I - Estando pendente causa entre duas ou mais pessoas, pode nela intervir, como parte principal, aquele que, em relação ao seu objecto, tiver um interesse igual ao do autor ou do réu, nos termos dos artigos 32.º, 33.º e 34.º do Código de Processo Civil.
II - O campo de aplicação da intervenção principal, com excepção da situação prevista no artigo 317.º do Código de Processo Civil, passou a estar confinado às situações de litisconsórcio.
III - Pode ter lugar a chamamento de qualquer das partes, como seu associado ou como associado da parte contrária, consoante a natureza do interesse que lhe confira o direito a intervir, desde que o chamante alegue a causa do chamamento e justifique o interesse que, através dele, pretende acautelar.
Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este
Juízo Local Cível de Penafiel
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I.RELATÓRIO.
Na acção declarativa com processo comum proposta por AA e esposa BB contra CC e esposa DD, na contestação que apresentaram deduziram estes incidente de intervenção principal provocada de:
- A..., LDª., EE, com sede em Rua ..., ... ...;
- B..., Ldª., com sede na Travessa ..., ... ..., Penafiel;
- FF, arquitecto nº. ..., da AO, NIF ..., com domicílio profissional na Avenida ..., ... ...; e
- GG, Engenheiro Civil, nº. ... da OE, NIF ..., com domicílio profissional na Avenida ..., ... ....
Alegaram, para o efeito, os Réus que são reformados, nunca tendo desenvolvido qualquer actividade profissional na área da construção civil e, por isso, não têm conhecimentos da área da construção/comercialização de imóveis pelo que entregaram a elaboração dos projectos de arquitectura e de engenharia ao Arquitecto FF e ao Eng. GG.
Quanto à construção do imóvel, a mesma foi entregue às sociedades “A... Ldª.” e ainda à “B..., Ldª.”, concretamente, para a aplicação das telas.
Tendo resultado do relatório pericial e dos esclarecimentos prestados pelo Perito HH, no âmbito do procedimento cautelar nº. 2556/22.1T8PNF que os alegados defeitos existentes na fracção “A” resultam de erros de construção e de concepção, entendidos, os primeiros, enquanto deficiências de construção na execução dos trabalhos e, os segundos, como erros associados a deficiências no projecto de arquitectura e/ou de engenharia, defeitos que não foram ocultados pelos Réus, entendem ser imprescindível a intervenção daqueles como seus associados.
Juntaram a respectiva prova documental.
Exercido o contraditório legal, nenhuma oposição, em concreto, foi deduzida quanto ao incidente processual deduzido.
Foi então proferida decisão que admitiu a intervenção principal provocada, como associados dos Réus, das sociedades e pessoas pelos mesmos indicados, ordenando a citação dos intervenientes nos termos do disposto no artigo 319.º do Código de Processo Civil.
Não se conformando o chamado FF com tal decisão, dela interpôs recurso de apelação para esta Relação, finalizando as suas alegações com as seguintes conclusões:
1. O objeto dos presentes autos é uma compra e venda de bens defeituosos.
2. Os réus venderam aos autores um imóvel que sofre de diversos pontos de infiltração de águas pluviais.
3. Aquando de uma prova pericial levada a cabo no âmbito de uma ação anterior e independente desta, a testemunha HH, de forma infundada e não técnica e científica, entendeu que os defeitos teriam na origem defeitos de construção aos que se podiam aliar defeitos de conceção.
4. O referido relatório foi trazido aos presentes autos e unicamente por força do mesmo foi requerido pelos réus a intervenção principal provocado do arquiteto executor do projeto, aqui recorrente.
5. O tribunal a quo deferiu essa pretensão por verificação dos pressupostos dos arts. 26º, 288 n.º 1, 33º, 311º, 312º, 313º, 314º, 316º a 319º, todos do CPC.
6. No entanto, tal subsunção não se verifica. Decidiu mal o tribunal a quo.
7. O Chamado não é parte legítima na matéria controvertida.
8. Não tem qualquer direito próprio a defender perante a pretensão dos autores.
9. Não tem o recorrente qualquer interesse próprio na discussão em causa nos presentes autos.
10. Nem sequer qualquer legitimidade na matéria controvertida nos presentes autos.
11. O que está na base deste despacho aqui posto em crise é um relatório pericial de um outro processo.
12. Contendo em si contradições e imprecisões técnicas.
13. Do relatório constam opiniões de uma testemunha sem fundamentação técnica e científica.
14. E cujo depoimento não foi ainda prestado.
15. E mesmo que assim não se entendesse, o pretexto de regular-se “assim definitivamente a relação jurídica controvertida”, como consta do despacho aqui posto em crise, não é um dos fundamentos de que a lei faz depender a admissibilidade deste incidente.
16. A jurisprudência criada pelos tribunais superiores nesta matéria, é clara e uniforme.
17. O objeto dos presentes autos é a qualidade do bem que foi vendido pelos réus aos autores.
18. Nesta senda, não poderá jamais o aqui recorrente considerar-se parte legítima em tal pretensão.
19. Pois não tem nem teve qualquer relação jurídica com os autores.
20. Nem poderiam os autores demandar o aqui recorrente.
21. Bem como não são os réus parte ilegítima por o aqui recorrente não ser réu na presente ação.
22. Nem tem o recorrente qualquer direito que se assemelhe ao dos réus.
23. Não é aplicável a exceção constante do art. 317º do CPC.
24. Não foi alegada necessidade de compensação automática no caso de condenação dos réus nos presentes autos.
25. Os réus limitaram-se a invocar o documento que levanta a possibilidade de existirem defeitos de conceção do projeto.
26. Logo, não seria sequer possível a convolação oficiosa do incidente de intervenção principal provocada em intervenção acessória provocada.
Pelo exposto e com o douto suprimento de V. Exas., deve ser concedido provimento ao presente recurso, com o que se fará JUSTIÇA!”
Os Réus/Recorridos apresentaram contra-alegações, pugnando pelo não provimento do recurso.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar.
II.OBJECTO DO RECURSO.
A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.
B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pela recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar:
- admissibilidade do incidente de intervenção principal provocada formulado pelos Réus.
III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
São os descritos no relatório introdutório os factos/incidências processuais relevantes ao conhecimento do objecto do recurso.
IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
Após citação do réu, deve a instância manter-se imutável quanto às pessoas, pedido e causa de pedir, ressalvadas as possibilidade de modificação consignadas na lei. Trata-se do princípio da estabilidade da instância, a que o artigo 260.º do Código de Processo Civil dá expressão.
Tal princípio é passível de ser afectado por via de uma modificação subjectiva, seja em consequência da substituição de alguma das partes primitivas, seja por via da intervenção de terceiros. Essa modificação adjectiva-se através de incidente processual – típico ou inominado – que pressupõe a pendência de uma causa.
Na intervenção de terceiros o conceito de terceiros contrapõe-se ao conceito de parte, traduzindo-se em alguém por quem ou contra quem é solicitada, em nome próprio, uma providência judicial tendente à tutela de um direito[1].
Os incidentes de intervenção de terceiros foram estruturados na base dos vários tipos de interesse na intervenção e das várias ligações entre esse interesse, que deve ser invocado como fundamento da legitimidade do interveniente e da relação material controvertida desenvolvida entre as partes primitivas.
A intervenção principal enquadra-se no quadro geral dos incidentes de intervenção de terceiros, integrando a mesma “…os casos em que o terceiro se associa, ou é chamado a associar-se, a uma das partes primitivas, com o estatuto de parte principal, cumulando-se no processo a apreciação de uma relação jurídica própria do interveniente conexa com a relação material controvertida entre as partes primitivas, em termos de tornar possível um hipotético litisconsórcio ou coligação iniciais”[2].
A intervenção de terceiros a título principal, ou seja, aquela em que o interveniente faz valer um direito próprio, paralelo ao do autor ou do réu[3], pode ocorrer por iniciativa espontânea daquele que, em relação ao objecto da causa, tiver um interesse igual ao do autor ou do réu, interesse este definido nos termos dos artigos 32.º, 33.º e 34.º.
O artigo 311º do Código de Processo Civil, que define o âmbito da intervenção principal espontânea e serve de referência à intervenção provocada, determina que, estando pendente causa entre duas ou mais pessoas, pode nela intervir como parte principal aquele que, em relação ao seu objecto, tiver um interesse igual ao do autor ou do réu, nos termos dos artigos 32.º (litisconsórcio voluntário), 33.º (litisconsórcio necessário) e 34.º (acções que têm de ser propostas por ambos ou contra ambos os cônjuges).
De resto, como resulta da própria epígrafe do preceito, “intervenção de litisconsorte”, o campo de aplicação da intervenção principal, com excepção da situação prevista no artigo 317.º do Código de Processo Civil, passou a estar confinado às situações de litisconsórcio: só pode intervir na acção, assumindo a posição de parte principal, um terceiro que, por referência ao objecto da lide, esteja em relação à parte a que se vai associar numa situação de litisconsórcio: “Como decorre da previsão do art. 316º, a intervenção provocada restringe-se às situações de litisconsórcio, voluntário ou necessário, definidos respetivamente nos arts. 31º e 32º, do CPC.
Só a ilegitimidade plural (preterição de litisconsórcio) é suprível por via do incidente de intervenção”[4].
Pode ter lugar a chamamento de qualquer das partes, como seu associado ou como associado da parte contrária, consoante a natureza do interesse que lhe confira o direito a intervir, desde que o chamante alegue a causa do chamamento e justifique o interesse que, através dele, pretende acautelar.
Dispõe o artigo 316.º do Código de Processo Civil:
1 - Ocorrendo preterição de litisconsórcio necessário, qualquer das partes pode chamar a juízo o interessado com legitimidade para intervir na causa, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária.
2 - Nos casos de litisconsórcio voluntário, pode o autor provocar a intervenção de algum litisconsorte do réu que não haja demandado inicialmente ou de terceiro contra quem pretenda dirigir o pedido nos termos do artigo 39.º.
3 - O chamamento pode ainda ser deduzido por iniciativa do réu quando este:
a) Mostre interesse atendível em chamar a intervir outros litisconsortes voluntários, sujeitos passivos da relação material controvertida;
b) Pretenda provocar a intervenção de possíveis contitulares do direito invocado pelo autor.”.
Como dá conta o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.05.2009[5], seguido de muito perto pelo acórdão da Relação de Lisboa de 21.10.2009[6], que, nos aspectos nucleares, o reproduz, “A intervenção principal, espontânea ou provocada, não é, naturalmente, admissível se forem contrapostos os interesses substantivos ou processuais do chamado e da parte ao lado de quem se pretende que intervenha”. E acrescenta o mesmo acórdão: “Como a intervenção principal provocada pressupõe que o chamado e a parte à qual pretende associar-se tenham interesse igual na causa, não é de admitir a intervenção apenas destinada a prevenir a hipótese de a parte primitiva não ser titular do interesse invocado.
Por outro lado, a intervenção na lide de alguma pessoa como associado do réu pressupõe um interesse litisconsorcial no âmbito da relação controvertida, cuja medida da sua viabilidade é limitada pela latitude do accionamento operado pelo autor, não podendo intervir quem lhe seja alheio (v. Salvador da Costa, Os Incidentes da Instância, 5ª ed., págs. 113 a 118)”.
De acordo com o acórdão da Relação de Évora de 3.07.2008[7], “A intervenção principal pretende a participação de terceiros que sejam titulares de uma situação subjectiva própria, paralela à invocada pelo autor ou pelo réu e quer essa situação seja activa quer seja passiva”.
Segundo o citado artigo 316.º do Código de Processo Civil, a intervenção principal provocada pode ser requerida quando tenha ocorrido preterição de litisconsórcio necessário. Tal hipótese, ao contrário do que afirma o despacho recorrido, claramente não se configura na situação em análise.
Como igualmente, no caso, não se acha preenchida a circunstância a que alude o n.º 2, prevista para situações de litisconsórcio voluntário, a requerimento do autor.
O n.º 3 do referido normativo permite a intervenção principal provocada por iniciativa do réu quando ocorram alguma destas circunstâncias:
- quando o réu mostre interesse atendível em chamar a intervir outros litisconsortes voluntários, sujeitos passivos da relação material controvertida; ou
- pretenda provocar a intervenção de possíveis contitulares do direito invocado pelo autor.
Sob a epígrafe Litisconsórcio Voluntário, prescreve o artigo 32.º da lei processual civil:
1 - Se a relação material controvertida respeitar a várias pessoas, a ação respetiva pode ser proposta por todos ou contra todos os interessados; mas, se a lei ou o negócio for omisso, a ação pode também ser proposta por um só ou contra um só dos interessados, devendo o tribunal, nesse caso, conhecer apenas da respetiva quota-parte do interesse ou da responsabilidade, ainda que o pedido abranja a totalidade.
2 - Se a lei ou o negócio permitir que o direito seja exercido por um só ou que a obrigação comum seja exigida de um só dos interessados, basta que um deles intervenha para assegurar a legitimidade.
Esclarece Salvador da Costa[8] que a intervenção na lide de alguma pessoa como associado do réu pressupõe um interesse litisconsorcial no âmbito da relação controvertida, cuja medida da sua viabilidade é limitada pela latitude do acionamento operado pelo autor, não podendo intervir quem lhe seja alheio.
No caso em apreço, tomando por referência a relação material controvertida tal como os Autores a configuraram, isto é, em que a alegada causa de pedir assenta num contrato de compra e venda de imóvel com defeitos cujos efeitos se repercutem apenas entre aqueles, enquanto compradores, e os Réus, na qualidade de vendedores, não existe uma situação de litisconsórcio voluntário que consinta na intervenção de terceiros através do incidente da intervenção principal provocada.
Retira-se do sumário do acórdão da Relação de Lisboa de 20.12.2017[9]: “[...] 2.– Resulta dos artigos 914º e 916º do Código Civil que, na compre e venda defeituosa, os sujeitos da relação substantiva são o comprador e o vendedor, decorrendo do artigo 1225º, nº 1 do C.C. que na empreitada de construção modificação ou reparação de edifícios ou imóveis destinados por sua natureza a longa duração, em que no decurso dos 5 anos a contar da entrega ou da garantia convencionada a obra venha a apresentar defeitos, o empreiteiro é responsável pelo prejuízo causado ao dono da obra ou ao terceiro adquirente;
3.– E, o n.º 4 do citado artigo 1225º do C.C. estipula que os números anteriores se aplicam também ao vendedor de imóvel que o tenha construído, modificado ou reparado, o que significa que não tem aplicação ao caso em que a sociedade promotora e vendedora não o construiu, antes o mandou construir a um empreiteiro.
4.– O artigo 30º, nº 3 do C.P.C. estatui que na falta de indicação da lei em contrário são considerados titulares do interesse relevante para efeitos de legitimidade os sujeitos da relação controvertida tal como foi configurada pelo autor;
5.– Mas, ainda que se considerasse que a relação material controvertida poderia ser aquela também configurada pelos Réus na contestação e não apenas aquela trazida aos autos pelo Autor sempre a intervenção a chamamento por parte da ré estaria condicionada à demonstração do interesse atendível consagrado no artigo 316º, nº 3, alínea a) do C.P.C..
6.– Não estando o Autor a discutir a empreitada, apenas a compra e venda defeituosa, e não se verificando a situação em que a ré/vendedora haja sido ela própria a construtora, não se vislumbra o interesse atendível da ré em fazer intervir na acção o empreiteiro e o técnico alegadamente responsável pela obra, pelo que será de rejeitar o incidente de intervenção principal provocada passiva destes, antes sendo de admitir o incidente de intervenção acessória provocada”.
Não se mostrando, assim, preenchida nenhuma das circunstâncias enumeradas no artigo 316.º, n.º 3 do Código de Processo Civil, também por esta via não é admissível a intervenção principal provocada pelos Réus.
Procede, consequentemente, o Recurso, com a revogação da decisão recorrida.
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Custas da apelação, a cargo dos apelados Réus, que apresentaram contra-alegações: artigo 527.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.
Notifique.
Acórdão processado informaticamente e revisto pela primeira signatária.
Porto, 5.12.2024
Judite Pires
Isoleta de Almeida Costa
António Carneiro da Silva
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[1] Gama Prazeres, Dos Incidentes da Instância no Actual Código de Processo Civil, pág. 102.
[2] Lopes do Rego, Comentário ao Código do Processo Civil, pág. 242.
[3] Artigos 311.º e 312.º do Código de Processo Civil.
[4] Acórdão da Relação de Guimarães de 10.09.2020, processo 559/20.2T8GMR.G1, www.dgsi.pt.
[5] Processo 09B0563, www.dgsi.pt.
[6] Processo n.º 229-07.0TTCSC.L1-4, www.dgsi.pt.
[7] Processo 3084/07-3, www.dgsi.pt.
[8] Os Incidentes da Instância, 5.ª ed., págs. 113 a 118.
[9] Processo n.º 34976/15.9T8LSB-A.L1-2, www.dgsi.pt.