, ser manifesta a existência de factos controvertidos com relevância para a decisão.
E, sempre com o devido respeito não permitem, nesta fase, os factos incontroversos apurados nos autos, formular as conclusões, constantes da decisão recorrida de que: “A partir do momento em que a relação se alterou, com o acordo de uma contrapartida que se esgota num terreno – e tendo a autora deixado de pernoitar na casa da família –, opera uma convolação do contrato alegadamente vigente para um contrato de prestação de serviços.”, nem a que se lhe segue, onde se diz que: “Os réus são legatários da falecida EE, sendo-lhes perfeitamente razoável e legítimo esperar que, não tendo os direitos sido exercidos ao longo de 67 anos, não mais o sejam. Ademais, é contrário à boa fé o seu exercício num momento tão tardio que além de ter legitimado a convicção de que não o seria, também inviabiliza ou pelo menos dificulta substancialmente a prova da parte contrária.”.
Pois, importa não esquecer, qual é a questão em discussão e que, como é sabido, se à A. compete provar a existência do, alegado, contrato de trabalho de serviço doméstico, nas circunstâncias que o descreve (diga-se, bem comum e normal na época em que teve início), já a prova do pagamento das contrapartidas acordadas, compete aos RR., e não esquecer, também o que dispõe o art. 337º do actual CT, corresponde ao art. 381º, do CT/2003 que por sua vez, correspondia ao art. 38º da LCT.
Acrescendo, ainda, como referimos que, se é certo que, o nº 2 do art. 61º, do CPT (veja-se, também, art. 595º, nº 1, al. b), do CPC), possibilitam o conhecimento do mérito na fase do saneador, considera-se porém que, nesses casos, não basta que os elementos existentes permitam esse conhecimento segundo uma das soluções plausíveis e sim, noutros termos, que aqueles permitam esse conhecimento de acordo com as várias soluções plausíveis para a aplicação do direito.
Ou, ainda, não se deve passar desde logo ao conhecimento do mérito, com base no citado normativo, se esse conhecimento apenas tiver na base alguns dos elementos alegados, com omissão porém da discussão da causa de factos, também alegados, nessa fase ainda controvertidos, indispensáveis para a apreciação do mérito, ponderando as diferentes soluções plausíveis de direito.
Pois, se é certo que é importante que a decisão jurisdicional seja pronta, é ainda mais certo e relevante, que ela seja justa, como bem se refere no (Ac. do TRL de 03.12.2020, Proc. nº 4711/18.6T8LRS-A.L1-2 in www.dgsi.pt), onde se lê: “Em nítida obediência aos princípios da celeridade e da economia processuais, a lei quer que o mérito da causa seja arrumado logo no saneador. Mas não sacrificou a esses princípios outras exigências também axiologicamente relevantes. O mérito da causa será julgado no despacho saneador se a questão puder ser decidida nesse momento, i.e., se o processo o permitir, sem necessidade de mais provas.”.
Ora, no caso, é evidente que se encontram controvertidos factos que se mostram carecidos de prova, indispensáveis para a apreciação do mérito, ponderando as diferentes soluções plausíveis de direito, ao contrário do que foi o entendimento reflectido na decisão recorrida. Razão porque, não nos é possível concordar com aquela, desde logo, ao concluir ser possível conhecer do mérito da presente acção, no saneador, como foi feito, em nosso entender, obviamente, prematuramente.
Em suma, face a todo o exposto, sempre com o devido respeito, por diversa opinião, em nosso entender, os elementos fornecidos pelo processo não justificavam a antecipação do juízo sobre o mérito, como o entendeu o Tribunal recorrido por, além de existirem factos controvertidos relevantes, existirem outras soluções plausíveis da questão de direito, mostrando-se, assim, violado o disposto no nº 2 do art. 61º, do CPT, como bem o invocou a recorrente.
Em consequência, impõe-se a revogação desse despacho e a sua substituição por outra decisão, incluindo a prolação de despacho de identificação do objeto do litígio e de enunciação dos temas da prova, e posterior julgamento, para conhecimento dos factos alegados e, ainda, controvertidos, nesta fase.
Procede, assim, esta questão da apelação.
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III – DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se nesta secção em julgar, parcialmente, procedente a apelação e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida (saneador/sentença), na medida em que julgou improcedente a acção e, consequentemente, em sua substituição, determina-se o prosseguimento dos ulteriores termos do processo, incluindo, com a prolação de despacho de identificação do objeto do litígio e de enunciação dos temas da prova e posterior julgamento.
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Custas pela A. e pelos RR., na proporção de ¼ e ¾, respectivamente, sem prejuízo de eventuais apoios judiciários de que beneficiem.
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Porto, 18 de Novembro de 2024
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O presente acórdão é assinado electronicamente pelos respectivos,
Rita Romeira
Rui Penha
Maria Luzia Carvalho