HERANÇA JACENTE
PERSONALIDADE JUDICIÁRIA
REPRESENTAÇÃO
CURADOR ESPECIAL
ACEITAÇÃO DA HERANÇA
Sumário

SUMÁRIO (art. 663º, n.º7, do CPC):
I. Por força do disposto no art. 2046º do CC, diz-se jacente a herança aberta, mas ainda não aceita nem declarada vaga para o Estado.
II. Dotada de personalidade judiciária, a herança jacente carece de ser representada em juízo pelos seus administradores e, não existindo, por um curador especial (também para administrar a Herança evitando a sua perda e deterioração) nomeado pelo Tribunal a requerimento do Ministério Público ou de qualquer interessado, nomeadamente um credor.
III. A herança apenas deixa de ser jacente mediante a demonstração da sua aceitação por parte de um dos sucessíveis, atento o disposto no art. 2051º do CC.
IV. Verificada a aceitação da herança, a mesma deixar de estar dotada de personalidade judiciária, passando os seus interesses, até à partilha, a serem exercidos, segundo as circunstâncias, pelo seu cabeça-de-casal ou pelos herdeiros conjuntamente, estando estes dotados de legitimidade para intervirem nos processos em que tais interesses se discutam.
V. A verificação da falta de personalidade judiciária da herança demandada exige a comprovação de que a sua aceitação por parte dos sucessores ocorreu.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

I.
Nestes autos de acção executiva para pagamento de quantia certa, atinentes a prestações de condomínio referentes à fracção autónoma que identifica, com a forma de processo sumário, intentados, a 22-12-2023, pelo Condomínio do Prédio Urbano denominado Edifício n.º (…), Oeiras, contra Herança de “A”, por despacho proferido a 02-04-2024, determinou-se, com fundamento no art. 734º do CPC, a notificação do exequente para se pronunciar quanto à falta de personalidade judiciária, ou ilegitimidade, da executada (arts. 12º, al. a), do CPC, e 2091º, n.º1, do CC).
O exequente, no requerimento inicial, alega que “A” faleceu e nunca ninguém se apresentou perante si informando ser seu herdeiro e que as fracções autónomas continuam inscritas a seu favor quer na matriz quer na Conservatória do Registo Predial.
Por requerimento junto a 15-04-2024, o exequente alegou que desconhece quem são os herdeiros de “A” e que entende que deverá ser ordenado o levantamento do sigilo fiscal para que a Autoridade Tributária informe quem se habilitou como herdeiro do falecido “A” para que, com os mesmos, a execução possa prosseguir os seus termos ou, caso se verifique que ninguém se habilitou, a execução prossiga os seus termos contra a herança.
Por despacho de 21-05-2024, determinou-se a notificação do exequente para demonstrar o óbito do presumível proprietário da fracção autónoma identificada no requerimento executivo.
A 03-07-2024, o exequente juntou certidão do assento registal de óbito de “A”, onde consta que o mesmo faleceu a 04-07-2019.
A 09-07-2024, foi proferida decisão com o seguinte teor:
“A presente execução foi instaurada em 29-XII-23 contra “Herança de “A”” (falecido em 4-VII-19).
A “herança jacente” (‘aberta, mas ainda não aceita nem declarada vaga para o Estado’) tem personalidade judiciária (CPC 12º/a)) – sendo necessária a nomeação de curador (CC 2048º); já os direitos (neste caso, de alegado crédito) contra a herança “ilíquida e indivisa” devem ser exercidos “contra todos os herdeiros” (CC 2091º/1).
Não se tratando de “herança jacente” (pois não foi identificada como tal, nem requerida a nomeação de curador), nem de herdeiros de herança indivisa – e desconhecendo-se as dificuldades de identificação alegada, pois não se sabe que diligências foram efectuadas -, conclui-se que a executada não tem personalidade jurídica, ou judiciária.
Motivo por que se absolve a executada da instância (CPC 577º/c)), e se declara extinta a execução. Custas pelo exequente.
Registe e notifique.”
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A 10-09-2024, o exequente interpôs recurso da decisão mencionada, que culminou com as seguintes conclusões (transcrição):
1. O Tribunal “a quo” não dispunha, com o devido respeito pela opinião em contrário, de elementos suficientes nos autos que lhe permitissem decidir como o fez.
2. O levantamento do sigilo fiscal era e é essencial para o prosseguimento dos autos e o Tribunal “a quo” não se pronunciou sobre o pedido de levantamento do mesmo pelo AE.
3. Só com a informação da AT o Exequente saberia se a herança é jacente ou se há herdeiros e aí requerer o que tiver por conveniente.
4. O Exequente só por si não tem acesso a qualquer informação fiscal do falecido ou da sua herança, uma vez que esta está protegida pela lei da proteção de dados.
5. O Tribunal “a quo” antes de proferir sentença, tinha, com o devido respeito, de ordenar o levantamento do sigilo fiscal.
6. Posteriormente a informação fiscal deverá ser notificada ao Exequente para este requerer o que tiver por conveniente.
7. Só nesta altura e não se pronunciando o Exequente se poderia, com o devido respeito pela opinião em contrário, proferir a decisão que se proferiu.
8. A al. a) do art. 12º do CPC pretende atribuir capacidade judiciária à herança na medida em que desconhecemos o seu titular. Pois,
9. Não faz sentido coartar o direito ao credor apenas porque se desconhece quem são os herdeiros da herança ou se a mesma é jacente. Por outro lado,
10. As únicas informações que são públicas são as do registo predial. Porém,
11. Os herdeiros muitas vezes não fazem o registo na conservatória dos imóveis a seu favor por forma a que os credores não tenham acesso aos seus dados. Assim,
12. Não se aceitando que a herança tem personalidade judiciária, no caso dos autos, estaria a proteger-se o devedor quando se sabe que a herança tem bens que podem responder pelas dívidas. Assim,
13. Atento tudo o supra exposto, com o devido respeito pela opinião em contrário, mal andou o Tribunal “a quo” ao decidir como decidiu, pelo que, se requer que a decisão recorrida seja revogada e substituída por outra que ordene o prosseguimento dos autos, com o levantamento imediato do sigilo fiscal.
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II.
1.
As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo da ampliação deste a requerimento do recorrido (arts. 635º, n.º4, 636º e 639º, n.º1 e 2 do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas, salvo se forem do conhecimento oficioso (art. 608º, n.º2, parte final, ex vi do art. 663º, n.º2, parte final, ambos do CPC).
Também não é possível conhecer de questões novas – isto é, de questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida –, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação.
Tendo isto presente, no caso, atendendo às conclusões transcritas, a intervenção deste Tribunal de recurso é circunscrita à questão de saber se, nos autos, existe fundamento para julgar verificada a excepção dilatória de falta de personalidade judiciária da herança demandada e pela sua consequente absolvição da instância.
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2.
A factualidade a ponderar na presente decisão é a que resulta da marcha do processo, acima descrita, que aqui se dá por reproduzida.
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3.
Os presentes autos respeitam a processo de execução para pagamento de quantia certa, intentados pelo Condomínio requerente contra a Herança de “A”, sendo título executivo as actas da assembleia de condóminos que fixaram o montante das contribuições a pagar por parte do proprietário das fracções identificadas no requerimento inicial.
O exequente, no requerimento inicial, alega que “A” faleceu e nunca ninguém se apresentou perante si informando ser seu herdeiro e que as fracções autónomas continuam inscritas a seu favor quer na matriz quer na Conservatória do Registo Predial.
De acordo com o art. 11º, n.º1, do CPC, a personalidade judiciária consiste na susceptibilidade de ser parte.
Quem tiver personalidade jurídica tem igualmente personalidade judiciária – cf. art. 11º, n.º2, do CPC.
Como decorre dos preceitos acabados de referir, a personalidade judiciária encontra-se, por regra, associada à personalidade jurídica, consistente na susceptibilidade de ser titular de direitos e obrigações.
A regra referida, de coincidência ou equiparação entre a personalidade jurídica e a personalidade judiciária, não ocorre na situação inversa, sendo que, em certas situações a lei confere personalidade judiciária a determinadas entidades carecidas de personalidade jurídica. É o caso, além de outros, da herança jacente, como decorre do art. 14º, al. a), do CPC.
A extensão da personalidade judiciária a quem não possui ou é duvidoso que possua personalidade jurídica, «é uma forma expedita de acautelar a defesa judiciária de legítimos interesses em crise, nos casos em que haja qualquer situação de carência em relação à titularidade dos respectivos direitos (ou dos deveres correlativos).» (Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio Nora, “Manual de Processo Civil”, Coimbra Editora, 2ª edição, 1985, pág. 111).
Por força do disposto no art. 2046º do CC, diz-se jacente a herança aberta, mas ainda não aceita nem declarada vaga para o Estado.
Dotada de personalidade judiciária, a herança jacente carece de ser representada em juízo pelos seus administradores e, não existindo, por um curador especial (também para administrar a Herança evitando a sua perda e deterioração) nomeado pelo Tribunal a requerimento do Ministério Público ou de qualquer interessado, nomeadamente um credor, atento o disposto nos arts. 2047º e 2048º do CC(cf., a propósito, Cristina Araújo Dias, CC Anotado – Livro V – Direito das Sucessões (coordenado pela autora referida), Livraria Almedina, 2ª edição, 2022, p. 61 e ss.).
A herança apenas deixa de ser jacente mediante a demonstração da sua aceitação por parte de um dos sucessíveis, atento o disposto no art. 2051º do CC (cf. no mesmo sentido, o acórdão desta Relação de 19-03-2024, processo n.º 15346/23.1T8SNT.L1-7, acessível em dgsi.pt).
Verificada a aceitação da herança, a mesma deixar de estar dotada de personalidade judiciária, passando os seus interesses, até à partilha, a serem exercidos, segundo as circunstâncias, pelo seu cabeça-de-casal ou pelos herdeiros conjuntamente, estando estes dotados de legitimidade para intervirem nos processos em que tais interesses se discutam, como decorre do disposto no art. 2091º do CC (cf., no mesmo sentido, o acórdão do TRG de 07-10-2016, processo n.º 74/15.0T8CHV-A.G1, acessível em dgsi.pt).
Face ao referido, o termo da personalidade judiciária da herança ocorre com a sua aceitação pelos sucessores.
Nessa perspectiva, a verificação da falta de personalidade judiciária da herança demandada exige a comprovação de que a sua aceitação por parte dos sucessores ocorreu.
Revertendo ao caso dos autos, constata-se que deles não resulta demonstrada a aceitação da herança demandada por parte dos sucessíveis do seu autor, “A”, nem tal é assumido na decisão impugnada.
Face ao referido, entende-se inexistir fundamento para se concluir, como na decisão impugnada, pela ocorrência de falta de personalidade judiciária e, consequentemente, pela absolvição da instância.
Face ao alegado pelo exequente, no sentido de desconhecer os herdeiros do autor da herança demandada, entende-se adequado assumir, a título de primeira aparência, que a mesma se encontra jacente, estando, por isso, dotada de personalidade judiciária.
Isto, sem prejuízo do que se apurar com o andamento do processo, designadamente, em sede de identificação dos seus administradores, cabendo ao Tribunal, ao abrigo do art. 7º, n.º4, do CPC (que consagra o dever de colaboração), auxiliar o exequente na obtenção de elementos necessários, face à invocada e compreensível, face a critérios de normalidade, dificuldade em os obter (no mesmo sentido, veja-se, o acórdão desta Relação de 19-03-2024, processo n.º 15346/23.1T8SNT.L1-7, acessível em dgsi.pt, acima referido).
Conclui-se, assim, pela procedência do presente recurso e consequente revogação da decisão recorrida, devendo os autos prosseguir os seus termos, designadamente, para identificação do ou dos administradores da herança jacente demandada.
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4.
A recorrente deverá suportar as custas do recurso uma vez que dele tirou proveito (art. 527º, n.º1, parte final, do CPC).
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III.
Em face do exposto, acordam os Juízes Desembargadores que compõe o Colectivo desta 2ª Secção em:
- Julgar o recurso interposto pelo exequente procedente e, em consequência, revogar a decisão recorrida, proferida a 09-07-2024, e determinar que os autos prossigam os seus termos, designadamente, para identificação do ou dos administradores da herança jacente demandada.
Custas pela recorrente.
Notifique.
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Lisboa, 19-12-2024.
Os Juízes Desembargadores,
Fernando Caetano Besteiro
António Moreira
Inês Moura