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MEDIDAS DE COACÇÃO
HOMICÍDIO TENTADO
PRISÃO PREVENTIVA
Sumário
A única medida de coacção susceptível de garantir a tutela do perigo de continuação de actividade criminosa e de grave perturbação da ordem e tranquilidade públicas, no caso de um homicídio tentado na pessoa de um vizinho, praticado com um instrumento semelhante um X-ato de uso profissional, desferindo-lhe quatro golpes, dois deles no abdômen e hipocôndrio direito, com cerca de 20 cm de cumprimento e 5 cm de profundidade, por alguém que revela sinais de transtorno de personalidade tendente à prática de violência, é a prisão preventiva. (sumário da responsabilidade da relatora)
Texto Integral
Acordam os Juízes, em conferência, na 3ª Secção Criminal, deste Tribunal:
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I – Relatório:
O arguido AA foi detido e submetido a primeiro interrogatório judicial, findo o qual lhe foi aplicada medida de coacção de prisão preventiva.
Recorre, agora, dessa medida de coacção.
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II- Fundamentação de facto:
1. O despacho recorrido considerou fortemente indiciados os seguintes factos: «1. O arguido AA e o ofendido BB residem na ..., freguesia de ..., Concelho de ..., cada um numa residência situada no R/C do mesmo prédio correspondente ao n.º 9. 2. A relação de vizinhança entre ambos tem-se vindo a pautar por vários conflitos pontuais. 3. Posto isto, no dia 04 de Setembro de 2024, pelas 16:40h, o ofendido BB acompanhado pelo seu enteado CC com 11 anos de idade, encontrando-se no interior do prédio identificado em 1, deslocaram-se para a porta de saída para a via pública, encontrando-se o arguido AA junto à mesma porta mas do lado da via pública. 4. Naquela circunstância de tempo e de lugar o arguido AA trazia consigo um objecto de características não concretamente apuradas, mas em tudo semelhante a um objecto perfuro-cortante, mais propriamente um X-ato de uso profissional. 5. No momento em que o ofendido BB abriu a porta do prédio e atravessou a mesma para o exterior, o arguido AA, empunhando o referido objecto perfuro-cortante, desferiu de imediato um golpe na zona abdominal do ofendido BB, provocando perfuração e sangramento. 6. Nesse seguimento o ofendido BB, que se encontrava acompanhado pela criança CC, tentou empurrar a mesma, por forma a afastá-la do local, altura em que o arguido desferiu um segundo golpe com o referido objecto perfuro-cortante no braço direito do ofendido BB, que provocou um golpe inciso, longitudinal entre a região clavicular e o cotovelo. 7. Ainda com recurso ao referido objecto perfuro-cortante o arguido AA desferiu um terceiro golpe na região do hipocôndrio direito do ofendido BB. 8. Durante as investidas com o objecto perfuro-cortante, o arguido AA desferiu ainda um golpe na face do ofendido provocando um corte no lábio do mesmo. 9. Como consequência directa e necessária, das condutas descritas do arguido AA, o ofendido BB sofreu dores e ferimentos incisos, localizados no braço direito com 10 cm de comprimento e 5 cm de profundidade, na região hipocôndrio direito e zona abdominal com cerca de 20 cm de cumprimento e 5 cm de profundidade, e no lábio de características ainda não concretamente apuradas. 10. O arguido agiu com o propósito concretizado de molestar o corpo e a saúde do ofendido, de lhe produzir as lesões verificadas e de lhe retirar a vida. 11. Ao ser utilizado um objecto de características não concretamente apuradas, mas em tudo semelhante a um objecto perfuro-cortante, mais propriamente um x-ato de uso profissional, o arguido sabia ser idóneo a provocar a qualquer pessoa lesões graves, e de lhe retirar a vida, e que o ofendido ao ser atingido nas zonas do ombro, abdominal, e face, poderia ser gravemente ferido, atingindo órgãos vitais, só não os tendo atingido por motivos alheios à sua vontade. 12. Ao ser empregado o objecto referido, e ao atingir o ofendido na forma descrita supra, o arguido tinha consciência do carácter altamente perigoso de tal instrumento, quando assim utilizado, e que da sua conduta poderiam resultar lesões graves para o ofendido, que resultariam na sua morte, resultado esse que quis, representou e conseguiu, não tendo atingido o resultado morte por motivos alheios à sua vontade. 13. O arguido agiu bem sabendo que o ofendido se encontrava sozinho, desprevenido e sem capacidade de defesa, e que, face à utilização de um objecto perfuro-cortante de forma surpreendente, impossibilitava aquele de se defender das agressões, diminuindo consideravelmente a possibilidade de o fazer, o que quis, representou e conseguiu. 14. Mais agiu o arguido de forma rápida e contínua investindo sobre o corpo do ofendido visando reduzir as capacidades de defesa daquele, o que quis, representou e conseguiu. 15. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei como crime.»
2- O despacho recorrido considerou fortemente indiciada a prática pelo arguido, em autoria material, na forma tentada e com dolo directo, de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea h) e j) e 22.º e 23.º, todos do Código Penal (CP).
3. O mesmo despacho fundamentou a medida de coacção nos seguintes termos: «Referiu o ofendido que é vizinho do arguido há cerca de três meses, e que há cerca de um mês viu o arguido agredir uma das filhas e interveio em defesa da menor, o que causou desagrado no arguido que se envolveu em luta física com o ofendido. Mais disse que nenhum dos dois apresentou queixa crime, e que pensou que a situação de conflito estaria debelada, contudo, passou a evitar contactos com o arguido. Relatou que no dia 4 de setembro passado, cerca das 16:30 horas, encontrando-se em casa, visualizou o arguido sair da sua residência e que, porque também pretendia sair de casa, mas pretendia evitar contactos com o arguido, esperou cerca de 10 minutos e depois saiu de casa acompanhado pelo filho da sua esposa. Quando saiu para o exterior, foi surpreendido pelo arguido que o aguardava atrás da porta de acesso à rua, e de imediato, mesmo na presença do CC, lhe desferiu vários golpes com uma arma branca que o atingiram na barriga; no braço, nas costas e nos lábios. Ainda tentou ir atrás do arguido, mas já não o conseguiu encontrar, pelo que se refugiou em casa, após o que foi conduzido a unidade hospitalar. Mais disse que o arguido o feriu com uma faca de médias dimensões, com uma lamina retráctil lateral, cujo cabo estava envolvido num pano branco. Tal descrição dos factos mostra-se consentânea com o teor das fotos de fls. 36 e 40 a 43 dos autos, constante do Auto de diligências iniciais de fls. 34 e ss., sobre o local onde o arguido aguardou para esfaquear o ofendido, e o sentido dos vestígios hemáticos recolhidos no local. Arguido e ofendido confirmaram a existência, entre ambos, de uma relação de vizinhança conflituosa, traduzida em discussões e agressões físicas anteriores, pese embora tenham indicado diferentes fundamentos para os desentendimentos. As testemunhas DD, EE e FF, amigos do arguido, prestaram depoimentos incoerentes. O arguido disse que feriu o ofendido com um x-ato porque sentiu medo do ofendido que já o havia agredido antes. DD disse que se encontrava em casa do arguido na data dos factos, que o tinha convidado para jantar, e que o ofendido o veio provocar, nesse seguimento o arguido sugeriu que fossem para o café, pelo que DD saiu para o exterior da casa onde aguardou pelo arguido, ouviu gritos vindos do interior do pátio e de seguida o surgiu o arguido e disse-lhe que tinha esfaqueado o ofendido, após, dirigiram-se para o café “GG”, onde o arguido fez vários telefonemas, num dos quais pediu ao interlocutor um bilhete e disse que tinha que bazar. Depois de ter feito vários telefonemas o arguido abandonou o local. Disse que o arguido não aparentava estar ébrio, e que o mesmo consome cocaína. EE, vizinho do arguido e ofendido, confirmou a existência de conflitos entre ambos, disse que se encontrava com FF, quando cerca das 20:30 horas do dia 4 de setembro passado, este recebeu um telefonema do arguido para se encontrarem, o que sucedeu. Ambos referiram que o arguido confessou ter esfaqueado o ofendido, e que o arguido disse que o ofendido ia aprender que “com homem não se brinca”. Deixaram o arguido no café “GG”, em ... e foram para casa. Sobre o x-ato utilizado pelo arguido para golpear o ofendido, disseram tratar-se de um x-ato com cerca de 25 a 30 cm, utilizado para cortar pladur, daqueles que não se quebram na ponta, o qual o arguido lhes exibiu e que deitaram fora. O arguido agiu com frieza de ânimo e de forma premeditada, movido por motivo fútil, já que desferiu no corpo do ofendido golpes com a arma branca descrita nos autos, num contexto de relação de má vizinhança, surpreendendo o ofendido quando este saía da sua habitação, acompanhado por um menor, visando tirar-lhe a vida, causando-lhe as lesões descritas na informação clinica junta aos autos, atingindo-o em zonas do corpo que poderiam ter resultado na sua morte, o que só não aconteceu por motivos alheios à sua vontade. Entendo que existe perigo de continuação da actividade criminosa, atendendo a que o arguido é vizinho do ofendido e que já existiram anteriores desentendimentos entre ambos, prevendo-se que tal conflitualidade continuará a verificar-se, e que o arguido não se inibe de atacar o ofendido selvaticamente como se verificou, agindo com facilidade e frieza de ânimo. Acresce que o arguido denota ter uma personalidade conflituosa, impulsiva e descontrolada, tendo o arguido dito que sentia muita raiva do arguido, e sua agressividade está ainda espelhada no teor do seu CRC que se encontra junto aos autos, de onde resulta que o arguido foi condenado, por referência a factos praticados em 8-9-2022, pela prática de um crime de violência doméstica, na pena de três anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, por decisão transitada em julgado em 23-6-2023, o que não foi suficiente para o demover de continuar a delinquir. Tais factos permitem ainda concluir que existe um forte perigo de perturbação do inquérito, já que existe um perigo real de o arguido poder influenciar as testemunhas dos factos, nomeadamente, as testemunhas que já prestaram depoimento, como poderá atemorizar o ofendido e seus familiares, no sentido de condicionar ou impedir os seus depoimentos. Os factos imputados ao arguido, dos quais se acha fortemente indiciado, são muito graves e violentos e são sem dúvida, geradores de grande perturbação da tranquilidade pública no local onde ocorreram, relevando o facto de arguido e o ofendido serem vizinhos. Por outro lado, verifica-se ainda perigo de fuga não só porque o arguido fugiu para parte incerta após a prática dos factos, é brasileiro, mas também porque, segundo DD, após ter cometido os factos, o arguido contactou telefonicamente alguém a quem pediu um bilhete e disse que tinha “que bazar”. Encontram-se assim reunidos os pressupostos que legitimam a aplicação ao arguido de uma medida de coacção, para além do TIR, conforme resulta no disposto no artigo 204º al. A), B) e C) do Código de Processo Penal. Face ao exposto, entendo ser suficiente, proporcional e adequado às exigências cautelares que o caso demanda, à gravidade do crime e sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas ao arguido, sujeitá-lo, para além do TIR já prestado, nos termos do disposto nos artigos 191.º a 193.º, 194º, n.º 2, 196º, 202º, n.º 1, al. a) e c) e 204º, al. A), b) e c), todos do Cód. Proc. Penal, à medida de coacção de prisão preventiva o que se determina, por ser a única medida de coacção capaz de salvaguardar as necessidades cautelares que o caso demanda. Entende não ser de aplicar a medida de coação de OPHVE, não só porque tudo o se deixou expendido mas também porque o facto de o arguido e ofendido serem vizinhos, de forma a que o acesso às respetivas habitações é feito por um pátio interior comum, o que desde logo e atendendo á personalidade violenta do arguido, desde logo inviabiliza a sua aplicação, sendo certo que conforma já referido apenas a prisão preventiva salvaguarda o perigo de continuação da atividade criminosa, de fuga e perturbação da ordem e tranquilidade publica nos local onde os factos ocorreram.»
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III- Recurso:
O arguido recorreu, concluindo as alegações nos termos que se transcrevem:
«I) Em 6 de Setembro de 2024, o Arguido, aqui Recorrente, foi presente ao Tribunal de Instrução de Louros, Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa. Norte, o qual, em sede e primeiro interrogatotio judicial e Arguido detido, decretou a sua prisão preventiva, enquanto suspeito da prática de um crime de homicídio, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea h) e j) e 22.º e 23.º, todos do Código Penal.
II) O presente Recurso tem como objeto toda a matéria do despacho que aplicou a prisão preventiva ao Recorrente, nomeadamente a fundamentação para. a. não aplicação da medida de coação de OPHVE, a qual fundou-se no perigo de continuação da atividade criminosa., no forte perigo de perturbação do inquérito, no perigo de grande perturbação da tranquilidade pública. e, ainda, no perigo de fuga.
III) Conforme veremos, não se verificam as condições e pressupostos legais exigíveis para a. aplicação de medida tão gravosa.
IV) O Arguido, aqui Recorrente, tem 39 anos de idade, é residente em Portugal há cerca. de 18 anos, tem duas filhas gémeas, com 6 anos de idade cada, e trabalha. regularmente como pedreiro.
V) Antes de ser preso, o Arguido, aqui Recorrente, tinha paradeiro certo e fixo, trabalhava. como pedreiro, vivia numa casa por si arrendada com a sua companheira e as duas filhas menores, das quais tratava e sustentava, tendo, assim, um lar constituído e suporte familiar.
VI) Sendo visto, do ponto de vista social, corno uma pessoa pacífica, respeitadora e humilde, encontrando-se, plenamente, inserido na sociedade, estando, assim, até à sua reclusão inserida familiar e socialmente.
VII) Um dos princípios basilares de um estado de direito é o princípio da liberdade do cidadão, o qual está, no nosso ordenamento jurídico, consagrado no artigo 27.º, n.º 1, da C.R.P., sendo que, só em situações de maior gravidade e por imperativo social relevante tal princípio poderá ser limitado.
VIII) A aplicação da prisão preventiva está sujeita não só às condições gerais contidas nos artigos. 191.º a 195.º do C.P.P., em que avultam os princípios da adaptação, da necessidade e da. proporcionalidade, como aos requisitos gerais previstos no art.º 204.º e aos específicos consagrados no art.º 202.º Cfr. o Ac. da RP de 16.11.2011 in www.dgsi.pt (proc. 828/10.3JAPRTD.P1).
IX) Como se lê no art.º 191.º, n.º 1, do CPP, "a liberdade das pessoas só pode ser limitada, total ou parcialmente, em função de exigências processuais de natureza cautelar, pelas medidas de coacção e de garantia patrimonial previstas na lei".
X) Por outro lado, o art.º 193.º, n.º 1 do CPP, prevê que "as medidas de coação e de garantia patrimonial a aplicar em concreto devem ser necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requerer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.".
XI) Neste contexto, a aplicação das medidas de coação, máxime da prisão preventiva, pautando-se pelo princípio constitucional da presunção de inocência deve respeitar os princípios da necessidade, adequação, proporcionalidade e subsidiariedade.
XII) Princípios esses que impõem "que qualquer limitação à liberdade do arguido anterior à condenação com trânsito em julgado deva não só ser necessária mas também suportável", João Castro e Sousa in "Os meios de coação no novo Código de Processo Penal", Jornadas de Direito Processual Penal • o Novo Código de Processo Penal, CEJ, Almedina, 1995, p.1.50.
XIII) A prisão preventiva, enquanto medida de coação de natureza excecional e de aplicação subsidiária, só pode ser determinada quando as outras medidas se revelam inadequadas ou insuficientes, devendo ser dada prioridade a outras menos gravosas por ordem crescente (cfr., conjugadamente, o art.º 28.º, n.º 2 da CRP e o art.º 193.º, n.ºs 2 e 3, do CPP).
XIV) Por outras palavras, a prisão preventiva é concebida como uma medida de coação de "ultima raio" ou "extrema ratio" ou seja, o Tribunal só pode aplicá-la quando após "verificação no caso não só de algum ou alguns dos requisitos gerais previstos no art.º 204.º, cumulados com os referidos na al. a) do n.º 1 do art.º 202.º, mas também (...) que todas as outras medidas de coacção se mostrem inadequadas ou insuficientes (... )", ODETE MARIA DE OLIVEIRA in "As medidas de coacção no Novo Código de Processo Penal", Jornadas de Direito Processual Penal — o novo código de processo penal, CEJ, Almedina, 1995, p.182.
XV) No caso concreto, não se verificam os pressupostos da prisão preventiva, pois, tal medida, aplicada ao recorrente, assentou no perigo de continuação da. atividade criminosa, no forte perigo de perturbação do inquérito, de perigo de grande perturbação da tranquilidade pública e de perigo de fuga.
XVI) Sucede que os perigos, aqui em causa, "deve ser real e iminente, não meramente hipotético, virtual ou longínquo, e resultar da ponderação factores vários, como sejam toda a factualidade conhecida no processo e a sua gravidade, bem como quaisquer outros, como a idade, saúde, situação económica, profissional e civil do arguido, bem como a sua inserção no contexto social e familiar". Ac. da RC, de 19.01.2011 in www.dgsi.pt (Proc. nº 2221/10.9PBAVR-A.C1).
XVI!) Ou seja, deve ser "aferido em função de um juízo de prognose a partir dos factos indicados e personalidade do arguido por neles revelada "em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido", nos termos da alínea c) do art.º 204º, do C.P.P., Ac. da RC, de 19.01.2011, in www.dgsi.pt (Proc. 2221./10.9PAVR-A.C1). Cfr., ainda, o Ac. da RP, de 16.11.2011 in www.dgsi.pt (Proc. n.º 828/10.3,1APRI-D.P1).
XVIII) Conforme se lê no sumário do Ac. da RC, de 02.06.99, citado no Ac. da RC, de 19-01-2011 in www.dgsi.pt (Proc. n.º 2221./10.9PBAVR A.C1): o perigo "terá de ser aferido a partir de elementos factuais que o revelem ou o indiciem e não mera presunção (abstracta ou genérica) ... o perigo terá de ser apreciado caso a caso, em função da contextualidade de cada caso ou situação, pelo que não cabem aqui juízos de mera possibilidade, no sentido de que o risco real (efectivo) de continuação da actividade delituosa. pode justificar a aplicação das medidas de coacção, maxirne a prisão preventiva.".
XIX) In casu, não foram mencionados factos suscetíveis de permitir a aplicação de medida tão gravosa ao Recorrente, tendo a mesma assentado apenas em meros juízos abstratos, não concretizados em factos, tal como exige o art.º 204.º, do CPP.
XX) Até porque, não estão indiciados quaisquer factos que façam depreender a continuação da atividade criminosa, o forte perigo de perturbação do inquérito, nem a grande perturbação da tranquilidade pública.
XXI) Na verdade, não foram bem analisados e apreciados, antes pelo contrário, todos documentos já constantes dos presentes autos, tais como as fotos de fls. 41 a 43 onde é bem percetível a configuração das casas e pátio onde reside o Recorrente e o Ofendido, pois, sem bem analisados, perceber-se-ia, facilmente, que as casas são distintas e têm entradas totalmente independentes, não existindo, assim, qualquer impedimento a aplicação da medida de coação de OPTIVE, visto que o Recorrente com a. aplicação dessa medida ficaria circunscrito à sua habitação, onde não teria qualquer contacto com nenhum vizinho, nomeadamente, com o Ofendido.
XXII) Para além da aplicação da medida de coação de OPHVE, também poderia ser aplicada ao Recorrente a proibição de contactos, quer com o Ofendido, com os familiares do Ofendido, com os vizinhos e com todas as testemunhas que já prestaram depoimento nos presentes autos.
XXIII) Mais, é o próprio Tribunal que refere na sua fundamentação que as testemunhas que já prestaram depoimento, DD, EE e FF, constantes de fls. 67 e 68, 81 e 82 e 84 a 86, amigos do Recorrente, prestaram depoimentos incoerentes, não se entendendo, assim, como é que a. aplicação de uma. medida de coação de OPHVE e de proibição de contactos com essas testemunhas poderiam perturbar o inquérito por influência do Recorrente quanto aos factos ocorridos.
XXIV) Aliás, a plena inserção social e familiar, permite, indesmentivelmente, afirmar que estamos perante urna atenuação das exigências cautelares que determinaram a sua prisão preventiva. Cfr. Ac. RP, de 16.11.2001 I in www.dgsi.pt (Proc. n.º 828/10.3JAPRT-D.P1).
XXV) Importa também ter presente que o apoio familiar é especialmente importante para a sua existência, nomeadamente a continuação da residência e convívio em Portugal com as suas filhas menores, gémeas, de apenas 6 (seis) anos, tal como, a personalidade do Recorrente e a sua plena integração familiar e social em Portugal afastariam necessariamente o perigo de continuação da atividade criminosa, de perturbação do decurso do inquérito e de fuga.
XXVI) Sem prescindir e admitindo-se por mera hipótese que existissem os perigos plasmados no art.º 204.º, alíneas b) e c), do CPP, os mesmos, no caso em análise, nunca teriam a carga atribuída pelo tribunal a quo e que justificou a prisão preventiva.
XXVII) De facto, atendendo à personalidade do recorrente, à sua plena integração social e familiar em Portugal, as necessidades cautelares, que eventualmente existissem, podiam ser igualmente satisfeitas através de outras medidas de coação menos gravosas, nomeadamente e por ordem crescente, art.º 200.º (proibição e imposição de condutas) e 201.º (obrigação de permanência na habitação), do CPP (quanto a esta última medida, a aplicabilidade resulta do n.º 3, do art.º 193.º, do CPP).
XXVIII) De outra forma, a prisão preventiva deixará de ser uma medida. excecional, a ultima ratio, passando a assumir-se como a medida de coação regra.
XXIX) Por conseguinte, tendo em consideração, designadamente, as condições familiares, sociais e económicas do recorrente, o facto de residir em Portugal há cerca de 18 anos, onde constituiu família, nomeadamente, onde tem a viver a sua companheira e as duas filhas menores, gémeas, de apenas 6 anos, a prisão preventiva é desproporcional ou excessiva face à gravidade do crime de que vem indiciado o recorrente.
XXX) Ora, no caso particular da prisão preventiva, o princípio da proporcionalidade desempenha "a função negativa. de limitar a aplicação da. mesma tão só aos casos em que a pena final previsível seja de prisão efectiva.". Ac. da RP, de 02.12.2010 in www.dgsi.pt (Proc. n.º 30/10.4PFNRL-A.P1), sendo deverá importante perscrutar, através de "prognose baseada nos dados existentes no processo, se ao arguido irá ser aplicada, a final, pena condizente com a prisão preventiva que ora lhe é cominada". Ac. da. 1W, de 02.12.2010 in www.dgsi.pt (Proc. n.º 30/10.4PEVRL-A.P1).
XXXI) Pois, no caso do Recorrente e atendendo aos factos existentes no processo, é pouco provável, que a pena previsível seja de prisão efetiva, pelo que a prisão preventiva que lhe foi aplicada não é, de forma alguma, harmonizável com a pena que lhe vier a ser aplicada.
XXXII) Podemos assim concluir que, na aplicação da prisão preventiva ora em causa, não foram observados os princípios e regras que lhe estão subjacentes, designadamente, os princípios da. necessidade, adequação, proporcionalidade e subsidiariedade, o que torna. a. mesma ilegal, por violação, entre outros, dos arts 18.º, n.º 2, 28.º, n.º 2 e 32.º, n.º 2 da CRP e dos arts. 191.º, n.º 1, 192.º, n.º 2, 193.º, 202.º e 204.º, do CPP.
XXXIII) Os referidos preceitos deveriam ter sido interpretados no sentido de ser suficiente, face á personalidade do recorrente, às necessidades cautelares em causa e à gravidade da conduta criminal indiciada, a aplicação de outra medida de coação menos gravosa.
XXXIV) Caso V/ Ex.ªs considerem aplicável a medida de coação de obrigação de permanência na habitação, com vigilância eletrônica, a mesma poderá ser cumprida na habitação do recorrente, sita na Rua …, …, o qual, desde já, dá o seu consentimento, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 3, do art.º 4.º, da Lei n.º 33/2010, de 02.09.
Termos em que deve o despacho recorrido ser substituído por outro que revogue a prisão preventiva aplicada ao recorrente e aplique a este outra medida de coacção que respeite os princípios da necessidade, adequação, proporcionalidade e menor intervenção, designadamente e por ordem crescente de gravidade, a proibição e imposição de condutas ou, não sendo estas suficientes, a obrigação de permanência na habitação.».
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Contra-alegou o Ministério Público, concluindo as respectivas alegações nos seguintes termos:
«1- Encontram-se verificados todos os pressupostos legais e exigíveis para a aplicação da medida de coacção de Prisão Preventiva ao arguido AA.
2- As razões que determinaram a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva foram ponderadas, descritas e fundamentadas, no despacho ora recorrido, e que deu por fortemente indiciada a prática pelo recorrente de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea h) e j) e 22.º e 23.º, todos do Código Penal.
3- Verificam-se integralmente todos os perigos elencados no artigo 204.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.
4- Existe perigo para a continuação da actividade criminosa, tendo em consideração a personalidade do arguido, que não se inibe de agir com frieza de ânimo, veja-se que, pese embora se encontrasse na companhia de um amigo, deslocou-se à entrada do prédio onde o mesmo e o ofendido residem, e aguardou pacientemente a saída do ofendido a quem desferiu uma série de golpes com um objecto perfuro-cortante perante o olhar do filho menor deste último, em plena luz do dia e na via pública.
5- Existe um perigo real da escalada da violência tendo em consideração o ambiente de conflito entre o ofendido e o arguido que já havia dado origem anteriormente a confrontos físicos entre ambos.
6- O arguido havia sido anteriormente condenado por decisão transitada em julgado no dia 23 de Junho de 2023, pela prática de um crime de violência doméstica, na pena de três anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, não tendo aquela condenação demonstrado ser suficiente para o demover da prática de novos crimes, o que permite, uma vez mais, evidenciar a sua personalidade violenta e impulsiva.
7- Não é despiciente evidenciar e relembrar que o arguido reside porta com porta com o ofendido, havendo conflitos anteriores aquando do convívio em espaços comuns, partilhando quer a porta de acesso ao interior do prédio, bem como o pátio de acesso à residência de cada um.
8- Verifica-se um elevado perigo de fuga, tendo em consideração que o arguido, ao fugir do local após a prática dos factos, evidencia a vontade de se eximir à sua responsabilidade. Por outro lado, tendo o mesmo nacionalidade Brasileira, e ao ter contactado um amigo a solicitar um bilhete uma vez que precisava de “basar” para “não ir outra vez preso” evidencia intenção de abandonar o País.
9- Verificam-se também os perigos de perturbação da tranquilidade pública e de perturbação do inquérito.
10- Todos estes perigos encontram-se fundamentados no douto despacho recorrido e assentam em factos concretos.
11- A Prisão Preventiva revela-se a única medida de coacção adequada às exigências cautelares que se fazem sentir, e à gravidade do crime, não sendo viável a aplicação da medida de coacção de Obrigação de Permanência na Habitação, ou outra menos gravosa, principalmente pelos argumentos aduzidos quanto ao perigo de continuação da actividade criminosa, onde se realça o facto de o arguido e o ofendido residirem porta com porta.
12- É precisamente a personalidade do recorrente que eleva a necessidade de aplicar uma medida de coacção mais gravosa, in casu a Prisão Preventiva.
13- Os perigos supra aludidos revelam-se reais e iminentes e não, meramente hipotético, virtual ou longínquo encontrando-se verificadas as exigências dos artigos 204.º e 202.º, ambos do Código de Processo Penal.
14- Por último, importa referir que o arguido se encontra fortemente indiciado pela prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea h) e j) e 22.º e 23.º, todos do Código Penal, punido com uma pena de prisão de 12 a 25 anos, sendo que o mesmo já foi condenado por sentença transitada em julgado no dia 23 de Junho de 2023, pela prática de um crime de violência doméstica, na pena de três anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, de modo que, contrariamente ao alegado pelo ora recorrente, não é pouco provável que venha a ser aplicada uma pena de prisão efectiva ao arguido
Assim, entende o Ministério Público, que deverá ser negado provimento ao recurso, por manifestamente improcedente, mantendo-se na íntegra o decidido no despacho recorrido nos precisos termos, assim se fazendo JUSTIÇA».
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Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto aderiu à contra-motivação.
Foi cumprido o disposto no artigo 417º/2 sem resposta do arguido.
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V- Questões a decidir:
Do artigo 412º/1, do CPP resulta que são as conclusões da motivação que delimitam o objecto do recurso e consequentemente, definem as questões a decidir em cada caso, exceptuando aquelas questões que sejam de conhecimento oficioso.
A questão colocada pelo recorrente é a substituição da medida de coacção de prisão preventiva por outra medida, em última análise por obrigação de permanência na habitação.
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VI- Fundamentos de direito:
O recorrente entende que a medida de coacção de prisão preventiva é injustificada, porque não está fundamentada em factos concretos mas em meros juízos abstratos, não se verificam os perigos invocados uma vez que é visto «do ponto de vista social, como uma pessoa pacífica, respeitadora e humilde, encontrando-se, plenamente, inserido na sociedade, estando, assim, até à sua reclusão inserida familiar e socialmente», não foram observados os princípios da necessidade, adequação, proporcionalidade e subsidiariedade, sendo que previsivelmente não será condenado em pena de prisão.
Mais alega que tem 39 anos de idade, reside em Portugal há cerca de 18 anos, tem duas filhas menores, com 6 anos de idade, trabalha regularmente como pedreiro, vive numa casa por si arrendada com a sua companheira e as duas filhas de quem tratava e sustentava.
Importa, pois, que se faça um pequeno resumo sobre o regime jurídico relevante.
A Constituição consagra o direito à liberdade o que engloba a vertente do direito a não ser detido ou preso, salvo nos casos e termos prevenidos (artigo 27º).
Por outro lado, fundamenta a soberania do Estado na dignidade da pessoa humana e impõe o respeito pelos direitos e liberdades fundamentais (artigos 1º e 2º), afirmando o primado de que os direitos, liberdades e garantias só podem ser restringidos nos casos expressamente previstos na Constituição, «devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos» e que todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença que o condene (artigo 32º/2). Significa isto que se permite que em certas condições se imponham medidas restritivas ou limitativas da liberdade individual, mas mediante o respeito pelos princípios de legalidade/tipicidade, sendo certo que a dignidade da pessoa humana que se proclama não é exclusiva dos delinquentes: aplica-se a todas as pessoas, incluindo as vítimas.
O CPP reafirma essa natureza excepcional e residual da prisão preventiva - e da obrigação de permanência na habitação (artigos 193º/2 e 3 e 202º/1) - determinando que só se pode recorrer à prisão preventiva quando as demais medidas de coacção se mostrem inadequadas ou insuficientes, houver fortes indícios da prática de crime doloso, punível com pena de prisão de máximo superior a cinco anos (artigo 202º/1, a)) e se verifique, em concreto, fuga ou perigo de fuga, perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova, ou se verifique, em concreto, perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e da tranquilidade públicas (artigo 204º).
Com a revisão do CPP, operada pela Lei 48/2007, de 29/8, o legislador proclamou o carácter subsidiário da prisão preventiva e da obrigação de permanência na habitação, relativamente às outras medidas de coacção (artigo 193º/2), acentuando o carácter de “extrema ratio” e de excepcionalidade da prisão preventiva, ao estipular, no artigo 193º/3, que quando couber ao caso medida de coacção privativa da liberdade – prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação – deve dar preferência a esta sempre que ela se revelar suficiente para satisfazer as exigências cautelares.
A taxatividade/tipicidade das medidas de coacção admissíveis, obstando a aplicação de outras não expressamente previstas, conforma-se com o princípio da legalidade previsto no artigo 191º/CPP, segundo o qual a liberdade das pessoas só pode ser limitada, total ou parcialmente, em função de exigências processuais de natureza cautelar, pelas medidas de coacção e de garantia patrimonial previstas na lei.
A aplicação de medidas de coacção rege-se pelos princípios da adequação, proporcionalidade e necessidade, e dependem da verificação, no momento da sua aplicação, dos pressupostos legais. Rege, a propósito, o artigo 204º/CPP: «nenhuma medida de coacção, à excepção da prevista no artigo 196º, pode ser aplicada se em concreto se não verificar, no momento da aplicação da medida», qualquer dos pressupostos que indica.
A prisão preventiva é, em face da normalidade das situações, a mais gravosa de todas as medidas de coacção, porquanto contende frontalmente com o direito à liberdade.
Tem aplicação apenas em casos em que as demais medidas se revelem inadequadas ou insuficientes. Há-se de ser a estrita necessidade das medidas de coacção que legitimará, em cada caso, a vulneração do princípio da presunção da inocência (1).
Na verdade, implicando uma restrição, em medida elevada, além do mais, do direito fundamental à liberdade (artigo 27º/CRP), a sua aplicação deve ser limitada ao estritamente necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, nos termos do artigo 18º/2, da mesma Lei Fundamental; ou seja, tem por pressuposto material o princípio da proporcionalidade, também chamado princípio da proibição do excesso (2) que se desdobra em três sub-princípios:
(a) Princípio da adequação - também designado por princípio da idoneidade -, que significa que as medidas restritivas aplicadas devem revelar-se como meio adequado para a prossecução dos fins visados pela lei (salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos);
(b) Princípio da exigibilidade - também chamado princípio da necessidade ou da indispensabilidade -, que significa que as medidas restritivas devem revelar-se necessárias (porque se tornaram exigíveis), na medida em que os fins cautelares não seriam obtidos por outros meios, menos gravosos para os direitos, liberdades e garantias;
(c) Princípio da proporcionalidade, em sentido estrito, que significa que os meios legais restritivos e os fins obtidos devem situar-se numa «justa medida», impedindo-se a adopção de medidas legais restritivas, desproporcionadas, porquanto excessivas, em relação aos fins visados.
A prisão preventiva só se justifica, tal como as restantes medidas coactivas, como meio de tutela de necessidades de natureza cautelar, ínsitas às finalidades últimas do processo penal: a realização da justiça (através da descoberta da verdade material, de um modo processualmente válido) e o restabelecimento da paz jurídica (3).
O princípio da presunção de inocência reflecte-se na ponderação da medida de coacção, na medida em que a limitação ou privação da liberdade do arguido está vinculada à exigência de que só lhe sejam aplicadas aquelas medidas que, em concreto, se mostrem comunitariamente suportáveis face à possibilidade de estarem a ser aplicadas a um inocente (4).
O princípio da adequação relaciona o perigo que justifica a imposição da medida de coacção com a previsível capacidade de esta lhe fazer face. Adequada é a medida que realiza ou facilita a realização do fim pretendido e não o é se o dificulta ou não tem absolutamente nenhuma eficácia para realização das exigências cautelares. Não diz a lei ao que refere a “insuficiência” das demais medidas de coacção. Mas, se bem entendemos, não pode deixar de ser à garantia do desenvolvimento de cada concreto procedimento criminal, de modo a não se desbaratarem os meios, através dos quais se manifesta e executa a pretensão punitiva do Estado, enquanto expressão de uma necessidade básica da organização colectiva, sem garantia da eficácia da actuação punitiva.
A aplicação das medidas de coacção, repete-se, tem por finalidade acautelar os fins do processo, seja para garantir a execução da decisão final condenatória, seja para assegurar o regular desenvolvimento do procedimento e fundamenta-se, necessariamente, em juízos de natureza.
Qualquer dos requisitos de aplicação de uma medida de coacção a que alude o artigo 204º/CPP tem que ver com juízos de prognose sobre o comportamento futuro do arguido, o que emerge desde logo do emprego sistemático da palavra “perigo”. São perigos de actuação/omissão do agente ou de afectação de valores fundamentais do ordenamento jurídico-constitucional que se haverão de fundar nas características do crime e sobretudo da personalidade pelo mesmo revelada.
No caso concreto as medidas de coacção aplicadas foram fundamentadas na existência dos perigos de fuga, perturbação do inquérito na vertente de conservação da prova, grave perturbação da ordem e tranquilidade públicas e de continuação da actividade criminosa.
Entende o arguido que não foram lavrados fundamentos de facto para a concretização desses perigos, o que só pode ser entendido como uma desvirtuação da verdade processual, na medida em que o despacho recorrido os precisa muito bem.
O perigo de fuga resulta, desde logo, da anunciada intenção disso mesmo. Mais resulta da manifesta gravidade da pena que será previsivelmente aplicada, atendendo à moldura penal aplicável, o que é o móbil claro da intenção manifestada pelo arguido.
O arguido demonstrou uma personalidade muitíssimo violenta, ao intentar provocar a morte num vizinho, por uma questão de mal entendidos de vizinhança. O comportamento normal esperado neste tipo de situações é o afastamento da pessoa em conflito. No caso o arguido preferiu eliminar a pessoa em detrimento de eliminar o conflito. Só não eliminou, porque não calhou. Repare-se que o primeiro golpe que desfere, com um x-ato profissional, foi no abdómen da vítima, local onde estão alojados órgãos vitais que não foram fatalmente atingidos por sorte. O corte em causa atingiu uma profundidade de 5 cm, com evidentes aptidões para matar a vítima. Bastava, por exemplo, ter atingido o baço.
Este facto leva-nos à construção de uma imagem sobre a sua personalidade dotada de elevado grau de aptidão para a violência física grave, sem qualquer ponta de inquietação na determinação da morte de quem quer que lhe desagrade.
Temos aqui desenhada uma situação de elevado perigo de continuação da actividade criminosa, especialmente quanto à pessoa do ofendido mas não só, que só se contem com uma medida de afaste efectivamente o arguido da vítima, que continua a viver paredes meias com a sua residência. Residência, aliás, para onde o arguido pretende voltar, com uma medida de coacção que lhe deixe livre a capacidade de deambulação, na qual se inclui a OPH, cujo cumprimento, mesmo sujeito a vigilância electrónica, depende da vontade do agente de a cumprir ou não. Não se espera contenção de quem tentou matar o seu vizinho.
O perigo de perturbação do inquérito, na vertente de perigo para a aquisição, manutenção ou veracidade da prova não tem que ver com o teor das declarações testemunhais já prestadas mas com a aptidão do agente para condicionar os testemunhos dos seus autores. Continua a não se esperar contenção em quem, depois de fazer o possível para matar o vizinho, tentou colocar-se em fuga.
O perigo de perturbação grave da ordem e da tranquilidade públicas é extremamente relevante porque está baseado em factos com enorme aptidão para causar intenso dano à noção de segurança de determinada comunidade. Não está em causa a protecção do grupo familiar ou social onde o arguido se insere mas uma perturbação grave da sociedade, num entendimento mais amplo, de “sociedade em geral” (5). O que se tutela aqui é o expectável sentimento de insegurança que a libertação de um indivíduo com as características do arguido determina na comunidade em geral. Os cidadãos iriam entender a libertação do arguido como o beneplácito dos Tribunais à liberdade de agressão até à morte de quem quer que seja, por quem quer que seja e em quaisquer circunstâncias.
Tutela-se aqui a efectividade de actuação da função jurisdicional como fonte de segurança e ordenação social e efectiva protecção da comunidade contra a violação dos bens juridicamente tutelados, o mais sagrado dos quais a vida. No caso, há efectivamente fundado risco de grave, concreta e previsível alteração da ordem e tranquilidade públicas, sendo que apenas medida de coacção de prisão preventiva se apresenta como meio de esconjurar tal risco de lesão.
Em face do exposto, entende-se que apenas a medida de coacção aplicável é a indispensável para a tutela dos perigos enunciados, e a única adequada a fazer-lhes face.
Acredita o arguido na possibilidade de lhe vir a ser aplicada uma pena não privativa de liberdade, mas tal crença não é partilhada pelo Tribunal, pelo que tal argumento não procede.
Por fim, impõe-se esclarecer que um indivíduo que age como o arguido agiu, depois de uma condenação em pena suspensa por violência doméstica, não pode ser considerado nem familiarmente nem socialmente inserido. A inserção que se verifica é em hábitos de violência, que urge tutelar com eficácia.
A perspectiva de utilidade para a família é de facto válida, quando funciona. Se não foi motivo impeditivo da prática do crime não se vê por que motivo importará, agora, para o arguido, a não ser como um argumento desajustado para obtenção do resultado pretendido.
Face ao exposto mantem-se a medida de coacção aplicada.
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(…)
VII- Decisão:
Acorda-se, pois, negando provimento ao recurso, em manter a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça de 4 ucs.
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Texto processado e integralmente revisto pela relatora.
Lisboa, 05/ 12/2024
Maria da Graça dos Santos Silva
João Bártolo
Mário Pedro M.A. Seixas Meireles
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1. Germano Marques da Silva, curso de processo penal., vol. II, a pág. 206.
2. Cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira em «Constituição da República Portuguesa Anotada», Coimbra Editora, 2007, vol. I, a pág. 392.
3. Cf. Prof. Figueiredo Dias, com a colaboração da Prof. Maria João Antunes, em «Direito Processual Penal», FDUC, 1988/9, pág. 20 e segs.
4. Cf. Prof. Figueiredo Dias, em «Sobre os Sujeitos Processuais no novo Código de Processo Penal», «Jornadas de Direito Processual Penal. O Novo Código de Processo Penal», Almedina, 1988, a pág. 27).
5. Vide comentário do CPP, de PP Albuquerque, 3ª edição actualizada, págs 578 e 579.