DIVÓRCIO SEM CONSENTIMENTO DE UM DOS CÔNJUGES
RUPTURA DEFINITIVA DA VIDA EM COMUM
Sumário

Sumário (elaborado nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, CPC):
I – A lei 61/2008, de 31-10 evidencia uma adesão ao conceito de “divórcio-constatação de rutura conjugal”, legitimando que qualquer dos cônjuges coloque termo ao casamento, quando, independentemente de comportamento culposo, se constate que está irremediavelmente perdida a possibilidade de vida em comum.
II – Verificando-se que os cônjuges deixaram de partilhar cama e mesa, que recorreram ao tribunal para regular as responsabilidades parentais de filha menor, assumindo um deles, de forma clara e inequívoca, o propósito de não restabelecer a vida conjugal, deve ser decretado o divórcio com fundamento da alínea d) do artigo 1781º CC, extraindo-se da violação dos deveres de coabitação e de cooperação apurados a rutura da vida em comum pressuposta naquela norma como fundamento para o divórcio sem consentimento do outro cônjuge.

Texto Integral

Acordam os juízes da 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Lisboa que compõem este coletivo:

I - RELATÓRIO
1.1– O autor, A, identificado nos autos, instaurou em 17-11-2023, no Juízo de Família e Menores do Funchal, ação declarativa de divórcio sem consentimento do outro cônjuge contra a ré B, igualmente identificada nos autos.
Para tanto, alegou o autor ter contraído casamento com a ré em 15 de julho de 2006, do qual nasceu uma filha em 11 de outubro de 2007. Sucede que passou a existir mau relacionamento entre o casal, que cessou a vida em conjunto no ano de 2022, sendo que a partir de julho daquele ano, autor e ré começaram a dormir em camas separadas. Acresce que os elementos do casal não comem à mesma mesa, nem fazem vida em conjunto, inexistindo qualquer comunhão de vida entre ambos.
Pelo exposto, não pretendendo o autor restabelecer a vida em comum com a ré, solicita que seja decretado o divórcio.
1.2 – Frustrada a tentativa de conciliação, a ré apresentou contestação, impugnando a factualidade alegada pelo autor, designadamente negando a rutura de comunhão de cama e mesa entre o casal, peticionando a improcedência da ação e a condenação do autor como litigante de má-fé, por ter alterado a verdade dos factos.
1.3 – Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador, no qual foi afirmada a regularidade da instância e proferido despacho que identificou o objeto do litígio e os temas de prova.
2 – Realizada audiência de discussão e julgamento, foi proferida decisão que julgou a ação procedente, constando do seu dispositivo:
Pelo exposto, julgo a presente ação totalmente procedente e, em consequência, decreto o divórcio de A e B, declarando a dissolução do seu casamento.”
3 – Não se conformando com tal decisão, a ré da mesma interpôs recurso, autuado neste Tribunal da Relação de Lisboa em 19-11-2024, pugnando pela sua revogação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem:
“I- O Tribunal “a quo” decretou o divorcio com base no entendimento de que não se verifica a separação de facto entre recorrente e recorrido durante um ano consecutivo, que se desconhece qual a concreta data em que terminou a comunhão de leito e mesa, que tanto pode ter sido em junho de 2023 como em setembro de 2024, mas que os factos provados são demonstrativos de que se verificou uma rutura definitiva do casamento daqueles, ou seja o Tribunal a quo, julgou não se verificar o fundamento de divorcio previsto na alínea a) e verificado o previsto na alínea d) do artigo 1781º do Código Civil;
II- Salvo o devido respeito, e com toda a consideração, entende a Apelante que o Tribunal “a quo” decidiu erradamente ao interpretar de forma literal a al d) do artigo 1781º do Código Civil, fazendo tábua rasa da sua introdução sistemática e da existência da al a) desse mesmo preceito;
III- Assim violando assim o artigo 9º e 1781º al a) e d) do Código Civil;
IV- O Tribunal “a quo” errou na aplicação do direito ao decidir que não sendo os factos provados suscetíveis de determinar o decretamento do divorcio nos termos da alínea a) do artigo 1781º do Código Civil, esses mesmos factos seriam suficientes para o seu decretamento ao abrigo da alínea d) do mesmo artigo;
V- Isto porque, não tendo a alínea a) do artigo 1781º do Código Civil, sido eliminada com a revisão do regime do divorcio operada pela lei 61/2008 de 31 de outubro, não pode uma decisão judicial simplesmente fazer tábua rasa desse mesmo preceito, como ocorre no caso concreto;
VI- E, por outro lado, mantendo-se em vigor a disposição da alínea a) do artigo 1781º do Código Civil, e sistematicamente inserida antes da alínea d), a única interpretação possível para conjugar estes dois preceitos, aparentemente contraditórios, é a de que apenas relevam para efeitos da alínea d), os factos que ocorrendo antes do período de um ano referido na alínea a), sejam, objetivamente graves, ou excecionais o suficiente para afastar aquele regime;
VII- E nunca apenas, e só, a vontade de apenas um dos cônjuges em desfazer o casamento, que é o que sucede nos autos;
VIII- Aceitar o contrário estaremos a esvaziar de conteúdo um preceito legal que se mantem em vigor mesmo após as sucessivas revisões do regime de divorcio, em violação das regras de interpretação definidas pelo artigo 9º do Código Civil;
IX- Dado que ao direito potestativo ao divorcio que assiste a um dos cônjuges, se opõe, no primeiro ano de separação de facto, o direito potestativo do outro a manter-se casado, e que tem igual peso;
X- Por outro lado, nem foi apurada a data da rutura definitiva do casamento do autor e ré, concluindo o tribunal a quo que tanto podia ter sido em junho de 2023, como em setembro de 2024;
XI- Nem a separação das partes durava, no momento da propositura da ação ao tempo suficiente para acionamento da alínea a) do Código Civil, nem mesmo pode ser relevado qualquer tempo decorrido ente a propositura da ação e a prolação da decisão;
XII- Basta atender ao facto dado como provado de que em data não concretamente apurada, após maio de 2023, o autor e a ré deixaram de partilhar cama, de comer à mesma mesa e de fazer vida em conjunto, ou seja tanto podia ser em junho de 2023 ou em setembro de 2024;
XIII- Pelo que o único fundamento válido foi apenas a vontade do Autor, ora Apelado, vontade essa que apenas poderia ser relevada após um ano de separação, que não tinha decorrido aquando da propositura da ação, nem mesmo decorreu tal prazo da propositura da ação e a prolação da decisão;
XIV- E, mesmo na hipótese de se considerar que a única exigência da alínea d) do artigo 1781º do Código Civil, é que se trate de factos diversos dos previstos nas alíneas anteriores, que independentemente da culpa dos cônjuges demonstrem a rutura definitiva do casamento, no caso concreto não se pode concluir que se verifica uma rutura definitiva do casamento, nem se provaram factos que à luz de um critério de normalidade, possa ser atribuído tal efeito;
XV- Não resultaram provados qualquer sequencia de factos suscetíveis de violação significativa de deveres conjugais;
XVI- Não se provou a existência de quaisquer problemas conjugais graves entre a Ré, ora Apelante, e o Autor, ora Apelado, nem quaisquer discussões entre os mesmos;
XVII- Não se provou qualquer desentendimento frequente entre a Recorrente e Recorrido que pudesse levar à deterioração do relacionamento conjugal;
XVIII- No caso dos autos o que se provou foi que o Recorrido/Apelado no dia 02 de maio de 2023, publicou no Facebook da Recorrente/ Apelante, numa fotografia onde esta aparece: “É muita beleza junta numa imagem só ….”, e no dia 04 de maio de 2023, no Facebook da Ré: “ Muitos parabéns minha preta. Que tenhas um dia muito feliz. Que continues sendo a mulher maravilhosa que tens sido. Amo-te muito.”, bem como que o Autor e a Ré em junho passaram ferias no Porto Santo, bem como em agosto passaram férias em Portugal Continental.
XIX- E, tendo o Tribunal “a quo” concluído que a rutura definitiva do casamento do autor e ré, tanto podia ter sido em junho de 2023, como em setembro de 2024, como podia em 01 de outubro de 2024, concluir pela rutura definitiva do casamento;
XX- Quando não resulta provado dos autos quaisquer desentendimentos entre a ora Recorrente e Recorrido, qualquer sequencia de factos suscetíveis de violação significativa de deveres conjugais que pudessem levar à deterioração do relacionamento conjugal, nem mesmo ainda decorreu tempo suficiente para se concluir pela rutura definitiva;
XXI- Ademais, o facto de ter sido homologado por sentença a regulação das responsabilidades parentais da filha menor, ação esta instaurada pela Ré em consequência da filha com 16 anos de idade ter deixado de respeitar e obedecer as orientações da progenitora mãe, não pode ser considerado uma manifestação inequívoca das partes não pretenderem restabelecer a vida em comum;
XXII- Acresce o facto da sentença proferida ter sido objeto de Recurso, não tendo transitado em julgado;
XXIII- Nunca a ora Recorrente referiu ou afirmou não pretender continuar casada com o Recorrido;
XXIV- Salienta-se que o simples facto de um dos cônjuges não querer continuar casado, não pode ser considerado, só por si, fundamento suficiente para o divórcio ou que corresponda a uma rutura definitiva do casamento;
XXV- Pelo que, com todo o respeito e consideração, não se verifica, in casu, o preenchimento da previsão legal contida quer na al a) ou d) do artigo 1781º do Código Civil, não podendo pois, consequentemente, ser decretado o divórcio entre a ora Apelante e Apelado;
XXVI- Deve assim a sentença proferida ser anulada e substituída por outra que declare improcedente a ação intentada de Divórcio Sem o Consentimento do Outro Cônjuge”.
4. O autor apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido, considerando que a factualidade apurada indicia que houve uma rutura definitiva do casamento, sem intenção de restabelecimento da vida em comum.
5.  Foi admitido o recurso como apelação, com subida imediata e nos próprios autos, e efeito meramente devolutivo.
6.  Remetidos os autos a este tribunal em 19-11-2024, inscrito o recurso em tabela, foram colhidos os vistos legais, cumprindo apreciar e decidir.
II – QUESTÕES A DECIDIR
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação, ressalvadas as matérias de conhecimento oficioso pelo tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido, nos termos do disposto nos artigos 608, nº 2, parte final, ex vi artigo 663º, nº 2, 635º, nº 4, 636º e 639º, nº 1, CPC.
Consequentemente, nos presentes autos, inexistindo questões de conhecimento oficioso a apreciar, as questões a decidir são a verificação dos pressupostos do divórcio sem consentimento do outro cônjuge.
III – FUNDAMENTAÇÃO
A - Factos provados
Não tendo a recorrente impugnado a decisão da matéria de facto, são os seguintes os factos provados a considerar na apreciação do presente recurso:
1- O autor e a ré celebraram casamento católico, sem convenção antenupcial, em 15 de julho de 2006.
2- Em 7 de outubro de 2007, nasceu C.
3- As partes fixaram a casa de morada de família no (…)s, Edifício (…), 1.º …  Caniço.
4- No dia 2 de maio de 2023, o autor publicou no Facebook da ré, numa fotografia onde aparece esta: “É muita beleza junta numa imagem só…”
5- No dia 4 de maio de 2023, o autor publicou no Facebook da ré: “Muitos parabéns minha preta. Que tenhas um dia muito feliz. Que continues sendo a mulher e mãe maravilhosa que tens sido. Amo-te muito.”
6- O autor, a ré e a filha passaram férias em Porto Santo entre 16 e 25 de junho de 2023, tendo o autor e a ré partilhado o mesmo quarto.
7- O autor, a ré e a filha passaram férias em Portugal Continental entre 3 e 15 de agosto de 2023.
8- Até data não concretamente apurada, era a ré que tratava das lides domésticas.
9- Em data não concretamente apurada, após maio de 2023, o autor e a ré deixaram de partilhar cama, de comer à mesma mesa e de fazer vida em conjunto.
10- Por sentença proferida em 12 de setembro de 2024, no âmbito do Apenso A, foi homologado o acordo de regulação das responsabilidades parentais da filha menor.
11- O autor não pretende restabelecer a vida em comum com a ré.
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B - Factos não provados
a- Logo após a celebração do casamento, começou a existir um grande afastamento afetivo entre o casal.
b- Uma vez que o autor amava muito a sua mulher, sempre ia desculpando o seu comportamento.
c- As brigas entre o casal eram constantes.
d- A ré profere diversos impropérios ao autor.
e- O autor e a ré eram para se ter divorciado há vários anos.
f- No início de julho de 2022, ocorreu uma briga entre as partes e começaram a dormir em camas separadas.
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C – Enquadramento jurídico
Na sentença recorrida foi decretado o divórcio entre o autor e a ré, aí se considerando estar comprometida de forma definitiva e irreversível a respetiva comunhão de vida, verificando-se o fundamento de divórcio previsto na alínea d) do artigo 1781º, do Código Civil.
Foi a seguinte a fundamentação da sentença recorrida:
Apreciemos, então, se estão verificados os pressupostos para que seja declarada a dissolução do casamento celebrado entre o autor e a ré.
O autor peticiona o divórcio invocando a separação de facto dos cônjuges por mais de um ano consecutivo.
Nos termos do art. 1781.º, alínea a), do Código Civil, é fundamento de divórcio sem consentimento a separação de facto de facto por um ano consecutivo, entendendo-se existir esta separação conforme decorre do art. 1782.º do Código Civil, quando não existe comunhão de vida entre os cônjuges e há da parte de ambos, ou de um deles, o propósito de não a restabelecer.
Assim, a separação de facto como causa de divórcio exige, em primeiro lugar, a verificação de um elemento objetivo, constituído pela falta de vida em comum dos cônjuges, o que não implica que estes passem a ter residências diferentes.
Ao elemento objetivo, acresce ainda a exigência de um elemento subjetivo, para se considerar efetiva a separação de facto por um ano consecutivo é necessário verificar-se uma disposição interior ou um propósito da parte de ambos os cônjuges ou de um deles de não restabelecer a vida matrimonial.
No presente caso, apurou-se que, desde data não concretamente apurada, posterior a maio de 2023, o autor e a ré deixaram de partilhar mesa e leito.
Resulta, assim, que, uma vez que se desconhece qual a concreta data em que terminou a comunhão de leito e mesa, que tanto pode ter sido em junho de 2023 como em Setembro de 2024, não é possível concluir pela separação de facto dos cônjuges por um ano consecutivo.
Contudo, tal não permite concluir, sem mais, pela improcedência da presente ação.
Com efeito, nos termos do art. 1781.º, alínea d), do Código Civil, é fundamento do divórcio sem consentimento de um dos cônjuges, quaisquer outros factos que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a rutura definitiva do casamento.
Assim, e “funcionando a previsão normativa da referenciada al. d) do artigo 1781.º CC como uma cláusula geral e residual, nada impede que uma situação de separação de facto em que não se prove o decurso do prazo de um ano consecutivo previsto na al. a) do mesmo preceito possa ser valorada em conjunto com outros factos que resultem provados e, assim, permitir revelar uma situação de rutura definitiva do casamento.” (cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, Processo n.º 1836/21.4T8VCT.G1, de 11/05/2022, disponível em www.dgsi.pt)
Esta cláusula geral veio atribuir relevo a factos que mostram claramente a rutura e falência do casamento, independentemente da culpa dos cônjuges e do decurso de qualquer prazo.
No caso, as partes deixaram de partilhar cama, de comer à mesma mesa e de fazer vida em conjunto desde data não concretamente apurada, posterior a maio de 2023.
Em 12 de Setembro de 2024, no âmbito do Apenso C, foi homologado por sentença o acordo de regulação das responsabilidades parentais da filha menor.
Podemos considerar que a regulação das responsabilidades parentais da filha menor, ação esta que foi instaurada pela ré, constitui uma manifestação inequívoca das partes de não restabelecerem a vida em comum.
Tais factos, conjugados entre si, são, pois, reveladores da rutura definitiva do casamento.
Impõe-se, assim, concluir que a comunhão de vida entre autor e ré está comprometida de forma definitiva e irreversível, com quebra de laços e de afetos que têm de ser recíprocos, pelo que se verifica o fundamento de divórcio sem consentimento de um dos cônjuges, previsto na alínea d), do art. 1781.º, do Código Civil.
Resulta do artigo 1773º CC que atualmente o divórcio pode ser requerido e decretado na modalidade de mútuo consentimento ou sem consentimento do outro cônjuge. Os autos inscrevem-se nesta segunda modalidade, em que o divórcio é requerido no tribunal por um dos cônjuges contra o outro, tendo por base fundamento previsto no artigo 1781º, CC. Sob a epígrafe “Rutura do casamento”, dispõe aquela norma:
São fundamento do divórcio sem consentimento de um dos cônjuges:
a) A separação de facto por um ano consecutivo;
b) A alteração das faculdades mentais do outro cônjuge, quando dure há mais de um ano e, pela sua gravidade, comprometa a possibilidade de vida em comum;
c) A ausência, sem que do ausente haja notícias, por tempo não inferior a um ano;
d) Quaisquer outros factos que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a rutura definitiva do casamento.”
O atual regime de divórcio foi delineado pela Lei 61/2008, mantendo-se a sua disciplina, no essencial, ainda em vigor. Refletindo sobre tal regime, na parte relevante para a apreciação do presente recurso, referem Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira[1] que: “(…) o direito português, depois de 2008, consagra um sistema de divórcio-constatação da rutura do casamento, em que a causa do divórcio é a própria rutura em si, independentemente das razões que a tenham determinado (…) No nosso direito, admite-se um princípio geral de dissolução por divórcio com fundamento em rutura definitiva da vida em comum, que pode ser indiciada pela verificação de qualquer facto, nos termos do art. 1781.º d).”. Mais adiante[2], referem ainda aqueles autores que: “a rutura definitiva da vida em comum” é o fundamento do divórcio, que pode ser revelado através de “quaisquer factos – o que mostra uma verdadeira cláusula geral onde cabem todos os factos relevantes”.
A propósito do atual regime de divórcio, refere-se no Acórdão do STJ de 09-02-2012[3]: “(…) modelo do «divórcio sem culpa», assente na constatação da rutura do matrimónio, indiciada por causas objetivas, ou no acordo dos cônjuges, através do mútuo consentimento ativo ou do consentimento passivo do cônjuge que se não opõe ao pedido de divórcio formulado pelo outro. (…). Seguindo esta tendência, a Lei nº 61/2008, de 31 de outubro, eliminou a culpa como fundamento do divórcio sem o consentimento de um dos cônjuges, expressão que preferiu à anterior designação de «divórcio litigioso», deixando de existir o divórcio com fundamento na violação culposa dos deveres conjugais, afastando-se a culpa, quer quanto às causas, quer quanto aos efeitos do divórcio.
Este último diploma encontra-se em linha coerente com a crescente propensão para a “privatização” do casamento, subtraído, gradualmente, à intervenção tutelar do Estado, como contrato, tendencialmente denunciável, cada vez mais próximo da disciplina dos contratos em geral, de cujo tronco comum, outrora, já fez parte e, por outro lado, com as tentativas atuais da sua descontratualização, pela sua assimilação a outras fórmulas de comunhão de vida, mas, também, de descontextualização, pela alteração do binómio natural das pessoas, originariamente, hábeis a contraí-lo, associadas à desformalização do divórcio e à sua frequência redobrada, já bem longe da natureza publicista e sacramental antecedentes, enquanto realidades a tomar em consideração na abordagem da questão do divórcio.
Da exposição de motivos do projeto de lei nº 509/X, que contempla as alterações ao regime jurídico do divórcio constam como fundamentos do casamento, nas sociedades atuais, a liberdade de escolha pelo casamento [a], a igualdade de direitos e de deveres entre cônjuges [b], a afetividade no centro da relação [c] e a plena comunhão de vida, cooperação e apoio mútuo na educação dos filhos, quando os houver [d].
Do princípio da liberdade decorre que ninguém deve permanecer casado contra a sua vontade, incluindo quando considerar que houve quebra do laço afetivo, devendo o cônjuge que for tratado, de forma desigual, injusta ou de forma a atentar contra a sua dignidade, poder terminar a relação conjugal, mesmo sem a vontade do outro, sendo certo que a invocação da rutura definitiva da vida em comum deve constituir fundamento suficiente para a declaração do divórcio, não como sinal de facilitismo, mas antes de valorização de uma conjugalidade, feliz e conseguida, potencialmente, repetível.
(…).As alterações introduzidas pela Lei nº 61/2008, de 31 de Outubro, que consubstanciam a aproximação do regime nacional às opções legislativas europeias ao por fim à declaração de culpa no divórcio e às consequências patrimoniais negativas à mesma associadas, face ao regime de sanções do ilícito conjugal refletidas sobre os efeitos do divórcio, atento o preceituado pelos artigos 1790º a 1792º e 2016º, do CC, na redação do DL nº 496/77, de 25 de Novembro, vieram dotar o regime legal de maior flexibilidade e a situação dos cônjuges de maior segurança e previsibilidade, ao contrário da situação anterior, dotada de rigidez e aleatoriedade.(…)».
Pode, pois, afirmar-se que atualmente está consagrado no regime jurídico português um sistema de “divórcio-constatação da rutura do casamento” em que, como refere Guilherme de Oliveira[4]: “(…) também se poderá dar relevo a factos menos graves do que acabámos de sugerir (…) que mostrem objetivamente, e repetidamente, o desinteresse total, a falta radical de cooperação e de comprometimento na “vida da família que fundaram (…)”.
Ora, é com base em tal enquadramento que se impõe o preenchimento do conceito indeterminado “rutura do casamento” previsto na alínea d) do artigo 1781º, CC, que corresponderá à demonstração de que está irremediavelmente comprometida a comunhão conjugal.
No caso em análise, em consonância com o decidido na decisão recorrida, julgamos estar demonstrado que cessou a comunhão de vida entre autor e ré, nos precisos termos ali afirmados.
Efetivamente, apurou-se que autor e ré contraíram casamento em 15 de julho de 2006 e que, desde data que em concreto não foi possível apurar, mas situada após maio de 2024, deixaram de partilhar cama, de comer à mesma mesa e de fazer vida em conjunto. Mais se apurou que em 12-09-2024 foi homologado acordo relativo às responsabilidades parentais da filha de ambos, e que o autor não pretende restabelecer a vida em comum com a ré.
Ora, objetivamente o casal está separado (tendo cessado a comunhão de cama e de mesa), tendo recorrido ao tribunal para regular as responsabilidades parentais da filha menor. Tal factualidade evidencia que autor e ré deixaram também de cumprir o dever de cooperação, não assumindo em conjunto e de forma cooperante as responsabilidades inerentes à respetiva família. E ainda que não se tenha apurado que tal separação dure há mais de um ano, desse facto não é possível retirar a “ilação oposta, ou seja, que não há rutura definitiva” – neste sentido, Acórdão Relação do Porto de 14-02-2013[5]. Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03-10-2013[6]: “A cláusula geral e objetiva da rutura definitiva do casamento – enquanto fundamento de divórcio, previsto na al. d) do art. 1781.º do CC – não exige, para a sua verificação, qualquer duração mínima, como sucede com as restantes causas que impõem um ano de permanência”.
O certo é que a prolongada violação do dever de coabitação, nas vertentes apuradas, bem como do dever de cooperação, aliada à vontade do autor de não restabelecer a vida em comum com a ré, bem expressa na instauração de ação de divórcio e sua tramitação até decisão final, evidenciam a rutura da vida em comum suscetível de fundamentar a procedência do pedido de divórcio nos termos da alínea d) do artigo 1781º, CC. Reitera-se que atualmente o casamento não pode deixar de ser encarado como espaço de realização pessoal de cada um dos seus  elementos, incompatível com a sua manutenção contra a vontade de qualquer deles, quando afirmada num contexto de violação de deveres conjugais que não se afigura reversível.
Demonstrado tal fundamento de divórcio, que constitui facto constitutivo do direito (potestativo) do autor relativo à dissolução do casamento por divórcio, improcede o recurso.

Decaindo no recurso que interpôs, a recorrente suportará as custas do recurso – cfr. artigo 527º, CPC.
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III – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desta 2ª secção cível em julgar improcedente o recurso de apelação interposto, mantendo a decisão recorrida, que dissolveu, por divórcio, o casamento entre a recorrente e o recorrido.
Custas pela ré – cfr. artigo 527º, CPC.

Lisboa, 5 de dezembro de 2024
Rute Sobral
Pedro Martins (com declaração de voto)
João Paulo Vasconcelos Raposo

Declaração de voto:
O Prof. Guilherme de Oliveira no seu estudo Contribuições jurisprudenciais para o desenvolvimento do direito da família, publicado n’A Revista, n.º 2, do STJ (sem indicação de data, mas de fins de 2022) demonstra que a jurisprudência das relações e do STJ alterou o regime jurídico do divórcio sem consentimento.
Actualmente, o divórcio sem consentimento tem uma única causa de pedir, a ruptura definitiva do casamento, demonstrada por quaisquer factos, sendo que, em relação à separação de facto por mais de um ano (um dos modos de demonstrar essa ruptura, suficiente por si só), este regime judicial admite que o prazo de um ano se verifique no decurso do processo, sem observância das regras processuais normais, designadamente sem necessidade sequer de um articulado superveniente. E permite ainda a consideração, na sentença, também sem necessidade de qualquer articulado, para além dos factos alegados (a separação de facto por um ano), de outros factos (a ruptura demonstrada por uma separação de facto por menos do que um ano conjugada com outras circunstâncias não alegadas na petição inicial por nem sequer terem ocorrido até essa data).
É o caso dos autos: o autor, em 17/11/2023, pediu o divórcio, com base na ruptura definitiva do casamento demonstrada com uma separação de facto ocorrida em Julho de 2022. Alegava outros factos de forma genérica, mas anteriores a essa separação. Não apresentou nenhum articulado superveniente a alegar factos posteriores. Na sentença, de 01/10/2024, não se dá como provada a separação de facto com mais de um ano à data do pedido e diz-se expressamente que não se sabe quando é que a separação de facto ocorreu: “tanto pode ter sido em Junho de 2023 como em Setembro de 2024.” Para além desta separação de facto ocorrida não se sabe quando, não se dá como provado qualquer outro facto ocorrido até 12/09/2024 demonstrativo da ruptura definitiva do casamento, antes pelo contrário, dão-se por provados factos que demonstram que até Maio de 2023 não existiu qualquer separação de facto (incluindo declarações de amor do autor à ré em Maio de 2023 e partilha de quartos em Junho de 2023). Apesar disso, constata-se que existe a ruptura conjugal, demonstrada por uma separação de facto ocorrida em data indeterminada posterior a Maio de 2023 (ou seja, poderia ainda não existir à data do pedido), conjugada com uma regulação das responsabilidades parentais [pedida pela ré em Maio de 2024], ainda não transitada, de 12/09/2024, que consta do apenso A do processo, e com a afirmação de que o autor não pretende restabelecer a vida conjugal (que consta dos factos provados, sem referência a qualquer data).
Tenho defendido que nada disto é possível (por exemplo, no ac. do TRL de 13/09/2018, proc. 73/16.4T8CSC-2; no TRL de 21/02/2019, proc. 3/18.9T8SXL.L1-2; e no voto de vencido do ac. do TRL de 28/04/2022, proc. 2271/20.7T8BRR.L1-2) que representa a violação do regime jurídico legal do divórcio sem consentimento e das regras processuais (em relação à separação de facto por mais de um ano, lembro, naquele voto de vencido, que em França foi o legislador que admitiu que o decurso do prazo fosse completado durante o processo).
No regime geral do processo civil, não tendo o autor provado nenhuns dos factos alegados na petição inicial, o resultado inevitável da acção seria a improcedência do pedido (com custas pelo autor).
Mas, tendo em conta a alteração jurisprudencial do regime do divórcio sem consentimento, esclarecida acima, alteração que está estabilizada, subscrevo o acórdão.     

Pedro Martins
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[1] Curso de Direito da Família, Vol. I, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016, páginas 719 e 720.
[2] Ob. cit. pág. 721
[3] Proferido no processo nº 819/09.7TMPRT.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt

[4] Ob. cit., pág. 735
[5] Proferido no processo 999/11.1TMPRT.P1, www.dgsi.pt
[6] Proferido no processo nº 2610/10.9TMPRT.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt