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PENA DE MULTA
MEDIDA DA PENA
Sumário
A aplicação de uma pena de multa, em montante inferior à apropriação ilícita do agente, não se coaduna com os fins de prevenção geral e muito menos com os de prevenção especial, porque deixa na comunidade e no próprio agente a noção de que o crime compensa.
Texto Integral
Acordam os Juízes, em conferência, na 3ª Secção Criminal, deste Tribunal:
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I – Relatório:
Em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, o arguido AA, nascido a 17.05.1969, foi condenado na pena de 7 meses de prisão, pela prática de um crime de descaminho ou destruição de objetos colocados sob o poder público, previsto e punível nos termos do disposto no artigo 355.º do Código Penal (CP), substituída pela pena de 210 dias de multa, à taxa diária de €7,50, perfazendo o montante total de €1.575,00.
O arguido apresentou contestação em que defende a aplicação da Lei 38-A/2023, de 2/8, considerando inconstitucional o limite de idade de que se fez depender a sua aplicabilidade.
Recorre, agora, da decisão.
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II- Fundamentação de facto: Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes os factos:
1. No âmbito do processo n.º 6697/15.0T8SNTM, da Instância Central de Sintra- Juízo 1, no dia 20.05.2015, pelas 14h:30, na ... foi efetuada a penhora de vários objetos (melhor descritos a fls. 18 para a qual se remete), nomeadamente um tanque de lavagem, uma nora, oito tapetes, uma mesa de triagem, cinco estruturas, tudo no valor de 9.000,00 euros.
2. Nesse mesmo ato foi nomeado fiel depositário dos bens móveis penhorados o arguido AA, sendo advertido que deveria facultar os bens quando o tribunal ou o agente de execução o notificassem para tal.
3. Sucede que, pelo menos em 9.10.2019, o arguido procedeu à venda dos objetos sem para tal ter dado conhecimento ao processo ou solicitado qualquer autorização para tal.
4. O arguido sabia que os bens penhorados de que ficou fiel depositário não lhe pertenciam e os devia entregar ao tribunal quando para tal fosse notificado, porém decidiu desfazer-se dos mesmos, subtraindo-os ao poder público e frustrando o prosseguimento da execução.
5. Agiu o arguido livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
6. A executada no processo referido em ..., foi declarada insolvente a 25.01.2016, nos termos do disposto no artigo 39.º do CIRE, no âmbito do processo n.º 3903/15.4T8AVR.
7. Não foram apreendidos quaisquer bens para a massa insolvente.
8. Por despacho proferido a 18.11.20216 proferido no processo n.º 3903/15.4T8AVR, foi declarado findo o processo de insolvência.
9. O arguido é gerente de sociedade na área da construção civil, declarando auferir cerca de €800,00.
10. O arguido reside sozinho.
11. Tem dois filhos, de 22 e 25 anos.
12. Reside em casa emprestada, não tendo qualquer custo com a mesma, além dos custos de água, luz, gás.
13. O arguido é licenciado em gestão.
14. Do Certificado do Registo Criminal do arguido nada consta.
*** Não há factos não provados.
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III- Fundamentação da aquisição probatória: O Tribunal a quo justificou a aquisição probatória nos seguintes termos:
«Meios de prova
Atendeu o Tribunal, as declarações do Arguido, conjugadas com as declarações da testemunha BB (agente de execução), nos termos infra explanados.
Teve o Tribunal, de igual forma, em atenção, aos documentos juntos a fls. 5/22 (certidões do processo de execução n.º 6697/15.0T8SNT) e cópias do processo n.º 3903/15.4T8AVR, juntos a 09.04.2024, nos moldes infra explicados.
Apreciação crítica da prova
No que concerne aos factos 1. e 2. da matéria de facto provada, atinentes ao facto de o Arguido ter sido constituído fiel depositário no processo n.º 6697/15.0T8SNT, atendeu o Tribunal à certidão junta aos autos a 5/22, de onde consta o auto de penhora respetivo, com a descrição dos bens penhorados, o valor atribuído a cada bem e designação do arguido como fiel depositário.
No que respeita ao ponto 3. da matéria de facto provada, atinente à venda dos bens por parte do Arguido, sem dar conhecimento ao processo de execução ou requerer autorização, teve o Tribunal em consideração as suas próprias declarações, uma vez que este admitiu a venda dos bens em causa, por cerca de €2.000,00.
Quanto à matéria constante dos potos 4. e 5. da matéria de facto provada, atinente ao conhecimento, por parte do Arguido, de que os bens não lhe pertenciam e que não podia desfazer-se dos mesmos, tendo procedido à sua venda, ainda assim, atendeu o Tribunal, de igual modo às próprias declarações do Arguido.
Vejamos:
Apesar de alegar alguma confusão, por ter tido conhecimento de que a executada havia sido declarada insolvente e que da sua experiência a insolvência acarreta o fim das penhoras, a verdade é que o Arguido demonstrou conhecimento de que os bens não haviam sido apreendidos para a massa insolvente e que a insolvência “não tinha ido para a frente”.
Sabia, pois, que tinha “o ónus de ter as coisas” em seu poder e guardá-las “até que algo fosse decidido”.
Resultou claro do seu discurso que o Tribunal e a Exequente não foram informados da sua pretensão em vender os bens.
Assim, não ficou o Tribunal com dúvidas de que o Arguido sabia que estava a vender bens que não lhe pertenciam e que estavam penhorados à ordem de um processo, decidindo, ainda assim, vende-los e ficar com o produto da venda.
No que respeita aos pontos 6. a 8. da matéria de facto provada, teve o Tribunal em consideração as cópias do processo n.º 3903/15.4T8AVR, juntas a 09.04.2024.
No que respeita à situação económico-social dos Arguidos e aos seus antecedentes criminais, constantes dos pontos 9. a 14. da matéria de facto provada, formou o Tribunal a sua convicção com base nas declarações do Arguido, as quais, nesta parte, e pela forma como foram prestadas, se reputam de credíveis, e no Certificado de Registo Criminal, junto aos autos.
Por todo o exposto, formou o Tribunal a sua convicção.»
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IV- Recurso:
O arguido recorreu, concluindo as alegações nos termos que se transcrevem:
«O auto de penhora não contém todos os elementos para vincular o aqui arguido à apresentação dos bens, seja pela função que desempenhou, que não foi de fiel depositário mas mandatário do fiel depositário, seja porque o auto não contém as obrigações a que o mesmo ficaria adstrito.
A questão a decidir é assim relativa à validade do auto e à função exercida pelo arguido, que não era de fiel depositário mas apenas representante da Exequente.
Verifica-se neste caso em concreto, a ausência de prova para a condenação do arguido que deveria ter sido absolvido,
Subsidiariamente sempre a pena a aplicar ao arguido deveria ponderar as atenuantes e não ultrapassar os sessenta dias de multa, assim se fazendo Justiça».
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Contra-alegou o Ministério Público, concluindo as respectivas alegações nos seguintes termos:
«1. A sentença proferida nos autos condenou o arguido AA, pela prática de um crime de descaminho ou destruição de objetos colocados sob o poder público, previsto e punível nos termos do disposto no artigo 355.º, do Código Penal, na pena de 7 (sete) meses de prisão, substituída pela pena 7 de 210 (duzentos e dez) dias de multa, à taxa diária de € 7,50, perfazendo o montante total de € 1.575,00 (mil quinhentos e setenta e cinco euros).
2. As questões por si suscitadas, em sede de recurso, prendem-se com o erro de julgamento e o não preenchimento dos elementos do crime e, ainda, com a medida da pena aplicada.
3. Ainda que o arguido alegue que não se mostram preenchidos os elementos do tipo, ao recorrer, como se depreende do acima exposto, o arguido pretende impugnar a matéria de facto dada como provada e, não apenas, recorrer de matéria de direito.
4. Sucede que, o arguido não respeita as exigências de impugnação da matéria de facto previstas na norma supra, pelo que o Tribunal de Recurso se encontra limitado à apreciação dos vícios constantes do texto da sentença recorrida.
5. Como resulta do disposto no art.º 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, qualquer dos vícios aí previstos tem que resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, sem recurso a quaisquer elementos externos à decisão
6. Da leitura da sentença recorrida não resulta que da mesma falte qualquer facto para que sejam dados como preenchidos os elementos do crime, nem se verifica qualquer contradição entre a fundamentação da sentença e os factos provados.
7. A pena de multa de substituição resulta da conversão automática do período de prisão, no mesmo número de dias de multa, ou seja, a 7 meses de prisão correspondem 210 dias de multa, pelo que tal pena não se mostra excessiva, nem desnecessária, inexistindo qualquer violação do disposto nos art.ºs 40.º e 71.º do Código Penal.
Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se a sentença proferida nos autos nos seus exactos termos, Com o que Vossas Excelências farão a costumada JUSTIÇA!».
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Nesta instância, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de ser notificado o recorrente para formular conclusões. Contudo, verifica-se que o recurso já contem conclusões.
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V- Questões a decidir:
Do artigo 412º/1, do CPP resulta que são as conclusões da motivação que delimitam o objecto do recurso e consequentemente, definem as questões a decidir em cada caso, exceptuando aquelas questões que sejam de conhecimento oficioso.
As questões colocadas pelo recorrente, arguido, são:
- Desconhecimento de que tinha o dever de entregar os bens quando os mesmos lhe fossem solicitados e das consequências da não apresentação, porque a solicitadora de execução não fez constar isso do auto de nomeação;
- Excesso da pena de multa.
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VI- Fundamentos de direito:
1- Do desconhecimento de que tinha o dever de entregar os bens quando os mesmos lhe fossem solicitados e das consequências da não apresentação, porque a solicitadora de execução não fez constar isso do auto de nomeação:
O arguido insiste na tese do desconhecimento de que tinha obrigação de manter e entregar os objectos de que foi constituído fiel depositário, porque a solicitadora não fez constar essa obrigação do auto.
A questão que coloca não contende necessariamente com o conteúdo do ponto 2 do provado, pela simples razão de que a advertência aí referida não tem que constar do auto de apreensão dos bens da massa insolvente, como se retira quer do disposto no artigo 766º do Código de Processo Civil – e bem assim do artigo 150º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, contido no DL n.º 53/2004, de 18 de Março
Por isso mesmo, a advertência a que esse ponto do provado se refere pode ser provada por força de prova não documental, no caso testemunhal, como foi.
Independentemente da existência de prova que determina a adequação do facto impugnado, impõe-se a consideração o princípio de que o desconhecimento da lei não aproveita a ninguém, sendo que a lei que fixa as obrigações do fiel depositário é de conhecimento do cidadão de mediana cultura, situação em que o arguido, licenciado em Gestão e gerente de uma sociedade comercial, se inclui bastamente.
É que, segundo o artigo 1187.º Código Civil, o depositário é obrigado a guardar a coisa depositada, a avisar imediatamente o depositante, quando saiba que algum perigo ameaça a coisa ou que terceiro se arroga direitos em relação a ela, desde que o facto seja desconhecido do depositante e finalmente, a restituir a coisa com os seus frutos.
Do exposto resulta que as obrigações que incorriam sobre o arguido eram necessariamente do seu conhecimento, não meramente pressuposto, mas efectivo, o que determina a correcção do conteúdo do ponto 2 do provado.
Improcede, consequentemente, a alteração pretendida.
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2- Do excesso da pena de multa:
Mais entende o recorrente que a multa aplicada foi excessiva é primário, integrado social e profissionalmente e tem um rendimento equivalente ao salário mínimo nacional.
Ora, a multa aplicada resultou da conversão da pena de 7 meses de prisão aplicada – sendo que o crime é punível exclusivamente com este tipo de pena.
Para aplicação da pena de prisão foram considerados precisamente os itens que o arguido refere – o facto de ser primário e estar inserido social e profissionalmente. Não se encontra fundamento para, numa pena com uma amplitude de 5 anos, se fixar uma medida inferior, até por conta da gravidade da actuação do agente que, já depois da declaração de insolvência da sociedade fez desaparecer os poucos bens que lhe pertenciam, assim impedindo os credores de verem satisfeito os seus créditos, ou pelo menos parte deles.
A conversão em dias de multa mostra-se extremamente favorável ao arguido, pondo até em causa os fins de prevenção geral e especial, que devem presidir à fixação do quantitativo das penas.
A taxa diária fixada seguiu idêntico padrão, tendo como resultado uma multa inferior ao montante de que o arguido se apropriou, de cerca de dois mil euros, como referiu em julgamento – isto sem contar com a desvalorização da moeda desde 2019 e o aumento de custo de vida inerente, o que faz acrescer o benefício retirado do crime.
Bem ao contrário da pretensão do recorrente, resta-nos dizer que a pena aplicada é manifestamente insuficiente e desajustada, na medida em que permite a conclusão de que, no caso, o crime compensou.
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VII- Decisão:
Acorda-se, pois, negando provimento ao recurso, em manter a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça de 4 ucs.
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Texto processado e integralmente revisto pela relatora.
Lisboa, 05/ 12/2024
Maria da Graça dos Santos Silva
Rui Miguel Teixeira
Ana Guerreiro da Silva