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ARROLAMENTO
INCAPACIDADE JUDICIÁRIA
INCAPACIDADE NATURAL
MORTE
HABILITAÇÃO DE SUCESSORES
RATIFICAÇÃO DO PROCESSADO
Sumário
I - A incapacidade judiciária por razões de incapacidade natural é sanável mediante a intervenção e ratificação do representante legal que vier a ser nomeado ao incapaz. II - A morte do incapaz que não seja causa da extinção da instância, ocorrida antes da sanação da excepção, não é impeditiva dessa sanação. III - Se a parte incapaz falece antes de a excepção ser decidida, deixa de ser necessário nomear um representante legal e a intervenção e ratificação passa a caber aos sucessores da parte que vierem a ser habilitados para os termos da lide. IV - Se um dos sucessores já é, em simultâneo, parte na acção, no pólo oposto ao do incapaz, a intervenção e ratificação dos actos praticados pelo incapaz cabe apenas aos restantes sucessores.
Texto Integral
RECURSO DE APELAÇÃO ECLI:PT:TRP:2024:1196.18.0T8PVZ.E.P1
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SUMÁRIO:
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ACORDAM OS JUÍZES DA 3.ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:
I. Relatório:
Em 7 de Maio de 2018, AA, casado, contribuinte fiscal nº ..., com o cartão de cidadão nº ..., residente na ..., instaurou procedimento cautelar de arrolamento contra BB, contribuinte fiscal n.º ..., com o cartão de cidadão nº ..., casada sob o regime da separação de bens com o requerente, residente em ..., Vila do Conde, CC, contribuinte fiscal número ..., residente em ..., DD, contribuinte fiscal n.º ..., residente na Trofa, EE, contribuinte fiscal n.º ..., residente em ..., e FF, contribuinte fiscal n.º ..., residente em ..., pedindo o arrolamento de diversos bens móveis e imóveis.
O requerimento inicial foi instruído com uma procuração datada de 8 de Março de 2018 e na qual o requerente concede aos filhos GG e HH, entre outros, poderes para o representar «perante quaisquer tribunais, neles praticando e assinando todos os actos necessários à defesa dos meus direitos e interesses, receberem citações e, caso tal se mostre obrigatório ou necessário, proporem e requererem acções, seus incidentes ou recursos, receberem primeiras citações e notificações, conferindo-lhes poderes forenses gerais e os especiais para, confessar, desistir e transigir em qualquer processo em que seja autor ou réu, assistente ou interessado, os quais deverão ser substabelecidos em advogado» - alínea q) -.
Foi instruído ainda com um termo de autenticação notarial datado de 12 de Março de 2018, na qual é declarado que o requerente «para fins de autenticação, me apresentou a procuração anexa, que já assinou, declarando estar inteirado do seu conteúdo e que a mesma exprime a sua vontade», e com substabelecimento forense datado de 27 de Abril de 2018, na qual os filhos do requerente GG e HH «substabelecem os poderes que lhes foram outorgados pelo seu pai, AA, … pela Procuração Notarial anexa, outorgada a 8 de Março de 2018» no mandatário subscritor do requerimento inicial, «nos quais substabelecem os poderes ínsitos na alínea q) da procuração anexa».
Quando foi chamada da deduzir oposição, a requerida BB veio opor-se, entre outras coisas, excepcionando a incapacidade judiciária do requerente e a inexistência de mandato, mediante a alegação de que desde o Natal de 2017 requerente se encontra num estado de demência e senilidade, mal se percebendo as palavras que profere, com perda de memória e de noção de tempo, desorientação e dificuldades motoras, sem conseguir acompanhar conversas, com alterações repentinas de humor, mostrando-se ansioso, desconfiado, confuso e até violento, em estado de total incapacidade de entender sequer o alcance e efeitos dos poderes conferidos na procuração, bem como de assinar e subscrever a mesma.
Tramitados os autos, acabou por ser proferida a seguinte decisão:
«A Requerida BB excepcionou a incapacidade judiciária do requerente AA alegando, em síntese, que a partir de 2012, este começou a demonstrar sintomas de perda de memória, que se foram agravando, tendo-lhe sido diagnosticada demência progressiva e medicado, designadamente, com Ebixa, cujo princípio activo é a substância farmacológica memantina, prescrita a doentes com a Doença de Alzheimer, desde moderadamente grave até grave e muito grave; referiu que, até final de 2017, ainda mantinha discernimento, quanto à maior parte do tempo, relativamente aos seus actos e à formação da sua vontade, mas em vésperas de Natal, após um encontro com a filha, manteve um estado de agitação anormal e antes de ser servida a Ceia de Natal teve um ataque convulsivo, caiu prostrado na cadeira e não mais se lhe ouviu uma palavra, comunicando através de acenos de cabeça; acrescentou que o estado de demência do requerente se agudizou, mal se percebendo as palavras que tentava balbuciar, que se assemelhavam a gemidos e grunhidos, manifestando perda de memória e de noção de tempo, desorientação e dificuldades motoras.
O requerente foi notificado, mas não se pronunciou sobre a excepção.
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Fundamentação de facto: […]
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Motivação: […]
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Fundamentação de Direito
O artigo 15º do Código de Processo Civil estatui que a capacidade judiciária consiste na susceptibilidade de estar, por si, em Juízo e que a mesma tem por base e por medida a capacidade do exercício de direitos.
Por sua vez, o artigo 16º, na redacção que vigorava à data da entrada do presente procedimento cautelar dispunha “os incapazes só podem estar em juízo por intermédio dos seus representantes, ou autorizados pelo seu curador, excepto quanto aos actos que possam exercer pessoal e livremente” sendo certo que na redacção introduzida pela Lei nº 49/2018 de 23 de Agosto estabelece “os menores e os maiores acompanhados sujeitos a representação só podem estar em juízo por intermédio dos seus representantes, excepto quanto aos actos que possam exercer pessoal e livremente”.
Tratamos de um pressuposto processual, cuja não verificação corresponde a uma excepção dilatória de conhecimento oficioso como decorre dos artigos 278º nº 1 alínea c) segunda parte, 576º nº 2 e 577º alínea c) do Código de Processo Civil. No entanto, estamos perante uma excepção suprível, como resulta dos artigos 27º, 28º e 278º nº 3, mormente, a título oficioso.
O Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 3 de Março de 2022 salienta que o Código de Processo Civil não regula a incapacidade judiciária de facto no lado activo, excepto quando a acção a propor seja urgente, chamando à colação o artigo 17º nºs 1 e 4 do diploma em referência, que determina o seu suprimento através de nomeação pelo Juiz de um curador provisório, com prévia pronúncia do Ministério Público.
Não concordamos inteiramente: o artigo 27º já citado prevê, no seu nº 1, que a incapacidade judiciária e a irregularidade de representação são sanadas mediante a intervenção ou a citação do representante legítimo do incapaz, concretizando, no nº 2 que, se estes ratificarem os actos anteriormente praticados, o processo segue como se o vício não existisse e, no caso contrário, fica sem efeito todo o processado posterior ao momento em que a falta se deu ou a irregularidade foi cometida, correndo novamente os prazos para a prática dos actos não ratificados, que podem ser renovados. A razão da nossa discordância reside no regime contido no nº 4, norma que, regulando situações de prescrição ou caducidade, decorrentes do termo do prazo, refere no primeiro segmento “sendo o incapaz autor e tendo o processo sido anulado desde o início” para, de seguida encontrar a solução, de conceder um prazo de dois meses subsequentes e imediatos à anulação, período em que a prescrição e a caducidade não se consideram completadas.
Daqui decorre que, no plano activo, verificado que o demandante não tem capacidade judiciária, tem de ser providenciado oficiosamente pelo suprimento dessa falta, diligenciando o Juiz pela intervenção do representante legítimo do incapaz com vista à eventual ratificação dos actos pelo mesmo praticados.
Importa notar que o artigo 17º prevê que se o incapaz não tiver representante geral deve ser requerida a nomeação dele ao Tribunal competente.
No caso específico dos processos urgentes, há uma nuance, na medida em que o Juiz da causa designa imediatamente curador provisório, o qual, tanto no decurso do processo como em sede de execução da sentença proferida, pode praticar os mesmos actos que competiriam ao representante geral, cessando as suas funções logo que o representante nomeado ocupe o lugar dele no processo.
Naturalmente, a designação do curador provisório tem a finalidade de levar à sua consideração o acto processual praticado pelo demandante e a ponderação se deve ou não ratifica-lo, pois da ratificação depende o suprimento da incapacidade e o prosseguimento da lide, sendo que a sua falta determinará a anulação do processado e a absolvição da instância dos sujeitos passivos .
No caso dos autos, constata-se que AA não tinha capacidade de compreender o alcance e propósito da procuração, cuja assinatura foi autenticada a 12 de Março de 2018, e da qual resultara a atribuição de poderes especiais a seus filhos HH e GG, designadamente, os de propor acções necessárias à defesa dos seus direitos e interesses, dando origem ao presente procedimento cautelar.
Caso não tivesse ocorrido o seu falecimento, o passo seguinte seria nomear curador provisório, que decidiria ratificar ou não o requerimento inicial do procedimento cautelar e os restantes actos processuais praticados em nome e representação de AA.
Ocorrido o óbito em momento anterior ao apuramento da incapacidade, não faz sentido nomear curador especial; porém, sendo a incapacidade processual uma excepção dilatória suprível, deve entender-se, em contrapartida, que cabe, em conjunto, aos herdeiros habilitados para ocupar na lide o lugar do sujeito processual activo, tomar a decisão de ratificação dos actos processuais praticados ao abrigo da procuração que foi outorgada por pessoa incapaz de compreender o seu alcance e propósito em virtude do quadro de demência de que padecia.
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Decisão:
Pelo exposto, julgando procedente a excepção dilatória por incapacidade processual de AA, o Tribunal determina a notificação pessoal dos herdeiros habilitados identificados no ponto 12) da fundamentação de facto para, em dez dias, declararem, em conjunto, se ratificam os actos processuais praticados em nome daquele. (…)»
Do assim decidido, a requerida CC interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
A. A decisão recorrida padece de erro por omissão quanto à matéria de facto, porquanto da prova documental existente nos autos resultam ainda provados os factos a seguir indicados e que devem ser aditados à matéria de facto: “13. Antes de subscrever a procuração com termo de autenticação de 12 de Março de 2018, o falecido AA não intentou qualquer acção contra os aqui RR.”.
B. Tal facto tem de ser dado como provado porque, além de inerente pela prova dos demais factos dados como provados, resulta dos autos conforme documentos existentes nos mesmos e não impugnados ainda por força do disposto nos arts.º 412º e 413º do C.P.C..
C. Mais resulta dos autos e da factualidade dada como provada desde pelo menos 8 ou 12 de Março de 2018 (data da autenticação) o requerente AA padecia de síndrome demencial de forma irreversível e em tal grau que a compreensão e o alcance dos actos estava comprometida.
D. Pelo que se tem de inferir que todos os actos praticados pelo mesmo desde pelo menos tal data, são nulos e de nenhum efeito nos termos do art.º 294º do C.C., nomeadamente o mandato constante da procuração com base nos quais os presentes autos foram instaurados.
E. Verificando-se que, à data em que foi conferido o mandato destes autos já havia sido suscitada em outros processos a questão da incapacidade do primitivo requerente, em que eram intervenientes os mesmos mandatários, era do conhecimento destes que estes autos não podiam ser intentados sem que previamente se desse cumprimento ao disposto no art.º 17º do C.P.C.
F. Tendo estes autos sido intentados em 07 de Maio de 2018, ou seja mais de dois meses sobre Março de 2018, sem que tivesse sido dado cumprimento ao disposto no art.º 17º do C.P.C. e 138º do C.C. têm os RR. de ser absolvidos da instância nos termos da al. c) do nº 1 do art.º 278º do C.P.C., por não ter aqui aplicação o nº 2 do art.º 6º do C.P.C. por não se tratar de situação de ratificação.
G. Pois que, a falta de capacidade exige a prévia nomeação pelo tribunal de um representante ao incapaz nos termos do art.º 17º do C.P.C., o que no caso se trata de situação urgente é feito através de curador provisório, cf. nº 1.
H. A nomeação de representante ou curador provisório ao incapaz é condição sine qua non para este poder intervir intentando como requerente qualquer litígio em juízo.
I. Já não sendo assim quando está na posição de Réu/requerido pois que aí só depois da citação sendo que esta já só ocorre na pessoa do representante nomeado.
J. Ao não decidir pela falta de cumprimento do disposto no art.º 17º do C.P.C. e ao não absolver da instância os requeridos nos termos da al. c) do nº 1 do art.º 278º do C.P.C., a Exma. Sra. Juiz a quo violou as normas em causa, bem como o disposto nos arts.º 138º e 139º do C.C.
K. Verificada a incapacidade prévia ao procedimento cautelar, tudo se passa como se fosse a situação inicial, e por isso tem de ocorrer a absolvição da instância, por forma a salvaguardar a nomeação de representante ou curador provisório.
Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis que mui doutamente serão supridos deve o presente recurso ser dado como procedente por provado e, em consequência deve a decisão ser alterada seja quanto à matéria de facto que omitiu, seja quanto à decisão de suprimento de irregularidade, devendo nesta parte ser revogada e decidida a absolvição da instância quanto a todos os requeridos.
Recorreu também a requerida BB, a qual conclui as suas alegações de recurso da seguinte forma:
1. O despacho recorrido violou o princípio do contraditório plasmado no art. 3º, nº 3, do C.P.C., consubstanciando uma verdadeira decisão-surpresa.
2. A inobservância do contraditório constitui uma omissão grave, representando uma nulidade processual sempre que seja susceptível de influir no exame ou na decisão da causa, sendo nula a decisão (surpresa) quando à parte não foi dada possibilidade de se pronunciar sobre factos e respectivo enquadramento jurídico (designadamente seu alcance e efeitos), por excesso de pronúncia, nos termos arts. 615º, nº 1, al. d), 666º, nº 1, e 685º do mesmo diploma, aplicáveis aos despachos ex vi o disposto no art. 613º, nº 3, do C.P.C.
3. Quando a nulidade está acobertada por uma decisão judicial – despacho ou sentença – o meio de reacção próprio é o recurso.
4. No caso vertente, a pretensa sanação - que não se concede - quer da incapacidade de facto do Autor, quer da inexistência/nulidade de mandato - esta que a Senhora Juiz reconhece, embora não a faça constar expressamente -, nos termos decididos no douto despacho recorrido, não foi suscitada por nenhuma das partes, nem pelo Tribunal, em momento prévio ao proferimento do despacho recorrido.
5. Tendo a Recorrente arguido as excepções em apreço em sede de Oposição - na qual concluiu peticionando a absolvição dos requeridos da instância - o requerente, não obstante ter sido notificado para o efeito, nada respondeu.
6. No excurso processual, foram pelo Tribunal a quo proferidas decisões que contradizem o que, a final, veio a decidir: o despacho proferido em 04/04/2022, com a referência 435242804, e o despacho proferido em 13/05/2022, com a referência 436559576.
7. A decisão proferida não era expectada pela Recorrente, nem foi por ela configurada como possível, não podendo ser assacada à parte qualquer obrigação de a prever: tanto mais que a mesma não emerge de qualquer norma legal que aquela tivesse de conhecer.
8. Ao invés, a decisão proferida pelo Tribunal a quo consubstancia um contorcionismo jurídico que afasta a única e óbvia solução de Direito que emerge dos preceitos legais aplicáveis: a imediata procedência das excepções alegadas e a consequente absolvição da instância.
9. O recurso ao poder-dever ínsito no art. 6º, do C.P.C., não legitima o julgador a criar soluções jurídicas diversas daquelas que impõem o Direito aplicável e assentes num absoluto vácuo jurídico.
10. Com o devido respeito, face aos elementos dos autos, impõe-se a alteração da matéria de facto dada como provada.
11. Face aos elementos constantes dos autos impõe-se o aditamento aos factos dados como provados da seguinte matéria de facto, a qual se reputa essencial para a boa decisão da causa:
“13. A petição inicial deu entrada em juízo no dia 07/05/2018.”
“14. A partir de 12 de Fevereiro de 2018 o requerente passou a viver com a sua filha HH.”
“15. Antes de subscrever a procuração datada de 8 de Março e com termo de autenticação de 12 de Março de 2018, o falecido AA não tinha intentado qualquer acção contra os aqui RR.”
“16. Foi com base na procuração datada de 8 de Março e com termo de autenticação de 12 de Março de 2018 que os procuradores outorgaram substabelecimentos a favor dos Srs. advogados Dr. II, C.P. ...- P e Dr. JJ, C.P. ...-P para estes instaurarem, para além dos presentes autos de arrolamento, os Procs. nºs 605/19.6T8PVZ e 1196/18.0T8PVZ e o processo de divórcio 3551/18.7T8MTS”.
12. O facto 13 resulta do teor da P.I. e da data certificada pelo Citius.
13. O facto 14 resulta do acordo das partes quando cotejados os arts. 35º, 36º, 37º, 38º e 39º da P.I. com os arts. 24º, 25º, 26º, 27º, 28º, 29º, 30º, 31 e 32º da Oposição.
14. O facto 15 e 16 resulta comprovado por acordo do que decorre do teor da P.I. e da Oposição, mormente os seus arts. 36º, 37º, 38º, 39º, 40º, 41º, 42º, 43º, 44º, 45º e 46º, da falta de resposta à Oposição, falta de impugnação dos documentos com este articulado juntos, da procuração plenipotenciária e do substabelecimento que instruíram a P.I., mais sendo do conhecimento funcional do Tribunal, nos termos dos arts. 412º e 413º, do C.P.C..
15. Face à matéria de facto dada como provada, incluindo aquela que resulta da sua impugnação, é patente o erro de julgamento de Direito em que incorre a Senhora Juiz a quo.
16. Face à matéria dada como provada e o teor do relatório pericial é inequívoco que o requerente padecia de demência incapacitante e irreversível, quer à data da outorga da procuração datada de 8 de Março de 2018, objecto de autenticação no dia 12 de Março de 2018, quer à data da interposição da acção.
17. A incapacidade de facto de que padecia o requerente resulta na sua incapacidade jurídica que está a montante e precede a incapacidade judiciária enquanto pressuposto processual.
18. Em Maio de 2018 – data da interposição da presente acção -, estava completamente comprometida a capacidade do requerente para compreender o próprio alcance da interposição da presente acção, bem como o seu conteúdo e consequências, como comprometida estava a sua vontade de livre, esclarecida e conscientemente a intentar.
19. Em Maio de 2018, o requerente não tinha capacidade para avaliar: a) a validade ou invalidade do próprio acto postulativo; b) se pretendia ou não pretendia propor a acção; c) se acção deveria ter aqueles ou outros fundamentos; d) que pretensão em concreto colocar ao Tribunal.
20. Em Maio de 2018, o requerente não tinha capacidade de entender, querer, saber e ter consciência da interposição da presente providência de arrolamento.
21. E tanto assim é que os verdadeiros mentores desta acção são os seus filhos GG e HH, como se retira do teor da P.I., todo ele centrado na pessoa destes e carregado de fel e azedume, dos próprios, contra a Recorrente.
22. Irremediavelmente inquinada estava também a capacidade do requerente para compreender o alcance, propósito e efeitos da procuração plenipotenciária que outorgou a favor dos seus referidos filhos e com base na qual estes substabeleceram poderes forenses no Ilustre Mandatário subscritor da P.I., o que era do conhecimento destes filhos (cf. art. 46º da Oposição), e resulta comprovado pelo teor do relatório clínico junto aos autos pelo Senhor Dr. KK – e é reconhecido na motivação da decisão da matéria de facto na decisão recorrida – e pelos relatórios clínicos pela A... juntos aos autos.
23. De tudo decorrendo a nulidade quer da própria petição inicial, enquanto acto jurídico e postulativo, quer da procuração plenipotenciária, quer do substabelecimento outorgado com base naquela, cf. arts. 246º, 247º e 295º, do C.C., o que se alega para os devidos e legais efeitos.
24. Pelo que sendo nulos esses actos, não são passíveis de qualquer sanação – muito menos pelos herdeiros habilitados do requerente que, aproveitando-se da demência do seu Pai, dele obtiveram a referida procuração plenipotenciária, no uso da qual dissiparam todo o seu património - incluindo a metade que pertencia à Recorrente - em seu proveito e imbuídos de ódio figadal promoveram uma sanha persecutória contra a aqui Recorrente, com o claro intuito de a deixar na mais extrema penúria, sem tecto e arredada da herança do requerente.
25 - O C.P.C. não regula, como princípio, a incapacidade judiciária de facto no lado activo; apenas define o que é incapacidade no art. 15º e no art. 16º refere que os incapazes devem estar em juízo através dos seus representantes, pressupondo que os mesmos estejam já nomeados.
26. A incapacidade judiciária do lado activo encontra regulação no art. 17º, do C.P.C., que trata da nomeação de curador provisório em casos de urgência.
27. No caso dos autos, à data da interposição da acção o requerente estava num estado já de absoluta incapacidade demencial de que padecia, completamente desacompanhado de representante nomeado em processo próprio para o efeito.
28. Não foi acautelada a nomeação de curador provisório, nem de representante ao requerente na pendência dos autos.
29. Na nomeação de representante ou de curador provisório ao incapaz, para efeitos de interposição de uma acção, é avaliada a idoneidade do nomeado, bem como se o mesmo tem qualquer conflito de interesses, já que a estes é cometida a consideração do acto processual que o incapaz pretende praticar e a ponderação de se deve ratificá-lo ou não.
30. O requerente faleceu na pendência dos autos.
31. Perante tais circunstancialismos, a solução de direito é uma só: a absolvição da instância.
32. A solução de direito adoptada pela Senhora Juiz a quo é absolutamente esdrúxula e não tem qualquer sustentáculo e enquadramento legal.
33. A Senhora Juiz a quo decidiu conferir àqueles que foram habilitados em incidente processado numa acção reconhecidamente intentada por um incapaz já falecido legitimidade para suprirem a incapacidade judiciária do requerente e a inexistência/nulidade do mandato – que a Senhora Juiz reconhece, embora não o diga expressamente - e ratificarem todo o processado.
34. Ora, esta solução mais que uma impossibilidade lógica é uma impossibilidade ontológica!
35. Pergunta-se: que norma é que confere aos sucessores habilitados as prerrogativas e poderes conferidos ao representante nomeado em sede de acção própria para o efeito, nos termos do art. 27º do C.P.C.?
36. Como podem os habilitados num incidente inquinado pelo pecado original de que padece a própria interposição da acção serem, eles mesmos, a ratificarem o processado e a sanarem os vícios que geram a invalidade da sua habilitação?
37. Tal solução é, com o devido respeito, destituída de qualquer mérito jurídico e de direito.
38. A falta de representante e/ou de curador provisório não constitui, obviamente, um caso omisso que possa ser suprido por via de uma arrevesada e infundada interpretação que passa por conferir legitimidade para a ratificação não ao representante do incapaz – como o prevê o art. 27º do C.P.C. – mas sim aos seus sucessores habilitados em incidente processado numa acção intentada por um incapaz entretanto falecido.
39. Sucessores que não têm qualquer idoneidade para o efeito, face aos actos que pelo menos dois deles praticaram aproveitando o estado de demência do autor, e cujo único propósito é o de prejudicarem a aqui recorrente, numa sádica e cruel cruzada com vista a deixá-la na mais triste penúria, depois de lhe terem usurpado o seu Marido e companheiro de mais de 50 anos e que têm um manifesto conflito de interesses com a requerente – incluindo a nível sucessório - que impõe que sejam arredados da ratificação do processado.
40. O legislador previu, no art. 27º, do C.P.C., a forma de sanação da incapacidade judiciária ou irregularidade de representação do incapaz – mediante a intervenção do seu representante legítimo, sendo que esta norma está pensada para quando existe representante que possa ratificar o processado e, naturalmente, incapaz vivo a quem suprir a incapacidade.
41. Está vedado ao Tribunal a quo, tanto mais por a presente acção não ser o processo próprio para o efeito, designar/nomear representante(s) ao incapaz posteriormente ao seu decesso.
42. A acção própria seria a de maior acompanhado, que, com o decesso do Autor, apenas prosseguiu para a verificação da sua incapacidade e fixação da data do seu início.
43. Não tendo sido nomeado, antes ou depois da interposição da presente acção, representante e/ou curador provisório ao requerente incapaz, não se está perante um caso omisso que careça da rebuscada interpretação que o Senhor Juiz a quo promoveu na sua decisão.
44. O sistema tem resposta clara para a situação em apreço, através do que dispõem os arts. 17º e 27º, ambos do C.P.C., não carecendo, como se fez neste processado, de dar cobertura a um acto em tudo ilícito, suportado em procurações outorgadas por quem, manifestamente, não se encontrava capaz de compreender o alcance, propósito e efeitos dessa outorga.
45. A resposta é cristalina: a absolvição da instância!
46. A douta decisão recorrida errou manifestamente na aplicação do direito, ou melhor, decidiu frontalmente contra o direito aplicável!
47. A decisão recorrida violou o disposto nos arts. 246º, 257º e 295º, do C.C., bem como nos arts. 3º, nº 3, 6º, 17º, 27º e na al. c), do nº 1, do art. 278º, todos do C.P.C..
48. Merece assim a decisão recorrida a censura deste Venerando Tribunal, com a sua revogação.
Nestes termos, e nos mais de direito aplicáveis que mui doutamente serão supridos, deve o presente recurso ser dado como provado e procedente e em consequência ser revogado o despacho recorrido e proferida decisão que: a) julgue provada a arguida nulidade e determine a prolação de decisão a notificar as partes para exercerem o seu direito ao contraditório quanto à previsível decisão do Tribunal; Sem prejuízo, b) julgue as arguidas excepções de incapacidade judiciária e de inexistência de mandato procedentes, com a consequente absolvição da instância.
A resposta dos recorridos foi desentranhada por ter sido apresentada fora de prazo..
Após os vistos legais, cumpre decidir.
II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões:
i. Se a decisão recorrida é nula.
ii. Se deve ser ampliada a matéria de facto.
iii. Se o requerente não tinha capacidade judiciária, como se qualifica esse vício.
iv. Se a incapacidade deixou de ser sanável por ter ocorrido o óbito do requerentes antes de ser promovida a nomeação e intervenção de um representante.
III. Nulidades da decisão recorrida:
A recorrente BB começa por arguir a nulidade da decisão recorrida invocando a figura da decisão surpresa e alegando que nada permitia supor que o tribunal viesse a determinar a sanação da incapacidade acidental do autor e por isso o tribunal não a podia determinar sem previamente ouvir as partes sobre essa questão, o que não fez, pelo que a decisão será nula por ter conhecido de questão de que, nesse contexto, não podia conhecer.
Cremos bem que a arguição é improcedente.
Tendo sido arguida na oposição de um dos requeridos a falta de um pressuposto processual, o tribunal ficou não apenas autorizado a conhecer dessa excepção, como a decidir se a falta é insanável ou sanável e, considerando que o mesmo é sanável, determinar o que for necessário para sanar o vício.
Para o efeito é irrelevante que a parte que arguiu o vício tenha entendido, mal, que este não é sanável e defendido a sua absolvição da instância.
Tratando-se de um vício que em determinadas condições, designadamente as previstas no artigo 27.º do Código de Processo Civil, é sanável, a parte tinha a obrigação de equacionar a possibilidade de o tribunal assim vir a entender e decidir, tanto mais que nos termos do n.º 2 do artigo 6.º do Código de Processo Civil o tribunal tinha mesmo a obrigação de providenciar, mesmo oficiosamente, pelo suprimento da falta de pressupostos processuais susceptíveis de sanação.
Acresce que até ao momento praticamente não se fez outra coisa no processo que não instruir ou tentar instruir o incidente cujo objecto é este vício e que não se vislumbra em que medida podem os despachos proferidos em 04-04-2022 e 13-05-2022 ser interpretados no sentido de que o tribunal não iria decidir o incidente e/ou providenciar pelo suprimento do vício, caso viesse a reconhecer a sua existência.
Improcede por isso a arguição de nulidade da decisão.
IV. Da matéria de facto:
As recorrentes reclamam o aditamento à matéria de facto de vários pontos.
Refira-se que a ampliação da matéria de facto não se confunde com a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
Esta consiste no pedido para que a Relação modifique o modo como foram julgados pela 1.ª instância pontos concretos da matéria de facto, pedido que é apreciado pela Relação e cuja procedência determina a modificação daquela decisão.
A ampliação da matéria de facto é outra coisa, é o mecanismo processual de que a Relação dispõe quando as partes alegaram factos com importância para a apreciação do mérito da acção ou das excepções deduzidas como meio de defesa, a 1.ª instância não procedeu ao julgamento dos mesmos, e para julgar as questões que são objecto do recurso a Relação necessita daqueles factos, o que obriga a que os mesmos sejam previamente objecto de prova e decisão.
À ampliação da matéria de facto refere-se a parte final da alínea c) do n.º 2 e a alínea c) do n.º 3 do artigo 662.º do Código de Processo Civil. Se a Relação a decidir que a ampliação é necessária deve ordenar essa ampliação e para o efeito anula a decisão proferida na 1.ª instância e ordena a repetição do julgamento para que se produza prova sobre os factos da ampliação. Nessa situação não é consentido à Relação que julgue em primeira mão os novos factos, terá de ser a 1.ª instância a fazê-lo.
Serve isto para dizer que se os factos visados pelos requerentes da ampliação não tiverem sido julgados pela 1.ª instância, a Relação, reconhecendo o seu interesse, não pode pura e simplesmente, no Acórdão em que conhece do recurso, julgá-los provados (ou não provados) e aditá-los à fundamentação de facto. Isso só é possível em relação a factos que se encontram abrangidos por prova plena e que não obstante não tenham sido incluídos pela 1.ª instância na fundamentação de facto.
Independentemente deste obstáculo à pretensão das recorrentes de que a Relação adicione à fundamentação de facto novos factos não julgados pela 1.ª instância, sempre se dirá que essa pretensão não pode ser acolhida pelas razões que a seguir se indicam.
O facto de antes de subscrever a procuração o requerente AA não ter intentado qualquer acção contra os aqui réus é absolutamente irrelevante e não possui sequer interesse instrumental, por não ser por si mesmo indício de nada.
A data da instauração do procedimento cautelar e os poderes alegados para a instaurar em nome do requerente são dados do processo que constam do relatório deste Acórdão, podendo ser atendidos mesmo não constando da fundamentação de facto.
O facto de a partir de 12 de Fevereiro de 2018 o requerente ter passado a viver com a filha não tem qualquer interesse para o que há que decidir no incidente e não está provado por qualquer meio com força de prova plena pelo que não pode ser aditado à matéria de facto sem previamente se ter realizado a instrução desse facto.
Assim, deve ser mantida a fundamentação de facto da decisão recorrida.
V. Fundamentação de facto:
A decisão recorrida julgou provados os seguintes factos:
1. Em Dezembro de 2010, o requerente AA apresentou um episódio de confusão após uma queda.
2. Em Janeiro de 2014 era relatado que o requerente se apresentava muito confuso, mas, após ter sido medicado com Dumyrox 100, apresentou melhorias.
3. O requerente foi diagnosticado com demência.
4. Em data não concretamente apurada, mas anterior a Abril de 2014, o requerente foi medicado com Exiba 20 mg, cujo princípio activo, memantina, é prescrito a doentes com a Doença de Alzheimer, desde moderadamente grave até grave e muito grave.
5. O requerente manteve a medicação referida em 2) e 4), pelo menos, até meados de 2017, na sequência de prescrição do médico neurocirurgião que o assistia.
6. Em Março de 2018, no âmbito do acompanhamento por nefrologia e tratamento por hemodiálise, foi solicitada consulta de neurologia e prescrição de memantina.
7. Com data de 8 de Março de 2018, o requerente assinou procuração na qual foi declarado que constituía seus bastantes procuradores os filhos GG e HH, conferindo-lhes indistintamente os necessários poderes especiais para em seu nome e representação, entre outros «representar-me perante quaisquer Tribunais, neles praticando e assinando todos os actos necessários à defesa dos meus direitos e interesses, receberem citações e, caso tal se mostre obrigatório ou necessário, proporem e requerem acções, seus incidentes ou recursos, receberem primeiras citações e notificações, conferindo-lhes poderes forenses gerais, e os especiais para, confessar, desistir, transigir em qualquer processo em que seja autor ou réu, assistente ou interessado, os quais deverão ser substabelecidos em advogado».
8. A assinatura referida em 7) foi autenticada em 12 de Março de 2018 no Cartório Notarial de LL, pela funcionária autorizada MM.
9. Com data de 27 de Abril de 2018, os procuradores GG e HH declararam substabelecer os poderes referidos em 6) em Dr. II e Dr. JJ, Advogados, documento que foi junto com o requerimento inicial dos presentes autos.
10. Na data referida em 7), o requerente não tinha capacidade de compreender o alcance e propósito da procuração devido à patologia referida em 3).
11. AA faleceu a 19 de Outubro de 2019.
12. Por sentença proferida a 2 de Março de 2020, no processo principal, foram julgados habilitados como sucessores do Autor falecido, AA, os filhos NN, HH e GG, que assumirão a sua posição na lide.
VI. Matéria de Direito:
Na oposição ao procedimento cautelar foi alegado que por motivos atinentes à sua saúde mental o autor se encontrava numa situação de incapacidade do exercício dos seus direitos e, com base nisso, foi deduzida a excepção da incapacidade judiciária activa e da inexistência de mandato.
A apreciação desta questão obriga a ter em atenção a correcta configuração do procedimento cautelar ao nível do seu sujeito activo.
O procedimento cautelar foi instaurado em nome de AA. É o seu nome e a sua identificação pessoal que consta do cabeçalho do requerimento inicial em sede de identificação de quem deduziu o procedimento cautelar, razão pela qual o requerente é ele, o AA.
Todavia, o procedimento cautelar não foi instaurado pelo próprio requerente, foi instaurado por um representante voluntário do requerente, isto é, por pessoas que receberam do requerente, por intermédio de um instrumento de procuração, poderes para em seu nome praticarem diversos actos, entre os quais se conta o de instaurarem acções judiciais para defesa dos direitos do requerente e, inclusivamente, o de substabelecerem esses poderes em advogado, vindo o advogado que subscreve o requerimento inicial a apresentar não uma procuração forense emitida pelo requerente mas um instrumento de substabelecimento desses poderes pelos representantes voluntários do requerente.
O requerente era uma pessoa maior de idade, não estava inabilitado ou interdito e não tinha sido ainda objecto do decretamento de qualquer medida de acompanhamento de maior. Por isso, em princípio ele encontrava-se dotado de capacidade de exercício dos seus direitos, o que compreende o direito de constituir representante voluntário para em seu nome praticar actos jurídicos, e, consequentemente, dotado igualmente de capacidade judiciária, isto é, de estar por si mesmo nas acções instaurada em seu nome para tutela dos respectivos direitos. Esse aspecto significa ainda que o requerente não tinha representante legal, isto é, não estava abrangido por uma situação de incapacidade em função da qual lhe tivesse sido nomeado um representante para em seu nome exercer os seus direitos em geral.
Essa circunstância não impedia que o requerente pudesse estar numa situação de facto de incapacidade natural, isto é, privado, por razões de saúde mental, da capacidade de entender o sentido dos seus actos ou de formar a sua vontade de forma livre e consciente. Essa situação podia estar a ocorrer ainda que os seus familiares não tivessem exercido os meios legais para que lhe fosse nomeado um representante legal, isto é, para que ele se encontrasse numa situação de direito de incapacidade.
Apurou-se que era essa a situação do requerente, isto é, que ele se encontrava de facto num estado de saúde mental que o espoliou da capacidade de compreender o alcance da procuração que subscreveu e com base na qual o procedimento cautelar foi instaurado.
Que vício decorre daqui? Possivelmente a chamada incapacidade acidental.
Nos termos do artigo 257.º do Código Civil «a declaração negocial feita por quem, devido a qualquer causa, se encontrava acidentalmente incapacitado de entender o sentido dela ou não tinha o livre exercício da sua vontade é anulável, desde que o facto seja notório ou conhecido do declaratário», sendo que se considera notório o facto quando «uma pessoa de normal diligência o teria podido notar».
Ao contrário do que teimam em defender as recorrentes, a procuração subscrita por quem se encontrava acidentalmente (ou seja, de facto, e não pontualmente pois a incapacidade acidental pode ser duradoura ou prolongada) incapacitado (no sentido de não ter capacidade para entender o significado da procuração outorgada ou decidir livremente outorgá-la) não é um acto nulo, é um acto anulável.
Não é um acto que não produza quaisquer efeitos e cuja invalidade possa ser invocada por qualquer interessado (como sucede com a nulidade: artigo 286.º do Código Civil). É antes um acto cuja invalidade só pode ser arguida pelas «pessoas em cujo interesse a lei a estabelece, e só dentro do ano subsequente à cessação do vício que lhe serve de fundamento» (artigo 287.º, n.º 1) ainda que «se o negócio não estiver cumprido» o vício possa ser arguido a todo o tempo e tanto por via de acção como por via de excepção (artigo 287.º, n.º 2).
E um acto cuja invalidade pode ser sanada «mediante confirmação» (artigo 288.º, n.º 1) a qual «compete à pessoa a quem pertencer o direito de anulação, e só é eficaz quando for posterior à cessação do vício que serve de fundamento à anulabilidade e o seu autor tiver conhecimento do vício e do direito à anulação» e «tem eficácia retroactiva, mesmo em relação a terceiro» (artigo 288.º, nº 4, do Código Civil).
Daqui resulta que mesmo estando a procuração (rectius, a constituição de representante voluntário) viciada de anulabilidade por incapacidade acidental do mandante ou representado, esse vício só podia ser arguido pelo próprio mandante ou representado até um ano após a cessação da incapacidade ou, mantendo-se a incapacidade acidental deste, por pessoa que viesse a adquirir a qualidade de seu representante legal ou curador ad litem para a própria acção de anulabilidade.
A requerida BB era mulher do requerente, os representantes voluntários do requerente eram seus filhos, mas, precisamente por a incapacidade do requerente ser apenas de facto (rectius, acidental), nenhum deles era seu representante legal. Logo, com fundamento na incapacidade acidental do requerente, a requerida não podia arguir a invalidade da procuração com base na qual (nos poderes representativos outorgados pela mesma) o procedimento cautelar foi instaurado, mesmo que se entendesse que o podia fazer por via de excepção no próprio procedimento cautelar.
O que a mesma podia arguir era apenas a falta de capacidade judiciáriaactiva (para a instauração do procedimento) do requerente uma vez que a incapacidade acidental existia, o requerente não tinha representante legal nomeado, não foi pedida ao tribunal competente a nomeação de um representante legal, a acção não foi instaurada por um representante legal do requerente e não foi pedida a nomeação de um curador provisório ao juiz do próprio procedimento com fundamento na urgência do procedimento (artigos 15.º e 17.º do Código de Processo Civil).
A excepção arguida pela requerida no procedimento cautelar só pode ser admitida com esta configuração. Com essa configuração, a excepção radica na falta de um pressuposto processual susceptível de sanação, conforme dispõe o artigo 27.º do Código de Processo Civil (e dispunha, na versão em vigor à data da instauração do procedimento cautelar).
Antunes Varela, Miguel Bezerra, Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2.ª edição revista e actualizada, 1985, pág. 104, afirmam que os pressupostos processuais «são precisamente os elementos de cuja verificação depende o dever de o juiz proferir decisão sobre o pedido formulado, concedendo ou indeferindo a providência requerida. Trata-se das condições mínimas consideradas indispensáveis para, à partida, garantir uma decisão idónea e uma decisão útil da causa».
Entre esses pressupostos conta-se a capacidade judiciária (activa e passiva). A capacidade judiciária é o equivalente na relação processual à capacidade do exercício de direitos no plano do direito material e traduz-se na possibilidade de a pessoa estar directamente em juízo, por si mesmo ou mediante um representante escolhido por si, ou seja, sem necessidade de qualquer representação legal ou assistência (artigo 15.º do Código de Processo Civil).
A incapacidade judiciária pode decorrer de uma situação de incapacidade do exercício dos direitos natural (menores) ou factual (anomalia psíquica); pode ser prévia à intervenção processual ou surgir no decurso da acção; pode ser temporária ou permanente; pode estar já declarada judicialmente ou ser meramente de facto. O artigo 17.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, começa precisamente por prever a hipótese de a incapacidade ser apenas de facto e não se encontrar declarada judicialmente, ou seja, não estar ainda nomeado um represente legal que possa exercer os direitos da parte incapaz, em nome desta.
Uma pessoa que está afectada de incapacidade acidental, que por motivos de anomalia psíquica não tem o livre exercício da sua vontade nem aptidão para compreender o sentido e o significado dos seus actos, não dispõe de capacidade judiciária.
A falta do pressuposto processual da capacidade judiciária constitui uma excepção dilatória (artigo 577.º, alínea c), do Código de Processo Civil). Porém, constatada a falta de capacidade do autor, o juiz só deve abster-se de conhecer do pedido e absolver o réu da instância quando o autor, «sendo incapaz, não está devidamente representado ou autorizado» (artigo 278.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil).
A incapacidade judiciária não é por isso um vício que determine a invalidade em qualquer casos dos actos praticados pelo (representante voluntário do ou pelo) incapaz. Ao invés, a incapacidade pode ser sanada (artigos 16.º e seguintes, e 278.º, n.º 3) e a sua sanação pode ser determinada oficiosamente e ter lugar a todo o tempo (artigos 6.º, n.º 2, e 28.º do Código de Processo Civil), inclusive na Relação se a sua falta só for detectada (ou surgir) quando o processo já se encontrar neste Tribunal para apreciação de algum recurso. Sanada a falta de capacidade, todos os actos praticados pelo incapaz são aproveitados e a instância prossegue o seu curso considerando-se tais actos como validamente praticados.
No dizer de Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, vol. I, pág. 46, a verificação de uma qualquer situação de incapacidade judiciária, tal como a detecção de alguma situação de incapacidade natural, não pode prejudicar a parte. Para cada situação de incapacidade judiciária, em sentido amplo, prescreve a lei o adequado instrumento de suprimento, (…) À falta do pressuposto processual corresponde urna excepção dilatória, envolvendo a incapacidade judiciária stricto sensu, a irregularidade de representação ou a falta de deliberação ou de autorização. Mas trata-se de uma falha processual sem efeitos imediatos, já que, independentemente da sua arguição pela contraparte, o juiz deve ordenar oficiosamente as diligências necessárias a assegurar o referido pressuposto processual, nos termos dos arts. 6º, nº 2, 27º a 29º e 590º, nº 2, al. a), de tal modo que os efeitos da excepção dilatória apenas poderão ser extraídos depois de realizadas tais diligências com vista a assegurar o preenchimento do pressuposto processual, ainda assim sem prejuízo do que dispõe o art. 278º, nº 3 …».
A sanação desse vício exige duas coisas: a intervenção de representante legal do incapaz; a ratificação por este dos actos anteriormente praticados, total ou parcialmente (artigo 27.º do Código de Processo Civil).
A questão curiosa que o caso coloca é o que sucede se antes de se diligenciar pela sanação da incapacidade a parte incapaz falecer? Se ainda assim se deve diligenciar pela sanação da incapacidade e, nesse caso, quem deve ser chamado a, querendo, intervir no processo e a ratificar os actos anteriormente praticados.
A morte da parte só determina a extinção da instância quando torne impossível ou inútil a continuação da lide (artigo 269.º, n.º 3), ou seja, nomeadamente, quando a lide tenha por objecto direitos pessoais que se extinguem por morte do respectivo titular e que a lei não consinta que sejam continuados a exercer pelos seus sucessores. Não sendo esse o caso, falecendo a parte a instância é apenas suspensa até que se mostre notificada a habilitação do sucessor da pessoa falecida (artigos 269.º, n.º 1, alínea a), e 276.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil).
O incidente de habilitação de sucessores é o meio processual de operar a modificação subjectiva da instância, através da substituição da parte primitiva pelos respectivos sucessores na relação substantiva em litígio (artigo 262.º do Código de Processo Civil). Trata-se, portanto, de uma excepção ao princípio da estabilidade da instância, caracterizada pelo falecimento da parte e pela transmissão por via sucessória da posição que ela ocupava na relação substantiva.
São requisitos da habilitação de sucessores o falecimento de uma parte na acção e que a relação substantiva de que ele era titular não se tenha extinto com o respectivo óbito. Os sucessores da parte falecida são chamados a substituir a parte falecida porque lhe sucederam na titularidade da relação substantiva em litígio e, por isso, têm interesse em ocupar a posição de parte.
Como a instância não se extingue e, feita a habilitação dos sucessores da parte falecida, prossegue com estes (artigo 351.º do Código de Processo Civil), é forçoso concluir que os actos anteriormente praticados pela parte falecida são aproveitados. Esse aproveitamento pressupõe que eles tenham sido validamente praticados (rectius, praticados por quem tinha capacidade judiciária) ou, se não tiver sido o caso, que o vício de que eles enfermam, nos casos em que isso é possível, seja sanado.
A sanação da incapacidade judiciária da parte que, por incapacidade acidental, estava privada da susceptibilidade de estar por si mesma em juízo, devia fazer-se através da intervenção de um representantelegal nomeado pelo tribunal competente ou de um curador provisório nomeado pelo juiz da causa urgente instaurada pelo incapaz (artigo 17.º, n.º 1, e 27.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Tendo a parte falecido, entretanto, a nomeação desse representante torna-se inútil pela simples razão de que através da habilitação dos sucessores a posição da parte na lide passa a ser ocupada por estes, no lugar dele, ou seja, são eles que passam a representar, por força da sucessão mortis causa, os interesses da parte falecida e a tomar decisões sobre os mesmos.
Em rigor, os sucessores passam a actuar em representação da parte falecida à qual sucedem, uma vez que a herança pode permanecer indivisa, não estar ainda partilhada, e, consequente, os herdeiros ainda não encabeçaram a titularidade dos direitos patrimoniais de que era titular o falecido.
Ora se eles ocupam essa posição, se a sua posição da lide tem essa amplitude de intervenção, não se vê motivo para que sejam privados dos poderes que assistiriam ao representante legal ou ao curador provisório que tivesse sido nomeado ao incapaz em vida dele. Isto é, inexiste motivo para nomear um representante legal ou um curador porque isso já não é necessário, o incapaz passou a estar representado na lide pelos sucessores habilitados … para todos os efeitos.
Por isso mesmo, a decisão de chamar os sucessores habilitados a ratificar os actos anteriormente praticados pelo incapaz e a apresentarem nova procuração forense que permita a continuação da lide não apenas não é “esdruxula”, como sustenta a recorrente, como, a nosso ver, é mesmo correcta.
Repete-se que a incapacidade judiciária não é um vício insanável e não é causa de invalidade dos actos praticados, pelo que estes actos desde que sejam ratificados por quem de direito são aproveitados e a lide prossegue com eles como se a incapacidade nunca existisse.
A morte do incapaz não impossibilita a sanação do vício porque ao não extinguir a lide e permitir que ela prossiga com outras pessoas a actuar no lugar da parte e em representação dela, faz com que haja outras pessoas que podem actuar no lugar do incapaz, suprindo a sua incapacidade e decidindo em primeiro lugar sobre o aproveitamento dos actos praticados por ele.
É certo que a requerida BB também é sucessora do autor. Todavia, porque o procedimento cautelar foi instaurado contra si, ela ocupa a outra posição de parte na lide, razão pela qual, face ao princípio da dualidade de partes que caracteriza o nosso processo civil, estando num dos lados, não pode estar no outro, nem em ambos em simultâneo. Foi por isso que ela não chegou a ser habilitada como sucessora do requerente para passar a ocupar a posição dele na lide, o que determina que ela não o representa afinal nos actos processuais a praticar … na presente lide.
O entendimento contrário consubstanciaria a criação de uma situação notória de conflito de interesses: a requerida seria levada a não ratificar os actos praticados pelo incapaz para dessa forma obter vencimento na lide, sem esta chegar a ser julgada. Falecido o requerente o conflito na sucessão do respectivo património desenvolve-se entre os filhos do requerente, dum lado, e a requerida e viúva, do outro lado. A sanação da incapacidade do requerente pelos sucessores que têm interesse na continuação da lide permite que a lide continue a ter, em ambos os respectivos polos, quem tem interesse em ocupar essa posição.
Outra solução que potenciasse a extinção da lide apenas implicaria a necessidade de os herdeiros do falecido instaurarem uma nova acção, para o que não se defrontariam sequer com o obstáculo da caducidade (artigo 27.º, n.º 4, do Código de Processo Civil), o que é contrário ao objectivo da configuração da excepção da falta de capacidade judiciária como sanável a todo o tempo e mesmo oficiosamente pelo tribunal.
Por todas estas razões, a decisão recorrida é correcta e deve ser confirmada, razão porque improcedem os recursos.
VII. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação julgar os recursos improcedentes e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.
Custas dos recursos pelas recorrentes, restritas ao valor da taxa de justiça já suportaram porque não tendo sido apresentada resposta ao recurso não há lugar ao pagamento de custas de parte ou encargos ao vencedor.
*
Porto, 5 de Dezembro de 2024.
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Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 862)
Ana Luísa Loureiro, [com a declaração que consta abaixo:
Subscrevo o Acórdão, apenas clarificando, na parte referente à fundamentação quanto à ampliação da matéria de facto, que na leitura que faço da al. c) do n.º 2 do artigo 662.º do Cód. Proc. Civil, a anulação aí prevista não abrange os casos em que existam já no processo os elementos de prova que permitam a alteração da decisão de facto, inclusive com o aditamento de factos oportunamente alegados e contraditados pelas partes, podendo nesses casos tal aditamento ser efetuado no âmbito do disposto no n.º 1 do artigo 662.º do Cód. Proc. Civil (de acordo com uma interpretação a contrario da al. c) do n.º 2 do artigo 662.º do Cód. Proc. Civil).]
Judite Pires
[a presente peça processual foi produzida pelo Relator com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas]