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CONTRA-ORDENAÇÃO
SUCESSÃO DE LEIS
CRIMINALIZAÇÃO DE CONDUTA
Sumário
1. Uma lei que converte uma contra-ordenação em crime, isto é, a lei que passa a qualificar como infracção penal uma hipótese legal que por lei anterior era qualificada como contra-ordenação (infracção administrativa) é uma lei penalizadora e, como tal, só pode aplicar-se às condutas praticadas depois da sua entrada em vigor (CRP, art.º 29º, n.º 1 e 3; CP art.ºs 1º, n.º 1, e 2º, n.º 1). 2. Quanto às condutas anteriormente praticadas, isto é, praticadas na vigência da lei que as qualificava como contra-ordenação, o problema tem de ser resolvido de acordo com os princípios que regem a vigência temporal da lei contra-ordenacional (DL 433/82, art.ºs 2º e 3º). 3. Não se está, nestes casos, perante uma hipótese de verdadeira sucessão de leis penais, logo não funciona o princípio da aplicação da lei mais favorável e, portanto, não há que fazer a ponderação da gravidade objectiva das sanções (sanções contra-ordenacionais - sanções penais). 4. A arguida não poder ser punida pela Lei nova, actualmente em vigor, que configura os factos em causa nos autos como crime e que não estava em vigor à data da prática dos factos, mas, também, não podem tais factos ser punidos pela lei em vigor à data dos factos, como contra-ordenação, porque tal lei foi revogada, sendo certo que inexiste qualquer norma transitória, na Lei 40/2023, de 10.08, que mantenha em vigor os mencionados art.ºs 39º-B e 40º, n.º 6, nas redacções anteriores para os factos praticados anteriormente à sua entrada em vigor, e o Regime de Ilícito de Mera Ordenação Social aprovado pelo DL 433/82, de 27.10, na última redacção da Lei 109/2001, de 24.12, não prevê tal situação. 5. Se a conduta da arguida já não constitui contraordenação no momento da aplicação da lei e se ainda não era crime no momento da sua prática, inexistindo norma transitória que trate a sucessão, impõe-se concluir pela descontra-ordenacionalização das condutas imputadas nos autos à arguida Sport Lisboa e Benfica -Futebol, SAD. 6. Esta impunidade de comportamentos que integravam contraordenação no momento da conduta, mas já constituem crime no momento da aplicação da lei, resolver-se-ia com a existência de uma norma transitória, ou seja, de um preceito que previsse um regime transitório para a conversão da contraordenação em crime. (Sumário elaborado pela relatora)
Texto Integral
Acordam em conferência na 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa
I – RELATÓRIO
1. Por decisão judicial, depositada em 19.03.2024, foram julgadas descontra-ordenacionalizadas as condutas imputadas à arguido Sport Lisboa e Benfica - Futebol, SAD pela prática (entre 18.10.2017 e 04.06.2020) de 57 contra-ordenações, p. e p. nos art.ºs 39-B, n.º 2, alínea a), e 40º, n.º 6, da Lei 39/2009, de 30.07, sendo 49 delas com as alterações da Lei 52/2013, de 25.07, e 7 delas, com as alterações da Lei 113/2019, de 11.09, e determinado o arquivamento dos autos.
2. Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso requerendo a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que decida pela aplicação da lei contraordenacional velha e determine o prosseguimento dos autos.
Da motivação do seu recurso extraiu as seguintes conclusões:
«1. Nos termos da redacção introduzida pela Lei 40/2023, de 10.08, que entrou em vigor em 10.09.2023, o art.º 39º-B, n.º 2, alínea a), passou a ter a seguinte redacção: “constitui contraordenação: a) (Revogada.)” e o art.º 40º, n.º 6, passou a ter a seguinte redacção “é punida com coima entre € 6.000,00 e € 200.000,00 a prática dos atos previstos nas alíneas (…) nas alíneas b) e c) do n.º 2 (…)do artigo 39º-B”, sendo o art.º 4º da Lei 40/2023 em apreço que prevê que “são revogados (…) as alíneas a) (…) do n.º 2 do art.º 39º-B (…) da Lei 39/2009, de 30.07”.
2 . Porém, a Lei 40/2023 acrescentou dois novos preceitos legais, nomeadamente o art.º 34º-A que no seu n.º 1 preceitua que “quem apoiar, sob qualquer forma, grupo organizado de adeptos em violação do disposto no n.º 2 do artigo 14º é punido com pena de prisão até 1 ano” (agravando os números subsequentes a pena em determinadas condições) e o art.º 34º-B que preceitua que “as pessoas coletivas e entidades equiparadas são responsáveis, nos termos gerais, pelos crimes previstos no artigo anterior”, alterando o art.º 14º, n.º 2, que preceitua agora que “o promotor do espetáculo desportivo ou qualquer outra entidade, coletiva ou singular, não podem atribuir qualquer apoio a grupo organizado de adeptos não registado na APCVD, ou cujo registo tenha sido suspenso ou anulado, nomeadamente concessão de facilidades de utilização ou cedência de instalações, sejam no interior ou no exterior do recinto desportivo, cedência de títulos de ingresso a preços especiais ou em número superior ao de membros filiados, apoio nas deslocações ou apoio técnico, financeiro ou material”.
3. Coloca-se, agora, a questão de saber se hoje os factos praticados entre 18.10.2017 e 04.06.2020 são puníveis como contraordenação com base numa Lei revogada, como crime com base numa Lei nova (em vigor desde Setembro de 2023) ou não são puníveis?
4 . Na resposta a tal questão refere a sentença recorrida que: Na verdade, sendo as contra-ordenações meras ordenações sociais de natureza administrativa não têm as mesmas natureza criminal, pelo que não estamos perante uma sucessão de leis penais no tempo com previsão legal, nomeadamente prevista no mencionado art.º 2º, n.º 4. Ou seja, o arguido não pode ser punido pela Lei nova que não estava em vigor à data da prática dos factos (portanto, como crime) e não pode ser punido pela Lei em vigor à data da prática dos factos porque foi revogada (portanto, como contra-ordenação), existindo um vazio legal.
5. E conclui que: entendemos que com a entrada em vigor da Lei 40/2023, e 10.08, as concretas condutas em causa nas 57 contra-ordenações por que vem o arguido condenado pela Autoridade Administrativa praticadas entre 18.10.2017 e 04.06.2020 deixaram - a 10.09.2023 - de ser puníveis enquanto tal e passaram a ser insusceptíveis de punição.
6. Decidindo: Considerando o exposto, julgam-se descontra-ordenacionalizadas as condutas imputadas ao arguido Sport Lisboa e Benfica - Futebol, SAD pela prática (entre 18.10.2017 e 04.06.2020) de 57 contra-ordenações, p. e p. nos art.ºs 39-B, n.º 2, alínea a), e 40º, n.º 6, da Lei 39/2009, de 30.07, sendo 49 delas com as alterações da Lei 52/2013, de 25.07, e 7 delas com as alterações da Lei 113/2019, de 11.09, e determina-se o oportuno arquivamento dos autos.
7. Não lhe assiste, contudo, razão. Como refere Paulo Pinto de Albuquerque (in Comentário ao Código Penal, 2008, pág. 50)” De igual modo e pela mesma razão, se a lei nova pune como crime uma conduta anteriormente punida como contraordenação, as condutas mantêm a sua relevância jurídica, devendo ser puníveis de acordo com a lei contraordenacional velha. Trata-se de um caso de ultra-actividade da lei contraordenacional velha.
8. Certo é que as condutas mantêm a sua relevância jurídica, e na data da sua prática não havia razões para que o agente pudesse esperar ficar impune.
9. Efectivamente, se uma nova lei vem criminalizar as condutas antes previstas e punidas como contraordenação, não podendo nunca o agente ser julgado nos termos da nova lei criminalizadora, nos termos do artigo 2º, nº 4 do Código Penal, pode e deve ser julgado nos termos da lei contraordenacional que existia à data da prática dos factos, sendo esta a única solução que respeita o disposto na Lei Penal e no Regime Geral das Contraordenações .
10. Pelo que, assim não decidindo, violou a sentença recorrida o disposto nos art.ºs 39-B, n.º 2, alínea a), e 40º, n.º 6, da Lei 39/2009, de 30.07,, e o disposto na Lei 40/2023 de 10.09.2023, concretamente o disposto nos artigos 14º, nº 2 e 34-A e 34º-B .
8. Sendo assim, outra consequência não se pode retirar que não seja a de se pugnar pela revogação da douta sentença, substituindo-a por outra que se decida pela aplicação da lei contraordenacional velha e determine o prosseguimento dos autos».
3. O recurso foi admitido.
4. Neste tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto, apôs «visto».
5. Colhidos os vistos legais e realizada a conferência cumpre decidir.
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II. Fundamentação:
1. Delimitação do objecto do recurso
É pacífica a jurisprudência do S.T.J. no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que são de conhecimento oficioso deste Tribunal.
Assim sendo, de acordo com as conclusões da respectiva motivação o objecto do recurso do Ministério Público suscita a questão seguinte: . Consequências jurídicas da entrada em vigor da Lei 40/2023, e 10.08, que passou a punir como crime as condutas que que integram as 57 contra-ordenações e p. nos art.ºs 39-B, n.º 2, alínea a), e 40º, n.º 6, da Lei 39/2009, de 30.07, sendo 49 (quarenta e nove) delas com as alterações da Lei 52/2013, de 25.07, e 7 (sete) delas com as alterações da Lei 113/2019, de 11.09, por que vem o arguido condenado pela Autoridade Administrativa, praticadas entre 18.10.2017 e 04.06.2020
2. A decisão judicial recorrida tem o seguinte teor:
«Nos presentes autos de recurso de contra-ordenação vem o arguido Sport Lisboa e Benfica - Futebol, SAD impugnar decisão administrativa da Autoridade de Prevenção e Combate à Violência no Desporto que o condenou pela prática (entre 18.10.2017 e 04.06.2020) de 57 contra-ordenações, p. e p. nos art.ºs 39-B, n.º 2, alínea a), e 40º, n.º 6, da Lei 39/2009, de 30.07, sendo 49 delas com as alterações da Lei 52/2013, de 25.07, e 7 delas com as alterações da Lei 113/2019, de 11.09.
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Assim, preceituava o art.º 39-B, n.º 2, alínea a), na redacção de 2013 e na redacção de 2019, que “constitui contraordenação: a) A atribuição de qualquer apoio, nomeadamente através da concessão de facilidades de utilização ou cedência de instalações, de apoio técnico, financeiro ou material, em violação do disposto no n.º 2 do artigo 14º” e o art.º 14º, n.º 2, que “o incumprimento do disposto no número anterior veda liminarmente a atribuição de qualquer apoio, por parte do promotor do espetáculo desportivo, nomeadamente através da concessão de facilidades de utilização ou cedência de instalações, apoio técnico, financeiro ou material” (prevendo o mencionado n.º 1 em 2013 que “é obrigatório o registo dos grupos organizados de adeptos junto do IPDJ, I.P., tendo para tal que ser constituídos previamente como associações, nos termos da legislação aplicável ou no âmbito do associativismo juvenil” e em 2019 que “é obrigatório o registo dos grupos organizados de adeptos junto da APCVD, tendo que ser constituídos previamente como associações, nos termos da legislação aplicável”, ou seja, algo diverso, mas equivalente).
Preceituava, igualmente, o art.º 40º, n.º 6, na redacção de 2013, que “constitui contraordenação, punida com coima entre € 2.500,00 e € 200.000,00, a prática dos atos previstos nas alíneas (…) a), (…) do n.º 2 do artigo 39º-B” e na redacção de 2019 que “constitui contraordenação, punida com coima entre € 5.000,00 e € 200.000,00, a prática dos atos previstos nas alíneas a), (…) do n.º 2 do artigo 39º-B”.
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Por despacho de 05.06.2023, sob a ref. 426009683, foi recebido o recurso de contra-ordenação em apreço e designada data para início da audiência de julgamento.
Porém, posteriormente, foi publicada a Lei 40/2023, de 10.08, que entrou em vigor em 10.09.2023, e procedeu a alterações àquele diploma que cumpre desde já apreciar.
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Com efeito, nos termos da redacção introduzida pela aludida Lei 40/2023, o art.º 39º-B, n.º 2, alínea a), passou a ter a seguinte redacção: “constitui contraordenação: a) (Revogada.)” e o art.º 40º, n.º 6, passou a ter a seguinte redacção “é punida com coima entre € 6.000,00 e € 200.000,00 a prática dos atos previstos nas alíneas (…) nas alíneas b) e c) do n.º 2 (…) do artigo 39º-B”, sendo que o art.º 4º da Lei 40/2023 em apreço prevê que “são revogados (…) as alíneas a) (…) do n.º 2 do art.º 39º-B (…) da Lei 39/2009, de 30.07”.
Ou seja, a prática dos factos previstos nos preceitos legais imputados ao arguido deixaram de ser punidos como contra-ordenação em 10.09.2023.
Porém, a Lei 40/2023 acrescentou dois novos preceitos legais, nomeadamente o art.º 34º-A que no seu n.º 1 preceitua que “quem apoiar, sob qualquer forma, grupo organizado de adeptos em violação do disposto no n.º 2 do artigo 14º é punido com pena de prisão até 1 ano” (agravando os números subsequentes a pena em determinadas condições) e o art.º 34º-B que preceitua que “as pessoas coletivas e entidades equiparadas são responsáveis, nos termos gerais, pelos crimes previstos no artigo anterior”, alterando o art.º 14º, n.º 2, que preceitua agora que “o promotor do espetáculo desportivo ou qualquer outra entidade, coletiva ou singular, não podem atribuir qualquer apoio a grupo organizado de adeptos não registado na APCVD, ou cujo registo tenha sido suspenso ou anulado, nomeadamente concessão de facilidades de utilização ou cedência de instalações, sejam no interior ou no exterior do recinto desportivo, cedência de títulos de ingresso a preços especiais ou em número superior ao de membros filiados, apoio nas deslocações ou apoio técnico, financeiro ou material”.
Ou seja, a prática dos factos previstos nos preceitos legais imputados ao arguido passaram a ser punidos como crime em 10.09.2023.
Por forma a evitar uma decisão surpresa determinou-se a notificação dos intervenientes para se pronunciarem, querendo, tendo o Ministério Público sob a ref. 431807866 propugnado pela aplicação da lei antiga e o arguido sob a ref. 431807866 se pronunciado sobre questões diversas que não aquela em apreço.
* Quid iuris
Hoje os factos praticados entre 18.10.2017 e 04.06.2020 são puníveis como contra-ordenação com base numa Lei revogada, como crime com base numa Lei nova (em vigor desde Setembro de 2023) ou não são puníveis?
A Lei 40/2023, de 10.08, não contém qualquer norma com regime transitório que mantenha em vigor os mencionados art.ºs 39º-B e 40º, n.º 6, nas redacções anteriores para os factos praticados anteriormente à sua entrada em vigor e o Regime de Ilícito de Mera Ordenação Social aprovado pelo DL 433/82, de 27.10, na sua última redacção da Lei 109/2001, de 24.12, não prevê tal situação.
Prevê, porém, o aludido DL 433/82 no seu art.º 3º, n.º 2, que “se a lei vigente ao tempo da prática do facto for posteriormente modificada, aplicar-se-á a lei mais favorável ao arguido, salvo se este já tiver sido condenado por decisão definitiva ou transitada em julgado e já executada” e o Código Penal no seu art.º2º, n.º1, que “as penas (…) são determinadas pela lei vigente no momento da prática do facto ou do preenchimento dos pressupostos de que dependem” e n.º 4 que “o facto punível segundo a lei vigente no momento da sua prática deixa de o ser se uma lei nova o eliminar do número das infracções”.
Na verdade, sendo as contra-ordenações meras ordenações sociais de natureza administrativa não têm as mesmas natureza criminal, pelo que não estamos perante uma sucessão de leis penais no tempo com previsão legal, nomeadamente prevista no mencionado art.º 2º, n.º 4.
Ou seja, o arguido não pode ser punido pela Lei nova que não estava em vigor à data da prática dos factos (portanto, como crime) e não pode ser punido pela Lei em vigor à data da prática dos factos porque foi revogada (portanto, como contra-ordenação), existindo um vazio legal.
A questão, aliás, já foi claramente apreciada por Américo A. Taipa de Carvalho, em Sucessão de Leis Penais, 2008, págs. 194 a 196: “(…) a lei que converte uma contra-ordenação em crime, isto é, a lei que passa a qualificar como infracção penal uma hipótese legal que por lei anterior era qualificada como contra-ordenação (infracção administrativa) é uma lei penalizadora (fundamentadora de responsabilidade penal) e, como tal, só pode aplicar-se às condutas praticadas depois da sua entrada em vigor (CRP, art.º 29º, n.º 1 e 3; CP art.ºs 1º, n.º 1, e 2º, n.º 1). (…) Quanto às condutas anteriormente praticadas, isto é, praticadas na vigência da lei que as qualificava como contra-ordenação, o problema tem de ser resolvido de acordo com os princípios que regem a vigência temporal da lei contra-ordenacional (DL 433/82, art.ºs 2º e 3º). (…) 1º Não se trata de uma hipótese de verdadeira sucessão de leis penais; logo não funciona o princípio da aplicação da lei mais favorável e, portanto, não há que fazer a ponderação da gravidade objectiva das sanções (sanções contra-ordenacionais - sanções penais). Pela conduta anterior à vigência da lei que qualifica, ex novo, a conduta como infracção penal, jamais o infractor pode ser responsabilizado penalmente. 2º Então, seguem-se duas hipóteses: ou tais condutas perdem, com a entrada em vigor da lei, toda a relevância jurídica, extinguindo-se, se já iniciado, o processo contra-ordenacional (…); ou tais condutas mantêm a sua relevância jurídica contra-ordenacional, aplicando-se ultractivamente a lei que, no momento da conduta, as qualificava como ilícito de mera ordenação social. 3º Como se acaba de ver, não fiz qualquer referência pormenorizada a nenhuma das várias disposições do art.º 3º («aplicação no tempo») do DL 433/82. E não a fiz, precisamente porque esta hipótese de conversão de contra-ordenação em infracção penal não é abrangida pelo referido artigo. Este refere-se às hipóteses de lei que ex novo qualifica o facto como contra-ordenação (art.ºs 2º e 3º, n.º 1) e de sucessão de leis contra-ordenacionais - aplicando-se a lei mais favorável - art.º 3º, n.º 2). É certo que poderá acolher-se o entendimento de que a «lei que converte uma contra-ordenação numa infracção penal» é uma lei mais favorável relativamente aos factos praticados antes da sua entrada em vigor. Eis o raciocínio que pode levar a este entendimento (diga-se: o que me parece mais defensável face aos princípios gerais já, anteriormente, desenvolvidos e face ao próprio art.º 3º, n.º 2): sendo uma tal lei, simultaneamente, penalizadora e descontra-ordenacionalizadora, não pode a responsabilização penal ser retroactiva, mas já pode a sua eficácia extintiva da responsabilidade por ilícito de mera ordenação ser retroactiva. Quer dizer: esta lei que retira a natureza de contra-ordenação ao facto pode considerar-se integrada no conceito de lei posterior mais favorável ao arguido de contra-ordenação (art.º 3º, n.º 2).”.
Aliás, defendeu este Professor já então que “a melhor e mais razoável solução está na concretização legislativa da proposta (…): quando uma lei converter um facto de contra-ordenação em crime, o facto praticado durante a vigência da lei contra-ordenacional continua a ser punível como contra-ordenação, seguindo-se as regras do processo das contra-ordenações, e continuando a caber às autoridades administrativas a competência para a decisão; a sanção contra-ordenacional a aplicar nunca pode ser concretamente mais grave do que a que resultaria da aplicação da sanção penal. A disposição com este regime transitório deve, obviamente, ser incluída no Regime Geral das Contra-Ordenações. Enquanto o legislador não criar esta norma geral, a conduta praticada durante a vigência da lei contra-ordenacional (…) quando entrou em vigor a lei que operou a referida conversão, só não perderá toda a sua relevância jurídica (isto é, só poderá continuar a ser punida como contra-ordenação, pois que, em hipótese alguma, pode ser, retroactivamente, punida como crime), se a lei, que operou a conversão, contiver uma norma com o respectivo regime transitório.”.
Ora, como se referiu, nem o Regime Geral das Contra-Ordenações sofreu desde então (qualquer) alteração nem a nova lei de Segurança e Combate ao Racismo, à Xenofobia e à Intolerância nos Espectáculos Desportivos contém tal regime transitório.
Curiosamente questão semelhante colocou-se já no nosso regime jurídico em algumas outras ocasiões.
Numa destas, há cerca de 25 anos, aquando da criminalização da condução sem habilitação legal (antes de 1998 essa conduta era punida como contra-ordenação) e já então se propugnou por solução como a supra descrita. A propósito veja-se, por exemplo, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 05.03.2003, em texto integral em www.dgsi.pt, onde a questão foi apreciada nos mesmos termos, citando-se inclusive o Professor supra mencionado em edição anterior, e concluindo-se que “resulta do exposto, que tendo a contra-ordenação sido eliminada do número das infracções contra-ordenacionais, não pode manter-se a condenação do arguido/recorrente pela sua prática, resultante de convolação do crime de condução de veículo automóvel sem habilitação, p. e p. pelo artigo 3º, nº 2, do DL n.º 2/98, de 03.01, que constava da acusação (art.º 2º, n.º 2, do Código Penal, aplicável por força do disposto no art.º 32º do DL n.º 433/82). (…) Julgar descontra-ordenacionalizada a conduta do arguido/recorrente quanto à condução de veículo automóvel sem habilitação legal (art.º 124º, n.º 3, do Código da Estrada) e, assim, extinto o correspondente procedimento por contra-ordenação, com o consequente arquivamento dos autos nessa parte (…)”.
No mesmo exacto sentido, por exemplo, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28.03.2001, em CJ, Ano XXVI, 2001, Tomo II, pág. 215 a 217 (que inclusive cita acórdão da mesma Relação de 19.11.1997, em sentido idêntico, a propósito de “uma situação similar - passagem de contra-ordenação a crime dos casos de detenção, uso e porte de arma sem licença”).
Apreciando a questão inversa (de uma lei nova converter em contra-ordenação factos anteriormente punidos como crime), mas com argumentos claros para a distinção entre ambos que são igualmente aplicáveis no caso sub judice, defendeu-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 11.07.2013, em texto integral em www.dgsi.pt, “mas tal condenação [como contra-ordenação] pressuporia que o ilícito contra-ordenacional se confrontasse com o ilícito penal numa relação de grau ou de quantidade. Ou seja, de «menos» para «mais», tratando-se assim de uma «espécie menor» de um «direito sancionatório público comum». Seria, então, possível descortinar uma solução de continuidade, em situações de sucessão de leis como a presente, o que justificaria o seu enquadramento no n.º 4 do art.º 2º do Código Penal. As origens do ilícito de mera ordenação social, que nasceu precisamente para ser «não penal», bem como a autonomia dogmática que mantém (revelada e sustentada no tratamento normativo de matérias como a sanção, a autoria, a culpa, o erro, a responsabilização das pessoas colectivas), afastam o entendimento de que se poderia tratar aqui de um «direito penal menor». A diferença qualitativa (e não meramente quantitativa) entre os dois ilícitos (penal e contra-ordenacional) é declarada por autores como Eduardo Correia, Figueiredo Dias, Fernanda Palma, Taipa de Carvalho. E ditará a opção pela aplicação do n.º 2 do art.º 2º do Código Penal (aqui, Fernanda Palma manifesta posição contrária. Para a autora, apesar da diferente natureza dos ilícitos, é de relevar que «nestas situações existe um comportamento humano referente essencialmente idêntico, que assegura a unidade do facto e a continuidade normativa» - in «A aplicação da lei no tempo: a proibição da retroactividade in pejus, in Jornadas Sobre a Revisão do Código Penal», 1998, pág. 425/6). Esta opção (pela aplicação do n.º 2 do art.º 2º do Código Penal) resulta lógica e necessariamente da natureza do ilícito de mera ordenação social, como não direito penal menor. (…) A criação de norma (transitória) é actividade reservada ao legislador. Na ausência dela, resta ao tribunal declarar a despenalização”.
Com efeito, é a Professora Maria Fernanda Palma, em Direito Penal - Conceito material de crime, princípios e fundamentos - Teoria da lei penal, no espaço e quanto às pessoas, 2022 (reimpressão actualizada), págs. 176 a 177, referindo-se embora à situação inversa (“de substituição da punição de certos factos no âmbito penal pelo seu sancionamento através do direito de mera ordenação social”) que defende que “embora numa aparente e estrita lógica formal se pudesse concluir que a diferença qualitativa do ilícito penal relativamente ao de mera ordenação social impediria uma verdadeira sucessão de leis no tempo, pois os critérios valorativos de um ilícito de outra natureza suscitariam um facto jurídico novo e diferente, tal construção desconheceria que o sentido do apelo à autonomia qualitativa do ilícito é apenas evitar a plena utilização dos custos e vantagens dos critérios de responsabilização penal e do respetivo processo e permitir a introdução de critérios de aferição da responsabilidade justificados por objetivos sociais menos centrais e mais instrumentais”.
Porém, já no preâmbulo do Regime de Ilícito de Mera Ordenação Social (aprovado pelo DL 433/82, de 27.10) se esclareceu que “manteve-se, outrossim, a fidelidade à ideia de fundo que preside à distinção entre crime e contra-ordenação. Uma distinção que não esquece que aquelas duas categorias de ilícito tendem a extremar-se, quer pela natureza dos respectivos bens jurídicos quer pela desigual ressonância ética. Mas uma distinção que terá, em última instância, de ser jurídico-pragmática e, por isso, também necessariamente formal”, tendo tal diploma por base a “urgência de conferir efectividade ao direito de ordenação social, distinto e autónomo do direito penal” e justificando-se como “para atingir estes objectivos, importava introduzir algumas alterações no regime geral das contra-ordenações. Tratava-se, fundamentalmente, de colmatar uma importante lacuna, estabelecendo as normas necessárias à regulamentação substantiva e processual do concurso de crime e contra-ordenação, bem como das vicissitudes processuais impostas pela alteração da qualificação, no decurso do processo, de uma infracção como crime ou contra-ordenação”, ou seja, aparentemente até o legislador de 1982 deixou plasmado nesse diploma (que nessa parte se mantém sem alterações que afectem a sua essencialidade apesar da actual redacção do DL 244/95, de 14.09) a questão que apreciamos.
Na verdade, regressando ao caso sub judice, é inclusive inviável defender que o legislador de 2023 não tinha no seu pensamento a não punição dos factos anteriormente praticados ao nada ter referido a propósito (limitando-se a revogar o preceito que previa a conduta como contra-ordenação e a aditar preceito que a prevê como crime), pois que, não podia o legislador de 2023 olvidar que há mais de três décadas vem sendo esta questão debatida e tratada na jurisprudência e doutrina de forma largamente maioritária nos termos supra expostos (até a Professora Fernanda Palma o admite, ob. cit., pág. 177), veja-se, aliás, que o recorrentemente citado Professor Taipa de Carvalho escreveu o que reproduzimos na sua 3ª edição, em 2008, mas que já o havia escrito exactamente nos mesmos termos na sua 1ª edição, em 1990, pág. 114 a 116, e na sua 2ª edição, em 1997, pág. 145 a 147, portanto, sem qualquer dúvida e expressamente defendendo que sem o legislador alterar o DL 433/82 (que ainda não foi feito) ou sem a lei nova conter uma norma transitória que mantenha em vigor para os factos anteriores a norma que previa a conduta como contra-ordenação (que in casu não ocorreu), há uma descontra-ordenacionalização das condutas anteriores à entrada em vigor da nova lei.
É verdade que, como cita a Digna Magistrada do Ministério Público, o Professor Paulo Pinto de Albuquerque, em Comentário do Código Penal, 2008, pág. 50, conclui que “se a lei nova pune como crime uma conduta anteriormente punida como contra-ordenação, as condutas mantêm a sua relevância jurídica, devendo ser puníveis de acordo com a lei contraordenacional velha. Trata-se de um caso de ultra-actividade da lei contraordenacional velha”, mas também é verdade que este Professor não apresenta qualquer fundamento para essa sua conclusão/entendimento e logo a seguir acrescenta apenas: “diferentemente, pugnando pela impunidade da conduta, Taipa de Carvalho, (…), para quem há lacuna de punição no RGCO, e Sá Pereira e Alexandre Lafayette (…)”.
Assim, ante os argumentos expostos, há muito concordando com a posição propugnada por Taipa de Carvalho, não vislumbramos fundamento para agora alterarmos posição.
Consequentemente, face ao exposto, entendemos que com a entrada em vigor da Lei 40/2023, de 10.08, as concretas condutas em causa nas 57 contra-ordenações por que vem o arguido condenado pela Autoridade Administrativa praticadas entre 18.10.2017 e 04.06.2020 deixaram - a 10.09.2023 -de ser puníveis enquanto tal e passaram a ser insusceptíveis de punição.
*
Considerando o exposto, julgam-se descontra-ordenacionalizadas as condutas imputadas ao arguido Sport Lisboa e Benfica - Futebol, SAD pela prática (entre 18.10.2017 e 04.06.2020) de 57 contra-ordenações, p. e p. nos art.ºs 39-B, n.º 2, alínea a), e 40º, n.º 6, da Lei 39/2009, de 30.07, sendo 49 delas com as alterações da Lei 52/2013, de 25.07, e 7 delas com as alterações da Lei 113/2019, de 11.09, e determina-se o oportuno arquivamento dos autos.
Notifique, incluindo a Autoridade Administrativa»
Decidindo.
Nos presentes autos de recurso de contra-ordenação vem o arguido Sport Lisboa e Benfica - Futebol, SAD impugnar decisão administrativa da Autoridade de Prevenção e Combate à Violência no Desporto que o condenou pela prática (entre 18.10.2017 e 04.06.2020) de 57 contra-ordenações, p. e p. nos art.ºs 39-B, n.º 2, alínea a), e 40º, n.º 6, da Lei 39/2009, de 30.07, sendo 49 delas com as alterações da Lei 52/2013, de 25.07, e 7 delas com as alterações da Lei 113/2019, de 11.09.
Por despacho judicial de 05.06.2023, sob a ref.426009683, foi recebido o recurso de contra-ordenação
em apreço e designada data para início da audiência de julgamento.
Posteriormente, foi publicada a Lei 40/2023, de 10.08, que entrou em vigor em 10.09.2023, e procedeu a alterações àquele diploma.
Nos termos da redacção introduzida pela supra citada Lei 40/2023 o art.º 39º-B, n.º 2, alínea a), passou a ter a seguinte redacção: “constitui contraordenação: a) (Revogada.)” e o art.º 40º, n.º 6, passou a ter a seguinte redacção “é punida com coima entre € 6.000,00 e € 200.000,00 a prática dos atos previstos nas alíneas (…) nas alíneas b) e c) do n.º 2 (…) do artigo 39º-B”, sendo que o art.º 4º da Lei 40/2023 em apreço prevê que “são revogados (…) as alíneas a) (…) do n.º 2 do art.º 39º-B (…) da Lei 39/2009, de 30.07”.
Decorre, pois, expressamente desta lei que a prática dos factos previstos nos preceitos legais imputados à arguida deixaram de ser punidos como contra-ordenação em 10.09.2023.
Porém, a Lei 40/2023 acrescentou dois novos preceitos legais, designadamente, o art.º 34º-A que no seu n.º 1 preceitua que “quem apoiar, sob qualquer forma, grupo organizado de adeptos em violação do disposto no n.º 2 do artigo 14º é punido com pena de prisão até 1 ano” (agravando os números subsequentes a pena em determinadas condições) e o art.º 34º-B que preceitua que “as pessoas coletivas e entidades equiparadas são responsáveis, nos termos gerais, pelos crimes previstos no artigo anterior”, alterando o art.º 14º, n.º 2, que preceitua agora que “o promotor do espetáculo desportivo ou qualquer outra entidade, coletiva ou singular, não podem atribuir qualquer apoio a grupo organizado de adeptos não registado na APCVD, ou cujo registo tenha sido suspenso ou anulado, nomeadamente concessão de facilidades de utilização ou cedência de instalações, sejam no interior ou no exterior do recinto desportivo, cedência de títulos de ingresso a preços especiais ou em número superior ao de membros filiados, apoio nas deslocações ou apoio técnico, financeiro ou material”.
O que daqui decorre é que a partir de 10.09.2023 (data da entrada em vigor da citada Lei 40/2023) os factos em causa nos autos imputados à arguida deixaram de constituir contra-ordenação e passaram a assumir a natureza de crimes e punidos como tal.
E a questão que se coloca é, então, a de saber qual as consequências jurídicas daqui decorrentes, isto é, os factos praticados entre 18.10.2017 e 04.06.2020, em causa nos presentes autos, são puníveis como contraordenação com base na lei em vigor à data dos factos mas que foi entretanto revogada, como crime com base numa Lei nova (em vigor desde Setembro de 2023) ou pura e simplesmente não são puníveis.
O despacho recorrido, assumindo uma posição com a qual concordamos, decidiu que tais factos que, à data da sua ocorrência, constituíam meras contra- ordenações de natureza administrativa não têm, natureza criminal, pelo que, não se está perante uma situação de sucessão de leis penais no tempo com previsão legal, prevista no mencionado art.º 2º, n.º 4.
E, na verdade, assim é.
Como fundamentadamente se afirma no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 11.07.2013, em texto integral em www.dgsi.pt , o ilícito contra-ordenacional não se confronta com o ilícito penal numa relação de grau ou de quantidade. Ou seja, de “menos” para “mais”, como se de «um direito penal menor» se tratasse, mantendo uma autonomia dogmática do crime, revelada e sustentada no tratamento normativo de matérias como a sanção, a autoria, a culpa, o erro, a responsabilização das pessoas colectivas.
Diferença que é qualitativa e não meramente quantitativa entre os dois ilícitos, um de natureza penal e outro contra-ordenacional como é declarada por autores como Eduardo Correia, Figueiredo Dias e Taipa de Carvalho.
No próprio preâmbulo do Decreto-Lei n.º 231/79, de 24 de julho, que introduziu o ilícito de mera ordenação social na ordem jurídica portuguesa, pode ler-se que «hoje é pacífica a ideia de que entre os dois ramos de direito medeia uma autêntica diferença: não se trata apenas de uma diferença de quantidade ou puramente formal, mas de uma diferença de natureza. A contraordenação “é um aliud que se diferencia qualitativamente do crime na medida em que o respetivo ilícito e as reações que lhe cabem não são diretamente fundamentáveis num plano ético-jurídico, não estando, portanto, sujeitas aos princípios e corolários do direito criminal” [...]. Está em causa um ordenamento sancionatório distinto do direito criminal.
Deste modo, mostra-se, assim, afastada a possibilidade de se descortinar uma solução de continuidade, em situações de sucessão de leis como a presente, o que justificaria o seu enquadramento no nº 4 do art.º 2º do Código Penal.
Isto posto e voltando ao caso concreto, entendemos nós, de acordo com a posição defendida pelo Prof. Américo A. Taipa de Carvalho, em Sucessão de Leis Penais, 2008, que não pode a arguida ser punida pela Lei nova que configura os factos em causa nos autos como crime e que não estava em vigor à data da prática dos factos, mas, também, não podem tais factos ser punidos pela lei em vigor à data dos factos, como contra-ordenação, porque tal lei foi revogada, sendo certo que inexiste qualquer norma transitória, na Lei 40/2023, de 10.08, que mantenha em vigor os mencionados art.ºs 39º-B e 40º, n.º 6, nas redacções anteriores para os factos praticados anteriormente à sua entrada em vigor e o Regime de Ilícito de Mera Ordenação Social aprovado pelo DL 433/82, de 27.10, na sua última redacção da Lei 109/2001, de 24.12, não prevê tal situação.
Por outras palavras, se a conduta da arguida já não constitui contraordenação no momento da aplicação da lei e se ainda não era crime no momento da sua prática, inexistindo norma transitória que trate a sucessão, impõe-se concluir pela descontra-ordenacionalização das condutas imputadas nos autos à arguida Sport Lisboa e Benfica - Futebol, SAD.
Esta impunidade de comportamentos que integravam contraordenação no momento da conduta, mas já constituem crime no momento da aplicação da lei, resolver-se-ia com a existência de uma norma transitória, ou seja, de um preceito que previsse um regime transitório para a conversão da contraordenação em crime.
A criação de norma transitória é actividade reservada ao legislador, pelo que na ausência dela, o tribunal deve declarar a descontraordenalização das condutas em causa nos autos, conforme foi decido na decisão recorrida.
É esta a posição amplamente desenvolvida por Américo A. Taipa de Carvalho em “Sucessão de Leis Penais” (a pp 150-194 na ed. 2008), que há muito perfilhamos:
« (…) se a lei que converte uma contra-ordenação em crime, isto é, a lei que passa a qualificar como infracção penal uma hipótese legal que por lei anterior era qualificada como contra-ordenação (infracção administrativa) é uma lei penalizadora (fundamentadora de responsabilidade penal) e, como tal, só pode aplicar-se às condutas praticadas depois da sua entrada em vigor (CRP, art.º 29º, n.º 1 e 3; CP art.ºs 1º, n.º 1, e 2º, n.º 1). (…) Quanto às condutas anteriormente praticadas, isto é, praticadas na vigência da lei que as qualificava como contra-ordenação, o problema tem de ser resolvido de acordo com os princípios que regem a vigência temporal da lei contra-ordenacional (DL 433/82, art.ºs 2º e 3º). (…) 1º Não se trata de uma hipótese de verdadeira sucessão de leis penais; logo não funciona o princípio da aplicação da lei mais favorável e, portanto, não há que fazer a ponderação da gravidade objectiva das sanções (sanções contra-ordenacionais - sanções penais). Pela conduta anterior à vigência da lei que qualifica, ex novo, a conduta como infracção penal, jamais o infractor pode ser responsabilizado penalmente. 2º Então, seguem-se duas hipóteses: ou tais condutas perdem, com a entrada em vigor da lei, toda a relevância jurídica, extinguindo-se, se já iniciado, o processo contra-ordenacional (…); ou tais condutas mantêm a sua relevância jurídica contra-ordenacional, aplicando-se retroactivamente a lei que, no momento da conduta, as qualificava como ilícito de mera ordenação social. 3º Como se acaba de ver, não fiz qualquer referência pormenorizada a nenhuma das várias disposições do art.º 3º («aplicação no tempo») do DL 433/82. E não a fiz, precisamente porque esta hipótese de conversão de contra-ordenação em infracção penal não é abrangida pelo referido artigo. Este refere-se às hipóteses de lei que ex novo qualifica o facto como contra-ordenação (art.ºs 2º e 3º, n.º 1) e de sucessão de leis contra-ordenacionais - aplicando-se a lei mais favorável - art.º 3º, n.º 2). É certo que poderá acolher-se o entendimento de que a «lei que converte uma contra-ordenação numa infracção penal» é uma lei mais favorável relativamente aos factos praticados antes da sua entrada em vigor. Eis o raciocínio que pode levar a este entendimento (diga-se: o que me parece mais defensável face aos princípios gerais já, anteriormente, desenvolvidos e face ao próprio art.º 3º, n.º 2): sendo uma tal lei, simultaneamente, penalizadora e descontra-ordenacionalizadora, não pode a responsabilização penal ser retroactiva, mas já pode a sua eficácia extintiva da responsabilidade por ilícito de mera ordenação ser retroactiva. Quer dizer: esta lei que retira a natureza de contra-ordenação ao facto pode considerar-se integrada no conceito de lei posterior mais favorável ao arguido de contra-ordenação (art.º 3º, n.º 2).”.
Num caso inverso passagem de crime a contra-ordenação, mas cujos fundamentos são aplicáveis para ambos os sentidos, isto é, passagem de contra-ordenação a crime, já se pronunciou o Supremo Tribunal de Justiça afirmando “Se a lei que altera a qualificação de um facto como crime ou contravenção para contra-ordenação não estabelece, mediante norma transitória, a sua aplicabilidade às acções praticadas antes do início da sua vigência, tais acções devem considerar-se juridicamente irrelevantes pois que tendo sido, necessária e constitucionalmente, despenalizadas (como crimes ou contravenções) também não podem ser julgadas como ilícitos de mera ordenação social” (STJ 09-05-2002, Pereira Madeira).
E, ainda, no mesmo sentido os acórdãos citados na decisão recorrida, isto é o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28.03.2001, em CJ, Ano XXVI, 2001, Tomo II, pág. 215 a 217 (que cita acórdão da mesma Relação de 19.11.1997, em sentido idêntico, a propósito de “uma situação similar - passagem de contra-ordenação a crime dos casos de detenção, uso e porte de arma sem licença”) e o já supra citado Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 11.07.2013.
Não se desconhece a tese em sentido contrario perfilhada por Paulo Pinto Albuquerque, no Comentário do Código Penal em anotação ao artigo 2º, mais concretamente na nota nº8 e que é citada pelo M.ºP.º no seu recurso, em defesa da sua posição , isto é “ De igual modo e pela mesma razão, se a lei nova pune como crime uma conduta anteriormente punida como contraordenação, as condutas mantêm a sua relevância jurídica, devendo ser puníveis de acordo com a lei contraordenacional velha . Trata-se de um caso de ultra-actividade da lei contraordenacional velha”.
Porém, salo o devido respeito não sufragamos esta a posição, que terá de ter como subjacente a possibilidade de se descortinar uma solução de continuidade, em situações de sucessão de leis, como a presente que pune como crime uma conduta que anteriormente era punida como uma contraordenação o que justificaria o seu enquadramento no nº 4 do art.º 2º do Código Penal. Pressuposto com a qual discordamos dada a natureza distinta entre contraordenação e crimes, nos temos já supra expostos.
Em face do exposto, entende-se que com a entrada em vigor da Lei 40/2023, de 10.08, as concretas condutas em causa nas 57 contra-ordenações por que vem a arguido condenado pela Autoridade Administrativa praticadas entre 18.10.2017 e 04.06.2020 deixaram - a 10.09.2023 -de ser puníveis enquanto tal e passaram a ser insusceptíveis de punição.
III- Dispositivo
Face ao exposto, acorda-se em considerar improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público, confirmando-se, na integra, a decisão recorrida que julgou descontra-ordenacionalizadas as condutas imputadas à arguida Sport Lisboa e Benfica - Futebol, SAD, absolvendo-a da prática (entre 18.10.2017 e 04.06.2020) de 57 contra-ordenações, p. e p. nos art.ºs 39-B, n.º 2, alínea a), e 40º, n.º 6, da Lei 39/2009, de 30.07, sendo 49 delas com as alterações da Lei 52/2013, de 25.07, e 7 delas com as alterações da Lei 113/2019, de 11.09, de cuja prática foi condenada por decisão administrativa da Autoridade de Prevenção e Combate à Violência no Desporto que o e determinou o arquivamento dos autos.
Sem custas.
Texto processado e integralmente revisto pela relatora, a primeira signatária.
Lisboa, 5 de Dezembro de 2026
Ana Paramés
Alfredo Costa
Ana Paula Grandvaux