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APREENSÃO DE CORRESPONDÊNCIA
EMAIL
CONSENTIMENTO DO VISADO
AUTORIZAÇÃO E VALIDAÇÃO JUDICIAL
Sumário
O artigo 179.º do CPP estabelece o regime ordinário para a apreensão de correspondência, prevendo que a intervenção do Juiz de Instrução Criminal é obrigatória para autorizar ou ordenar a apreensão. Tal regime aplica-se, por analogia, às comunicações electrónicas nos termos do artigo 17.º da Lei do Cibercrime. A aplicação dessa norma pressupõe a ausência de consentimento do titular das comunicações, uma vez que o objectivo da intervenção judicial é assegurar a protecção de direitos fundamentais contra intromissões indevidas. A entrega voluntária do suporte digital pelo arguido, acompanhada de manifestação de colaboração com a investigação, afasta a necessidade de aplicação do regime ordinário. O consentimento do arguido para a entrega de correspondência electrónica reflecte um acto de disposição de um direito fundamental, que, embora protegido, não é absoluto. O titular de um direito fundamental pode, em certas circunstâncias, renunciar à sua protecção mediante consentimento informado e voluntário.
Texto Integral
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
I. RELATÓRIO
1.1. O presente recurso foi interposto pelo Ministério Público (MP) contra o despacho da Meritíssima Juíza de Instrução Criminal do Tribunal Central de Instrução Criminal, proferido em 26-06-2024.
Este despacho entendeu que a (i) entrega voluntária de correspondência electrónica pelo arguido AA dispensava a intervenção judicial prevista nos artigos 179.º do Código de Processo Penal (CPP) e 17.º da Lei do Cibercrime (Lei n.º 109/2009), e determinou, ainda, que (ii) o Juiz de Instrução Criminal, em cumprimento do artigo 179.º, n.º 3, do Código de Processo Penal (CPP), seria a primeira pessoa a tomar conhecimento do conteúdo das comunicações electrónicas apreendidas, com apoio de um órgão de polícia criminal (OPC).
1.2. O MP não se conformou e intentou o presente recurso elencando as seguintes conclusões: (transcrição) (…) 1. Nos presentes autos investigam-se factos susceptíveis de integrar a prática de crimes de prevaricação e abuso de poderes previstos e punidos pelos artigos 11ºe 26º da Lei 34/87 de 16 de Julho, e crimes de abuso de poder e burla qualificada p. e p. pelos artigos 382º e 218º ambos do Código Penal; 2. Foram realizadas buscas domiciliárias e não domiciliárias, na sequência das quais foram copiados, de forma cega e sem visualização, conteúdos de equipamentos informáticos e telemóveis, correspondentes a ficheiros de correio electrónico e registos de comunicações semelhantes; 3. Tais ficheiros integrados em suportes informáticos foram apresentados à Mma Juiz de Instrução para conhecimento em primeira mão, nos moldes da promoção de fis. 1108 e datada de 25-6-2024: "Apresente à Meritíssima Juiz de Instrução Criminal a informação de fis. 1100 e ss. e suportes digitais, apresentados pela Polícia Judiciária e da pen drive remetida pelo arguido AA nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 179º, nº 3 do Código de Processo Penal. Com efeito, no passado dia 6-6-2024 foram levadas a cabo diligências de busca no âmbito deste processo, no decurso das quais foram copiados documentos em suporte digital, que se encontravam nas instalações dos locais buscados. Foram gravados, e juntos aos autos, ficheiros existentes em caixas de correio electrónico, que foram extraídos, de forma automática e sem visualização do seu conteúdo, para suportes digitais acondicionados em sacos de prova: 1 - Saco de prova série A 175788 constante do apenso buscas correio eletrónico; 2 - Saco de prova série À 175789 constante do apenso buscas correio eletrónico; 3 - Saco de prova série A 171281 constante do apenso buscas correio eletrónico; 4 - Saco de prova série A 171854 constante do apenso buscas correio eletrónico; 5 - Saco de prova série A 174723 constante do apenso buscas correio eletrónico; 6- Saco de prova série A 171816 constante do apenso buscas correio eletrónico; 7- Saco de prova série B 133567 constante do apenso buscas correio eletrónico; 8- Saco de prova série B 130245 constante do apenso buscas correio eletrónico. Acresce que, na sequência das buscas efetuadas ao seu posto de trabalho, por requerimento dirigido aos autos (fls. 1032), o arguido AA juntou uma pen drive que, de acordo com este, contém a cópia da caixa de correio eletrónico do email …..pt referente ao período que antecedeu fevereiro de 2023. O arguido refere que esta cópia não foi sujeita a qualquer pré-seleção requerendo que os ficheiros de correio eletrónico contidos na pen drive sejam sujeitos aos procedimentos reservados para a apreensão de correspondência eletrónica ao abrigo do disposto nos artigos 179º do CPP e 17º da Lei nº 109/2009 de 15 de setembro. Deste modo, Importa garantir que a Exma. Sra. Juiz de Instrução proceda à primeira visualização do conteúdo quer dos suportes juntos ao apenso de buscas de correio eletrónico, quer relativamente à mencionada pen, bem como a eliminação de ficheiros de pessoal, ou sem ligação aos autos. Assim, o Ministério Público promove que, nos termos e para os efeitos do disposto nos arts. 178º, 179º nº 3 e 268º, nº 1, alínea d) do Código de Processo Penal e 34º, nº 4 da Constituição da República Portuguesa, conjugados com o disposto no artigo 17º da Lei 109/09 de 15.09, a Mma. Juiz de Instrução tome deles conhecimento em primeiro lugar e determine a eliminação das mensagens não conexas com o objeto dos autos ou respeitantes à reserva da vida privada. Atento o volume das mensagens gravadas, promovemos que, após eliminação das mensagens não conexas com o objeto dos autos ou da reserva da vida privada, nos seja conferida a possibilidade de acesso aos ficheiros, a fim de selecionarmos e imprimirmos os que considerarmos relevantes para a prova. Após seleção dos ficheiros mais relevantes, será requerida a V. Exa. a respetiva junção aos autos, nos termos do disposto no artigo 179º, nº 3, do Código de Processo Penal» 4. Por sua vez, no dia 26-6-2024, após conclusão dos autos a Mma. Juiz de Instrução Criminal proferiu o seguinte despacho: "Quanto aos suportes cujo conhecimento em primeiro lugar já foi levado a cabo, determina-se que o Ministério Público identifique um OPC para coadjuvar a signatária, e para que o mesmo seja nomeado pela signatária, ao abrigo do artigo 55.º do Código de Processo Penal, ficando responsável por, no prazo de quinze dias (se outro justificadamente não vier a ser requerido), melhor analisar o conteúdo sobredito, de modo a identificar quais os elementos cuja efectiva apreensão e junção aos autos importa, por serem relevantes para a descoberta da verdade material, vindo, oportunamente, a apresentar os mesmos para o efeito. Os elementos em causa serão entregues somente à signatária, ainda que com intermediação da Senhora Escrivã de Direito. Devolva ao Ministério. A especificidade decorrente da prova digital, mormente do correio electrónico e dos registos de comunicações semelhantes, associada ao volume de ficheiros que, habitualmente, apresenta, pode, como sucede no caso que nos ocupa, inviabilizar o exame integral de toda a correspondência eletrónica existente numa caixa de correio ou em várias. O que resulta até da forma como a cópia forense é feita: uma cópia cega e, em regra, integral, sem visualização de conteúdos; 6. Por essas razões, o regime imposto pelo art.º 17º da Lei do Cibercrime e respetiva remissão, preconiza uma especificidade procedimental que se prende com a intervenção judicial em dois momentos distintos: Um primeiro que é o do conhecimento em primeira mão; um segundo que corresponde ao da efetiva apreensão das mensagens com relevância probatória à luz do objeto do processo; 7. A intervenção judicial assenta na proteção de direitos, liberdades e garantias tuteladas, quais sejam as da reserva da intimidade e as do segredo da relação entre arguido e defensor; 8. Daí que, no primeiro momento, compete ao juiz de instrução verificar que o correio que lhe é apresentado se apresenta validamente copiado, que a correspondência está efectivamente aí contida, bem como se deve, desse acervo, expurgar comunicações merecedoras da tutela legal acima mencionada, de molde a que não sejam visionados conteúdos que em nada respeitam ao objeto da investigação e que contendem com direitos, liberdades e garantias protegidos, como sucede com questões de saúde e relações íntimas; 9. O juiz de instrução, na fase de inquérito, tem a veste de juiz das liberdades, sendo a sua intervenção circunscrita à prática de atos processuais que contendam "de modo especial com a esfera da liberdade ou da intimidade das pessoas" (art.º 268º e 269º do CPP); 10. Assim, está vedado ao juiz de instrução qualquer intervenção judicial conformadora do destino do processo, à revelia do poder decisório do Ministério Público, porquanto redundaria numa matriz inquisitória violadora da estrutura acusatória do processo criminal, plasmada no art.32º, nº5 da Constituição da República Portuguesa; 11. O juiz de instrução não pode ter qualquer «influência» ou «manipulação» sobre a definição do objeto do inquérito, devendo ser alheio à definição da estratégia de investigação do Ministério Público, devendo atuar apenas na admissibilidade legal das intervenções requeridas, uma vez que não deverá atuar ex ofício; 12. Assim, as normas constantes dos artigos 179º, do Código de Processo Penal e 17º da Lei do Cibercrime deverão ser interpretadas em conformidade com a Constituição da República Portuguesa, mormente o disposto no art.º 32º, n.º 5; 13. A seleção de conteúdos a fim de aferir a sua relevância probatória é um acto material de inquérito, por isso, reservado ao titular da ação penal, ao dominus do inquérito, ao Ministério Público; 14. A postura da Mma. Juiz de Instrução, traduzida na decisão proferida, pretendendo assumir a direção do inquérito, selecionando e apreendendo o que entende ter relevância probatória, conduzindo e conformando a investigação, constitui uma grave e séria limitação às funções do Ministério Público e uma insuportável violação às constitucionalmente consagradas estrutura acusatória do processo penal e à autonomia do Ministério Público; 15. Na medida em que se reduz judicialmente, desse modo e sem fundamento, o âmbito da investigação a respetiva decisão fica ferida de nulidade, em concreto a enunciada no art.º 119º, alíneas b) e e) do Código de Processo Penal; 16. Na medida em que atenta contra as funções, o estatuto e a autonomia do Ministério Público, a interpretação subjacente à decisão sub judicio fá-lo incorrer em efetivo vício de inconstitucionalidade, atenta a violação dos art.º 32º, nº 5, e 219º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa; 17. A Mma Juiz a quo, na decisão proferida, fez interpretação errada, ilegal e constitucionalmente desconforme, das normas contidas nos art.17º, 53º, nº 2 b), 179º, 262º, nº1, 263º, nº1 e 269º nº 1 d) e f), todos do Código de Processo Penal e do art.17º da Lei do Cibercrime; 18. Termos em que deverá o despacho em crise ser revogado e substituído por outro que, após visionamento em primeiro lugar dos conteúdos de correio eletrónico e registos de comunicações contidos nos suportes apresentados, determine que sejam todos eles, expurgados de conteúdos proibidos, caso existam, entregues à investigação, dirigida pelo Ministério Público, para pesquisa e seleção daqueles que se afigurem relevantes para a descoberta da verdade e para a prova; 19. Posteriormente, tal selecção protagonizada pela investigação terá necessariamente de ser apresentada à Mma. Juiz de Instrução para apreciação e apreensão, tudo nos termos do disposto no art.º 179º, n.º 3, do Código de Processo Penal. * 20. O arguido AA, após a realização das buscas efetuadas ao seu posto de trabalho, por requerimento dirigido aos autos em 20-6-2024, procedeu à junção de uma pen drive que, de acordo com o mesmo, contém a cópia de correio eletrónico da caixa de correio eletrónico do email …..pt referente ao período que antecedeu fevereiro de 2023; 21. No mencionado requerimento, o arguido referiu expressamente que esta cópia não tinha sido sujeita a qualquer pré-seleção requerendo que os ficheiros de correio eletrónico contidos na pen drive fossem sujeitos aos procedimentos reservados para a apreensão de correspondência eletrónica ao abrigo do disposto nos artigos 179º do CPP e 17º da Lei nº109/2009 de 15 de setembro; 22. Por importar garantir que a primeira visualização do seu conteúdo (suportes digitais apreendidos nas buscas e pen) e eliminação de ficheiros de conteúdo pessoal, ou sem ligação aos autos, fosse feita pela Exma. Senhora Juiz de Instrução, determinou-se a remessa dos autos ao Tribunal de Instrução Criminal com a seguinte promoção efetuada no dia 25-6-2024: "Apresente à Meritissima Juiz de Instrução Criminal a informação de fls. 1100 e ss. e suportes digitais, apresentados pela Polícia Judiciária e da pen drive remetida pelo arguido AA nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 1799, nº 3 do Código de Processo Penal. (...) Acresce que, na sequência das buscas efetuadas ao seu posto de trabalho, por requerimento dirigido aos autos (fis. 1032), o arguido AA juntou uma pen drive que, de acordo com este, contém a cópia da caixa de correio eletrónico do email …..pt referente ao período que antecedeu fevereiro de 2023. O arguido refere que esta cópia não foi sujeita a qualquer pré-seleção requerendo que os ficheiros de correio eletrónico contidos na pen drive sejam sujeitos aos procedimentos reservados para a apreensão de correspondência eletrónica ao abrigo do disposto nos artigos 179º do CPP e 17º da Lei nº 109/2009 de 15 de setembro. Deste modo, Importa garantir que a Exma. Sra. Juiz de Instrução proceda à primeira visualização do conteúdo quer dos suportes juntos ao apenso de buscas de correio eletrónico, quer relativamente à mencionada pen, bem como a eliminação deficheiros de conteúdo pessoal, ou sem ligação aos autos. Assim, o Ministério Público promove que, nos termos e para os efeitos do disposto nos arts. 178º, 179º, nº 3 e 268º, nº 1, alínea d) do Código de Processo Penal e 340 nº 4 da Constituição da República Portuguesa, conjugados com o disposto no artigo 17º da Lei 109/09 de 15.09, a Mmo. Juiz de Instrução tome deles conhecimento em primeiro lugar e determine a eliminação das mensagens não conexas com o objeto dos autos ou respeitantes à reserva da vida privada. Atento o volume das mensagens gravadas, promovemos que, após eliminação das mensagens não conexas com o objeto dos autos ou da reserva da vida privada, nos seja conferida a possibilidade de acesso aos ficheiros, a fim de selecionarmos e imprimirmos os que considerarmos relevantes para a prova. Após seleção dos ficheiros mais relevantes, será requerida a V. Exa. a respetiva junção aos autos, nos termos do disposto no artigo 179º nº 3, do Código de Processo Penal." 23. Por despacho de 26-6-2024, a Mma. Juiz de Instrução determinou, para além do mais, que: "No que concerne aos e-mails entregues voluntariamente por AA, não se impõe qualquer intervenção do Juiz de Instrução Criminal ao abrigo do artigos 16º e 17º da Lei do Cibercrime e 179º do Código de Processo Penal, pois há consentimento do titular, pelo que nada há a determinar, julgando-se este Tribunal Central de Instrução Criminal incompetente para o requerido. 24. É deste entendimento que o discordamos. 25. Por requerimento datado de 20-6-2024 junto a fls. 1032, o arguido AA, por intermédio do seu mandatário, requereu a junção aos autos de um suporte informático (pen drive) contendo uma cópia não selecionada da sua de caixa de correio eletrônico, requerendo expressamente que a sua visualização seguisse os trâmites a que respeita o artigo 179º do Código de Processo Penal. 26. Assim, o arguido, não obstante tenha voluntariamente entregue a pen não deu autorização para que a mesma fosse acedida livremente pelo Ministério Público e pelo OPC, requerendo expressamente a intervenção do juiz de Instrução Criminal. enquanto juiz das liberdades e garantias; 27. Por este motivo, o Ministério Público requereu junto da Mma. Juiz a quo que procedesse nos termos do disposto no art.º 179º, do Código de Processo Penal; 28. Com efeito, o conteúdo de uma caixa de correio eletrónico é, sem qualquer margem para dúvidas, matéria da reserva sobre a intimidade da vida privada, integrante dos direitos de personalidade e, portanto, fundamentais, protegidos nos termos do disposto nos artigos 26º e 34º, da Constituição da República Portuguesa; 29. A restrição/compressão de tais direitos apenas poderá operar por via da lei da Assembleia da República e para salvaguarda de outros princípios ou direitos constitucionalmente consagrados tais como o da tutela jurisdicional efetiva (art.º 20º, da CRP); 30. Acresce que é igualmente pacífico o entendimento de que, quando se trata de interpretar e aplicar normas restritivas de direitos fundamentais, o critério interpretativo não pode deixar de ser aquele que assegure a menor compressão possível dos direitos afetados, ou seja, a restrição do direito fundamental em causa há-de limitar-se ao estritamente necessário à salvaguarda do interesse (também constitucionalmente tutelado) na descoberta de um concreto crime e na punição do(s) seu(s) agente(s); 31. Assim, os artigos 179º, do Código de Processo Penal e o art.º 17º, da Lei do Cibercrime estabelecem regras sobre a obtenção de prova em ambiente digital que implique restrições à reserva da vida privada; 32. Do mesmo modo, a jurisprudência tem-se debruçado sobre a interpretação daqueles dispositivos legais, tendo havido clarificação no sentido de que é essencial a intervenção do Juiz, enquanto juiz das liberdades, sempre que esteja em causa correio eletrónico; 33. Sem prejuízo, sempre se dirá que a lei permite a compressão do direito à reserva da intimidade da vida privada sempre que haja consentimento do respetivo titular, conforme dispõe o art.º 126º, do 3, do Código de Processo Penal; 34. Com efeito, estabelece o art.º 126º, n.º 3, do Código de Processo Penal que: «Ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respetivo titular.» 35. Este consentimento tem de ser pessoal, exigindo-se uma especifica vontade da pessoa afetada, na medida em que o que está em causa é, precisamente, uma restrição extraordinária, por via de ato abdicativo, dos seus direitos fundamentais, só assim se garantindo uma cabal homenagem à ratio que subjaz ao artigo 126.º, n.º 3, Código de Processo Penal e, bem assim, ao artigo 32º, da CRP, que sinaliza, a nível constitucional, a imperatividade do respeito por aquele primeiro preceito e pelos interesses que protege; 36. Assim, o consentimento previsto no artigo 126.º, n.º 3 CPP só pode ser prestado pelo titular dos direitos fundamentais afetados ou por mandatário forense a quem aquele confira poderes especiais para o efeito, específica, inequívoca e expressamente plasmados em procuração forense, não se admitindo a presunção de tais poderes (artigos 45.º Código do Processo Civil aplicável ex vi artigo 4.º CPP); 37, Ora, O arguido não deu qualquer autorização expressa para análise do correio eletrónico, pelo contrário, requereu que fossem seguidos os procedimentos previstos no art.º 179º, do Código de Processo Penal; 38. Ou seja, daqui não resulta que o arguido tenha prescindido do seu direito à intimidade e ao segredo das comunicações; 39. A entrega voluntária do suporte contendo o correio electrónico não constitui manifestação de vontade ou consentimento na visualização por parte do Ministério Público e dos OPC do conteúdo da sua caixa de correio eletrónico, isto é, a voluntariedade da entrega dos emails não implica qualquer nota de consentimento quanto à intromissão que o acesso à caixa de correio eletrónico comporta; Pelo contrário. 40. Assim, falha desde já o pressuposto a que respeita o art.º 126º, n.º 3, in fine do Código de Processo Penal; 41. Por outro lado, sempre se dirá que nos termos do já decidido no Acórdão de Uniformização da Jurisprudência com o n.º 10/2023, datado de 10.11.2023, proferido no NUIPC 185/12.5TELSB, publicado no DR com o n.º 218/2023, série I, sempre o correio eletrónico teria de ser analisado e apreendido pelo Juiz de Instrução Criminal; 42. Com efeito, nos termos daquele Acórdão «na fase de inquérito, compete ao juiz de instrução ordenar ou autorizar a apreensão de mensagens de correio eletrónico ou de outros registos de comunicações de natureza semelhante, independentemente de se encontrarem abertas (lidas) ou fechadas (não lidas), que se afigurem ser de grande interesse para descoberta da verdade ou para a prova, nos termos do art.º 17.º da Lei n.º 109/2009, de 15/09 (Lei do Cibercrime)»; 43. Aliás, do acórdão resulta à saciedade que a apreensão de correio electrónico e de outros registos de comunicações de natureza semelhante terá de ser sempre autorizada ou ordenada pelo juiz de instrução, pelo que, sendo encontradas num sistema informático ou em suporte autónomo legitimamente acedidos, mensagens de correio eletrónico ou realidades análogas cuja aquisição tenha grande interesse para a investigação e descoberta da verdade, terá de ser requerida ao juiz autorização para a sua apreensão; 44. Motivos pelos quais, estando em causa direitos fundamentais, como sendo o direito à intimidade e reserva da vida privada não temos dúvidas, face ao requerido pelo arguido quanto à primeira visualização do conteúdo do suporte, que a mesma teria de ser protagonizada pelo juiz de instrução; 45. Após a primeira visualização, incumbe ao juiz de Instrução que contendam com direitos, liberdades e garantias protegidos, como sucede com questões de saúde e relações íntimas, dando posteriormente acesso à investigação para seleção do correio eletrónico que viesse a revelar-se importante para a prova dos factos, determinando caso assim entendesse a sua apreensão; 46. Motivos pelos quais, considera o Ministério Público que ao não proceder à primeira visualização do conteúdo do suporte entregue pelo arguido e ao não determinar a aplicação do disposto no art.º 179º, do Código de Processo Penal e 17º, da Lei do Cibercrime à análise dos elementos que aqui estejam contidos, a Mma. Juiz a quo fez uma interpretação errada, ilegal e constitucionalmente desconforme, das normas contidas nos art.17º, 126º, n.º 3, 179º, 269º nº 1 d) e f), todos do Código de Processo Penal e art.17º da Lei do Cibercrime; 47. A decisão da Mma. Juiz a quo considerando o exposto supra, impede a investigação de aceder ao conteúdo do mencionado suporte informático, sob pena de nulidade e utilização de métodos proibidos de prova; 48. Outrossim, o entendimento da Mma. Juiz a quo obstaculiza também o princípio da descoberta da verdade material porquanto o que defende impede o Ministério Público de prosseguir a investigação em conformidade com a Lei Fundamental; 49. O despacho da Mma. Juiz está assim ferido de nulidade, em concreto a enunciada nos art.ºs 119º e) e 126º, n.º 3, do Código de Processo Penal, configurando um solução que na verdade é qualificada pelo legislador como «método proibido de prova».; 50. Destarte, deverá a decisão judicial proferida ser revogada e substituída por outra que, após visionamento em primeiro lugar dos conteúdos de correio eletrónico e registos de comunicações contidos no suporte apresentado pelo arguido AA, determine que seja expurgado de conteúdos proibidos, caso existam, entregues à investigação para pesquisa e seleção daqueles que se afigurem relevantes para a descoberta da verdade e para a prova. (…)
1.3. O arguido respondeu ao recurso aderindo aos pressupostos de facto e de direito da peça recursória, e pugna pela sua procedência.
1.4. Neste Tribunal da Relação de Lisboa a Sr.ª Procuradora Geral Adjunta apôs o seu visto.
1.5. Uma vez que o MP se limitou a apor o seu visto não foi determinado o cumprimento do disposto no artigo 417º, número 2 do Código Processo Penal.
1.6. Feito o exame preliminar e, colhidos os vistos legais, realizou-se a conferência.
*
II. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. O objecto do recurso, e, portanto, da nossa análise, está delimitado pelas conclusões do recurso, atento o disposto nos art.ºs 402º, 403º e 412º todos do CPP.
2.2. O objecto do recurso, tal como se mostra delimitado pelas respectivas conclusões, reconduz-se à apreciação:
1. O consentimento do arguido na entrega de correspondência electrónica pode ser interpretado como abdicação de sua protecção constitucional?
2. A análise e selecção de conteúdos digitais entregues voluntariamente pelo arguido dependem da intervenção inicial de um Juiz de Instrução Criminal?
3. O despacho recorrido cumpre os princípios da proporcionalidade, eficiência processual e respeito pela estrutura acusatória do processo penal?
4. O Juiz de Instrução Criminal pode assumir um papel activo na selecção de elementos de prova digital apreendidos em cumprimento de mandados de busca?
5. A 2ª parte do despacho recorrido respeita a estrutura acusatória do processo penal e a autonomia funcional do Ministério Público?
2.3. Vejamos o teor da decisão recorrida no segmento que ora nos importa: (transcrição) (…) "Não obstante o despacho de 26-06-2024 se revelar sucinto e claro, esclarece-se que uma vez que o arguido AA decidiu juntar aos autos a sua correspondência electrónica voluntariamente (pois não lhe foi dirigida qualquer intimação), a mesma não está a ser apreendida ao abrigo dos artigos 179º nº 3, do Código de Processo Penal, nem 17º da Lei n.º 109/2009, de 15-09, pelo que é manifesto que não há fundamento legal para seguir os mesmos trâmites. A competência do Juiz de Instrução Criminal está legalmente prevista nos artigos 17., 268.º e 269. do Código de Processo Penal, e não está na disponibilidade do arguido requerer que o Juiz de Instrução Criminal adapte a sua competência mediante os riscos processuais que o próprio decidiu assumir, disponibilizando, até antes de tal solicitação de intervenção, ao Ministério Público a sua correspondência electrónica. Se o Ministério Público entende que não é suficiente o consentimento manifestado no requerimento em análise, quer por não ter sido acolhida a intervenção do Juiz de Instrução Criminal, ou até por não estar o requerimento em causa pessoalmente subscrito pelo arguido, mas somente pelo seu mandatário, tal é são vicissitudes que o Ministério Público, enquanto titular do inquérito, deve ultrapassar autonomamente, não sendo competência do Juiz de Instrução Criminal. No que concerne ao ponto B, e apesar de também se afigurar claro e aliás sendo a prática seguida em todos os processos deste TCIC, alguns da titularidade das Dignas Procuradoras da República subscritoras do despacho de inquérito que antecede, esclarece-se que se está somente a dar cumprimento ao artigo 179. n.º 3, do Código de Processo Penal e 17. da Lei nº 109/2009, de 15-09, nos seguintes segmentos que se destacam infra: artigo 179.º n.º 3, do Código de Processo Penal: juiz que tiver autorizado ou ordenado a diligência é a primeira pessoa a tomar conhecimento do conteúdo da correspondência apreendida. Se a considerar relevante para a prova, fá-la juntar ao processo: caso contrário, restitui-a a quem de direito, não podendo ela ser utilizada como meio de prova, e fica ligado por dever de segredo relativamente àquilo de que tiver tomado conhecimento e não ter interesse para a prova» Artigo 17.º da Lei nº 109/2009, de 15-09: «Quando, no decurso de uma pesquisa informática ou outro acesso legítimo a um sistema informático, forem encontrados, armazenados nesse sistema informático ou noutro a que seja permitido o acesso legítimo a partir do primeiro, mensagens de correio electrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante, o juiz pode autorizar ou ordenar, por despacho, a apreensão daqueles que se afigurem ser de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, aplicando-se correspondentemente o regime da apreensão de correspondência previsto no Código de Processo Penal». Não se presumindo que um legislador razoável tenha consagrado o conhecimento em primeiro lugar por Juiz de Instrução Criminal como uma diligência artificial, um cheque em branco que postergue todos os direitos que a lei quis proteger, e em respeito à estrutura acusatória do processo, solicitou-se que o Ministério Público identificasse um OPC com conhecimento da investigação para coadjuvar a signatária num efectivo conhecimento em primeiro lugar e selecção dos elementos a apreender e juntar ao processo, i.e., coadjuvar no juízo de os «considerar relevante para a prova» (artigo 179.º, n.º 3, do Código de Processo Penal), e de avaliação de serem «de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova» (artigo 17. º da Lei n.º 109/2009, de 15-09), o que é competência do Juiz de Instrução Criminal. (…)
2.4. Apreciando e decidindo:
A decisão recorrida levanta questões centrais sobre a natureza do consentimento do arguido ao entregar suportes digitais, a competência do Ministério Público na condução do inquérito, e o equilíbrio entre direitos fundamentais e eficiência processual.
A protecção da correspondência e das comunicações encontra raízes profundas na evolução dos direitos fundamentais. O artigo 34.º nº 4 da Constituição da República Portuguesa (CRP) estabelece que "É proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvos os casos previstos na lei em matéria de processo criminal".
Este princípio é um reflexo das preocupações históricas em limitar a interferência estatal na vida privada dos cidadãos, como reconhecido pela Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 (artigo 12.º) e pela Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), cujo artigo 8.º consagra o direito ao respeito pela vida privada e familiar.
A modernização tecnológica trouxe novas dimensões à protecção das comunicações, exigindo legislação específica para lidar com os desafios da era digital. No contexto português, a Lei n.º 109/2009 de 15 de Setembro (Lei do Cibercrime) adaptou o regime de apreensão de correspondência previsto no Código de Processo Penal (CPP) às comunicações electrónicas. Todavia, mantém-se o princípio central de que tais interferências devem ser proporcionais e necessárias.
O artigo 126.º, n.º 3, do CPP estabelece que provas obtidas mediante intromissão na vida privada, sem o consentimento do titular, são inadmissíveis, salvo em situações legalmente previstas. O consentimento, portanto, actua como um elemento permissivo, legitimando a restrição de direitos fundamentais.
Não obstante, esse consentimento deve ser livre, consciente e inequívoco. In casu, o arguido entregou uma pen drive contendo mensagens electrónicas e indicou expressamente que estas fossem analisadas no âmbito do processo. Tal acto, aliado à ausência de qualquer coacção ou imposição, configura um consentimento implícito, mas válido, que autoriza o Ministério Público (MP) a proceder à análise directa dos conteúdos.
Neste quadro é de reconhecer a validade do consentimento para afastar a aplicação de regimes processuais mais restritivos, desde que claramente manifestado.
A título comparativo, no direito alemão (§ 100a do Strafprozessordnung), o consentimento é amplamente aceite como fundamento para afastar a necessidade de autorização judicial em casos de obtenção de provas.
A Constituição da República Portuguesa confere ao MP a responsabilidade exclusiva pela direcção do inquérito (artigo 219.º, n.º 1, da CRP), cabendo-lhe a condução dos actos necessários à investigação. Essa autonomia funcional é um dos pilares da estrutura acusatória do processo penal, que separa claramente as funções de investigação e julgamento.
Nos termos dos artigos 53.º e 263.º do CPP, o MP é o dominus do inquérito, cabendo-lhe determinar a estratégia probatória e seleccionar os elementos relevantes para a acusação. A intervenção do Juiz de Instrução Criminal, embora necessária em determinadas situações, constitui excepção à regra e deve ser interpretada de forma restritiva.
O despacho recorrido respeita a autonomia do MP ao permitir que este analise os conteúdos digitais entregues voluntariamente pelo arguido. Ao afastar a necessidade de intervenção judicial inicial, a decisão evita ingerências indevidas na condução do inquérito, em conformidade com o artigo 269.º do CPP.
Veja-se, que em termos de direito comparado, no direito francês, o Code de procédure pénale (art.º 100) reconhece ao Ministério Público ampla autonomia para conduzir investigações, inclusive na análise de provas digitais, desde que obtidas de forma legítima. Também, o direito italiano adopta abordagem semelhante (art.º 247.º do Codice di procedura penale), conferindo ao MP autoridade para realizar buscas e apreensões com consentimento do investigado, reservando ao juiz apenas a revisão posterior.
O artigo 18.º da CRP consagra o princípio da proporcionalidade, exigindo que as restrições a direitos fundamentais sejam adequadas, necessárias e proporcionais ao objectivo perseguido. In casu, a exigência de intervenção judicial na análise de comunicações entregues voluntariamente seria uma medida desnecessária e desproporcional, já que não há indícios de violação de direitos fundamentais.
A exigência de intervenção judicial em situações de entrega voluntária comprometeria a celeridade do inquérito, retardando a investigação sem qualquer ganho significativo em termos de protecção de direitos. A eficiência processual, como valor intrínseco ao sistema de justiça penal, exige que os actos investigativos sejam realizados de forma expedita e eficaz.
Mas, vejamos mais em detalhe:
O artigo 179.º do CPP estabelece o regime ordinário para a apreensão de correspondência, prevendo que a intervenção do Juiz de Instrução Criminal é obrigatória para autorizar ou ordenar a apreensão. Tal regime aplica-se, por analogia, às comunicações electrónicas nos termos do artigo 17.º da Lei do Cibercrime. No entanto, a aplicação dessa norma pressupõe a ausência de consentimento do titular das comunicações, uma vez que o objectivo da intervenção judicial é assegurar a protecção de direitos fundamentais contra intromissões indevidas. In casu, a entrega voluntária do suporte digital pelo arguido, acompanhada de manifestação de colaboração com a investigação, afasta a necessidade de aplicação do regime ordinário. Essa interpretação é consistente com o artigo 126.º, n.º 3, do CPP, que admite a validade de provas obtidas com consentimento, desde que este seja claro e inequívoco.
O consentimento do arguido para a entrega de correspondência electrónica reflecte um acto de disposição de um direito fundamental, que, embora protegido, não é absoluto. É que o titular de um direito fundamental pode, em certas circunstâncias, renunciar à sua protecção mediante consentimento informado e voluntário.
Neste ponto, é relevante a distinção entre renúncia total e consentimento específico. O arguido não renunciou à protecção da privacidade como um todo, mas consentiu no acesso aos dados por parte do MP no contexto da investigação. Esta nuance legitima a dispensa da intervenção judicial sem comprometer o equilíbrio de direitos.
Veja-se que nos Estados Unidos, o conceito de “voluntary consent” tem sido amplamente aplicado em casos envolvendo busca e apreensão, como definido no caso Schneckloth v. Bustamonte, 412 U.S. 218 (1973). A jurisprudência americana entende que, desde que o consentimento seja prestado de forma voluntária e sem coacção, as autoridades estão autorizadas a proceder à análise das provas sem necessidade de mandado judicial.
De forma semelhante, no Reino Unido, o Police and Criminal Evidence Act 1984 (PACE) permite buscas e apreensões com o consentimento do indivíduo, desde que documentado, eliminando a necessidade de autorização judicial. Esses exemplos reforçam que o consentimento do titular é um mecanismo legítimo para simplificar procedimentos investigativos, desde que respeite garantias básicas.
Como referido, o arguido AA entregou, por iniciativa própria, uma pen drive contendo mensagens electrónicas. Ao fazê-lo, manifestou a intenção de colaborar com a investigação, um comportamento que se alinha ao princípio da cooperação processual. A manifestação de vontade foi clara e inequívoca, não havendo qualquer indicação de coacção ou manipulação.
Além disso, o pedido do arguido para que fosse considerada a intervenção judicial reflecte não uma negativa ao acesso, mas uma cautela adicional para garantir que o processo respeitasse os trâmites legais. Esse pedido, contudo, não invalida o acto inicial de consentimento.
A análise directa pelo MP dos conteúdos entregues voluntariamente não implica violação da reserva da vida privada ou da inviolabilidade das comunicações. Primeiro, porque a entrega do suporte caracteriza consentimento informado; segundo, porque não se identificam elementos que indiquem violação de comunicações protegidas ou irrelevantes ao caso.
O despacho recorrido observa, assim, o equilíbrio entre os direitos fundamentais do arguido e as necessidades de investigação criminal, assegurando a proporcionalidade e a razoabilidade dos actos investigativos.
Uma decisão que imponha a intervenção judicial em todos os casos de entrega voluntária de suportes digitais criaria um precedente de burocratização desnecessária, limitando a eficiência investigativa sem justificação razoável. Essa interpretação rígida comprometeria a celeridade processual e resultaria em atrasos significativos na tramitação dos processos criminais.
Umas breves palavras, no que concerne ao princípio da proporcionalidade com dignidade constitucional.
O artigo 18.º da CRP exige que qualquer restrição a direitos fundamentais seja proporcional, ou seja, adequada, necessária e equilibrada em relação ao objectivo que se pretende atingir. No âmbito do processo penal, tal princípio assume um papel determinante na avaliação da validade dos actos investigativos, especialmente quando estes envolvem direitos sensíveis como a privacidade e a inviolabilidade das comunicações. In casu, o despacho recorrido privilegia a proporcionalidade ao reconhecer que a entrega voluntária dos suportes digitais pelo arguido legitima o acesso directo pelo MP. Exigir a intervenção judicial nesse contexto seria uma medida desnecessária e excessiva, que não acrescentaria qualquer protecção adicional aos direitos do arguido, uma vez que o consentimento já foi expressamente manifestado.
A proporcionalidade deve ser interpretada em harmonia com outros princípios processuais, como a celeridade e a eficiência. O processo penal deve ser conduzido de forma eficaz, sem prejuízo dos direitos dos sujeitos processuais, mas também sem entraves que retardem injustificadamente a investigação e a descoberta da verdade material.
A decisão recorrida equilibra adequadamente esses valores ao permitir que o MP, enquanto dominus do inquérito, analise directamente os conteúdos entregues pelo arguido, respeitando a sua autonomia funcional e acelerando o procedimento.
Ainda, em termos de direito comparado, no direito espanhol, o Tribunal Constitucional decidiu, no Caso STC 170/2013, que a proporcionalidade deve guiar a actuação do Estado em investigações criminais, considerando que a intervenção judicial pode ser dispensada em casos de consentimento prévio. No contexto digital, esse princípio tem sido usado para legitimar acessos directos em situações de colaboração voluntária, especialmente quando os direitos fundamentais estão devidamente resguardados.
A digitalização da comunicação trouxe novos desafios para o sistema de justiça penal. As mensagens electrónicas, arquivos de correio digital e outros registros digitais são, hoje, elementos centrais na investigação de crimes complexos, como os crimes económicos e financeiros. Esses dados, por sua própria natureza, frequentemente contêm volumes elevados de informações, o que exige procedimentos ágeis para evitar atrasos na investigação.
O regime do artigo 17.º da Lei do Cibercrime, adaptado à era digital, reconhece essas especificidades e procura equilibrar a protecção de direitos fundamentais com a necessidade de eficiência investigativa. No entanto, a sua aplicação não pode ser automática e indiscriminada. Casos como o presente, em que há consentimento expresso do titular dos dados, representam excepções justificadas à intervenção judicial.
A colaboração do arguido na entrega de suportes digitais representa uma mudança significativa na dinâmica do processo penal. Em vez de acções coercitivas por parte do Estado o processo beneficia-se da cooperação voluntária do investigado. Essa colaboração não deve ser interpretada de forma restritiva ou onerada com procedimentos desnecessários, sob pena de desencorajar tal postura.
Veja-se, também, estes casos vistos pela justiça no Canadá: o consentimento voluntário para entrega de provas digitais elimina a necessidade de autorização judicial, desde que documentado adequadamente (cf. R. v. Spencer, 2014 SCC 43). E, na Austrália, o Surveillance Devices Act 2004 prevê que a obtenção de dados com consentimento do titular não requer aprovação judicial, reflectindo uma abordagem pragmática e proporcional.
O despacho recorrido reconhece, de forma adequada, que o consentimento do arguido para a entrega de correspondência electrónica é suficiente para afastar a aplicação do regime ordinário de apreensão de comunicações. Tal entendimento está em conformidade com os princípios da autonomia do MP, proporcionalidade e eficiência processual, além de ser consistente com o direito comparado.
Como já referido, uma decisão que impusesse a intervenção judicial em todos os casos de entrega voluntária de suportes digitais criaria um precedente prejudicial, burocratizando a investigação penal e sobrecarregando o sistema judicial com formalidades desnecessárias. Além disso, tal interpretação poderia desencorajar a colaboração voluntária de arguidos e investigados, comprometendo a celeridade das investigações.
Ao permitir que o MP conduza directamente a análise de dados entregues voluntariamente, a decisão recorrida reforça a confiança nas instituições de justiça penal, demonstrando que o sistema valoriza tanto os direitos fundamentais como a colaboração processual. Last but not least:
O recurso ao traz à colação o teor do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 10/2023. Este acórdão estabelece que, na fase de inquérito, compete ao Juiz de Instrução Criminal ordenar ou autorizar a apreensão de mensagens de correio electrónico ou de comunicações de natureza semelhante, independentemente de estarem lidas ou não. Este acórdão reforça que o Juiz de Instrução deve ser a primeira pessoa a tomar conhecimento das comunicações, especialmente quando estas têm relevância para a prova. O objectivo é evitar acessos indiscriminados ou abusivos por parte de órgãos investigativos.
Apesar de o acórdão estabelecer uma regra geral para a apreensão de correio electrónico, não impede que a entrega voluntária do suporte seja interpretada como uma excepção. Quando o arguido entrega voluntariamente as mensagens ou arquivos digitais, tal acto pode ser entendido como uma renúncia parcial ao sigilo, especialmente se o suporte contiver dados directamente relacionados com os factos em investigação.
Neste quadro, não obstante o Acórdão n.º 10/2023 imponha um regime de autorização judicial para apreensões, este deve ser interpretado com flexibilidade nos casos de colaboração voluntária. Não deve ser excluída a possibilidade de o MP aceder directamente aos conteúdos entregues, desde que o Juiz valide posteriormente a legalidade do acto.
Contudo, o argumento do MP conclui que, independentemente da situação, qualquer acesso a mensagens de correio electrónico ou a registos de comunicações exige autorização judicial, com base no artigo 17.º da Lei do Cibercrime e no artigo 179.º do CPP.
Vejamos:
O regime previsto no artigo 179.º, n.º 3, do CPP e no artigo 17.º da Lei do Cibercrime reflecte uma salvaguarda essencial para proteger direitos fundamentais. A regra geral é que o Juiz de Instrução deve decidir sobre a relevância dos dados antes de qualquer intromissão.
A entrega voluntária de dados pelo arguido pode ser entendida como um acto de cooperação que dispensa a intervenção judicial prévia. Ainda assim, cabe ao Juiz validar a legalidade do acesso, assegurando que a análise respeita os limites impostos pela lei.
A interpretação de que toda apreensão exige autorização judicial pode levar a uma burocratização excessiva, especialmente em casos de entrega voluntária. O princípio da proporcionalidade, consagrado no artigo 18.º da CRP, deve orientar a aplicação das normas, permitindo maior flexibilidade quando não há risco de violação de direitos fundamentais.
Embora a autorização judicial seja a regra, a entrega voluntária de dados pelo arguido representa uma circunstância que deve justificar excepções, desde que os princípios da legalidade e da proporcionalidade sejam respeitados, como é o caso destes autos.
Em suma:
A improcedência do recurso interposto pelo Ministério Público, nesta parte, impõe-se e, tal improcedência é sustentada por uma análise integrada dos princípios constitucionais, normas legais e jurisprudência internacional. O despacho recorrido, no que tange a este tema, representa uma aplicação proporcional e eficiente do regime jurídico aplicável, respeitando os direitos do arguido e as prerrogativas do MP.
O despacho recorrido é mantido nesta parte, pois aplica correctamente o regime jurídico aplicável e respeita os princípios constitucionais, processuais e práticos envolvidos. O consentimento do arguido é suficiente para afastar a necessidade de intervenção judicial, garantindo ao mesmo tempo a protecção de direitos e a eficiência processual.
Quanto à 2ª parte do despacho colocado em crise pelo recurso interposto pelo MP, diremos:
O regime jurídico aplicável à apreensão de correspondência electrónica está previsto no artigo 179.º do CPP e no artigo 17.º da Lei do Cibercrime (Lei n.º 109/2009). Nos termos do artigo 179.º, n.º 3, do CPP, o Juiz que autoriza ou ordena a apreensão deve ser a primeira pessoa a tomar conhecimento do conteúdo apreendido, decidindo sobre a sua relevância para a prova. Este mecanismo tem como objectivo salvaguardar os direitos fundamentais envolvidos, como a reserva da vida privada e o segredo das comunicações, nos termos dos artigos 26.º e 34.º da CRP.
O artigo 17.º da Lei do Cibercrime reforça a necessidade de intervenção judicial quando são encontradas mensagens electrónicas durante pesquisas informáticas, aplicando correspondentemente o regime do artigo 179.º do CPP. Essa intervenção inicial destina-se a expurgar elementos irrelevantes ou protegidos por direitos fundamentais, antes que os dados sejam disponibilizados para análise pelo Ministério Público.
A estrutura acusatória do processo penal português, consagrada no artigo 32.º, n.º 5, da CRP, atribui ao Ministério Público a direcção do inquérito, reservando ao Juiz de Instrução Criminal funções específicas, como o controlo da legalidade de actos que restrinjam direitos fundamentais. O papel do Juiz de Instrução Criminal na apreensão de correspondência electrónica é garantir que os dados recolhidos respeitem os limites impostos pela lei e pela Constituição, mas não interfere na condução investigativa, que é competência exclusiva do MP.
O despacho recorrido, ao determinar que o Juiz de Instrução assumisse um papel activo na selecção das provas a partir dos dados apreendidos, ultrapassa os limites da competência jurisdicional nesta fase processual, uma vez que tal tarefa corresponde a um acto material de investigação, reservado ao MP.
O artigo 263.º, n.º 1, do CPP determina que cabe ao MP, enquanto dominus do inquérito, dirigir as investigações e decidir sobre os elementos probatórios a apresentar no processo. A decisão recorrida, ao determinar que o Juiz de Instrução Criminal assumisse a tarefa de seleccionar provas, interfere directamente na autonomia funcional do MP, em violação da estrutura acusatória do processo penal.
Embora a intervenção inicial do Juiz de Instrução seja necessária para proteger direitos fundamentais, sua função deve limitar-se a decidir sobre a admissibilidade dos elementos apreendidos, sem tomar parte na selecção de provas que integram a estratégia investigativa do MP.
Neste quadro, o recurso terá de proceder nesta parte.
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III. DECISÃO
Nos termos expostos, acordam os Juízes que compõem a 3ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação em:
1. Julgar improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público, na parte em que impugna o segmento do despacho da Meritíssima Juíza de Instrução Criminal que considerou que a entrega voluntária de correspondência electrónica pelo arguido AA, não obstante configurar um acto de cooperação, afasta a necessidade de intervenção judicial prévia, considerando-se suficiente o consentimento do titular para a sua análise pelo Ministério Público. Consequentemente, mantém-se na íntegra tal decisão, conforme os fundamentos expendidos.
2. Dar provimento ao recurso na parte em que se impugna o segmento do despacho da Meritíssima Juíza de Instrução Criminal que determinou que o Juiz de Instrução Criminal, auxiliado por órgão de polícia criminal, procedesse à selecção dos elementos de prova digital apreendidos. Revoga-se tal segmento, determinando-se que, após a verificação inicial pelo Juiz de Instrução Criminal dos dados apreendidos para exclusão de elementos protegidos ou irrelevantes, os suportes sejam integralmente disponibilizados ao Ministério Público para análise e selecção das provas relevantes, no exercício da sua função exclusiva de direcção do inquérito, em conformidade com os princípios constitucionais e a estrutura acusatória do processo penal.
Custas: Sem custas, por não serem devidas.
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Lisboa e Tribunal da Relação, 05-12-2024
Alfredo Costa
Ana Paula Grandvaux
Maria da Graça dos Santos Silva Processado e revisto pelo relator (art.º 94º, nº 2 do CPP). O Relator escreve segundo a antiga ortografia