LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PENA ACESSÓRIA
PROIBIÇÃO DE CONTACTOS
Sumário

I- O artigo 127º do Código de Processo Penal consagra o princípio da livre apreciação da prova afirmando que salvo quando a lei dispuser diferentemente a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
II- Apesar de se utilizar a expressão livre não se trata de um poder discricionário do julgador, pois, se a decisão assenta na sua livre convicção o processo de formação da mesma é sujeito a regras.
III- A reiteração e a continuidade não são indispensáveis para o preenchimento do crime de violência doméstica como decorre do teor do artigo 152º do Código Penal ao estatuir quem de modo reiterado ou não…
IV- A imposição de pena acessória de proibição de contactos com a vítima prevista no nº4 e 5 do artigo 152º do Código Penal é congruente com o previsto nos artigos 34º-B nº1 e 35º nº1 ambos da Lei nº112/2009 de 16 de setembro e configura o regime regra.
V- A sua não imposição é excecional e tem de ser devidamente fundamentada.

Texto Integral

Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1- RELATÓRIO:
Nos autos de processo comum com intervenção de tribunal singular nº 788/22.8T9TVD que correm os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte - Juízo Local Criminal de Torres Vedras - Juiz 1 foi, em 6 de agosto de 2024, proferida sentença cujo dispositivo é, ao que nos interessa, do seguinte teor:
III- DECISÃO
Pelo exposto, o Tribunal julga procedente, por provada, a pronúncia, e, em consequência, decide:
- Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica, na forma consumada, previsto e punido pelo art.º 152º, nºs. 1, als. a) e c) e 2, al. a) do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão, e na pena acessória de proibição de contacto com a ofendida, pelo período de 1 (um) ano e 6 (seis) meses, fiscalizada por meios técnicos de controlo à distância, com excepção dos contactos que se revelarem estritamente necessários no âmbito da regulação das responsabilidades parentais dos filhos menores de ambos, e a pena acessória de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica, previstas nos nºs 4 e 5 do mencionado art.º 152º.
- Decretar a suspensão da execução da pena de 3 (três) anos de prisão aplicada ao arguido AA, pelo período de 3 (três) anos, a contar do trânsito em julgado da presente decisão, acompanhada de regime de prova, assente num plano de reinserção social a elaborar pelos serviços de reinserção social, com incidência na vertente da consolidação das competências pessoais e sociais.
- Ao abrigo do disposto nos arts. 21º, nºs 1 e 2 da Lei n.º 122/2009, de 16.09 e 82º-A do C.P.P., condenar o arguido AA a pagar à ofendida BB, a quantia de € 3.000,00 (três mil euros) a título de indemnização.
(…)
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Inconformado com a decisão condenatória dela recorreu o arguido AA extraindo da motivação as conclusões que a seguir se transcrevem:
1. Valoração desproporcional das declarações da assistente: O Tribunal de primeira instância atribuiu excessiva importância às declarações da assistente, ignorando outras provas testemunhais que apontavam para uma convivência pacífica entre as partes e ausência de comportamentos agressivos por parte do recorrente. Esta valoração, ao privilegiar um único testemunho sem adequada corroboração, violou o princípio da livre apreciação da prova, conforme previsto no artigo 127º do Código de Processo Penal.
2. Falta de prova quanto à reiteração dos maus tratos: O crime de violência doméstica exige que os maus tratos sejam reiterados ou de uma gravidade suficiente para justificar a condenação. No presente caso, os factos alegados pela assistente não demonstraram um padrão continuado ou grave de maus tratos, sendo relatos isolados e insuficientes para preencher os requisitos do tipo legal de violência doméstica.
3. Inexistência de dolo ou intenção de molestar a assistente: Não ficou demonstrado que o recorrente tenha agido com a intenção deliberada de subjugar ou infligir sofrimento psíquico à assistente. As ações do recorrente foram muitas vezes explicadas por contextos específicos (como a religião e a dinâmica familiar), os quais não foram devidamente considerados pelo Tribunal.
4. Erro na qualificação jurídica dos factos: Mesmo que se considerem alguns dos comportamentos descritos pela assistente como provados, estes não possuem a gravidade ou a continuidade necessária para serem considerados violência doméstica. No máximo, poder-se-ia falar de ilícitos menores, como ofensas à integridade física simples, mas não da prática reiterada de maus tratos exigida pela norma aplicável.
5. Desproporcionalidade das penas acessórias e do valor de indemnização: A pena acessória de proibição de contacto, acompanhada de controlo à distância por 1 ano e 6 meses, revela-se desproporcional, considerando a ausência de antecedentes criminais do recorrente e a falta de gravidade dos factos provados. Da mesma forma, a indemnização de 3.000 euros carece de fundamentação suficiente, não havendo prova concreta dos danos sofridos pela assistente.
Termina requerendo que seja dado integral provimento ao recurso com as seguintes consequências:
Revogação da sentença recorrida, no que concerne à condenação do recorrente pela prática do crime de violência doméstica, por se verificar erro na apreciação da prova e na qualificação jurídica dos factos.
Alteração da qualificação jurídica dos factos para uma tipificação mais adequada aos elementos provados, ou, se assim não for entendido, a absolvição do Recorrente por não estarem preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do tipo legal de violência doméstica, conforme previsto no artigo 152º do Código Penal.
Revogação das penas acessórias aplicadas, nomeadamente a proibição de contacto com a assistente por um período de 1 ano e 6 meses, fiscalizada por meios
Reavaliação e redução do valor da indemnização arbitrada à assistente, por falta de fundamentação adequada e objetiva dos danos não patrimoniais alegadamente sofridos.
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Admitido o recurso no tribunal recorrido o Ministério Público apresentou resposta extraindo da mesma as seguintes conclusões:
1. É a presente resposta ao recurso interposto pelo arguido AA, da sentença proferida em 06.08.2024, que o condenou, pela prática do crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, nºs. 1, alíneas a) e c) e 2, alínea a), do Cód. Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período e com sujeição a regime de prova, e, ainda, na pena acessória de proibição de contactos com a ofendida pelo período de 1 (um) ano e 6 (seis) meses, fiscalizada por meios técnicos de controlo à distância.
2. Não se conformando com tal, interpôs o arguido o presente recurso por considerar que 1) ocorreu uma valoração desproporcional das declarações da assistente, 2) inexistia um padrão continuado ou grave de maus tratos, 3) não ficou demonstrado que tenha agido com dolo, 4) os factos não integram a prática do crime de violência doméstica e 5) há uma manifesta desproporcionalidade na pena acessória e no valor da indemnização.
3. Em primeiro lugar, cumpre referir que, no entendimento do Ministério Público, o Recorrente não deu cumprimento ao ónus que sobre si impendia e conforme determinado no artigo 412.º, n.º2 do Cód. Proc. Penal, porquanto compulsado o teor das conclusões do recurso interposto, constata-se que das mesmas não consta a referência à norma que, no entendimento do recorrente, foi violada, o sentido em que o tribunal a interpretou e/ou aplicou e qual a norma que, no seu entendimento, deve ser aplicada.
4. Não obstante o exposto, crê o Ministério Público que as questões suscitadas pelo Recorrente se prendem com a errada qualificação jurídica dos factos e desproporcionalidade das penas acessórias e do valor da indemnização, e, quanto a tais, sempre se dirá que não lhe assiste qualquer razão.
5. Invoca o Recorrente que “o Tribunal de primeira instância atribuiu excessiva importância às declarações da assistente, ignorando outras provas testemunhais que apontavam para uma convivência pacífica entre as partes e a ausência de comportamentos agressivos (...)”, pelo que incorreu na violação do princípio da livre apreciação da prova.
6. Todavia, o Tribunal a quo, de forma motivada e devidamente justificada, considerou como provados os factos constantes da sentença, tendo alicerçado a sua convicção na análise conjugada das declarações do arguido, da assistente e no do depoimento das testemunhas e, ainda, na prova documental junta aos autos.
7. Salientando-se que o Tribunal a quo recorreu às regras da experiência comum e da lógica e, por via de tal, apreciou a prova de forma objectiva, motivada, seguindo um processo lógico e racional, não se tratando de uma decisão ilógica, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.
8. Com efeito, da análise da sentença recorrida emerge que a convicção do Tribunal fundamentou-se na análise conjugada e crítica i) das declarações do arguido, ii) das declarações da assistente e iii) do depoimento das testemunhas, as quais depuseram “(...) sobre o estado emocional da ofendida, relativamente às manifestações de receio que a mesma demonstrava relativamente ao arguido, e o controlo emocional e o isolamento social a que o mesmo a sujeitava tendo a testemunha CC, irmã da ofendida, presenciado “(...) comportamentos verbalmente agressivos do arguido (...)” para com aquela.
9. Donde resulta que o depoimento das testemunhas permitiu, no essencial, conferir credibilidade ao relatado pela ofendida, essencialmente no que respeita ao seu estado de espírito, improcedendo, assim, o alegado pelo Recorrente, tanto mais que inexiste qualquer impedimento à formação da convicção do Tribunal num único depoimento/declarações, desde que sejam prestados de forma séria e credível e o Tribunal explicite as razões do seu convencimento.
10. E, quando se mostra em causa o crime de violência doméstica, não raras as vezes inexiste outra prova para além do relato da ofendida, considerando que os factos, por regra, ocorrem no recesso do lar e longe dos olhares de terceiros.
11. Depois, invoca o Recorrente que “(...) os factos alegados pela assistente não demonstraram um padrão continuado ou grave de maus tratos, sendo relatos isolados e insuficiente para preencher os requisitos do tipo legal de violência doméstica”.
12. Todavia, não lhe assiste qualquer razão e, a este propósito, já é vasta a jurisprudência que afasta a necessidade de reiteração de comportamentos para que se possa considerar estar na presença do crime de violência doméstica.
13. A título de exemplo, o Supremo Tribunal de Justiça já decidiu que “A actual redacção mais não significa que do que a incriminação, decorrente da lei penal, de condutas agressivas, mesmo que praticadas uma só vez, que se revistam de gravidade suficiente para poderem ser enquadradas na figura dos maus-tratos. Não são, assim, todas as ofensas corporais entre cônjuges que cabem na previsão criminal do referido artigo 152.º, mas aquelas que se revistam de uma certa gravidade ou, dito de outra maneira, que, fundamentalmente, traduzam crueldade, ou insensibilidade, ou, até, vingança desnecessária, da parte do agente (...) nos casos de especial violência, uma única agressão será suficiente para preencher o tipo legal”.
14. Noutro plano, inexistem quaisquer dúvidas que os factos dados como provados configuram a prática, pelo agora Recorrente, do crime de violência doméstica.
15. Sendo patente a postura de controlo, a oposição de contacto da assistente com homens e da sua ida às cerimónias fúnebres do avô, as expressões ofensivas que lhe dirigiu, o profundo desrespeito que manifestou ao forçá-la a manter relações sexuais consigo, mesmo após aquela dizer que não o pretendia fazer e, igualmente, o não aceitamento da decisão de separação.
16. E tais factos constituem, sem sombra de dúvida, maus tratos físicos e, sobretudo, psíquicos, susceptíveis de causar - como causaram - medo, humilhação e sofrimento.
17. Pelo que, dúvidas inexistem, no entendimento do Ministério Público, que o Tribunal a quo andou bem ao qualificar tais factos como violência doméstica e, por conseguinte, a sentença recorrida não merece, também quanto a este respeito, qualquer reparo, devendo ser mantida na íntegra.
18. Mais, invoca o Recorrente que “(...) não ficou demonstrado que o recorrente tivesse agido com a intenção de molestar ou de submeter a assistente a sofrimento psicológico”, assim como “o Tribunal não logrou demonstrar, através da prova produzida, que o arguido tivesse atuado com o propósito de subjugar a assistente ou de exercer um controle psicológico abusivo sobre ela”.
19. Todavia, não lhe assiste qualquer razão.
20. Com efeito, e sem necessidade de grandes considerações, cumpre referir que os factos atinentes ao elemento subjectivo, conquanto pertencendo ao foro interno do arguido, extraem-se dos factos externos e objectivos que resultaram provados, atentas as concretas condutas empreendidas pelo arguido, no contexto em que o foram.
21. Ademais, de acordo com o normal devir dos acontecimentos, tais actos visam precisamente agredir e diminuir aqueles a quem se dirigem, sendo certo que qualquer homem comum não pode deixar de fazer tal valoração perante aqueles factos, sabendo que constituem crime e que são susceptíveis de se repercutir na saúde, dignidade e amor-próprio da pessoa visada, para mais atenta a especial relação que existia entre o arguido e a vítima.
22. No que concerne à pena acessória aplicada cumpre referir que, no entendimento do Ministério Público, não merece qualquer censura ou reparo a decisão recorrida, com a qual se concorda por se encontrar fundamentada e se demonstrar acertada, adequada e ajustada, tendo-se feito uma correcta interpretação e aplicação do direito à factualidade provada, em estrito cumprimento das normas e dos princípios que norteiam o Direito e o Processo Penal, tendo a Mma. Juiz ponderado os factores de risco e termos de reinserção social e a gravidade de comportamentos perpetrados pelo ora Recorrente
23. Já no que concerne ao valor da indemnização, é entendimento do Ministério Público que a Mma. Juiz efectuou uma adequada ponderação da natureza e intensidade do dano, do grau de culpa, da idade da vítima, da situação económica do lesado, do valor actual da moeda e dos critérios jurisprudenciais, afigurando-se, igualmente, que tal montante é justo, adequado e proporcional.
24. Por todas as razões ora aduzidas entende-se que a sentença proferida pelo Tribunal a quo não deverá merecer quaisquer reparos, devendo, pois, ser mantida, nos seus precisos termos e, por conseguinte, o presente recurso deverá soçobrar.
Termina pugnando pelo não provimento do recurso interposto pelo arguido com a consequente manutenção da sentença recorrida.
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Remetido o recurso a este Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora Geral-Adjunta apôs visto.
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Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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Nada obsta ao conhecimento do mérito do recurso interposto pelo arguido cumprindo, assim, apreciar e decidir.
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2- FUNDAMENTAÇÃO:
2.1- DO OBJETO DO RECURSO:
É consabido, em face do preceituado nos artigos 402º, 403º e 412º nº 1 todos do Código de Processo Penal, que o objeto e o limite de um recurso penal são definidos pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, devendo, assim, a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas –, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por serem obstativas da apreciação do seu mérito, nomeadamente, nulidades insanáveis que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase e previstas no Código de Processo Penal, vícios previstos nos artigos 379º e 410º nº 2 ambos do referido diploma legal e mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.1
Destarte e com a ressalva das questões adjetivas referidas são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respetiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar2.
A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva3: “Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objeto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões”.
Assim, à luz da delimitação das conclusões da motivação do recurso, as questões a dirimir neste recurso são as seguintes:
Se a decisão recorrida padece de erro de julgamento e violou o princípio da livre apreciação de prova previsto no artigo 127º do Código de Processo Penal.
Se a decisão recorrida padece de erro na qualificação jurídica dos factos.
Se a decisão recorrida aplicou de modo desproporcional a pena acessória de proibição de contacto.
Se a decisão recorrida aplicou de modo desproporcional o valor da indemnização arbitrada à assistente.
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2.2- DA APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO:
Exara a sentença recorrida na parte que releva para a apreciação do recurso interposto pelo o que a seguir se transcreve:
II FUNDAMENTAÇÃO
FACTOS PROVADOS:
Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos com relevância
para a presente decisão:
Da acusação, para a qual remete a pronúncia:
1 - O arguido AA e BB casaram um com o outro em 30 de Novembro de 2009.
2 - Do casamento entre ambos nasceram DD e EE, respectivamente, nos dias 27 de Março de 2015 e 29 de Julho de 2019.
3 - O casal e os respectivos filhos residiram, desde Outubro de 2016 e até ao dia 8 de Abril de 2022, em ....
4 - Desde o início do casamento que o arguido demonstrou comportamentos de posse relativamente à ofendida, chegando a referir-lhe «tu tens que obedecer primeiro e perguntar depois».
5 - Com efeito, no período de lua-de-mel, que durou cerca de dez dias, em dias não determinados, o arguido insistiu para com a ofendida para que mantivessem relações sexuais um com o outro, ao que nem sempre a mesma acedeu.
6 - Quando assim sucedeu, o arguido deixou de lhe falar.
7 - Ainda em tal período, o arguido não permitiu que a ofendida atendesse as chamadas telefónicas que recebeu da respectiva progenitora, porquanto agora esta «já não mandava»,
8 - O que sucedeu durante cerca de um ano,
9 - Lapso de tempo durante o qual a ofendida não falou com a progenitora.
10 - Do mesmo modo, o arguido opunha-se a que a ofendida falasse com indivíduos do sexo masculino, ainda que fossem maridos de amigas.
11 - Em dias não determinados, pelo menos cerca de três vezes por semana, o arguido apodou a ofendida de «saloia», «puta de merda», «burra» e «idiota».
12 - Bem como, nas ocasiões em que deu conta que o chão da casa de banho estava molhado, disse à ofendida em tom agressivo, que ia cair e bater com a cabeça na banheira e que ia morrer, que a ofendida o ia matar, que os filhos iam escorregar e bater com a cabeça na banheira e morrer, chegando a referir «Tu queres matar-nos».
13 - Em dia não apurado, mas anterior a 16 de Fevereiro de 2010, o avô materno da ofendida encontrava-se internado em unidade hospitalar, pedindo que esta o fosse visitar.
14 - Ao tomar conhecimento de tal facto, a ofendida pediu ao arguido para ir visitar o avô, ao que o mesmo acedeu.
15 - Sucede que, nesse dia, 16 de Fevereiro de 2010, Cesário Nunes da Silva veio a falecer, tendo o arguido apresentado oposição a que a ofendida estivesse presente nas cerimónias fúnebres, referindo que não valia a pena ir porque já tinha morrido, bem como, «O que é que lá vais fazer? A alma dele já não está lá. Não vais lá fazer nada».
16 - Em dias não determinados, referindo que a ofendida tinha que o ouvir, o arguido agarrou-a nos pulsos, apertando-os.
17 Tendo pelo menos numa ocasião, desferido murros nas paredes junto ao rosto daquela.
18 - Como causa directa e necessária da actuação do arguido supra referida em 16, pelo menos numa ocasião, a ofendida apresentou marcas vermelhas e, depois, negras, nos pulsos, durante cerca de três dias.
19 - Em dias não apurados, no interior do veículo automóvel, registaram-se discussões entre os membros do casal, no decurso das quais o arguido atingiu a ofendida com encontrões, nos joelhos.
20 - Em dias não apurados, não obstante a ofendida referir não pretender manter relações sexuais com o arguido, este insistiu, acabando por manterem relações de cópula completa,
21 - Não obstante, pelo menos numa ocasião, no decurso das mesmas, o arguido ver a ofendida a chorar agarrada a uma almofada.
22 Aquando do mencionado em 20, o arguido referia à ofendida que a mesma não teria de fazer nada, sendo o próprio quem faria tudo.
23 - Pelo menos uma vez por semana, durante a constância do casamento, tais episódios ocorreram.
24 - Em dia não apurado do ano de 2020, o arguido referiu à ofendida que se se divorciassem não a iria deixar ficar com os filhos de ambos.
25 - Em Janeiro de 2022, a ofendida passou a frequentar aulas de jiu-jitsu.
26 - A partir de então, o arguido passou a comparecer no local de trabalho da ofendida e em outros locais onde soubesse que a mesma se encontrava, por forma a controlar os seus movimentos.
27 - Na semana antes de a ofendida abandonar a casa de morada de família, o arguido disse-lhe que havia tido uma revelação de Deus e que o Diabo tinha colocado uma semente maligna no coração daquela e que essa semente o iria destruir, bem como, «Eu estou perturbado porque Deus está-me a revelar e Deus já te revelou, já me revelou 100% do que te revelou a ti que tu sabes exactamente o que é e isso vai me destruir».
28 - Em dia não apurado, o arguido já havia referido à ofendida que tinha tido vícios em drogas e em pornografia, libertando-se dos mesmos quando acolheu Deus no coração.
29 - E que nunca a iria deixar nem, tão-pouco, permitir que a mesma ficasse com os filhos de ambos, porquanto não revelava capacidade para ficar com as crianças.
30 - A partir de então, a ofendida passou a pernoitar com os filhos menores de ambos,
31 - Vindo o arguido, durante a noite, a dirigir-se ao quarto onde a mesma se encontrava por forma a verificar se, efectivamente, ali estava a dormir,
32 - Visualizando ainda o conteúdo do seu aparelho de telemóvel.
33 - No dia 8 de Abril de 2022, pela manhã, a ofendida abandonou a casa de morada de família, juntamente com os dois menores, não revelando ao arguido o local para onde ia.
34 - Porém, de forma não concretamente determinada, o arguido tomou conhecimento do local onde a ofendida e os menores se encontravam.
35 - Com efeito, no dia 15 de Abril de 2022, durante a tarde, sabendo do local onde se encontravam a residir, o arguido compareceu à janela do rés-do-chão esquerdo, do número 1, da ..., na localidade de ..., referindo à filha menor de ambos que queria fazer uma surpresa à mãe.
36 - E, pelas 22 horas e 50 minutos desse mesmo dia, ainda se encontrava na rua, junto a tal local.
37 - Após, a ofendida e os menores mudaram novamente de local de residência, sendo que o arguido, procurou saber do seu paradeiro junto de familiares e amigos.
38 - Ao adoptar os comportamentos supra descritos, o arguido teve sempre a intenção de atemorizar, de humilhar e de provocar sofrimento em BB, seu cônjuge e mãe dos seus dois filhos menores, pretendendo molestá-la física e psicologicamente, como fez, bem sabendo que agindo da forma descrita colocava em crise a integridade física e psíquica desta e a sua liberdade e dignidade pessoal, praticando alguns dos descritos factos no interior da casa de morada de família.
39 - Apesar disso, não se coibiu o arguido de actuar das formas descritas.
40 - Sabia igualmente o arguido que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, actuando de forma livre, voluntária e consciente.
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Mais se provou:
41 - O arguido é o quarto filho de uma fratria de sete irmãos, tendo o seu processo de socialização decorrido num ambiente perturbado pelo comportamento agressivo da figura paterna e pela elevada mobilidade geográfica apresentada pela família, relacionada com acções missionárias. Aos quinze anos o progenitor, entretanto falecido, viajou para Inglaterra e afastou-se do agregado familiar constituído.
Decorrente de factores não explicitados, a família desagregou-se e, aos dezassete anos, o arguido foi para Inglaterra jogar futebol. Pouco tempo depois, na sequência de uma lesão, abandonou esta prática e passou a gerir as suas rotinas de forma independente. Neste contexto, surge o contacto com o consumo de estupefacientes e abusivo de bebidas alcoólicas.
42 - Aos 20 anos regressa a Portugal, para o que pretendia ser uma breve estadia, mas acabou por permanecer na sequência de um movimento de identificação com princípios cristãos, como a empatia e solidariedade, de uma instituição religiosa. Foi acolhido pelo pastor dessa igreja, que o auxiliou no afastamento ao comportamento aditivo, estando abstinente desde essa altura.
43 - Tem como habilitações literárias o 9º ano de escolaridade.
44 - Após terminar o percurso profissional como jogador de futebol, trabalhou em diversas áreas, como operário fabril, indiferenciado da construção civil, empregado de hotelaria, preparador de moldes para fornos de ferro fundido e, a partir de determinada altura, na compra, recuperação e venda de veículos e peças automóveis actividade que desenvolvia à data dos factos.
45 - No presente é sócio-gerente de várias empresas em áreas diversificadas, algumas situadas no estrangeiro, como por exemplo em Londres e Dublin. Em Portugal, nomeia uma empresa que presta serviços na construção de redes primárias de fibra óptica («comitiva imbatível») e um ponto de lavagem de veículos automóveis («auto-lavagem bbb»).
46 - Com um quadro económico estável contribui com €250,00 mensais a título de pensão de alimentos dos filhos menores, e o pagamento de metade das despesas, designadamente com saúde e escola, relativas aos filhos.
47 - Em termos ocupacionais, dedicou-se desde cedo à actividade missionária, nomeadamente na «associação quinta dimensão», fundada pelo progenitor, e na «associação nova dimensão» (organização não governamental, sem fins lucrativos, com objectivos de cooperação entre os povos e de combate à pobreza), da qual a progenitora é fundadora. Neste âmbito e a partir de determinada altura, participava com a ofendida em várias acções desenvolvidas na igreja que frequentavam, como ajuda alimentar e apoio espiritual e social genérico. No presente, devido aos compromissos profissionais, esta faceta da sua vida está mais parada.
48 - Actualmente, desde a separação, o arguido integra o agregado familiar materno, composto pela progenitora e o companheiro desta, sendo a dinâmica intrafamiliar baseada na afectividade e na entreajuda.
49 - Após a separação, na sequência de decisão judicial, foi determinada intervenção do CAFAP de Torres Vedras, tendo o acordo familiar sido assinado em a 20-09-2022 e os convívios vigiados entre arguido e filhos iniciaram-se a 28-10-2022.
A partir de 25-03-2024, as crianças passaram a pernoitas com o arguido em fins-de-semana quinzenais e recebem a visita do progenitor nos outros sábados. A transição é sempre na presença dos técnicos daquele serviço, assim como a passagem de informação entre o arguido e a ofendida. Alguns constrangimentos relacionados com a dificuldade de o arguido em cumprir horários e algumas orientações dos técnicos do CAFAP, nomeadamente na participação de algumas rotinas das crianças que podem colidir com a privacidade da ofendida, contribuem para uma postura de maior resistência por parte da ofendida ao alargamento do regime de visitas, encontrando-se ainda a decorrer o processo de regulação das responsabilidades parentais
50. Do certificado de registo criminal do arguido nada consta.
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FACTOS NÃO PROVADOS:
Com relevância para a presente decisão não houve quaisquer outros factos não provados. Designadamente, não se provou:
1- Que em dia não determinado do mês de Dezembro de 2009, na casa de morada de família, situada na altura na Póvoa de Santa Iria, o arguido tenha colocado uma das mãos na cara de BB, apertando-a na zona dos maxilares; e que lhe tenha referido que tinha de prestar atenção ao que lhe dizia e que não lhe faltasse ao respeito.
2- Que aquando do referido em 12 da factualidade provada o arguido tenha chamado BB de «saloia».
3- Que o arguido tenha empurrado BB contra a parede.
4- Que a ofendida tenha passado a frequentar as aulas de jiu-jitsu para se conseguir libertar quando era agarrada nos pulsos pelo arguido.
5- Que desde que começou a frequentar as aulas de jiu-jitsu, o arguido tenha passado a imputar à ofendida a manutenção de relações extraconjugais, passando por esse motivo a visualizar o conteúdo do seu aparelho de telemóvel.
MOTIVAÇÃO:
A convicção do Tribunal para o apuramento dos factos provados fundamentou se na análise conjugada e crítica:
1 - das declarações do arguido AA.
Em termos globais, escudando-se numa postura de desculpabilização e de vitimização, procurando transmitir uma imagem de cônjuge preocupado com o bem-estar da assistente, sem exercer sobre a mesma qualquer ascendente emocional, ou atitudes controladoras, o arguido negou a autoria dos factos imputados na acusação, não obstante relativamente a alguns dos factos imputados apresentar versões distintas,
de forma por vezes evasiva, em consonância com a imagem que procurou transmitir, no que foi contrariado pelas declarações convictas, coerentes, objectivas e consistentes da assistente, nos termos inframencionados.
Assim, relativamente aos factos relacionados com as circunstâncias em que conheceu a assistente, o período temporal em que viveram enquanto casal, os locais onde residiram, admitiu a referida factualidade, referindo que conheceram-se na Igreja Cristã em Torres Vedras, tendo casado muito jovens, a assistente com dezoito anos e o declarante com vinte e três anos de idade; e que, após o casamento, depois de terem residido um ano na Póvoa de Santa Iria, até ao final de 2010, viveram durante seis meses em casa dos Pastores da Igreja que frequentavam, em ..., estando a religião muito presente na vida de ambos, bem como as regras aconselhadas pela religião que professavam, de não entrar em disputa, não guardar mágoa, nem rancor, não frequentar maus ambientes, e respeitarem-se reciprocamente, recorrendo a intervenção pastoral caso tal não sucedesse.
Referiu que no início do casamento houve um «choque de convivência», tendo recorrido à intervenção pastoral, melhorando o relacionamento no segundo ano de casamento, sendo uma relação muito gratificante, que mudou após o nascimento da primeira filha do casal, continuando a assistente a trabalhar como esteticista de unhas, o que embora não tenha tido oposição por parte do declarante, gerou desentendimentos.
Quanto à factualidade imputada nos pontos 4 a 6 da acusação, para a qual remete a pronúncia, negou a autoria da mesma, não obstante mencionar que seguindo a recomendação de castidade da religião que professavam, a assistente teve a sua primeira relação de cópula na noite de núpcias, estando receosa, situação que ultrapassaram, não sem antes o declarante ter «ficado amuado, não falando durante uma ou duas horas», procurando transmitir a imagem que com tal reacção passiva procurou evitar um conflito, não admitindo que tal indiferença para com a assistente, no contexto em que os factos ocorreram, pudesse ao invés traduzir-se em hostilidade do ponto de vista emocional, e psicologicamente violento.
Relativamente à factualidade imputada nos pontos 7, 8 e 9 da acusação, para a qual remete a pronúncia, de igual modo negou a autoria da mesma, não obstante admitir que a assistente durante um ano não contactou com a progenitora, referindo que a mesma ficou desavinda com a mãe por não ter usufruído da herança do pai, tendo-a incentivado a não guardar rancor, voltando ambas a estabelecer contacto depois de a sogra ter dado à assistente uma parte do dinheiro da herança.
No que concerne à factualidade imputada no ponto 9 a) da acusação, para a qual remete a pronúncia, negou a autoria da mesma, não tendo nesta parte as declarações do arguido sido infirmadas por qualquer elemento probatório produzido ou examinado em audiência de julgamento.
Quanto à factualidade imputada no ponto 10 da acusação, para a qual remete a pronúncia, não obstante negar a autoria da mesma nos termos imputados, apresentando uma versão distinta dos factos, de modo a não transmitir uma postura impositiva e controladora relativamente à assistente, admitiu que tais factos aconteciam, porque se tratava de uma recomendação da Igreja, ficando descontente e amuado, deixando de falar com a ofendida se a encontrava sozinha com um indivíduo do sexo masculino, admitindo inclusivamente que no primeiro ano de casamento foi impetuoso, chegando a dirigir-se à assistente com um tom de voz mais alto.
No que concerne à factualidade imputada nos pontos 11 e 12 da acusação, para os quais remete a pronúncia, admitiu que nos «momentos de impetuosidade» chamou burra e idiota à assistente, referindo ainda ter-lhe chamado saloia, mas que, quanto a esta expressão tal acontecia num contexto recíproco, em que «picavam-se um ao outro», negando o demais imputado.
Mencionou ainda que numa ocasião em que chegou a casa e apercebeu-se do seu filho estar sozinho na banheira, o que deixou o declarante indignado, tendo a sua filha escorregado no chão e batido na banheira, ficou exaltado, tendo alertado a assistente sobre o ocorrido de forma mais exaltada, negando, todavia, ter proferido as expressões mencionadas no ponto 12.
Quanto à factualidade relacionada com a doença, hospitalização e posterior falecimento do avô da assistente, com quem referiu ter um bom relacionamento, a que aludem os pontos 13 a 15 da acusação, para os quais remete a pronúncia, mencionou que foi com a assistente ao hospital visitar o avô desta, referindo de forma intrinsecamente inconsistente que a assistente não foi às cerimónias fúnebres por iniciativa própria, não obstante mencionar que também não foi porque estava a trabalhar, não obstante entender que devia ter estado presente em representação do casal.
Relativamente à factualidade imputada nos pontos 16 a 20 da acusação, para os quais remete a pronúncia, negou a autoria dos mesmos, referindo que nunca agrediu a assistente, não obstante admitir que nalgumas ocasiões de exaltação, gritou com a mesma para que o ouvisse; que nunca viu a assistente com marcas de agressões, atribuindo às únicas marcas que viu na assistente o facto de terem resultado da prática de jiu-jitsu; e, questionado sobre a diferente versão apresentada pela assistente nas declarações prestadas para memória futura, atribuiu tal facto ao relato de pormenores mediante aconselhamento por pessoa que se intitulava advogada de profissão, ou a depressão pós-parto, após o nascimento do segundo filho.
No que concerne à factualidade imputada nos pontos 21 a 24 da acusação, para os quais remete a pronúncia, de forma incoerente e pouco consistente, referiu que sempre respeitou a vontade da assistente no que dizia respeito à sexualidade do casa mencionando que a mesma é que chegava a acordar o declarante de noite para terem relações sexuais, admitindo todavia a factualidade imputada no ponto 32, mencionando que era do conhecimento da assistente, porque o declarante lho transmitiu, que antes de se converter aos vinte anos de idade, o mesmo tinha tido «problemas com consumo de drogas e pornografia».
De igual modo negou a factualidade imputada nos pontos 25 a 28, referindo que a primeira conversa que tiveram sobre divórcio foi duas semanas antes de Abril de 2022, em que a assistente disse ao declarante que pretendia o divórcio, tendo o mesmo questionado porque é que tinha conversas íntimas com outros homens, apercebendo-se por acaso de tal facto através da visualização do conteúdo do telemóvel da assistente, a que durante uma semana passou a aceder uma vez por dia, não a tendo confrontado com tal facto, uma vez que, desde o início do casamento, ambos acediam ao telemóvel um do outro; e que, quando abriram um estabelecimento de estética de unhas, onde a assistente trabalhava, era frequente deslocar-se ao local, não sendo o objectivo de tais deslocações controlar os movimentos da assistente.
Quanto à factualidade imputada nos pontos 31 e 32 da acusação, admitiu a mesma, negando a factualidade imputada no ponto 33, para a qual apresentou uma versão diversa, referindo que apenas manifestou disponibilidade em ficar com os filhos «se ela não tivesse interesse em tomar conta das crianças».
No que concerne à factualidade a que se reportam os pontos 34 a 36 da acusação, para os quais remete a pronúncia, não obstante negar a autoria dos mesmos, admitiu que a assistente duas semanas até á separação de facto passou a dormir no quarto com os filhos de ambos, a pedido da mesma, justificando o facto de durante a dirigir-se ao quarto com a circunstância de ser o declarante a levar a filha à casa de banho, referindo de forma inconsistente que nunca viu o telemóvel da assistente, mas quis confirmar se a mesma continuava a falar com o indivíduo a quem lhe atribuiu uma relação extraconjugal.
A respeito da factualidade a que aludem os pontos 37 a 41 da acusação, para os quais remete a pronúncia, referiu que no dia em que a assistente saiu de casa, de manhã levou a filha à escola, apercebendo-se à hora de almoço que algo se passava, dado estarem coisas remexidas em casa, tendo recebido uma mensagem, «eu e as crianças não vamos voltar mais», tendo estado cerca de dois meses sem saber o paradeiro destes, que descobriu através de um colega, tendo-se deslocado à residência, vendo a sua filha à janela, dizendo-lhe que mais logo «ia dar um beijinho de boa noite», motivo pelo qual regressou à noite ao local, estando as janelas fechadas.
Questionado a respeito da reacção da ofendida aos seus comportamentos referiu que quando se exaltava a assistente chorava, e que pelo menos em duas ou três ocasiões tal aconteceu na presença dos filhos menores, tendo a sua filha chegado a dizer «pai não grites com a mãe».
Referiu ainda que por duas ou três vezes, para evitar o conflito, chegou a fechar-se no quarto, ou a sair de casa, tendo noutras ocasiões conversado com a Pastora da Igreja que frequentava.
2- das declarações da assistente BB, ouvida em declarações para memória futura, e em sede de audiência de julgamento, sem neste âmbito nada comprometer a sua espontaneidade, e que de forma coerente, consistente, convicta e objectiva, num relato sofrido, descreveu a cronologia e dinâmica dos acontecimentos relativamente aos factos de que foi vítima por parte do arguido, nos exactos termos que resultaram provados, relato esse sem quaisquer indícios de efabulação, não procurando empolar o comportamento do arguido, tanto assim que, quanto aos factos imputados nos pontos 9 a) e 17 da acusação, para os quais remete a pronúncia, referiu não terem ocorrido; relativamente aos factos relacionados com alegada violência física por parte do arguido, restringiu a intensidade da violência exercida que deixou marcas nos pulsos da declarante, referindo que tais marcas só ocorreram numa das situações; precisou que o arguido dava-lhe «encontrões» nos joelhos quando estavam no carro e ocorriam discussões, e descreveu as expressões injuriosas de que se recordava, e o contexto em que o arguido as proferia, nos termos que resultaram provados.
Assim, começou por mencionar que conheceu o arguido na «..., que começou a frequentar em Torres Vedras aos catorze anos de idade, a convite de colegas de escola, o que gerou alguns atritos no relacionamento com a sua mãe, dado a esta «fazer-lhe confusão estes cultos».
Conheceu o arguido aos quinze anos de idade, quando o mesmo regressou de Inglaterra com vinte anos de idade, estando este a morar em casa do Pastor da Igreja, referindo que foi a sua primeira grande paixão, descrevendo o arguido como «forte, bonito, eloquente e convicto da sua fé».
Aos dezassete anos o arguido regressou a Inglaterra, sendo o namoro à distância, e, nas férias do Natal quando regressou a Portugal, começaram a falar em casamento, «achando que tinham tudo para ser um casal perfeito», tendo sido pedida em casamento uma semana antes de completar os dezoito anos de idade.
Referiu que quando soube, a mãe ficou em choque, dado a declarante ser muito nova, e não ter autonomia financeira, ao contrário do arguido, mas aceitou a sua decisão, tendo a cerimónia de casamento sido suportada pela mãe e pela ex-sogra, tendo combinado que posteriormente iam ambos trabalhar, tendo a declarante uma formação de estilista de unhas.
Refutando de forma convicta as declarações do arguido, referiu que não obstante estar tensa no dia do seu casamento, dado que seguindo o aconselhamento do culto que professava, adoptou a decisão de castidade, o dia do seu casamento foi «um dia de princesa», tendo corrido normalmente ao nível da intimidade sexual, não tendo notado qualquer amuo do arguido nesse dia, o mesmo não sucedeu durante os cerca de dez dias de lua-de-mel no Algarve, em que ficou desapontada com o comportamento do arguido, uma vez que o mesmo pretendia estar sempre no quarto do hotel, tendo uma via sexual muito activa, não respeitando a vontade da declarante em sair para passear; e, perante a resposta negativa da mesma, amuava, e não comunicava, deixando de lhe falar, impondo sempre a sua intenção, acabando a declarante por ceder, dado o ascendente emocional do arguido em relação à mesma, amuos e silêncios que se tornaram num padrão comportamental do arguido durante o casamento.
Referiu, ainda, que no período da lua-de-mel a sua mãe telefonava-lhe, mas a declarante não atendia por imposição do arguido que dizia que «agora eram uma família e não precisava dela para nada».
Mencionou que quando viveram na Póvoa de Santa Iria, durante mais de um ano, onde arrendaram um apartamento, quando o arguido era confrontado com algo que a declarante dizia e discordava, gritava consigo, tendo numa ocasião desferido um murro na parede, junto à sua cara, com «muita força, muita raiva», que se a tivesse atingido podia ter causado lesões, dando-lhe encontrões que a fazia desequilibrar, dado a declarante padecer de um problema de equilíbrio, rindo-se da situação, sem manifestar preocupação pelo seu bem-estar.
Referiu que o arguido a repreendia quando falava com outros familiares, dizendo-lhe que não precisava de amigas nem de amigos, só saindo os dois.
Confirmou que durante um ano não teve contacto com a sua mãe, tendo havido uma divergência relacionada com o recebimento de um certificado de aforro do avô, não sendo este o motivo determinante da falta de contacto, tendo reatado o relacionamento com a mãe ao final de um ano, tendo nessa altura recebido o dinheiro da herança.
A respeito da factualidade imputada nos pontos 16 e 20 da acusação, para os quais remete a pronúncia, referiu que numa ocasião o arguido segurou-lhe nos braços com tanta força que chorou, tendo ficado com marcas que duraram três dias a passar; e que no carro, quando discutia, dava-lhe «encontrões nos joelhos», tendo apreendido a não o irritar, «a resposta era sim amor, era mais fácil, para se proteger».
No primeiro ano após o casamento, quando viviam na Póvoa de Santa Iria, quando a declarante contestava algo, em tom ríspido, e com raiva, o arguido chamava lhe burra, parva, estúpida, o que acontecia pelo menos cerca de três vezes por semana.
Entretanto viveram três meses em casa dos Pastores da Igreja que frequentavam, tendo o arguido sido chamado à atenção várias vezes pelos Pastores, relativamente ao trato que tinha para com a declarante, tendo este abandonado a Igreja.
Posteriormente foram morar para a Colaria, daí para Olheiros, e em 2016 para o Vale de Azenha.
Mencionou que quando começou a pandemia Covid o arguido mudou de atitude, tendo ficado transtornado, «ficando a ler teorias da conspiração», tornando-se negacionista, tendo-se intensificado as ofensas verbais, chamando a declarante com frequência de saloia, dizendo «as saloias são umas burras», «se não fosse ele a ajudar nem sabia fazer a contabilidade do salão», «puta de merda», tendo-lhe dito que antes de se converter consumia drogas, via pornografia, confirmando a factualidade mencionada nos pontos 21 a 24 da acusação, para os quais remete a pronúncia, refutando com veemência a versão apresentada pelo arguido, mencionando expressamente que o arguido pretendia ter relações sexuais com a declarante com uma frequência diária, dizendo-lhe «só precisas de ficar quieta e abrir as pernas e eu faço tudo», recordando-se de uma situação em que já a sua filha mais velha era nascida, estava agarrada a uma almofada e as lágrimas corriam-lhe pela cara, o que gerou desagrado no arguido, sendo inequívoco para o mesmo que a declarante ficava desagradada com tais actuações, cedendo dado o facto de o arguido a chantagear que caso não cedesse a filmar as relações sexuais que mantinham um com o outro, voltaria a consumir pornografia, relatando a declarante a sua tristeza e desagrado à Pastora da Igreja que frequentava.
A respeito da factualidade mencionada no ponto 12 da acusação, para a qual remete a pronúncia, referiu que sempre foi a responsável pelas actividades dos filhos, nunca se tendo afastado da casa-de-banho quando os mesmos estavam a tomar banho, estando ciente dos perigos de afogamento, sendo recorrente sempre que havia banhos de banheira, o arguido gritar com a declarante quando esta lavava o chão da casa de banho, dizendo exaltado «tu queres matar-nos, tu queres matar os teus filhos», referindo que para não irritar mais o arguido «baixava a cabeça e pedia desculpa», tendo começado a ficar preocupada com as consequências que o comportamento do arguido tinham nos seus filhos, quando a sua filha começou a imitar o pai, repetindo as frases que o arguido dizia, dado que teve sempre a preocupação que os mesmos não se apercebessem das discussões que ocorriam.
Relativamente à factualidade a que aludem os pontos 13 a 15 da acusação, para a qual remete a pronúncia, confirmou a mesma nos termos que resultaram provados, referindo que o avô era uma referência de homem para si, só o tendo podido visitar uma vez, dizendo-lhe o arguido «não vás, não precisas de ir, Deus vai cuidar dele. A família não precisa da nossa presença, a nossa obrigação é só orar», tendo ido uma única vez visitar o avô a pedido deste, dada a gravidade do seu estado de saúde, referindo que também não foi ao funeral porque o arguido opôs-se, confirmando as expressões constantes do ponto 15, referindo que a sua atitude deveu-se sempre à submissão face ao arguido, com medo das represálias, mencionando a tal respeito que era frequente o arguido dizer que o «homem é sempre o líder, abaixo de Deus e acima da mulher», confirmando a expressão constante do ponto 4 da acusação, e que ao arguido bastava-lhe impor as suas intenções e pontos de vista, que eram para cumprir.
Mencionou que num ano já próximo do final do casamento, estava particularmente muito triste, tendo dito ao arguido que precisavam de procurar ajuda, ao que o mesmo disse que ia mudar o seu comportamento, e esforçar-se por estar mais presente, o que não sucedeu, tendo-o questionado, confirmando a expressão constante do ponto 25; e que na noite em que conversou com o mesmo e disse tudo o que sentia
em relação ao comportamento do arguido para consigo, este pediu-lhe desculpa.
A respeito da factualidade constante dos pontos 26 e seguintes da acusação, para os quais remete a pronúncia, referiu que quando a sua filha começou a frequentar a escola primária foi vítima de bullying, tendo decidido que a mesma passaria a frequentar aulas de jiu-jitsu, para gerir a ansiedade motivada por tal situação, começando também a declarante a frequentar tal modalidade desportiva por curiosidade, e não pelo motivo mencionado no ponto 27.
Referiu que a partir dessa altura o arguido alterou o comportamento, tornando-se mais desconfiado, começando a aparecer com mais frequência no salão de estética de unhas, tornando-se muito ciumento, sem, contudo, imputar à declarante relações extraconjugais, mencionando que quanto à visualização do telemóvel era frequente o arguido fazê-lo, tendo desde sempre a password da declarante.
No final de Fevereiro de 2022 o arguido começou a ter «surtos» durante a noite, levantando-se, acendendo a luz, não deixando a declarante dormir, confirmando a factualidade mencionada nos pontos 31 a 33.
Mencionou que uma semana antes de sair de casa, a 08-04-2022, passou a dormir com os filhos, referindo que o arguido abria autoritariamente a porta do quarto durante a noite, contrariando a versão apresentada por este, confirmando a restante factualidade de que foi vítima, imputada ao arguido na acusação, para a qual remete a pronúncia.
Referiu ainda que era frequente o arguido agarrar-lhe com força nos pulsos para a repreender; que sentiu tristeza, medo, humilhação, face aos comportamentos vexatórios, expressões injuriosas, ao desrespeito pela sua liberdade sexual.
Em termos económicos era a declarante a titular da conta bancária, porque o arguido tinha penhoras, sendo, no entanto, este que revia a contabilidade do salão, tendo a declarante de justificar a utilização do cartão multibanco, tendo o arguido estipulado que o vencimento da mesma correspondia ao salário mínimo, sendo o restante, nomeadamente o lucro da actividade, controlado por este, sendo do conhecimento do arguido que a declarante estava em desacordo com essa forma de gestão.
Por último mencionou que foi um ano muito triste aquele em que esteve sem poder falar com a sua mãe; que ninguém da família era visita de casa, apenas as pessoas que frequentavam a Igreja; e que quando decidiu organizar a festa do primeiro aniversário da filha, tal decisão não foi bem vista pelo arguido, tendo ficado sem falar com a declarante, o mesmo sucedendo quando decidiu organizar uma festa de aniversário surpresa para o arguido.
3- do depoimento da testemunha FF, mãe da assistente BB.
No essencial mencionou que na sua presença, nunca assistiu a agressões verbais ou físicas por parte do arguido relativamente à sua filha, ora ofendida.
Todavia referiu que nunca frequentou a casa do casal, dependendo do arguido as decisões do «dia-a-dia»; que a assistente deixou de poder contactar com a sua irmã CC, e deixou de frequentar festas familiares e de ir à praia porque tinha de «fazer a vontade» ao arguido, do mesmo modo que o mesmo não autorizou que a sua filha fosse ao funeral do avô.
Mencionou ainda que a assistente queixou-se à depoente de dores nos pulsos, não tendo visto marcas, dizendo-lhe que era do trabalho; que viu nódoas negras nos braços e pernas da sua filha, sem ter explicação para tal; e que a sua filha vestia camisolas de manga comprida no Verão.
Referiu que em 25-04-2009 o arguido pediu-lhe autorização para namorar com a sua filha, tendo aulas de preparação para o casamento durante a noite, casamento que o mesmo quis apressar dado ter conhecimento que a assistente tinha recebido €15.000,00 de herança do pai falecido em Abril de 2009.
Na altura guardou o dinheiro da herança da sua filha, o que motivou que a assistente tenha ficado zangada com a depoente, não tendo falado com a mesma durante um ano o que terminou quando lhe deu o dinheiro em Dezembro de 2010.
Durante o primeiro ano de casamento a assistente não podia abrir a porta de casa à depoente, estando proibida de falar com a mesma, não tendo a depoente autorização para frequentar a casa do casal na Póvoa de Santa Iria, referindo que nesse período escrevia-lhe cartas, não tendo resposta, nem a mesma atendia os seus telefonemas.
Mencionou ainda que quando voltou a contactar com a assistente, e nos últimos anos do casamento, sentia a sua filha triste, oprimida, mais magra, tendo num determinado dia recebido um telefonema da assistente, informando-a que tinha saído de casa com os filhos «por violência e maus-tratos».
4- do depoimento da testemunha CC, irmã da assistente BB.
No essencial mencionou que quando a assistente e o arguido viviam no Vale da Azenha, por vezes dormia em casa da irmã.
Referiu que nunca presenciou agressões físicas do arguido para com a assistente, nem viu marcas no corpo da assistente, mas que, por vezes, o arguido «irritava-se um bocadinho com a sua irmã, e nessa altura levantava a voz», «era agressivo», «voltava a dizer o nome dela para ela ir lá e ela parava o que estava a fazer».
No dia em que a assistente saiu de casa, o arguido telefonou-lhe a perguntar se sabia do paradeiro da irmã, tendo ido com o mesmo ao local de trabalho que estava fechado, tendo o arguido começado a chorar a dizer que «nunca tinha feito mal à irmã».
5- do depoimento da testemunha GG.
No essencial mencionou que a assistente foi sua manicure no ano de 2021, altura em que a depoente trabalhava num escritório de Advogados, sendo recepcionista e secretária de um dos sócios, tendo conhecido o arguido depois da assistente ter saído de casa, num dia em que este deslocou-se ao local de trabalho da mãe para saber do paradeiro da assistente e dos filhos.
6- do depoimento da testemunha HH.
No essencial mencionou que foi cliente da assistente no período compreendido entre 2013 e 2015 e posteriormente entre 2021 e 2022, tendo conhecido o arguido em 2013, frequentando cerca de uma vez por mês o salão de estética de unhas.
Referiu que nunca viu a assistente com marcas no corpo; que no primeiro período viu o arguido cerca de duas a três vezes, passando o mesmo de automóvel, entrando por vezes no salão, gerando na assistente uma reacção de surpresa, mas não de medo; enquanto que, em 2021/2022, sempre que o arguido passava junto do salão onde a assistente trabalhava, a mesma demonstrava de imediato uma reacção de medo que o mesmo aparecesse junto de si e dos filhos.
7- do depoimento da testemunha II.
No essencial mencionou que conheceu a assistente em Junho/Julho de 2022, já estando a mesma separada de facto do arguido, trabalhando juntas e desenvolvendo uma relação de amizade.
Referiu que quando conheceu a assistente a mesma estava sem trabalho, sempre a chorar, desesperada por arranjar trabalho, dizendo-lhe que «queria estar num sítio onde fosse protegida, tinha medo que o marido fizesse alguma coisa»; e que, quando começou a trabalhar com a depoente «aparentava estar sempre alerta».
8- do depoimento da testemunha RR.
No essencial mencionou que conhece a assistente desde que a mesma lhe foi pedir ajuda para arranjar trabalho, quando saiu de casa em Abril de 2022, trabalhando desde então para a depoente, com quem acabou por estabelecer uma relação de amizade.
Referiu que na altura em que conheceu a ofendida a mesma estava a chorar, «bastante assustada, tinha medo do marido»; e que desde que começou a trabalhar manifestava reacções de medo na altura de sair do trabalho, com receio que o arguido aparecesse.
9- do depoimento da testemunha JJ.
No essencial mencionou que conheceu a assistente em 2018 quando começou a ser cliente da mesma, mantendo sempre o contacto e estabelecendo uma relação de amizade, tendo conhecido o arguido por intermédio da assistente.
Quando conheceu a assistente, o casal ainda só tinha a filha mais velha, aparentando a assistente estar feliz, transparecendo o arguido calma e educação, cruzando-se nessa altura com o arguido no primeiro salão de estética de unhas, aparentando estar tudo bem, manifestando a assistente descontentamento com o tratamento por parte da Igreja que professavam, «porque não tinham o reconhecimento devido».
Referiu que quando o primeiro salão fechou em 2019, na segunda loja começou a aperceber-se que a assistente estava «triste e cabisbaixa», não falando tanto do arguido, só respondendo à depoente às mensagens de conteúdo profissional; e que passou a demonstrar reacções de medo que o arguido aparecesse, «chorava muito», começando a ficar ainda mais em baixo no início de 2022.
10- do depoimento da testemunha KK.
No essencial mencionou que conhece o arguido e a assistente há cerca de cinco/seis anos, tendo sido vizinha de ambos durante três anos, tendo com os mesmos apenas um relacionamento de vizinhança, referindo que aparentavam ser um casal calmo e feliz.
11- do depoimento da testemunha LL.
No essencial mencionou que conhece o arguido e a assistente desde há cerca de sete anos quando foi morar para Vale de Azenha, vivendo na casa ao lado, saindo para trabalhar cerca das 7 horas, regressando cerca das 18/18h30m.
Referiu que quando estava em casa nunca ouviu discussões, nem barulhos estranhos, não tendo visto marcas de agressões no corpo da assistente.
12- do depoimento da testemunha MM, missionário, «ministro» de culto cristão.
No essencial mencionou que conheceu a assistente quando a mesma recorreu à Igreja, conhecendo posteriormente o arguido, tendo sido o depoente quem efectuou a celebração religiosa do casamento do casal.
Referiu que a assistente tinha aconselhamento espiritual com o seu cônjuge, e o arguido com o depoente, sendo os conselhos ministrados na base do perdão, do diálogo e do respeito; que ambos aparentavam ser um casal exemplar até à separação, não obstante referir que o «primeiro problema surgiu quando ele se focou no trabalho», não sabendo se o arguido tinha atitudes controladoras para com a assistente, mencionando que a dada altura esta afastou-se da Igreja, continuando o arguido a frequentar o culto.
13- do depoimento da testemunha NN, «ministra» de culto cristão.
No essencial mencionou que o arguido viveu com a depoente e cônjuge, a testemunha MM, antes de casar com a assistente; que depois de casados o arguido e a assistente viveram com o casal durante cerca de três meses; que a assistente nunca lhe contou «problemas graves» do casal, apoiando o arguido a frequência pela mesma de cursos de formação em Lisboa, nunca tendo presenciado comportamentos inapropriados do arguido para com a assistente, nem visto marcas de agressão no corpo desta.
14- do depoimento da testemunha OO, irmã mais nova do arguido.
No essencial mencionou que era visita de casa apenas nas épocas festivas; que conheceu a assistente antes do casamento, e que a mesma falava com a depoente sobre o casamento com o arguido e a ambição de se tornar financeiramente livre, acabando por concretizar que esteve fora do País de 2018 a 2024, e que as conversas com a assistente por telefone ocorriam cerca de três em três meses.
Referiu que a assistente dizia-lhe que o arguido a apoiava no negócio do salão de estética de unhas, na parte da contabilidade, comentando que um dia o arguido não concordou com um projecto da assistente; e que cerca de três semanas antes de sair de casa começou a dizer à depoente que não era feliz no casamento, e que existiam desacordos entre o casal, mas «não tinham expressão».
15- do depoimento da testemunha PP, mãe do arguido.
No essencial mencionou que era visita de casa do casal, tendo uma relação próxima com a assistente, referindo que a mesma não tinha uma boa relação com a mãe, não obstante mencionar que nunca viu a progenitora da ofendida destratar a filha.
Referiu que quando casaram a assistente estava muito apaixonada, o filho «era tudo para ela», tendo falado com ambos durante a lua-de-mel, não se apercebendo de nenhum problema.
Nunca se apercebeu de o arguido se opor à independência económica da assistente.
Mencionou que o mesmo não concordava com certa forma como a assistente tratava os filhos, chamando-lhe a atenção de modo assertivo.
Um ou dois meses antes de sair de casa a assistente «começou a falar de maneira diferente, como se o AA tivesse algum problema e pudesse acontecer alguma coisa», apercebendo-se que dois ou três dias antes do dia 08 de Abril estavam ambos muito alterados, tendo nesse dia o filho telefonado à depoente a chorar, dizendo-lhe que a assistente e os filhos não estavam em casa.
16- do depoimento da testemunha QQ.
No essencial mencionou que contactou com a assistente quando a mesma foi morar com os filhos para a ..., tendo num determinado dia a ofendida dito à depoente «QQ acuda-me porque o meu marido está a janela», tendo a filha da assistente dito «o pai só foi à janela perguntar se estava tudo bem», tendo a depoente aconselhado a assistente a ter calma, «a minha filha GG é tua
advogada», referindo que desde essa noite a assistente ficou a viver com os filhos em casa da filha da depoente, não tendo regressado ao Paul, não tendo mais visto o arguido junto ao prédio.
17- do auto de notícia de fls. 61 a 62, apenas no que respeita à data e local da ocorrência.
18-do assento de nascimento de fls. 14-15, comprovativo da data de nascimento e do vínculo de filiação de EE.
19- do assento de nascimento de fls. 16-17, comprovativo da data de nascimento e do vínculo de filiação de DD.
20- do assento de nascimento da assistente BB, de fls. 20-21, contendo o averbamento do casamento com o arguido em 30-11-2009.
21- do relatório social de fls. 888 a 891, relativamente às condições sociais do arguido.
22- do certificado de registo criminal de fls. 809.
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A análise conjugada e crítica das declarações prestadas pelo arguido e pela assistente, convergentes na sua essencialidade, no que respeita à factualidade relacionada com o início e o fim do relacionamento entre ambos, os locais onde residiram, bem como as declarações do arguido que, não obstante negar a autoria dos factos imputados na acusação, para os quais remete a pronúncia, escudando-se conforme referido numa postura de desculpabilização e de vitimização, procurando transmitir uma imagem distinta e apresentando versões dos factos para justificar de diversa a ocorrência dos mesmos, admitindo todavia alguns comportamentos de impetuosidade, algumas expressões de carácter injurioso, atitudes de amuo e silêncios prolongados, e o que conotou como «falta de atenção e empatia» para com a ofendida, e as declarações coerentes, consistentes, objectivas e convictas da assistente, nos termos supramencionados, que, contrariando a versão apresentada pelo arguido, que refutou de forma veemente, confirmando as atitudes vexatórias, agressivas psiquicamente e humilhantes de que foi vítima, traduzidas em ofensas verbais, em comportamentos controladores, que visavam denegrir a sua imagem, pondo em causa a sua liberdade e dignidade pessoal, e desrespeitando a sua liberdade e autodeterminação sexual, bem como os comportamentos de violência física, traduzidos no agarrar dos pulsos com força, nos encontrões nos joelhos quando ocorriam discussões no veículo automóvel, e a prática da maior parte de tais actos no interior do domicilio do casal, conjugadas com os depoimentos das testemunhas nos termos supra referidos, designadamente das testemunhas FF, mãe da ofendida, HH, II, RR, e JJ, sobre o estado emocional da ofendida, relativamente às manifestações de receio que a mesma demonstrava relativamente ao arguido, e o controlo emocional e o isolamento social a que o mesmo a sujeitava, bem como da testemunha CC, irmã da assistente, que presenciou comportamentos verbalmente agressivos do arguido para com a ofendida, aliados aos demais elementos probatórios produzidos e examinados em audiência de julgamento, e às regras da experiência comum, permitiram ao Tribunal a fundamentação da convicção quanto à autoria pelo arguido dos factos objecto do presente processo, integradores do crime de violência doméstica, nos termos que resultaram provados.
Relativamente à factualidade não provada, o Tribunal fundamentou a sua convicção com base na ausência de prova concludente produzida em audiência de julgamento.
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Enquadramento jurídico-penal dos factos:
Do crime de violência doméstica imputado ao arguido:
Encontra-se o arguido AA pronunciado pela prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica, na forma consumada, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.ºs 1, alíneas a) e c) e 2, al. a) do Código Penal.
Dispõe o art.º 152º do Código Penal, sob a epígrafe «Violência doméstica»:
«1 Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos próprios ou comuns:
a. Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
(…)
c) A progenitor de descendente comum em 1º grau; ou
(…)
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 No caso previsto no número anterior, se o agente:
a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; ou
(…)
é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.»
A previsão da citada disposição abrange determinadas condutas, abarcando os maus tratos físicos (incluindo os castigos corporais e as ofensas corporais simples), os maus tratos psíquicos (humilhações, provocações, ameaças), privações da liberdade e ofensas sexuais.
O bem jurídico protegido no crime de violência doméstica, autonomizado do crime de maus tratos a que alude o art.º 152º-A do Código Penal, com a revisão do Código Penal introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 04-09, continua a ser plural, complexo, destinando-se o citado preceito incriminador a salvaguardar a saúde, em sentido amplo, abrangendo quer a saúde física, quer a saúde psíquica ou mental, punindo todos os comportamentos que afectem a saúde física do ofendido, ou que dificultem o normal e saudável desenvolvimento da personalidade, afectando a dignidade pessoal do ofendido, em contexto de relação conjugal ou análoga, mesmo após cessar essa relação.
Salienta a este respeito o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24-04-2012 (http://www.dgsi.pt) «No círculo das vítimas de violência doméstica surgem na al. b) do n.º 1 do art.º 152º do Código Penal, a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação.
Com a Revisão de 2007, deixa de ser necessária a coabitação e, consequentemente, de se exigir a ideia de comunhão de cama e habitação, mas não pode deixar de se exigir, no tipo objectivo, um carácter mais ou menos estável de relacionamento amoroso, aproximado ao da relação conjugal de cama e habitação.
Neste sentido, o Dr. André Lamas Leite, sustenta que se exige no crime de violência doméstica a existência de “uma proximidade existencial efetiva”. Do mesmo passo meros namoros passageiros, ocasionais, fortuitos, flirts, relações de amizade, não estão recobertas pelo âmbito incriminador do art.º 152º nº 1 al. b) do CPP. Por outras palavras, sublinha este autor, que “ter-se-á de provar que há uma relação de confiança entre agente e ofendido, baseada em fundamentos relacionais mais ou menos sólidos, em que cada um deles é titular de uma «expectativa» em que o outro, por via desse laço, assuma um dever acrescido de respeito e abstenção de condutas lesivas da integridade pessoal do parceiro (a). ”». - (cf. André Lamas Leite, A Violência Relacional Íntima: Reflexões Cruzadas entre o Direito Penal e a Criminologia, Revista Julgar, N. º 12 (especial), pág. 25 e segs.).
Quanto ao elemento subjectivo constitutivo deste tipo de ilícito, punido exclusivamente a título de dolo, exige o conhecimento e vontade de realização da conduta antijurídica, com consciência da ilicitude da mesma.
Com a alteração na redacção do art.º 152º do Código Penal, introduzida pela Lei n.º19/2013, de 21-02, com início de vigência em 24-03-2013, verificou-se um alargamento no que respeita aos elementos constitutivos do tipo objectivo, relacionado com a enumeração das vítimas de violência doméstica, consagrando expressamente a al. b) do n.º1 da mencionada disposição, as situações em que o «agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro, ainda que sem coabitação», sendo a seguinte a redacção em vigor:
«1 — Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
c) A progenitor de descendente comum em 1º grau; ou
d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite; é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 - No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.
(...)».
Salienta o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23-04-2015, https://www.dgsi.pt/ «O tipo da violência doméstica pune o exercício de maus-tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais sobre o cônjuge ou ex-cônjuge; pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação; progenitor de descendente comum em 1º grau; ou pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite.
Os maus-tratos previstos neste tipo são os actos que, pelo seu carácter violento, sejam, por si só, ou conjugados com outros, idóneos a reflectir-se negativamente sobre a saúde física e psíquica da vítima, ou, noutra formulação, são os actos que provocam” lesões graves, pesadas da incolumidade corporal e psíquica do ofendido, diríamos que no campo da tensão entre os tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos e a tutela da integridade física e moral...”
O bem jurídico que o tipo da violência doméstica visa proteger é a saúde enquanto integridade das funções corporais da pessoa, nas suas dimensões física e psíquica, sendo um crime de perigo, porque não pressupõe a verificação da lesão.
(...)
Para que integre a violência doméstica, a acção do agente há-de constituir o comportamento violento, visto em toda a sua amplitude, que “... seja tal que, pela sua brutalidade ou intensidade, ou pela motivação ou estado de espírito que o anima, seja de molde a ressentir-se de modo indelével na saúde física ou psíquica da vítima. ...”. (...)».
No mesmo sentido, citando o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 2609-2012, www.dgsi.pt «No ilícito de violência doméstica é objectivo da lei assegurar uma “tutela especial e reforçada” da vítima perante situações de violência desenvolvida no seio da vida familiar ou doméstica que, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, evidenciem um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal quanto ao perigo ou de ameaça de prejuízo sério para a saúde e para o bem-estar físico e psíquico da vítima. Visa tutelar a dignidade humana dos sujeitos passivos aí elencados, mormente na vertente da sua saúde, seja a nível físico ou psíquico, ou na vertente da sua privacidade, seja da liberdade pessoal ou de autodeterminação sexual.
O bem jurídico protegido por este tipo legal é, assim, primordialmente, a saúde da vítima, entendida nas suas vertentes de saúde física, psíquica e mental, visando a incriminação protegê-la de comportamentos que impeçam ou dificultem o normal desenvolvimento de uma pessoa, afectem a dignidade pessoal e individual da pessoa que com o agente mantém (ou manteve) vínculos relacionais estreitos e/ou duradouros.
Trata-se de um crime específico porquanto pressupõe que o sujeito activo se encontre numa determinada relação para com o sujeito passivo, a vítima dos seus comportamentos. As condutas típicas preenchem-se com a inflição de maus tratos físicos (ofensas à integridade física simples) e maus tratos psíquicos (ameaças, humilhações, provocações, molestações). Estes maus tratos podem ser infligidos de modo reiterado ou não (conduta isolada).».
Quanto ao elemento subjectivo constitutivo deste tipo de ilícito, punido exclusivamente a título de dolo, exige o conhecimento e vontade de realização da conduta antijurídica, com consciência da ilicitude da mesma.
Transpondo tais considerações para o caso em apreço, verifica-se no confronto com a factualidade provada que, a actuação do arguido, nos termos que resultaram provados é reveladora de uma postura de insensibilidade no trato do arguido relativamente à ofendida BB, seu ex-cônjuge e progenitora dos dois filhos menores de ambos, com quem o arguido viveu durante treze anos, correspondendo os actos praticados pelo arguido, pela sua intensidade e reiteração, consubstanciados nas atitudes dominantes e controladoras, desrespeitadoras, traduzidas nas expressões injuriosas reiteradamente proferidas, comportamentos vexatórios e humilhantes, amuos e silêncios prolongados, sempre que a ofendida não acedia a um desejo do arguido, traduzindo-se tal atitude de indiferença para com a mesma, numa forma de obter a sua submissão através do controlo, impondo o seu ascendente emocional de maneira hostil, atitudes que se traduziram num padrão de comportamento no âmbito do relacionamento e agressivos psicologicamente, nalgumas situações enquanto expressão de violência psicológica passiva, o desrespeito pela liberdade e autodeterminação sexual da ofendida, e a violência física exercida, que neste âmbito, apesar da sua baixa intensidade, face à reiteração em termos de padrão comportamental, assume na sua globalidade, uma gravidade em termos de intensidade ao nível da ofensa da saúde psíquica, física e emocional da ofendida, praticados na sua maior parte no interior no domicílio comum, onde viviam com os filhos menores de ambos, ao conceito de maus tratos psíquicos, físicos e ofensas sexuais, consubstanciadores de uma atitude vexatória e desrespeitosa de acordo com as regras sociais e normativas vigentes, voluntariamente praticada na pessoa da ofendida, nos termos que resultaram provados.
Provado ficou igualmente que o arguido actuou ciente de que com as suas condutas, molestava psiquicamente e fisicamente a ofendida, e que condicionava a sua liberdade e dignidade pessoal, inclusive na vertente da liberdade e autodeterminação sexual, ofendendo-a na dignidade humana, ciente da proibição e punição das suas condutas.
A actuação do arguido nos termos que resultaram provados, reconduz-se assim à prática pelo arguido AA, em autoria material, de um crime de violência doméstica, na forma consumada, previsto e punido pelo art.º 152º, nºs. 1, als. a) e c) e 2, al. a) do Código Penal.
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Determinação da medida da pena:
A determinação da moldura penal abstracta resultante da subsunção dos factos praticados pelo arguido ao tipo de ilícito em causa é a seguinte:
- crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art.º 152º, nºs. 1, als. a) e c) e 2, al. a) do Código Penal: prisão de 2 (dois) anos a 5 (cinco) anos.
Quanto à determinação da medida concreta da pena, de acordo com o disposto no n.º 1 do art.º 71º do Código Penal, far-se-á em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, quer de prevenção especial de socialização, quer geral positiva ou de reintegração, relacionadas com a necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto e com a estabilização das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma infringida.
Com relevância quer para a culpa quer para a prevenção, surgem as circunstâncias enunciadas no n.º 2 do art.º 71º do Código Penal que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele, nomeadamente, o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências; a intensidade do dolo; as condições pessoais do agente e a sua situação económica e, a conduta anterior ao facto e a posterior a este.
Aplicando as considerações anteriormente formuladas ao caso em análise, considerando nomeadamente:
- as elevadas exigências de prevenção geral, tendo o crime de violência doméstica consequências extremas nas vítimas deste tipo de crime, sendo a conduta ilícita criminal praticada pelo arguido objecto de elevada reprovação social.
- o grau de ilicitude dos factos praticados pelo arguido, que se considera elevado, tendo em conta o período de tempo em que perdurou a actuação ilícita do arguido, com particular incidência nos últimos anos até à separação de facto do casal que ocorreu em 08 de Abril de 2022, os comportamentos desrespeitosos, dominadores, controladores, vexatórios, humilhantes, e agressivos física e psicologicamente, concretamente praticados nos termos supra referidos, revelando o arguido com a sua actuação uma total indiferença pelas consequências provocadas na saúde, ao nível do bem-estar físico e psíquico da ofendida, seu ex-cônjuge e mãe dos seus filhos menores.
• a intensidade dolosa, sendo o crime praticado pelo arguido cometido na modalidade de dolo directo.
• as condições sociais do arguido, nomeadamente a inserção social e profissional do mesmo.
• a ausência de interiorização do desvalor da sua conduta por parte do arguido.
• a ausência de antecedentes criminais.
Afigura-se assim adequada a aplicação ao arguido AA pela prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica, na forma consumada, previsto e punido pelo art.º 152º, nºs. 1, als. a) e c), e 2, al. a) do Código Penal, da pena de 3 (três) anos de prisão.
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Nos termos do art.º 50º, n.º 1 do Código Penal, o Tribunal pode suspender a execução de pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da pena de prisão, realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, suspensão essa que pode ser subordinada ao cumprimento de certos deveres impostos ao arguido destinados designadamente a facilitar a sua readaptação social.
Assenta tal possibilidade num juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento futuro do agente, fundado na expectativa de que este, sentindo a condenação como uma advertência, não volte a cometer novos ilícitos.
No caso dos presentes autos, não obstante as elevadas necessidades de prevenção, tendo em conta a gravidade objectiva dos factos valorados na sua globalidade, a ausência de antecedentes criminais ou condenações posteriores por factos ilícitos de idêntica natureza, e a inserção social e profissional do arguido, legitimam a formulação de um juízo de prognose favorável no seu comportamento futuro, considerando-se a ameaça de cumprimento efectivo da pena de prisão adequada e suficiente à realização das finalidades da punição, estimulando-se assim a auto- responsabilização do arguido, proporcionando em simultâneo uma reintegração social em liberdade.
E assim, suspende-se a execução da pena de 3 (três) anos de prisão aplicada ao arguido AA, por um período que se fixa em 3 (três) anos, a contar do trânsito em julgado da presente decisão.
Por força do disposto nos arts. 53º, n.º 1 e 54º, ambos do Código Penal, a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido será acompanhada de regime de prova, assente num plano de reinserção social a elaborar pelos serviços de reinserção social, o que consideramos que contribuirá seguramente para uma maior eficácia no processo de reintegração social do arguido, nos termos supra mencionados, com incidência na vertente da consolidação das competências pessoais e sociais.
Nos termos dos nºs 4 e 5 do art.º 152º do C.P.P., considerando os factores de risco em termos de adequada reinserção social, à pena de prisão aplicada, suspensa na execução, acresce a pena acessória de proibição de contacto com a ofendida, pelo período de 1 (um) ano e 6 (seis) meses, fiscalizada por meios técnicos de controlo à distância, com excepção dos contactos que se revelarem estritamente necessários no âmbito da regulação das responsabilidades parentais dos filhos menores de ambos, e a pena acessória de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.
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Estipula o art.º 21º, nºs. 1 e 2 da Lei n.º 112/2009, de 16-09, que estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica e à protecção e assistência às suas vítimas, o direito à obtenção de uma indemnização por parte da vítima de crime de violência doméstica, havendo sempre lugar à aplicação do disposto no art.º 82º-A do Código de Processo Penal, «excepto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser.».
Salienta a este respeito o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 0207-2014 (http://www.pgdllisboa.pt) «Praticado o crime de violência doméstica, a lei impõe o arbitramento de indemnização à vítima, presumindo a existência de particulares exigências da sua protecção, só assim não sendo quando a ele se oponha a vítima expressamente.».
Visa tal tutela compensatória da indemnização, a reparação dos danos não patrimoniais causados nos ofendidos, vítimas do crime de violência doméstica, em consequência da actuação do arguido.
De acordo com o disposto nos arts. 496º, n.º 3 e 494º do Código Civil, haverá que atender como critério de determinação equitativa para o equivalente económico dos danos não patrimoniais sofridos pela ofendida, à natureza e intensidade do dano, ao grau de culpa, à idade da vítima, à situação económica do lesado, ao valor actual da moeda e aos critérios jurisprudenciais.
Transpondo tais considerações para o caso em apreço, em face da gravidade objectiva dos factos praticados pelo arguido e das consequências resultantes para a ofendida, nos termos que resultaram provados, e tendo em conta as condições económicas do arguido, considera-se adequada a condenação do arguido no pagamento à ofendida BB, da quantia de € 3.000,00 (três mil euros), a título de indemnização.
(…)
Aqui chegados importa proceder à concreta apreciação das questões suscitadas pelo recorrente arguido mormente se a decisão recorrida padece de erro de julgamento e se violou o princípio da livre convicção da prova previsto no artigo 127º do Código Penal.
Invoca o recorrente, em síntese, que o Tribunal de primeira instância atribuiu excessiva importância às declarações da assistente, ignorando outras provas testemunhais que apontavam para uma convivência pacífica entre as partes e ausência de comportamentos agressivos por parte do recorrente. Esta valoração, ao privilegiar um único testemunho sem adequada corroboração, violou o princípio da livre apreciação da prova, conforme previsto no artigo 127º do Código de Processo Penal.
Mais alega que há falta de prova quanto à reiteração dos maus tratos porque os factos alegados pela assistente não demonstram um padrão continuado ou grave de maus tratos sendo relatos isolados e insuficientes para preencher os requisitos do tipo legal de violência doméstica e ainda, que inexiste dolo ou intenção de molestar a assistente por não ter ficado demonstrado que o recorrente tenha agido com a intenção deliberada de subjugar ou infligir sofrimento psíquico à assistente. As ações do recorrente foram muitas vezes explicadas por contextos específicos (como a religião e a dinâmica familiar), os quais não foram devidamente considerados pelo Tribunal.
O erro de julgamento consagrado no artigo 412º nº3 do Código de Processo Penal, ocorre quer quando o tribunal considere provado um determinado facto sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado quer quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.
Neste caso a apreciação a levar a cabo pelo Tribunal da Relação não se restringe ao texto da decisão (como ocorre no caso dos vícios previstos no artigo 410º nº2 do Código de Processo Penal) incidindo sobre o que se pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência embora com os limites decorrentes do estrito cumprimento do ónus de especificação consagrado no artigo 412º nº3 do Código de Processo Penal:
a) dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) das provas que devem ser renovadas.
Impondo o nº4 do preceito em questão a exigência de que “Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação”.
Atento tal ónus não é uma qualquer divergência que pode autorizar o Tribunal da Relação no âmbito de tal análise alargada a decidir pela alteração da matéria de facto fixada pelo Tribunal recorrido.
Com efeito como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.10.20104: “A lei é exigente quanto ao modo de impugnação do recurso em matéria de facto de harmonia com o disposto no artigo 412º nº3 e 4 do CPP sendo que a modificabilidade da decisão da 1º instância apenas ocorre nos termos apontados no artigo 431º do CPP entre os quais a impugnação da matéria de facto nos termos do artigo 412º nº2 do mesmo diploma. Na impugnação da matéria fáctica não basta mera referência ou indicação genérica dos pontos de facto e das provas dissonantes, mas deve especificar-se os concretos pontos de facto e as concretas provas que impõem decisão diversa. Por isso o tribunal de 2º instância apesar de ter poderes de cognição em matéria de facto não pode sem mais sindicar os meios de prova de que se socorreu o tribunal da 1ª instância ao dar como provados determinados factos e não outros. Torna-se necessário a indicação expressa dos concretos pontos de facto e das concretas provas que para esses concretos pontos de facto impõem solução diversas. Acresce que como determina o artigo 412º nº4 do CPP que as concretas provas que impõem decisão diversa devem fazer-se “por referência ao consignado na acta nos termos do disposto no nº2 do artigo 364º devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação”
As provas que o recorrente indique e a apreciação das mesmas apresentada no recurso devem não só evidenciar que os factos foram incorretamente julgados pelo Tribunal a quo como fundar a convicção de que se impunha uma decisão diversa da proferida na fixação dos factos provados e não provados.
Assim, não basta a demonstração da possibilidade de existir uma seleção em termos de matéria de facto alternativa à da constante da decisão recorrida sendo necessário que o recorrente demonstre que prova produzida em julgamento só poderia ter conduzido à matéria de facto provada e não provada por si propugnada e não àquela fixada na decisão recorrida.
No caso vertente, o que o recorrente faz é uma impugnação genérica e o cumprimento quer a vertente formal quer na vertente substancial do tríplice ónus de especificação supra indicado demanda que o recorrente especifique de forma clara os factos e os excertos de prova que fundamentam a sua divergência relativamente ao juízo de facto acolhido pelo tribunal recorrido.
De facto e como consignado no Acórdão do Tribunal Constitucional, no processo nº 198/04, publicado in DR II Série, de 2 de Junho de 2004, a impugnação da decisão em matéria de facto terá de assentar na violação dos factos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na convicção ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção. Doutra forma seria a inversão dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela de quem espera a decisão.
O que se constata no recurso não é o cumprimento do ónus de especificação nos termos previstos no artigo 412º do Código de Processo Penal mas, tão somente, uma impugnação genérica da convicção do Tribunal recorrido assente na diversa e pessoal interpretação do recorrente relativamente à prova mas tal interpretação não tem, naturalmente, a virtualidade de abalar o julgamento da matéria de facto realizado na 1ª Instância.
Com efeito e como se exara no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça supracitado: ”Tendo em conta o princípio da apreciação da prova nos termos do artigo 127º do CPP a valoração da prova efectuada pelo tribunal de 1ª instância não se confunde com o modo da sua impugnação em recurso sobre a matéria de facto, que obedecendo a forma processualmente válida, não se traduz em mera exposição pelo recorrente como em seu entendimento faz a valoração da prova sob pena de limitar-se a impugnar a convicção do tribunal recorrido”.
No caso vertente a mera leitura das conclusões da motivação do ora recorrente permitem concluir que o mesmo não cumpriu o ónus processual a que nos referimos.
E tal omissão é transversal à motivação e às conclusões do recurso e conduz inexoravelmente à improcedência da impugnação ampla da matéria de facto porque configura um vício estrutural que afeta o próprio conteúdo e obsta à modificabilidade da decisão sobre a matéria de facto, já que a inobservância do tríplice ónus de impugnação especificada imposto pelo artigo 412º afasta a aplicabilidade da norma contida no artigo 431º al. b) do Código de Processo Penal5.
Em face do que fica exposto, a impugnação ampla da matéria de facto do recurso do arguido tem de ser julgada totalmente improcedente sendo que tal não obsta, naturalmente, a apreciação por este Tribunal da verificação dos vícios decisórios previstos no artigo 410º nº2 do Código de Processo Penal que são de conhecimento oficioso nem das demais questões suscitadas pelo recorrente.
Assim, pugna o recorrente pela violação do princípio da livre apreciação da prova previsto no artigo 127º do Código de Processo Penal.
De acordo com este princípio salvo quando a lei dispuser diferentemente a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
A livre apreciação da prova tem sempre de se traduzir numa valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência, pois, só assim se efetiva a motivação da decisão e a compreensão por parte do destinatário da mesma das razões em que assentou a convicção do julgador.
Nas palavras de Figueiredo Dias6 “a liberdade de apreciação da prova é uma liberdade de acordo com um dever - o dever de perseguir a verdade material -, de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, reconduzível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e de controlo” e, ainda, “a livre ou íntima convicção do juiz não poderá ser uma convicção puramente subjectiva, emocional e, portanto, imotivável. (...) Se a verdade que se procura é uma verdade prático-jurídica, e se, por outro lado, uma das funções primaciais de toda a sentença é a de convencer os interessados do bom fundamento da decisão, a convicção do juiz há-de ser, é certo, uma convicção pessoal, mas, em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros. Uma tal convicção existirá quando e só quando o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável.
Apesar de se utilizar a expressão livre não se trata de um poder discricionário do julgador, pois, se a decisão assenta na sua livre convicção o processo de formação da mesma é sujeito a regras.
Com efeito, a convicção do julgador, designadamente, quanto à matéria de facto provada tem de se alicerçar em certeza, por sua vez, sustentada em elementos probatórios concretos e seguros ao ponto de afastarem dúvidas razoáveis que de acordo com o princípio do in dubio pro reo têm de ser valoradas a favor do arguido.
Contudo e como se consigna no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 03 de junho de 20157: “Se a decisão factual do tribunal recorrido se baseia numa livre convicção objectivada numa fundamentação compreensível e naquela optou por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção – obtida com o benefício da imediação e da oralidade – apenas pode ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum”.
Revertendo ao caso concreto cabe salientar que a credibilidade atribuída a depoimentos ou declarações é uma questão de convicção e o que releva é que exercício plasmado na decisão recorrida de tal convicção fundado na imediação e oralidade dos que prestam depoimentos ou declarações perante o julgador da 1ª instância não ofenda patentemente as regras da experiência comum, que seja racional tendo por base tais depoimentos e declarações na congruência ou no confronto entre si e conjugados com os demais elementos probatórios recolhidos e produzidos sejam eles prova direta ou indireta.
Como se exara no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22/02/20238:
“I- O único limite que o princípio da livre apreciação da prova impõe à discricionariedade de apreciação da prova oral por parte do julgador resulta das regras da experiência comum e da lógica supostas pela ordem jurídica.
II - A livre apreciação da prova oral é indissociável da oralidade com que decorre o julgamento em primeira instância, porque é a 1ª instância que vê e ouve a arguida e testemunhas, que aprecia os seus gestos, hesitações, espontaneidade ou a falta dela, em suma, os seus comportamentos não verbais, é a 1ª instância que formula as perguntas que entende pertinentes, que encaminha o interrogatório e/ou a inquirição da forma que considera ser a mais conveniente, tudo faculdades de que o tribunal da relação não pode lançar mão e que impõem severas limitações à reapreciação da prova.
O exercício a que supra se aludiu foi levado a cabo pelo tribunal a quo como evidencia a decisão recorrida na parte referente à motivação da decisão de facto.
Com efeito, o tribunal a quo explicou por referência às razões de ciência, ao grau de verosimilhança, ao conteúdo e consistência intrínseca das declarações e depoimentos porque atribuiu mais credibilidade a determinadas versões em detrimento de outras.
Resulta, também, claro da análise da motivação da decisão da matéria de facto que para o tribunal a quo a imagem global dos factos resultou da correlação e conjugação entre vários elementos de prova e não numa análise fragmentada e descontextualizada dos mesmos.
Como se exara no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 16/03/20059: “O “exame crítico” das provas constitui uma noção com dimensão normativa, com saliente projeção no campo que pretende regular – a fundamentação em matéria de facto –, mas cuja densificação e integração faz apelo a uma complexidade de elementos que se retiram, não da interpretação de princípios jurídicos ou de normas legais, mas da realidade das coisas, da mundividência dos homens e das regras da experiência; a noção de “exame crítico” apresenta-se, nesta perspetiva fundamental, como categoria complexa, em que são salientes espaços prudenciais fora do âmbito de apreciação próprio das questões de direito. (…) O exame crítico consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos de credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pela ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção”.
O exercício crítico e explicativo da convicção do tribunal a quo é lógico, assenta em critérios de senso comum e funda-se nos princípios da imediação, da oralidade e do contraditório que são característicos da audiência, revelando absoluto respeito do princípio de livre apreciação da prova previsto no artigo 127º do Código de Processo Penal.
Assim, improcede, neste segmento, o recurso do arguido.
Mais invoca o recorrente que a decisão recorrida padece de erro na qualificação jurídica dos factos porquanto os mesmos não têm a gravidade nem a continuidade necessária para serem subsumidos ao crime de violência doméstica.
Desde logo como decorre do preceito legal em causa (artigo 152º do Código Penal) mormente, no segmento Quem de modo reiterado ou não a ausência de reiteração não afasta a verificação do crime de violência doméstica.
Por outro lado e, tal como se refere na resposta do Ministério Público do tribunal a quo, o Supremo Tribunal de Justiça10 já proferiu decisão no sentido que “A actual redacção mais não significa que do que a incriminação, decorrente da lei penal, de condutas agressivas, mesmo que praticadas uma só vez, que se revistam de gravidade suficiente para poderem ser enquadradas na figura dos maus-tratos. Não são, assim, todas as ofensas corporais entre cônjuges que cabem na previsão criminal do referido artigo 152. º, mas aquelas que se revistam de uma certa gravidade ou, dito de outra maneira, que, fundamentalmente, traduzam crueldade, ou insensibilidade, ou, até, vingança desnecessária, da parte do agente (...) nos casos de especial violência, uma única agressão será suficiente para preencher o tipo legal”.
Assim, a reiteração e a continuidade não revestem mais a indispensabilidade que o recorrente lhes confere.
Ademais e como se consigna no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24/04/201211 “o bem jurídico protegido no crime de violência doméstica, agora autonomizado do crime de maus tratos a que alude o art.º 152-A, do Código Penal, continua a ser plural, complexo, abrangendo a integridade corporal, saúde física e psíquica e a dignidade da pessoa humana, em contexto de relação conjugal ou análoga e, atualmente, mesmo após cessar essa relação”.
O que distingue este tipo é, por um lado, a existência de uma especial relação entre o agente e a vítima e, por outro, a verificação de uma atuação que de modo reiterado ou não viola o bem jurídico plural e complexo protegido.
No caso vertente, a mera leitura dos factos dados como provados na decisão recorrida permite concluir sem qualquer margem para dúvidas pela ausência de qualquer erro de qualificação jurídica.
Com efeito de tal seleção factual consta, designadamente, que o arguido:
Desde o início do casamento que o arguido demonstrou comportamentos de posse relativamente à ofendida, chegando a referir-lhe «tu tens que obedecer primeiro e perguntar depois» que opunha-se a que a ofendida falasse com indivíduos do sexo masculino, ainda que fossem maridos de amigas que a apodou de «saloia», «puta de merda», «burra» e «idiota» que lhe referiu nas ocasiões em que deu conta que o chão da casa de banho estava molhado em tom agressivo, que ia cair e bater com a cabeça na banheira e que ia morrer, que a ofendida o ia matar, que os filhos iam escorregar e bater com a cabeça na banheira e morrer, chegando a referir «Tu queres matar-nos» que referindo que a ofendida tinha que o ouvir, o arguido agarrou-a nos pulsos, apertando-os tendo pelo menos numa ocasião, desferido murros nas paredes junto ao rosto daquela sendo que tais apertões causaram pelo menos numa ocasião marcas vermelhas e depois negras nos pulsos durante cerca de três dias que atingiu a ofendida com encontrões, nos joelhos que não obstante a ofendida referir não pretender manter relações sexuais com o arguido, este insistiu, acabando por manterem relações de cópula completa apesar de em pelo menos numa ocasião, no decurso das mesmas, o arguido ver a ofendida a chorar agarrada a uma almofada, dizendo-lhe que não teria de fazer nada, sendo o próprio quem faria tudo e que tais episódios ocorriam pelo menos uma vez por semana.
E ainda que o arguido passou a comparecer no local de trabalho da ofendida e em outros locais onde soubesse que a mesma se encontrava, por forma a controlar os seus movimentos que lhe dizia que nunca a iria deixar nem, tão-pouco, permitir que a mesma ficasse com os filhos de ambos, porquanto não revelava capacidade para ficar com as crianças que visualizava o conteúdo do seu aparelho de telemóvel.
Bem como que ao adoptar os comportamentos supra descritos, o arguido teve sempre a intenção de atemorizar, de humilhar e de provocar sofrimento em BB, seu cônjuge e mãe dos seus dois filhos menores, pretendendo molestá-la física e psicologicamente, como fez, bem sabendo que agindo da forma descrita colocava em crise a integridade física e psíquica desta e a sua liberdade e dignidade pessoal, praticando alguns dos descritos factos no interior da casa de morada de família.
Apesar disso, não se coibiu o arguido de actuar das formas descritas.
Sabia igualmente o arguido que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, actuando de forma livre, voluntária e consciente.
O conjunto dos episódios e atos, praticados dolosamente pelo arguido contra a sua mulher e mãe dos seus filhos, também, no interior da residência de ambos, são objetivamente ofensivos e humilhantes e suscetíveis de rebaixar quem quer que fosse vítima dos mesmos, ofendendo, assim, a dignidade de qualquer pessoa, como sucedeu neste caso igualmente com a assistente.
A factualidade descrita e dada como provada não se resume a uma tensão conjugal ou a mera ofensa à integridade física como refere o recorrente sendo objetiva e subjetivamente integradora do crime pelo qual o arguido foi condenado, ou seja, o crime de violência doméstica.
Assim, não merece qualquer censura a decisão recorrida improcedendo, também, neste segmento o recurso do arguido.
Insurge-se, ainda, o recorrente relativamente à sentença proferida pelo tribunal a quo por entender que esta aplicou de modo desproporcional a pena acessória de proibição de contacto.
Alega o recorrente que a imposição de uma pena acessória de proibição de contacto é particularmente gravosa, tendo em conta a ausência de antecedentes criminais do recorrente e o facto de a sua atuação não demonstrar uma clara e persistente intenção de infligir dano à assistente. Esta pena acessória, que impõe um controlo rigoroso sobre o arguido, não se justifica à luz da natureza e da intensidade dos factos provados.
Resulta da decisão recorrida a aplicação ao arguido de uma pena acessória de proibição de contacto com a ofendida pelo período de 1 ano e seis meses fiscalizada por meios técnicos de controlo à distância com exceção dos contatos que se revelarem estritamente necessários no âmbito da regulação das responsabilidades parentais dos filhos menores de ambos.
Conforme decorre dos nºs 4 e 5 do artigo 152º do Código Penal tal pena acessória pode ser aplicada pelo período de seis meses a cinco anos e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.
Tal previsão legal está em consonância com o previsto na Lei nº 112/2009 de 16 de setembro, nomeadamente, com o seu artigo 34º-B nº1 que preceitua: A suspensão da execução da pena de prisão de condenado pela prática de crime de violência doméstica previsto no artigo 152.º do Código Penal é sempre subordinada ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, impostos separada ou cumulativamente, ou ao acompanhamento de regime de prova, em qualquer caso se incluindo regras de conduta que protejam a vítima, designadamente o afastamento do condenado da vítima, da sua residência ou local de trabalho e a proibição de contactos, por qualquer meio e, ainda, com o artigo 35º nº 1 que prevê que O tribunal, com vista à aplicação das medidas e penas previstas nos artigos 52.º e 152.º do Código Penal, no artigo 281.º do Código de Processo Penal e no artigo 31.º da presente lei, deve, sempre que tal se mostre imprescindível para a proteção da vítima, determinar que o cumprimento daquelas medidas seja fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.
O recorrente entende que tal pena acessória é particularmente gravosa, mas a aplicação da mesma é há muito o regime regra.
Com efeito, relativamente a tal já a jurisprudência se pronunciou em diversos acórdãos 12 e no sentido que a sua não imposição é excecional e tem de ser devidamente fundamentada.
Ora, a alegação do recorrente no sentido da ausência de antecedentes criminais e da sua atuação não demonstrar uma clara e persistente intenção de infligir dano à assistente não colhe porque os factos exarados como provados na decisão recorrida revelam, ao contrário do que o mesmo pretende fazer inculcar, uma conduta pluralmente danosa que não foi pontual, mas sim prolongada no tempo porque desde o início do casamento entre o mesmo e a vítima.
A finalidade de tal regime é definir regras de proteção da vítima ao proporcionar o afastamento entre o agente e a mesma e, assim, a possibilidade de recidiva.
Ademais e numa suspensão de execução da pena pelo período de três anos tal pena acessória foi aplicada pelo período de um ano e seis meses e com a excepção dos contactos que se revelarem estritamente necessários no âmbito da regulação das responsabilidades parentais dos filhos menores de ambos pelo que ao contrário do invocado não se vislumbra qualquer fundamento para afastar a sua aplicação nem qualquer desproporcionalidade na sua dosimetria.
Assim é de manter a decisão recorrida, também, nesta parte.
Mais invoca o recorrente que a decisão recorrida aplicou de modo desproporcional o valor da indemnização arbitrada à assistente alegando que existe falta de fundamentação adequada e objetiva dos danos não patrimoniais alegadamente sofridos.
Quanto a tal exara a decisão recorrida o seguinte:
Estipula o art.º 21º, nºs. 1 e 2 da Lei n.º 112/2009, de 16-09, que estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica e à protecção e assistência às suas vítimas, o direito à obtenção de uma indemnização por parte da vítima de crime de violência doméstica, havendo sempre lugar à aplicação do disposto no art.º 82º-A do Código de Processo Penal, «excepto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser.».
Salienta a este respeito o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 0207-2014 (http://www.pgdllisboa.pt) «Praticado o crime de violência doméstica, a lei impõe o arbitramento de indemnização à vítima, presumindo a existência de particulares exigências da sua protecção, só assim não sendo quando a ele se oponha a vítima expressamente.».
Visa tal tutela compensatória da indemnização, a reparação dos danos não patrimoniais causados nos ofendidos, vítimas do crime de violência doméstica, em consequência da actuação do arguido.
De acordo com o disposto nos arts. 496º, n.º 3 e 494º do Código Civil, haverá que atender como critério de determinação equitativa para o equivalente económico dos danos não patrimoniais sofridos pela ofendida, à natureza e intensidade do dano, ao grau de culpa, à idade da vítima, à situação económica do lesado, ao valor actual da moeda e aos critérios jurisprudenciais.
Transpondo tais considerações para o caso em apreço, em face da gravidade objectiva dos factos praticados pelo arguido e das consequências resultantes para a ofendida, nos termos que resultaram provados, e tendo em conta as condições económicas do arguido, considera-se adequada a condenação do arguido no pagamento à ofendida BB, da quantia de € 3.000,00 (três mil euros), a título de indemnização.
A mera leitura deste segmento da decisão recorrida permite concluir pela fundamentação da indemnização.
Com efeito está em causa uma reparação de danos não patrimoniais da vítima e a gravidade dos factos a que a mesma foi sujeita ao longo da sua vivência conjugal com o arguido que atingiram a sua integridade física e psíquica e a sua liberdade e dignidade pessoal como ficou provado nos autos merece tutela que se considera indiscutível.
Aliás, tal arbitramento legalmente apenas não tem lugar se a vítima a tal expressamente se opuser ou quando tenha sido pela mesma deduzido pedido de indemnização civil.
Por outro lado, é, também, indiscutível que em tal indemnização foi ponderada a situação económica do arguido recorrente sendo que da matéria de facto provada resulta que o mesmo desde a separação da vítima integra o agregado familiar da sua progenitora e que é sócio-gerente de várias empresas em áreas diversificadas, algumas situadas no estrangeiro, como por exemplo em Londres e Dublin. Em Portugal, nomeia uma empresa que presta serviços na construção de redes primárias de fibra óptica («comitiva imbatível») e um ponto de lavagem de veículos automóveis («auto-lavagem bbb») e com um quadro económico estável contribui com €250,00 mensais a título de pensão de alimentos dos filhos menores, e o pagamento de metade das despesas, designadamente com saúde e escola, relativas aos filhos.
Assim, considera-se justa e adequada a medida em que concretamente foi fixada a indemnização em causa não merecendo censura a decisão recorrida.
Não se vislumbra na decisão recorrida qualquer vício de conhecimento oficioso que importe conhecer e apreciadas as questões suscitadas pelo recorrente impõe-se reconhecer que a decisão recorrida não merece censura e que o recurso não merece provimento.
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III- DECISÓRIO:
Nestes termos e em face do exposto acordam as Juízas Desembargadoras desta 3ª Secção em não conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido AA e, em consequência, confirmar na íntegra a sentença recorrida.
Custas da responsabilidade do arguido recorrente, fixando-se em 3 UC a taxa de justiça (art.º 513º do Cód. de Processo Penal e 8º nº9 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa a este último).
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Nos termos do disposto no artigo 94º, nº 2, do Código do Processo Penal exara-se que o presente Acórdão foi pela 1ª signatária elaborado em processador de texto informático, tendo sido integralmente revisto pelos signatários e sendo as suas assinaturas bem como a data certificada supra.
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Tribunal da Relação de Lisboa, 5 de dezembro de 2024
Ana Rita Loja
Ana Guerreiro da Silva
Rosa Vasconcelos
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1. vide Acórdão do Plenário das Secções do Supremo Tribunal de Justiça de 19/10/1995, D.R. I–A Série, de 28/12/1995.
2. Artigos 403º, 412º e 417º do Código de Processo Penal e, entre outros, Acórdãos do S.T.J. de 29/01/2015 proferido no processo 91/14.7YFLSB.S1 e de 30/06/2016 proferido no processo 370/13.0PEVFX.L1. S1.
3. Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335
4. Proferido no processo 70/07.0JBLSB.L1.S1 de que é Relator Pires da Graça
5. vide Acs. do TC nºs 374/2000, 259/2002 e 140/2004, in www.tribunalconstitucional.pt; Ac. do STJ de fixação de jurisprudência nº 3/2012, de 8 de março de 2012, publicado no D.R 1ª série, nº 77, de 18 de abril de 2012, Acs. da Relação de Évora de 08.01.2013, proc. 10/13.6ZCLSB-B.E1, da Relação de Lisboa de 8.10.2015, proc. 220/15.3PBAMD.L1-9; da Relação de Guimarães de 15.04.2020, proc. 621/19.8T9VNF.G1, da Relação de Lisboa de 2.11.2021, proc. 477/20.8PDAMD.L1-5 acedidos em http://www.dgsi.pt).
6. Direito Processual Penal, 1º Vol., Coimbra Editora, págs. 202/203.
7. Proferido no processo 12/14.7GBSRT.C1
8. Proferido no processo 446/19.0T9CTB.C1
9. Proferido no processo 05P662.
10. Acórdão de 12/3/2009 proferido no processo 09P0236
11. Proferido no processo 632/10.9PBAVR.C1
12. Vide Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 12/04/2018 proferido no processo 1619/15.0T9GRD.C1 e do Tribunal da Relação de Guimarães de 17/12/2018 proferido no processo 233/17.0GBPTL.G1, de 08/04/2019 proferido no processo 1313/17.8T9BRG. G1