Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
PAGAMENTO DO PREÇO
ÓNUS DA PROVA
CONFISSÃO EXTRAJUDICIAL
VALOR EXTRA PROCESSUAL DAS PROVAS
CASO JULGADO FORMAL
Sumário
I - Como regra geral em termos de direito probatório material, ao Autor compete a prova dos factos constitutivos do seu direito e ao Réu a dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do Autor: art.º 342º nº 1 e 2 do CC. II - Por regra, incumbe sobre o Réu a prova do pagamento do preço, enquanto facto extintivo do direito do Autor. III - Contudo, existem derrogações a essas regras gerais. Tratando-se da falta de pagamento do preço duma compra e venda de imóvel, outorgada em escritura pública, que constitui um documento autêntico, e da qual ficou a constar que a vendedora declarou perante o notário ter já recebido o preço, tal significa uma confissão extrajudicial. IV - Caso essa declaração não coincida com a realidade, inverte-se o ónus da prova, passando a competir ao Autor que a declaração prestada pela vendedora não era verdadeira (art.º 374º CC) e que o preço não foi integralmente pago. V - O valor extraprocessual das provas (art.º 421º do CPC) permite aproveitar meios de prova, mas já não factos, ou seja, «o que se transfere é a prova e não o resultado da prova.» VI - Da mesma forma, a autoridade e eficácia do caso julgado material não abrange autonomamente os factos provados num determinado processo, nem a respetiva fundamentação que a eles conduziu.
Texto Integral
Apelação nº 1027/23.0T8AGD.P1
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO
I – Resenha do processado
1. AA interpôs ação contra BB, e mulher, CC, pedindo a sua condenação solidária a pagar-lhe a quantia de € 35.012,12, acrescidos de juros vencidos no montante de € 7.010,10 e vincendos até integral e efetivo pagamento.
Fundamentou tal pedido alegando ser a única e universal herdeira de DD, falecida em 13 de janeiro de 2006, no estado de viúva. Em 12 de maio de 2005, essa DD vendeu aos Réus o imóvel que constituía a sua casa de habitação, ficando a venda sujeita a reserva de usufruto a favor da vendedora. Foi declarado o preço de € 50.000,00.
Em tempos, a Autora intentou contra os Réus uma outra ação, em que pediu que se declarasse a nulidade de dois contratos (um de compra e venda e ainda uma doação de outro prédio), tendo decaído nessa ação.
Não obstante, ficou provado nessa ação que “os réus não procederam à totalidade do preço declarado, esclarecendo-se que pagaram, no entanto, pelo menos, a quantia de 14.987,88 € (€4.000,00 + €987,88 + €10.000,00)”.
É, pois, essa a pretensão da Autora com esta ação, obter o pagamento da parte restante do preço.
Em contestação, os Réus impugnaram a factualidade alegada, invocando terem já pago a totalidade do preço.
Foi proferido despacho saneador com delimitação do objeto do litígio e temas de prova.
Realizada audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença, que julgou a ação totalmente improcedente.
2. Para tanto, considerou-se na sentença a seguinte factualidade:
Factos provados
1. DD faleceu em 13/1/2006, no estado de viúva, sem testamento ou disposição de última vontade.
2. Deixou a suceder-lhe, como única e universal herdeira, a sua neta, AA, aqui autora, filha do seu filho pré-falecido EE.
3. Por escritura pública de “Compra e Venda”, outorgada no dia 2/3/2005, no Cartório Notarial de Albergaria-a-Velha, DD declarou, e o réu declarou aceitar:
“Que vende ao segundo outorgante (BB), pelo preço global de cinquenta mil e quinhentos euros, que declara ter já recebido, os seguintes bens, reservando para si o direito de usufruto sobre os mesmos:
Número Um – Pelo preço de cinquenta mil euros – Prédio urbano composto de casa de habitação de rés-do-chão, primeiro andar, cozinha anexa, dependências, logradouro e quintal, sito em ..., freguesia e concelho de Águeda, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..., (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de Águeda sob o número ..., da freguesia de Águeda, cujo direito de propriedade se encontra registado a favor da vendedora pela inscrição ....
Número Dois – Pelo preço de quinhentos euros – Todo o recheio existente no prédio urbano supra identificado”.
4. A autora intentou acção declarativa comum contra os réus, à qual coube o nº 36/12.9T2AND, pedindo que se declarasse a nulidade de dois contratos (compra e venda e doação) celebrados entre os réus e a avó da autora, com o consequente cancelamento dos registos de aquisição efectuados a favor dos réus.
5. Alegou a autora na referida acção, além de outros factos, que a vendedora/doadora, na data da celebração dos contratos, estava totalmente incapacitada pela doença e controlada e influenciada pelos réus, agravado pelo facto de o réu marido ser de facto administrador civil do seu património, não tinha a mínima condição de contrariar os intentos e propósitos dos réus, de se aproveitarem e apropriarem ilegitimamente de todo o património.
6. A autora decaiu na referida acção, dado que, quer na primeira instância, quer na segunda instância, consideraram que não havia fundamento para a declaração de nulidade de ambos os negócios jurídicos – cfr. doc. 4 junto com a p.i., que aqui se dá por reproduzido.
7. No acórdão da 2ª instância, foi alterada a resposta dada ao quesito 8º da Base Instrutória, de modo a passar a ser a seguinte: “Provado que os Réus não procederam à totalidade do preço declarado, esclarecendo-se que pagaram, no entanto, pelo menos a quantia de € 14.987,89 (€ 4.000,00 + € 987,98 + € 10.000,00).
Factos Não Provados
a) Os réus mantêm em dívida a quantia de € 35.012,12, por conta do preço da compra referida em 3) dos Factos Provados.
3. Inconformada com tal decisão, dela apelou a Autora, formulando as seguintes conclusões:
A) A douta sentença do tribunal de primeira instância, não apreciou as questões relacionadas com o pagamento do preço do imóvel que segundo invocado pelos recorridos ocorreu da seguinte forma: 14.987,98€; 19.988,98 (cheque emitido em 14.07.2004); 13.523,14 (cheque emitido em 10.01.2005); e 1.500,00 € em dinheiro na data da escritura pública;
B) Só a apreciação desta matéria permitia ao julgador declarar que o preço foi integralmente pago ou não, sendo que ao comprador compete a prova do pagamento do preço, nos termos no artigo 342.º n.º 2 do Cód. Civil;
C) O tribunal a quo ao abster pronunciar-se sobre esta matéria comete a nulidade prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 617.º do Cód. processo civil, com todas as legais consequências;
D) Ainda que assim se não entenda a sentença recorrida ao considerar, com base exclusiva na declaração confessória, que o preço se encontra integralmente pago, está em desconformidade com os elementos de prova invocados pelos próprios RR os quais não demonstraram que o tivessem efetivado;
E) De facto a declaração prestada na escritura pública de compra e venda, apenas “prova plenamente que os vendedores disseram perante o notário que o preço foi de X e que já o receberam; mas não prova que tal facto corresponde à verdade, que o conteúdo da declaração é verdadeiro, dado que isso transcende aquilo que as perceções do notário, enquanto autoridade investida de fé pública, podem alcançar.” Cfr. AC Relação Porto de 8/02/2010, proc. n.º 10536/06
F) Por outro lado, o tribunal a quo tinha acesso a outros elementos de prova/indícios que lhe permitiam pôr em causa a veracidade da declaração confessória, mas absteve-se desse exercício comprometendo a verdade material;
G) Designadamente: O teor da factualidade apurada na ação n.º 36/12.9T2AND, de onde resulta a especial ligação entre os réus e a avó da autora – “Era o Réu marido que movimentava através de cheque ou cartão multibanco (ATM) a conta bancária da DD...”; “Era o Réu marido (...) que procedia à administração do seu património.”
H) Só a especial confiança que a avó da autora depositava nos réus pode justificar a declaração confessória inserida na escritura pública, sendo, por outro lado, inexplicável a divergência assumida pelos réus no que respeita do que à forma de pagamento diz respeito, tanto no processo n.º 36/12, como nos presentes autos;
I) Sendo claríssimo o douto acórdão da Relação de Coimbra (no processo n.º 36/12), quando dá como provado, que: em resposta ao quesito 8.º “Provado que os Réus não procederam à totalidade do preço declarado, esclarecendo-se que pagaram, no entanto, pelo menos a quantia de €14.987,89 (€ 4.000,00 € + € 987,98 € +, € 10.000,00 €”.;
J) Tal factualidade, transitada em julgado, deve ser suficiente para por em causa a declaração confessória, invertendo ónus da prova, sob pena de haver duas decisões (embora sobre facto diferente) diametralmente opostas, quanto ao ónus e valoração dos demais elementos de prova documental.
L) É, ainda, relevante, considerar que as declarações prestadas em escritura de compra de venda de imóveis, sempre suscitaram sérias dúvidas e, por isso, justificaram a publicação da Lei n.º 92/17 de 22 de Agosto, que obriga que nas escrituras de compra e venda se mencione o momento em que corre o meio de pagamento e o meio utilizado para efetuar o mesmo;
M) Portanto, a ausência de prova do pagamento nos termos invocados pelos RR, recorridos, como lhe competia, não se pode confirmar o teor da declaração confessória;
N) Consequentemente, ao contrário do decidido na douta sentença recorrida, deverá considerar-se provado que os RR. não procederam ao pagamento integral do preço, mantendo em dívida a quantia peticionada nos autos e, em consequência, julgar procedente por provado o respetivo pedido, com todas as legais consequências;
O) Assim, não tendo decidido o tribunal de primeira instância, foram de entre outras, violadas as disposições legais supra indicadas.
Nestes termos e nos melhores de direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve o presente recurso merecer provimento declarando-se a nulidade da sentença recorrida, nos termos do artigo 615.º, n.º 1 alínea d) do CPC, com todas as legais consequências ou, caso assim se não entenda, revogada a sentença recorrida, substituindo-se por outra que julgue provada e procedente os pedidos formulados na petição inicial, proposta pela autora/recorrente, condenando a Recorrida em conformidade, com que se fará JUSTIÇA.
4. Os Réus não contra-alegaram.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II - FUNDAMENTAÇÃO
5. Apreciando o mérito do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art.º 615º nº 1 al. d) e e), ex vi do art.º 666º, 635º nº 4 e 639º nº 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC).
No caso, são as seguintes as questões a decidir:
● Nulidade por omissão de pronúncia
● Violação das regras de direito probatório material
5.1. Sobre a nulidade da sentença por omissão de pronúncia
Prescreve o art.º 615º do CPC: 1 - É nula a sentença quando: b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível; d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;(…).
O exato conteúdo do que sejam as questões a resolver foi objeto de abundante tratamento doutrinal e jurisprudencial, havendo neste momento um consenso no sentido de que não se devem confundir as questões a resolver propriamente ditas com as razões ou argumentos, de facto ou de direito, invocadas pelas partes, para sustentar a solução que defendem a propósito de cada questão a resolver.
Assim, a nulidade não se verifica quando o juiz deixe de apreciar algum ou todos os argumentos invocados, conhecendo, contudo, da questão.
Alberto dos Reis, a propósito de qual o critério de reconhecimento do que se deve entender por questão a resolver, pondera: «as questões suscitadas pelas partes só podem ser devidamente individualizadas quando se souber não só quem põe a questão (sujeitos), qual o objecto dela (pedido), mas também qual o fundamento ou razão do pedido apresentado». [1]
«As “questões” a apreciar reportam-se aos assuntos juridicamente relevantes, pontos essenciais de facto ou direito em que as partes fundamentam as suas pretensões». [2]
A Recorrente invoca a nulidade por omissão de pronúncia considerando que a Mmª Juíza “não apreciou as questões relacionadas com o pagamento do preço do imóvel que segundo invocado pelos recorridos ocorreu da seguinte forma: 14.987,98€; 19.988,98 (cheque emitido em 14.07.2004); 13.523,14 (cheque emitido em 10.01.2005); e 1.500,00 € em dinheiro na data da escritura pública”.
Sucede que na sentença não teria de existir pronúncia sobre essas parcelas de pagamento, mas apenas sobre o pagamento em si.
De qualquer forma, a Mmª Juíza deixou consignado que «E, precisamente porque o recebimento do preço se considera confessado pela vendedora, considerou-se irrelevante a demais factualidade alegada pelos réus relativa às formas e tempos de pagamento do preço, e daí não se ter respondido à mesma.»
Ou seja, existiu pronúncia no sentido de considerar inútil tal abordagem em particular face ao que se considerou a declaração confessória constante da escritura.
5.2. Do erro de julgamento quanto ao direito probatório material
§ 1º - Incumbe assinalar que a Autora não impugna a matéria de facto considerada na sentença ou, pelo menos, é completamente omissa quanto aos ónus impostos pelo art.º 640º do CPC: não especifica qualquer “concreto ponto de facto”, nem qualquer “concreto meio probatório” e, portanto, também qual a “decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.
O que a Recorrente considera é ter existido erro de julgamento na apreciação das provas, por violação das regras de direito probatório material.
O que se passa a analisar.
§ 2º - São duas as regras básicas em termos de direito probatório material: ao Autor compete a prova dos factos constitutivos do seu direito e ao Réu a dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do Autor: art.º 342º nº 1 e 2 do Código Civil (CC).
Daqui se infere a umbilical relação entre as regras do ónus de alegação/prova e a relação jurídica em litígio, pois só através desta se saberá quais os seus factos constitutivos ou impeditivos/modificativos/extintivos que competem a uns e a outros.
Porém, se os ónus de prova competem à demonstração dos factos, só tem sentido invocar-se a violação das regras probatórias de direito material quando se pretende a alteração de qualquer ponto da matéria de facto.
Num sistema processual como o nosso, assente no princípio do dispositivo, mas temperado pelo princípio do inquisitório, «o ónus da prova, em vez de revestir um sentido marcadamente subjectivo, como ocorre nos sistemas assentes sobre o princípio dispositivo, passa a ter, nos regimes temperados pelo princípio inquisitório, uma feição acentuadamente objectiva, que só por via reflexa atinge a actividade (probatória) das partes.
O que releva, no julgamento da prova, já não é tanto a actuação subjectiva da parte quanto a situação objectiva, o non liquet do facto, resultante da instrução da causa.» [3]
Como se verifica das conclusões de recurso, a Recorrente invoca de forma genérica que “deverá considerar-se provado que os RR. não procederam ao pagamento integral do preço, mantendo em dívida a quantia peticionada nos autos”.
A Autora invocou como causa de pedir uma compra e venda de imóvel e alegou que parte do preço não foi ainda pago.
No normal das situações, à Autora competia provar a outorga do contrato, enquanto que sobre os Réus recaía o ónus de provar o pagamento.
«Em caso de contrato de compra e venda, de acordo com as regras do ónus da prova (art.º 342.º do CC), compete à autora provar o contrato e afirmar o seu incumprimento, pertencendo à ré, devedora, o ónus de provar o pagamento como facto extintivo do direito invocado pela autora.» [4]
§ 3º - Porém, a situação em apreço assume contornos particulares, que alteram essa regra geral.
Tratou-se duma compra e venda de imóvel que exigia escritura pública (art.º 875º do CC).
A escritura pública constitui um documento autêntico, porque exarado por oficial público (art.º 369º nº 1 CC).
Os documentos autênticos “fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas perceções da entidade documentadora” e essa força probatória só pode ser elidida com base na sua falsidade: art.º 371º nº 1 e 372º nº 1 do CC.
Ora, ficou a constar da escritura pública realizada por notário que a vendedora disse: «Que vende ao segundo outorgante, pelo preço global de cinquenta mil e quinhentos escudos, que declara ter já recebido, os seguintes bens, reservando para si o usufruto dos mesmos:» (sublinhado nosso)
Sabemos que as declarações prestadas em escritura pública nem sempre são coincidentes com a realidade.
Porém, quando assim é, face à força probatória dos documentos autênticos (art.º 371º CC), as regras do ónus da prova invertem-se. Ou seja, se o vendedor declara perante o notário ter já recebido integralmente o preço (facto atestado perante a entidade documentadora), tem-se esse recebimento por confessado. E então, não sendo verdadeira a declaração prestada, inverte-se o ónus da prova do pagamento, passando a competir ao vendedor “não ser verdadeiro o facto” contido na declaração: art.º 347º do CC.
«Se no documento, o notário afirma que, perante ele, o outorgante disse isto ou aquilo, fica plenamente provado que o outorgante o disse, mas não fica provado que seja verdadeira a afirmação do outorgante, ou que esta não tenha sido viciada por erro, dolo ou coacção, ou que o acto não seja simulado (…). Um exemplo: numa escritura de compra e venda de imóveis o vendedor declara que recebeu o preço convencionado; o documento faz prova plena de que esta declaração foi proferida perante o notário, nada impedindo que mais tarde se prove que ela foi simulada e que o preço ainda não foi pago.» [5]
«Para se admitir a prova em contrário, a lei exige nalguns casos que se alegue e prove a falsidade do meio de prova (cf. art.º 372º nº 1, 376º e nº 2 do art.º 393º).» [6]
Face ao exposto, no caso concreto não competia aos Réus o ónus da prova do pagamento; ao contrário, competia à Autora a prova de que a declaração prestada pela vendedora não era verdadeira (art.º 374º CC) e que o preço não foi integralmente pago.
A Recorrente invoca o acórdão desta Relação do Porto proferido no processo nº 10536/06.4TBVNG.P1, mas “esqueceu-se” de assinalar que o mesmo decidiu nos termos que acabamos de aqui assinalar, ou seja, «Sendo o autor eventualmente credor de quantia que declarou erradamente ter recebido em escritura pública de compra e venda (preço superior ao declarado), terá ele de provar o incumprimento por banda do devedor, fazendo a prova contrária daquilo que do documento resulta, mesmo com prova testemunhal.»
E mais se refere nesse acórdão, «E quanto à possibilidade de ser posto em causa o seu conteúdo, segue o tribunal a quo o princípio consignado no art.º 364º do CC, segundo o qual apenas por outro documento com força probatória superior ou por confissão expressa, judicial ou extrajudicial, contanto que neste último caso a confissão conste de documento de igual ou superior valor probatório.
Mas, para além deste entendimento, no que toca ao preço declarado na escritura pública de compra e venda, há quem considere que ela «prova plenamente que os vendedores disseram perante o notário que o preço foi de x e que já o receberam; mas não prova, nem pode provar, que tal facto corresponde à realidade, que o conteúdo da declaração é verdadeiro, dado que isso transcende aquilo que as percepções do notário, enquanto autoridade revestida de fé pública, podem alcançar.»
Daí que se diga que «nada impede que mais se tarde se prove, por exemplo, que o preço ainda não foi efectivamente pago, ou que foi diferente (superior ou inferior) e que tal prova pode ser obtida quer por testemunhas, quer por presunções, como resulta do disposto no artº 393, n° 2, em conjugação com os arts. 351º e 396º do Código Civil.» - Por todos, veja-se o Ac. STJ, de 19-04-2005, subscrito pelo Ex.mo Conselheiro Dr. Nuno Cameira, em www.dgsi.pt.
E esta prova a produzir posteriormente, quando está definido nessa mesma escritura que o preço está recebido, não pode ser considerada em termos normais e vulgares na medida em que tal afirmação deve ser considerada como uma confissão extrajudicial, fazendo prova plena desse facto na medida em que for desfavorável ao vendedor e favorável ao comprador – Ac. STJ, de 2-06-1999. CJSTJ, Tomo II, pág. 136.»
§ 4º - Quanto ao valor do facto provado no processo nº 36/12.9T2AND, tal questão remete-nos para o art.º 421º do CPC e para o valor extraprocessual das provas.
Sucede que tal preceito permite aproveitar meios de prova (designadamente depoimentos e perícias), mas já não factos, ou seja, «o que se transfere é a prova e não o resultado da prova.» [7]
E esse tem sido também o entendimento unânime da jurisprudência.
«1. O princípio da eficácia extraprocessual das provas, consagrado no art. 522º, nº 1, do Código de Processo Civil, significa que a prova produzida (depoimentos e arbitramentos) num processo pode ser utilizada contra a mesma pessoa num outro processo, para fundamentar uma nova pretensão, seja da pessoa que requereu a prova, seja de pessoa diferente, mas apoiada no mesmo facto.
2. Não pode é confundir-se o valor extraprocessual das provas produzidas (que podem ser sempre objecto de apreciação noutro processo) com os factos que no primeiro foram tidos como assentes, já que estes fundamentos de facto não adquirem valor de caso julgado quando são autonomizados da respectiva decisão judicial.» [8]
Por outro lado, como resulta claramente da leitura do acórdão proferido no processo nº 36/12.9T2AND, temos de concluir que afinal a alteração por ele efetuada até foi restritiva.
Ou seja, estava em causa a alteração ao facto 8º, cuja redação era: “Provado que os Réus não procederam à totalidade do preço declarado.”
Registando que a Recorrente era aí, como aqui, a Autora, pretendia ela que “deve ser alterada a resposta dada ao ponto 8º da Base Instrutória no sentido de que os RR não procederam ao pagamento do preço declarado ou, caso assim se não entenda, se deve ser clarificada no sentido de quantificar qual a quantia efectivamente paga, pois dos documentos invocados para fundamentar a mesma resposta resulta uma quantia de 14.987,89 € (4.000,00 € + 987,98 € + 10.000,00 €)”.
O Tribunal acabou por alterar esse facto 8 da Base Instrutória (ponto 15 da matéria de facto assente) dando-lhe a seguinte redação: “Provado que os Réus não procederam à totalidade do preço declarado, esclarecendo-se que pagaram, no entanto, pelo menos a quantia de € 14.987,89 (€ 4.000,00 + € 987,98 + € 10.000,00)”.
E da fundamentação dessa alteração consta bem escalpelizada a questão do “pagaram somente” (pretensão da Autora) com o “pagaram pelo menos” (que o Tribunal considerou face aos documentos juntos no processo).
Ou seja, o Tribunal deu como provado ter existido pagamento parcial de € 14.987,89. Quanto à parte restante, deixou-se bem claro nesse acórdão que isso apenas relevaria para o incumprimento do contrato de compra e venda, que a Autora teria de intentar noutra ação (o que faz agora).
Nesta ação, a prova da falta do pagamento restante estava a cargo da Autora pelas razões apontadas no § 3º desta peça.
§ 5º - Quanto à função positiva do caso julgado material [9]
É também jurisprudência unânime que a autoridade e eficácia de caso julgado, não abrange autonomamente os factos provados num determinado processo, nem a respetiva fundamentação que a eles conduziu.
«I. A autoridade do caso julgado implica o acatamento de uma decisão proferida em ação anterior cujo objeto se inscreva, como pressuposto indiscutível, no objeto de uma ação posterior, ainda que não integralmente idêntico, de modo a obstar a que a relação jurídica ali definida venha a ser contemplada, de novo, de forma diversa.
II. Embora, em regra, o caso julgado não se estenda aos fundamentos de facto e de direito, a força do caso julgado material abrange, para além das questões diretamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado.
III. Assim, a eficácia de autoridade de caso julgado pressupõe uma decisão anterior definidora de direitos ou efeitos jurídicos que se apresente como pressuposto indiscutível do efeito prático-jurídico pretendido em ação posterior no quadro da relação material controvertida aqui invocada.
IV. Os juízos probatórios positivos ou negativos que consubstanciam a chamada “decisão de facto” não revestem, em si mesmos, a natureza de decisão definidora de efeitos jurídicos, constituindo apenas fundamentos de facto da decisão jurídica em que se integram.
V. Nessa medida, embora tais juízos probatórios relevem como limites objetivos do caso julgado material nos termos do artigo 621.º do CPC, sobre eles não se forma qualquer efeito de caso julgado autónomo, mormente que lhes confira, enquanto factos provados ou não provados, autoridade de caso julgado no âmbito de outro processo.
VI. De resto, os factos dados como provados ou não provados no âmbito de determinada pretensão judicial não se assumem como uma verdade material absoluta, mas apenas com o sentido e alcance que têm nesse âmbito específico. Ademais, a consistência dos juízos de facto depende das contingências dos mecanismos da prova inerentes a cada processo a que respeitam, não sendo, por isso, tais juízos transponíveis, sem mais, para o âmbito de outra ação.» [10]
De qualquer forma, na sentença ora em recurso atendeu-se ao facto provado no processo nº 36/12.9T2AND, que é o que agora consta do facto provado 7.
Quanto à parte restante do preço, que constitui o objeto da presente ação, inexistiu qualquer pronúncia no processo anterior; donde, nem sequer havia lugar à invocação dum qualquer caso julgado. A Autora sempre teria de provar aqui essa falta de pagamento.
Assim, concorda-se com a análise efetuada na sentença. À míngua de outra prova, «o que resulta da prova produzida nesta acção é a declaração de quitação da vendedora, na escritura e compra e venda ajuizada – declaração essa que tem o valor de confissão extrajudicial – art.º 352º e 355º, nºs 1 e 4 do Código Civil. Constando a mesma de documento autêntico, e sendo feita à parte contrária ou a quem a represente, tem força probatória plena – cfr. art.º 358º, nº 2 do Código Civil.
A força probatória plena da confissão extrajudicial apenas podia ser destruída pela prova do contrário, ou seja, pela prova de que a vendedora não recebeu o preço – prova essa que a autora manifestamente não fez, nenhum meio de prova tendo produzido nesse sentido, limitando-se a pretender “importar” para a presente acção um dos factos provados na anterior acção que moveu contra os réus – importação essa que, como vimos, não cabe no escopo do caso julgado nem do valor extraprocessual das provas. »
Concluindo, inexistiu qualquer violação das regras de direito probatório material.
III. DECISÃO
7. Pelo que fica exposto, acorda-se nesta secção cível da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação, mantendo-se a sentença recorrida.
Custas a cargo da Recorrente, face ao decaimento.
Porto, 05 de dezembro de 2024
Isabel Silva
Isabel Peixoto Pereira
Carlos Cunha Rodrigues Carvalho
_________________ [1] Alberto dos Reis, in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, pág. 53. No mesmo sentido, Rodrigues Bastos, in “Notas ao Código de Processo Civil”, 1969, vol. III, pág. 228. [2] Acórdão do STJ, de 16.04.2013 (processo 2449/08.1TBFAF.G1.S1), disponível em www.dgsi.pt/, sítio a atender nos demais arestos que vierem a ser citados sem outra menção de origem. [3] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, “Manual de Processo Civil”, 2ª edição, 1985, Coimbra Editora, pág. 450/451. [4] Acórdão do STJ de 12/10/2010, processo nº 1213/06.7TBGRD.C1.S1. [5] Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, vol. I, em anotação ao art.º 371º. [6] Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, vol. I, em anotação ao art.º 347º. [7] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, 3ª edição. Almedina, em anotação ao art.º 421º. [8] Acórdão do STJ de 05/05/2005, processo nº 05B691. No mesmo sentido, e do mesmo STJ, acórdão de 17/05/2018, processo nº 3811/13.3TBPRD.P1.S1. Da Relação de Évora, acórdão de 11/07/2024, processo nº 43/23.6T8MRA.E1. Da Relação do Porto, acórdão de 02/12/2021, processo nº 2055/20.2T8PNF.P1. Da Relação de Lisboa, acórdão de 18/04/2023, processo nº 18794/17.2T8SNT.L1-1. [9] Não há que cuidar aqui da função negativa do caso julgado, que se traduz numa exceção dilatória, geradora da absolvição da instância, impedindo o conhecimento do mérito. [10] Acórdão do STJ de 08/11/2018, processo nº 478/08.4TBASL.E1.S1. no mesmo sentido, e do mesmo STJ, acórdãos de 03/03/2021, processo nº 11661/18.4T8PRT.P1-A.S1, de 05/12/2017, processo nº 1565/15.8T8VFR-A.P1.S1, de 12/12/2017, processo nº 3435/16.3T8VIS-A.C1, de 22/06/2017, processo nº 2226/14.0TBSTB.E1.S1, de 17/05/2018, processo nº 3811/13.3TBPRD.P1.S1. Da Relação de Coimbra, acórdão de 11/06/2019, processo nº 355/16.5T8PMS.C1; da Relação de Guimarães, acórdão de 07/03/2023, processo nº 1628/18.8T8VCT.G1.S1.