CRIME MILITAR
CRIME DE ABANDONO DE POSTO
CONTESTAÇÃO
ANÁLISE PROBATÓRIA
Sumário

I - Numa situação em que o arguido, vem requerer em sede de contestação diligências probatórias que entende serem importantes para a boa decisão da causa, o Tribunal de julgamento, deve proceder a uma ponderação cuidadosa entre o dever oficioso (ou a requerimento) de esclarecer a verdade, e os limites impostos pelo princípio constitucional do julgamento no mais curto prazo e pelo princípio da oportunidade da audiência (art.º 32º/2 da CRP).
II - Segundo o princípio da necessidade que vigora no nosso sistema processual penal, só os meios de prova cujo conhecimento se afigure necessário para habilitar o julgador a proferir uma decisão justa, devem ser produzidos por determinação do Tribunal na fase de julgamento ou a requerimento dos sujeitos processuais – mas quer a prova requerida em julgamento, ou a produzir em fase de julgamento, quer a prova requerida na fase da contestação não podem colidir com o interesse da realização da justiça penal, pois que a tese da irrestrita possibilidade de apresentação de meios de prova a produzir na fase de julgamento consentiria a realização de diligências inúteis para a descoberta da verdade e boa decisão da causa, podendo conduzir, no limite, à própria frustração da justiça penal.
III- É através da fundamentação exigida nos termos do art.º 374º/2 do C.P.P, que se possibilita o controlo da sentença por um Tribunal superior, evitando decisões arbitrárias, que se concretiza a garantia de defesa do arguido (na medida em que apenas com a fundamentação pode ser concretizado o direito constitucional ao recurso) e se assume um mecanismo de autocontrolo do próprio Tribunal. Essa fundamentação deve sempre ser suficiente coerente e razoável, de modo a permitir o cumprimento das finalidades que lhe estão subjacentes.
IV – Improcede a imputação do vício da falta de fundamentação e exame crítico da prova numa decisão judicial, quando analisado o Acórdão recorrido se verifica que nele estão indicados os factos provados e os não provados, as provas em que o Tribunal a quo se baseou para dar como assentes tais factos, a análise critica dessas mesmas provas e, de seguida, os motivos de direito que fundamentam a condenação, tudo em conformidade com o disposto nos nºs 2 e 3 al. a) e b) do art.º 374º do C. P. Penal.
V – Como se sublinha na Jurisprudência do STJ e doutrina, a pronúncia cuja omissão determina a consequência prevista no art.º 379º, nº 1, al. c), do CPP – a nulidade da sentença - só se verifica, quando o juiz deixa de se pronunciar sobre questões que lhe foram submetidas pelas partes e que como tal tem de abordar e resolver, ou de que deve conhecer oficiosamente, entendendo-se por questões os dissídios ou problemas concretos a decidir e não as razões, no sentido de simples argumentos, opiniões, motivos, ou doutrinas expendidos pelos interessados na apresentação das respectivas posições, na defesa das teses em presença.
VI – Improcede, pois, a imputação do vício da omissão de pronúncia, que o recorrente entende verificar-se numa decisão judicial, quando resulta da resulta da matéria de facto provada e não provada e respectiva fundamentação exaradas no Acórdão recorrido, que o Tribunal a quo se pronunciou sobre todas as questões concretas suscitadas pelas partes.
Isto é, quando resulta da simples leitura do Acórdão, que sobre todas e cada um das questões colocadas pelas partes (MP e defesa), recaiu a atenção do Tribunal de julgamento, afrontando, analisando, como se referiu, de forma minuciosa, todas as questões suscitadas, isto é, tomou posição de forma expressa sobre as mesmas - a discordância da arguida recorrente, quanto a essa decisão, no caso em apreciação, não integra o vício previsto no art.º 379º/1 al c) do CPP.
VII - A prova no nosso sistema processual penal é apreciada de acordo com o princípio da livre apreciação da prova consignado no art.º 127º do C.P.P onde claramente se pode ler “…a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”. Assim, de acordo com o referido princípio da livre apreciação da prova, que domina o nosso sistema (por oposição ao regime da prova legal) não existem normas que determinam o valor ou a eficácia probatória a atribuir a cada meio probatório.
VIII – Numa situação como a dos autos, em que é perfeitamente perceptível da leitura do Acórdão recorrido, quais os elementos que em razão das regras da experiência comum ou critérios lógicos do homem médio suposto pela ordem jurídica, levaram à condenação da arguida recorrente pelo crime de abandono de posto, não tendo havido qualquer preterição de procedimentos obrigatórios, nem das normas legais ou constitucionais, não existe qualquer erro notório na apreciação da prova.
IX – Improcede assim a impugnação da decisão da matéria da facto, feita pela arguida recorrente, com base na imputação ao Acórdão recorrido, do vício de erro notório na apreciação da prova previsto no art.º 410º/2 c) do CPP, quando a leitura da fundamentação do Acórdão, mostra claramente que o Tribunal a quo examinou criticamente as provas que serviram para formar a sua convicção, tendo ainda explicado de forma suficiente, porque razão não lhe mereceu credibilidade a versão apresentada em juízo pela defesa e essa valoração da prova feita pelo Tribunal recorrido é perfeitamente legítima, não sendo violadora das regras da experiência e da lógica.
(sumário da responsabilidade da relatora)

Texto Integral

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa
I – RELATÓRIO
1 - No processo nº 45/22.0NJLSB, do Juízo Central Criminal de Lisboa - Juiz 5, foi submetida a julgamento em processo comum, com intervenção do Tribunal Colectivo Militar, a arguida AA, solteira, Guarda Principal da Guarda Nacional Republicana, filha de BB e de CC, natural de ..., nascida a ........1987, residente na ..., imputando-lhe o MP a prática em autoria material de um crime de abandono de posto, p. e p. pelo artigo 66º, nº 1 alínea e), do Código de Justiça Militar (CJM), aprovado pela Lei nº 100/2003, de 15 de Novembro.
A arguida apresentou contestação, negando a prática dos factos de que vem acusada, e arrolou testemunhas.
2- Em 19.3.2024, aquando da designação da data para a realização da audiência de julgamento, foi proferido despacho judicial que indeferiu a notificação do SIREP para esclarecimento sobre o modo como funcionam os aparelhos que fornecem as informações constantes do sistema de georreferenciação das viaturas de serviço usadas pelos elementos da GNR, assim como a realização de perícia ao bom funcionamento desses aparelhos, diligências probatórias que haviam sido requeridas pela arguida na sua contestação, com o fundamento de não serem necessárias e indispensáveis à boa decisão da causa e à descoberta da verdade material, não assumirem relevo face ao acervo factual descrito na acusação e são dilatórias na medida em que em nada contribuem para a decisão a proferir”.
3- Realizado o julgamento, com observância do formalismo legal, como da respectiva acta consta, por Acórdão proferido em 16-05-2024, foi a arguida condenada, nos seguintes (transcritos) termos:
DECISÃO:
Em face do exposto, decide este Tribunal Colectivo de Composição Militar julgar a acusacão procedente, por provada, e, em consequência:
Condenar a arguida, AA, pela prática, em autoria material, e na forma consumada, de um crime de abandono de posto, p. e p. pelo artigo 66º, nº 1, alínea e), do Código de Justiça Militar, aprovado pela Lei nº 100/2003, de 15 de Novembro, na pena de 8 (oito) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 (um) ano, sob regime de prova, nos termos do disposto no art.º 53º do Código Penal, o qual assentará num plano de reinserção social a executar, com vigilância e apoio, e durante o período da suspensão, pelos serviços de reinserção social.
Vai ainda a arguida condenada no pagamento de custas criminais, sendo a taxa de justiça no valor de 4 UC (arts. 513º, nº 1, do CPP, e 8º, nº 5, do Regulamento das Custas Processuais, e tabela III anexa a este).
Deposite.
Extraia certidão do presente acórdão e das actas da audiência de julgamento, acompanhadas do respectivo suporte digital contendo os depoimentos prestados pelas testemunhas QQ, DD, EE, FF, GG e HH, e remeta tais elementos ao DIAP de Lisboa, a fim de, contra as mesmas, ser instaurado o devido procedimento criminal, atento o crime de falsidade de testemunho em cuja prática se afigura terem incorrido — art.º 360º, nºs 1 e 3, do Código Penal.
Após trânsito em julgado:
- Envie boletim ao registo criminal;
- Comunique à competente autoridade militar, nos termos do disposto no art.º 20º, nº 4, do C.J.M.
4 – Inconformada com o despacho de indeferimento das diligências probatórias por ela requeridas, dele recorreu a arguida, sendo que a motivação apresentada, termina com a formulação das seguintes (transcritas) conclusões:
Vem o presente recurso interposto do despacho que decidiu pelo indeferimento da notificação do SIRESP, bem como da realização da perícia requerida.
Dos autos resulta que no elenco das provas indicadas pelo Ministério Público se encontra, entre outras, como prova documental: - Registo de sistemas de georreferenciação – fls. 324 a 343 e 463 a 466; - Auto de visualização de imagens de georreferenciação – fls. 470 a 476; - Relatório da PJM.
III
Da leitura atenta deste Relatório denota-se que também ele foi elaborado com base em registos de georreferenciação.
IV
É a acusação minuciosa quando no seu libelo acusatório faz precisamente referência a horas e minutos, pelo menos em cinco pontos (factos) dos seus treze.
V
Tratando-se, como se trata, de informação segregada por aparelhos eletrónicos, que apesar de poderem ser fiáveis não são infalíveis, importa aferir da precisão dos mesmos o que só poderá ser efetuado com devida prova que à arguida não poderá ser coartada.
VI
Pelo que, salvo o devido respeito, que é muito, a decisão de que aqui se recorre deverá ser alterada.
VII
É inaceitável que o Ministério Público labore com dados / provas a que a Arguida não se possa ou se consiga opor, o que s.m.j., fere até o princípio da igualdade de armas.
VIII
Ao não ter sido decidida / deferida a prova requerida, tal configura uma violação dos direitos de defesa da Arguida.
IX
Propugnamos o entendimento de que, que no caso em apreço, nenhuma razão se verifica para indeferir a requerida prova, uma vez que se tratam de diligências probatórias essenciais e indispensáveis à boa decisão da causa e à descoberta da verdade material, posto que a acusação é pródiga em especificar horários concisos – que têm interesse para colocar, e/ou provar-se nomeadamente a localização de cada um(a) dos agentes / intervenientes no “palco dos acontecimentos”, em cada preciso momento.
Todos os elementos probatórios que possam até aparentar à partida ser menos relevantes poderão efetivamente vir a sê-lo, face ao acervo factual descrito na acusação – o que não poderá, salvo o devido respeito, ser considerado como diligências dilatórias, que em nada contribuem para a decisão a proferir.
XI
Aliás a própria arguida, aqui recorrente tenta desde há muito tempo, por si própria obter tais informações - cfr. documentos comprovativos de tal (seis comunicações enviadas ao SIRESP desde18/01/2024) juntos à Contestação, não tendo, contudo, logrado as conseguir por motivos a que é completamente alheia. O que é, contudo, revelador de sua não intensão de protelar o curso do processo.
XII
Coartando-se a possibilidade de a arguida, aqui recorrente ver esclarecidas nomeadamente as questões dos horários, com aquela aquidade à qual não pode resistir a mais tímida dúvida, corre o sério risco de serem dados por provados factos somente com a prova oferecida nesta matéria pelo Ministério Público, sem qualquer possibilidade de contradita.
XIII
O princípio de igualdade de armas pressupõe que a Arguida, aqui Recorrente, e a Acusação se encontrem em paridade de condições, que tenham direitos processuais idênticos.
XIV
A igualdade estaria afetada se o modelo da indicação da prova oferecesse apenas vantagem a uma das partes em relação à outra. Isto é, serem admissíveis provas oferecidas pelo Ministério Público e co-relacionadas com as mesmas não serem admitidas as da Arguida, como foi o caso.
XV
O que configura, uma clara violação das garantias de defesa da arguida.
Nestes termos e nos melhores de Direito, requer-se a V. Ex.ªs, que julguem procedente o presente recurso e, consequentemente, revoguem o despacho de 19/03/2024, na parte aqui colocada em crise, substituindo-o por outro que defira a prova requerida.
Com o que fará, desta forma, o Venerando Tribunal a devida JUSTIÇA. O que se pede e espera.
5 - Este recurso interlocutório da arguida, foi recebido por despacho judicial proferido na 1ª instância em 9.4.2024 (fls 684).
6 - O MP na 1ª instância, veio responder ao recurso interlocutório da arguida, pugnando pelo seu não provimento e finalizando a sua resposta com as seguintes (transcritas) conclusões:
1º- A arguida interpõe o presente recurso [fls. 679 a 683], por não se conformar com o despacho datado de 19.03.2024, com a Ref.a433935561, na parte que indefere a(s) diligência(s) probatória(s) de notificação do SIRESP, para obtenção de informações e a perícia — cfr. fls.654 verso e 655-requeridas pela recorrente, solicitadas na sua Contestação/Defesa [vide Ref.º38758771 de 11.03.2024, fls.648 a 655]; alega que a diligências probatórias são essenciais e indispensáveis para a boa decisão da causa e da descoberta da verdade material e que ocorre a Violação do princípio da igualdade de armas e dos direitos de Defesa da arguida.
2º- Quanto ao primeiro argumento, consigna-se que não existe a invocada violação do princípio da investigação oficiosa, (Cfr.art.º323º/al. a) e 340º/1 do CPP), uma vez que, o tribunal "a quo" pode ordenar a produção da prova requerida pelo(a) arguido(a) durante a audiência, se o seu conhecimento se lhe afigurar necessário à descoberta da verdade (princípio da necessidade) e à boa decisão da causa, não podendo a mesma colidir com o interesse da realização da justiça penal.
3º- Assim, as provas requeridas na contestação (com excepção da prova testemunhal) estão sujeitas a controle judicial (art.º 340º do CPP) e impende sobre a requerente o ónus de alegar e demonstrar em concreto a sua necessidade para a descoberta da verdade e boa decisão da causa, o que se nos afigura que não ocorreu in casu.
4º- No caso concreto a recorrente está acusada da prática de um crime de abandono de posto, previsto e punido no art.º 66º/1, al. e) do CJM, aprovado pela Lei nº 100/2003, de 15.11, cuja a conduta ilícita traduz-se em o militar abandonar (de forma permanente ou temporária) sem prévia autorização, o posto ou lugar de serviço designado ou o serviço que lhe cumpria, intimamente ligados à actividade militar.
5º- Ora, tendo em conta a acção típica do ilícito, afigura-se-nos que as informações do SIRESP e a perícia requerida, não tem a virtualidade de infirmar ou confirmar a violação do bem jurídico em causa, pelo que, bem andou o Tribunal "a quo" ao concluir que, tais meios de prova não são essenciais, idóneos e relevantes, para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa, pelo que deve improceder o recurso intentado, nesta parte.
6º- Quanto ao segundo argumento da recorrente, ao sustentar que, o Tribunal "a quo" ao indeferir as diligências probatórias violou o princípio da igualdade de armas, o princípio do contraditório e as garantias de defesa da arguida, consigna-se que também não lhe assiste razão.
7º- A garantia constitucional do acesso a um processo justo e equitativo consagrada no art.º 20º/1 e 4 da CRP, densifica-se em várias regras de que se destacam o direito à igualdade de armas e de tratamento, no processo, sendo proibidas todas as diferenças de tratamento arbitrárias, a proibição da indefesa e a garantia do direito ao contraditório, o direito à fundamentação das decisões, o direito à decisão em prazo razoável, o direito de conhecimento dos dados do processo, o direito à prova e o direito a um processo orientado para a prossecução da justiça material.
8º- O princípio da igualdade de armas pressupõe que, autor e réu se encontrem em paridade de condições, que tenham direitos processuais idênticos e estejam sujeitos também a deveres, ónus e cominações idênticas, sempre que a sua posição no processo seja equiparável.
9º- O direito à igualdade de armas não implica uma identidade formal absoluta de meios e, não é absolutamente incompatível com a atribuição aos poderes públicos de um tratamento processual diferenciado relativamente às partes processuais em geral, desde que a solução não seja arbitrária, irrazoável ou não fundamentada, e não envolva uma compressão excessiva do princípio da igualdade de armas ligando-se assim esse princípio com o princípio da proporcionalidade.
10º- O princípio do contraditório, sendo integrante e central nos direitos do acusado (apreciação contraditória de uma acusação dirigida contra um indivíduo), é interpretado como exigência de equidade, no sentido em que ao acusado deve ser proporcionada a possibilidade de expor a sua posição e de apresentar e produzir as provas em condições que lhe não coloquem dificuldades ou desvantagens em relação à acusação.
11º- O regime processual penal não impõe a busca da verdade absoluta, nem o tribunal "a quo" dispõe de um poder ilimitado na produção da prova, pois que, a verdade processual é uma verdade judicial, prática e, sobretudo, não é uma verdade obtida a todo o preço, mas processualmente válida; a prova deve ser obtida com observância das regras impostas pelo legislador e não com desrespeito das mesmas, como pretende a recorrente.
12º- No caso concreto, o despacho recorrido não é arbitrário, irrazoável ou não fundamentado e não envolve uma compressão excessiva do princípio da igualdade de armas.
13º- Ante o exposto, o Ministério Público defende que, o despacho recorrido não violou o princípio da investigação oficiosa da verdade, o princípio da igualdade de armas, o princípio do contraditório e as suas garantias de defesa, previstos nos art.ºs 315º/3 e 340º do CPP, art.º 20º/1 e 4 e 32.º/1 e 5 da CRP.
Nestes termos, julgamos que o presente recurso não merece provimento, devendo ser considerado improcedente e mantida na íntegra a decisão recorrida.
Porém, Vª Exas, como sempre, farão a costumada JUSTIÇA!
7 - Inconformada também com a decisão final condenatória, dela recorreu igualmente a arguida, mantendo além do mais, o seu interesse na apreciação por este Tribunal superior, do seu recurso interlocutório recebido em Abril de 2024, sendo que a motivação apresentada, termina com a formulação das seguintes (transcritas) conclusões:
1. A recorrente não se conforma com a decisão condenatória proferida contra si e que a condena, indevidamente, pela prática de um crime de abandono de posto p. e p. pelo artigo 66º do Código de Justiça Militar na pena de 8 meses de prisão, suspensa pelo período de 1 ano, sob o regime de prova, nos termos do disposto no art.º 53º do Código Penal.
2. A recorrente insurge-se veementemente contra a decisão proferida e reclama a sua inocência e por isso deverá ser absolvida.
3. «Diz-me como tratas o arguido, dir-te-ei o processo penal que tens e o Estado que o instituiu.» Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I, Coimbra, Coimbra Ed., 1974, pág. 428.
4. O presente recurso visa o reexame da matéria de facto, tendo por base o registo da prova efectuado em audiência, e também o reexame da matéria de direito, abrangendo toda a decisão.
5. Atenta a prova produzida o Tribunal a quo tinha que se abster de condenar a arguida e por isso absolvê-la.
6. A recorrente transcreve parcialmente os depoimentos que, no seu entendimento, demonstram a errada interpretação que o Tribunal a quo realizou para condenar a arguida, embora.
7. O Tribunal a quo labora em erro na gritante e incorrecta aplicação do direito aos factos e consequente grave erro de julgamento. A falta de rigor, comum a todos os intervenientes obrigados à busca da verdade material no processo, é chocante.
8. Lamenta-se, verdadeiramente, o esforço do Tribunal a quo em manifesto exercício de cherry picking pela confirmação cega da acusação pública elaborada, única e exclusivamente, com base na deficiente e falível informação do OPC.
9. A arguida recorrente dá por reproduzida toda a motivação que antecede, impugnando veementemente a matéria vertida nos FACTOS PROVADOS impugna veementemente a factualidade considerada provada em § 4., § 5., § 6., § 7., § 8., § 9., § 10., § 11., § 12., § 13 e § 23. da decisão ora recorrida.
10. Com todo o respeito, que é muito e bem devido, o Tribunal a quo labora em erro, perpetrado por uma investigação inexperiente e experimental levada a cabo pelo OPC, pelas notórias deficiências e alheamento do Ministério Público à realidade militar e falta de rigor do Colectivo que resultou na gritante e incorrecta aplicação do direito aos factos e consequente grave erro de julgamento. A falta de rigor, comum a todos os intervenientes obrigados à busca da verdade material no processo é evidente.
11. Em qualquer unidade militar, só entende o que se passa lá dentro os próprios militares. É uma micro sociedade com uma dinâmica muito própria. As ordens cumprem-se, não se discutem. Por vezes, nem são expressas, subentendem-se. Existem códigos de conduta.
12. É convicção da recorrente que foi tão só denunciada, acusada e condenada, porque mantém uma relação marital com o Comandante do Destacamento e, aos olhos de alguns camaradas, poderá ser beneficiada. Por sua vez, a forma de atacar um superior hierárquico, é sempre pelo flanco.
13. Lamenta-se, desde o primeiro momento da primeira sessão de audiência e julgamento ao esforço do Tribunal a quo, em manifesto exercício de cherry picking pela confirmação cega da acusação pública elaborada, única e exclusivamente, com base no diz que disse e na impossibilidade de sincronizar minutos do tempo. A arguida já estava condenada assim que respondeu aos costumes, basta ouvir os registos e afigura-se difícil distinguir o Ministério Publico do Tribunal a quo.
14. Involuntariamente ou não, a investigação foi conduzida para produzir determinada prova para alicerçar a acusação pretendida. Ao longo das repetidas e diferentes inquirições às mesmas testemunhas, o depoimento foi sendo construído, para o bem e para o mal.
15. A condenação da arguida por abandono do posto, é abusiva e não faz o menor sentido!
16. Com interesse para a decisão regista-se que a testemunha II regressou ao posto por ordem do CMTE de Destacamento, este encontrava-se na parada e conversou com a AA, ora recorrente, cujo teor da conversa não ouviu.
17. É bom que se entenda que, se a AA foi dispensada pelo CMTE, não tinha qualquer obrigação de transmitir a ordem que recebera ao seu binómio. Se estavam próximos uns dos outros e se a AA se apresentou ao CMTE, será este, ainda que não tenha qualquer obrigação de dar satisfações aos seus subordinados, que deverá dar as instruções necessárias para a boa execução dos serviços.
18. Veja-se que, a própria "testemunha respondeu que a Guarda-principal Amorim abandonou a patrulha na presença do Sr. DD, na data dos factos Comandante do Destacamento de Trânsito de Setúbal e seu superior hierárquico, e por esse motivo não lavrou qualquer participação ou Auto de Notícia." "... existiu alteração ao serviço que estava determinado e que toda a situação foi do conhecimento direto do Sr. DD." cfr. fls. 395 e vº, em 29-06­2022, e bem. Ou seja, a responsabilidade seria sempre do CMTE e não da Guarda-principal que terá cumprido ordens ou terá sido dispensada do serviço/patrulha por ordem do seu CMTE e "Quando questionado se havia mais testemunhas no local, diz que com a confusão não se recorda, ..." cfr. fls 224, em 12-12-2022.
19. A testemunha II, ao que parece, sempre desconheceu se existia motivo legitimo para o seu binómio, ora recorrente, se ausentar.
20. Embora existam discrepâncias nos seus diferentes depoimentos o que, por certo, não abonará muito à sua credibilidade, contrariamente ao entendimento do Tribunal a quo, ainda com interesse para a decisão que venha a ser proferida pelo Tribunal ad quem, existe o seu depoimento em sede de audiência e julgamento no dia 24-04­2024, registado pelas 10 horas e 31 minutos e o seu termo pelas 11 horas e 04 minutos, onde se pode ouvir a testemunha afirmar que "Só tenho a falar bem dela" cfr. mn 02:04 a 02:08, "Eu nunca disse que foi abandono, eu disse que se ausentou da patrulha, ela ausentou-se da patrulha" vd. mn 03:44 a 03:52, "na altura se foi devidamente autorizada ou não, desconheço o que aconteceu" vd. mn 03:57 a 04:02, "... ela no meio disto tudo foi uma vítima também porque ..." vd. 04:04 a 04:07, "o comandante destacamento telefona-me directamente a mim e pede-me para me deslocar a Coina precisava de falar com a AA" vd. 05:15 a 05:24, "e ela foi fardada? Foi, foi fardada" vd. rim 13:40 a 13:45, "Entretanto aparece o Capitão DD (...) e disse-lhe olhe, infelizmente as coisas parece que descambaram, não se preocupe que eu vou fazer a Marinha, não vou deixar a Guarda, a instituição mal (...) não se preocupe que a Marinha há-se ser feito, sozinho ou acompanhado (...) as coisas não vão descambar, não vou deixar a instituição mal" mn 14:34 a 15:00. (o sombreado é nosso)
21. Este registo da inquirição da testemunha II afasta por completo qualquer imputação criminal à recorrente Guarda-principal AA.
22. Com supra referido, a Guarda-principal depois de falar pessoalmente com o CMTE do Destacamento, DD, ficou dispensada de realizar a patrulha, obtendo motivo legítimo para se ausentar sem ter que pedir autorização ao inferior hierárquico II.
23. Tanto assim é que, o II, que comandava a patrulha (binómio Guarda-principal AA e II) garantiu ao CMTE do Destacamento que o serviço iria ser realizado exortando-o a confiar em si na realização da missão. Esta postura é frequente no seio militar atento o espírito de corpo (não é corporativismo) que ali existe, ao contrário do que acontece nas instituições não militares.
24. Apurar-se da existência do ilícito abandono de posto, reside essencialmente nas declarações da arguida Guarda-principal AA, ora recorrente, na inquirição da testemunha II e CMTE do Destacamento DD. São estes os únicos intervenientes que trazem conhecimento aos autos que permite ao Tribunal ad quem reconhecer da existência do ilícito de abandono de posto. O Tribunal a quo não consegue demonstrar o que a arguida possa ter contribuído para a realização do ilícito nem que o mesmo tenha ocorrido.
25. Afinal, a missão foi cumprida e o serviço realizado sem qualquer prejuízo. Aliás, nestas organizações sempre se agilizaram alterações de última hora, quer nas escalas de serviço, quer nas missões ou situações inusitadas que acabam por ser frequentes e não fora a operacionalidade que caracteriza estas instituições as situações não eram superadas.
26. A fita do tempo não interessa para a decisão, o momento está isolado e permanece entre os três intervenientes. Até porque em bom rigor, só é determinante para aferir da eventual prática do crime o exacto momento que envolve os três elementos, e as comunicações entre eles, a Guarda-principal AA, ora recorrente, a testemunha II e CMTE do Destacamento DD. Tudo o resto nada acrescenta!
27. Com a dispensa e autorização do CMTE do destacamento, a arguida pôde não executar a missão, pôde sair ou ficar no posto a dormir ou tratar de expediente. Pôde ir à sua vida!
28. Veja-se, ainda, com interesse para a decisão a proferir pelo Tribunal ad quem que o II, Chefe de Patrulha, não levantou qualquer auto de abandono de posto nem considerou que o mesmo tenha ocorrido.
29. A fls. 88, 89 e 92 constata-se que a informação de serviço manuscrita pelo Comandante de Ronda/Patrulha II reproduz que:
30. "Patrulha efectuou desembaraçamento à Marinha do …/Alfeite das 13H30 às 14H00. Decorreu s/ incidentes. Patrulha/Desembaraçamento efectuada c/ c/JJ em virtude de imediato se ter ausentado." (o sombreado e sublinhado são nossos)
31. Logo, não andou bem o Tribunal a quo em considerar o abandono de posto com base na denúncia anónima, na divergência dos depoimentos, conversas de caserna, no diz que disse, produzido por terceiros e por quem não teve conhecimento directo dos factos.
32. As alegadas suspeitas contra a arguida são meramente circunstanciais, somente suspeições não baseadas em factos consistentes e decisivos não demonstrando a menor força e dignidade para a condenar. Ou seja, a arguida foi vítima de uma intriga que o Tribunal a quo não conseguiu percepcionar.
33. É o que resulta com evidência de toda a matéria que consta dos autos e de todos os depoimentos prestados em sede de audiência e julgamento, mormente do depoimento prestado pela testemunha da acusação II, Comandante da Patrulha "... ela no meio disto tudo foi uma vítima também porque ..." vd. 04:04 a 04:07, que, imediatamente, interrompido pelo Tribunal a quo, não fosse a testemunha embaraçar a linha persecutória adoptada, bem como o depoimento prestado, em 04-05-2023, pelo FF cfr. fls. 458 e reiterado na audiência e julgamento de 24-04-2024 e registado entre as 15 horas e 49 minutos e as 15 horas e 59 minutos, onde se ouve "... vou ser brega, se me vai perdoar, é um ninho de víboras, pronto, aquilo toda a gente tenta-se prejudicar a toda a gente." Vd. 08:03 mn a 08:47 mn. Não obstante a transparência e credibilidade do seu depoimento, mereceu, como as demais testemunhas arroladas pela defesa, a extracção de certidão para procedimento criminal só porque disse que viu a arguida na parte exterior do posto entre as 15 e as 16 horas no dia dos factos cfr. inquirição de fls. 458, prestada em 04-05-2023, e depoimento registado em audiência vd. 03:25 a 03:55.
34. Na decisão recorrida existe manifesta contradição na sua fundamentação. O Tribunal a quo valoriza e credibiliza o depoimento da testemunha da acusação II atribuindo-lhe um sentido errado para o enquadramento jurídico.
35. A credibilização desse depoimento, que acompanhamos, conduz, como supra referido, necessariamente à absolvição da arguida.
36. A arguida não possui quaisquer antecedentes criminais. Nada existe que, possa levar o Tribunal a quo a considerar a arguida recorrente como uma pessoa delinquente. Pelo contrário, existe informação bastante, quer documental quer testemunhal, que demonstra que é uma boa militar
37. Na verdade, é que de todos os depoimentos prestados nada se retirou que permitisse ao Tribunal a quo fazer um juízo convicto sobre a, eventual, prática de um crime de abandono de posto.
38. Não equacionamos outra decisão que não a absolvição da arguida porém, atenta a elevada apreciação de Vossas Excelências, que pode conduzir à manutenção da decisão recorrida, acresce salientar que sempre se entenderia como uma pena excessiva, atenta a moldura penal (pena de prisão de 1 mês a 1 ano), tenho o Ministério Público, em sede de alegações orais se conformado com uma pena de 4 meses, e pela aplicação do regime de prova durante o período da suspensão que acaba, in casu, por ter só um efeito humilhante e não um carácter pedagógico olvidando-se, ainda e sintomaticamente, o Tribunal a quo do preceituado no nº 2 do mesmo dispositivo legal.
39. Nunca é demais repetir que, é ao Ministério Público que cabe a prova de que a arguida praticou os factos que lhe estão a imputar. Não é a arguida que tem de provar os factos que demonstram a sua inocência, mas é a acusação que, além de ter de provar os factos de onde resulte a sua culpabilidade, terá de indiciá-los por factos que integrem o tipo de crime pelo qual a acusa.
40. E o Tribunal a quo não pode inverter o ónus da prova e abster-se de Julgar com imparcialidade. Há que descobrir a verdade material e respeitar os princípios constitucionalmente consagrados.
41. Perante a análise critica dos factos descritos na motivação e respectivo enquadramento jurídico, crê a recorrente que a existirem ou subsistirem dúvidas insupríveis na avaliação da prova, tais dúvidas não podem ser valoradas contra si.
42. É o que impõe o princípio in dubio pro reo, como contrapólo do princípio da oficiosidade que caracteriza o processo penal.
43. E sempre se diga, nunca é demais repetir, que: "1. Nos termos do nº 2 do artigo 32º da Constituição da República, «todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa». Por sua vez, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 de Dezembro de 1948 (cuja autoridade interpretativa e integradora em matéria de direitos fundamentais está estabelecida no artigo 16º, nº 2 da Constituição da República), estatui, no nº1 do seu artigo 11º, que «toda a pessoa acusada de um acto delituoso presume-se inocente até que a sua culpabilidade fique legalmente provada no decurso de um processo público em que todas as garantias necessárias de defesa lhe sejam asseguradas». De igual modo, no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, de 1976, estabelece-se que «qualquer pessoa acusada de infracção penal é de direito presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido legalmente estabelecida» (artigo 14º, nº 2), e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, de 1950, estabelece-se que «qualquer pessoa acusada de uma infracção presume-se inocente enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente provada» (artigo 6º, nº2)." Vd. O Princípio da Presunção de Inocência do Arguido no Actual Processo Penal Português, AAFDL, Rui Patrício, 2000.
44. Pelo exposto, o Tribunal recorrido ao não ter aplicado o princípio in dubio pro reo, não procedeu em conformidade com os princípios que norteiam a apreciação da prova, princípio este que assim deverá ser, caso se julgue necessário, aplicado pelo Tribunal ad quem na apreciação da matéria que motiva o presente recurso.
45. Salvo o maior respeito pelas elevadas funções da judicatura, que muito louvamos, não podia o Tribunal a quo abster-se de julgar convenientemente devendo, a todo custo, procurar a verdade material.
46. A recorrente entende que a decisão recorrida padece de nulidade atento o disposto nos artigos 374.º, n.º 2 e 379º do C.P.P..
47. A fundamentação deve ser um desenvolvimento das premissas previamente enunciadas, para que, mais do que vencer, a decisão logre convencer e demonstrar-se perante os seus destinatários como plena, racional e motivada.
48. Parafraseando Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. II, pág. 293: "É hoje entendimento generalizado que um sistema de processo penal inspirado nos valores democráticos não se compadece com decisões que hajam de impor-se apenas em razão da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que lhes subjaz. Por isso é que todos os Códigos modernos exigem a fundamentação das decisões judiciais, quer em matéria de facto, quer em matéria de direito".
49. "A fundamentação dos actos é imposta pelos sistemas democráticos com finalidades várias: permite a sindicância da legalidade do acto, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça (—) ".
50. Ora, da decisão recorrida, restam sem solução ou resposta questões importantíssimas que se suscitam na motivação que antecede às quais o Tribunal a quo não apresenta a mínima explicação.
51. Pelo que a não apreciação de tais questões conforma omissão de pronúncia, a implicar a declaração de invalidade do acórdão recorrido.
52. Deste modo, padece a decisão recorrida de nulidade por ausência de fundamentação e omissão de pronúncia quanto a questões essenciais, o que determina a declaração da sua invalidade e a sua substituição por outra que se pronuncie sobre todas as questões suscitadas, com respeito pelo correlativo dever de fundamentação que devem revestir todas as decisões judiciais.
53. A não pronúncia sobre tais questões além de geradora de nulidade, nos termos gerais do art.º 379º, nº 1, al. c) do C.P.P. acima mencionados, consubstancia uma inconstitucionalidade, por violação dos artigos 32º n.º 1, 203º e 205º, n.º 1 da C.R.P., inconstitucionalidade essa que desde já se argui para todos os efeitos legais.
54. Ao não decidir pela absolvição da arguida, a recorrente entende que, a decisão condenatória devia ser considerada nula, devendo proceder-se à sua revogação por outra que absolva a arguida.
55. Preceitos violados: art.º 66º n.º 1 al. e) e nº 2 do Código de Justiça, e 97º nº 5, 124º, 125º, 126º nº 2 al. a), 127º, 138º, 355º nº 1, 374º nº2, 379º nº 1 al. c) do CPP e, ainda, 13º e 32º nº1 da C.R.P..
Nestes termos e nos melhores de Direito, atento o supra exposto, deve o presente recurso ser julgado procedente por provado e, consequentemente ser:
a) Declarada a nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia e do dever de fundamentação;
b) Revogada a decisão sobre a matéria de facto e modificar a factualidade provada nos termos supra alegados e, em consequência, absolver a arguida da prática do crime pelo qual vem condenada;
c) Alterada a decisão sobre matéria de direito verificando a inexistência dos elementos subjectivo e objectivo do crime de abandono de posto, devendo-se absolver a arguida da prática deste crime;
d) Caso assim não se entenda, ordenar a remessa dos autos à primeira instância para a realização de novo julgamento, devendo ser produzida toda a prova necessária à descoberta da verdade material;
e) Sindicar-se o princípio da "livre apreciação da prova", enquanto princípio jurídico, de apreciação de prova, logo, matéria de direito, para concluir pela inadmissibilidade da prova por concatenação geral, aplicada no presente caso, por não derivar das regras da lógica e da experiência comum;
f) Aplicar-se o princípio in dubio pro reo;

fazendo-se destarte a mais sã e correcta JUSTIÇA !

8 - O Ministério Público na 1ª instância, apresentou resposta, a este recurso da decisão final, pugnando pela confirmação da condenação ali proferida, finalizando a sua resposta com as seguintes (transcritas) conclusões:
1º- A recorrente interpõe o presente recurso, por não se conformar com o Acórdão condenatório (Refº435589505) que a condenou pela prática de um crime de abandono de posto, previsto no art.º 66º/1, al. a) e 2 do CJM, na pena de 8 (oito) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 (um) ano, sujeita a regime de prova, uma vez que, defende que existe nulidade do acórdão por falta de fundamentação e omissão de pronúncia, contradição insanável da motivação da decisão, violação do principio da livre apreciação da prova, violação do princípio do in dúbio pro reo, pugnando pela sua absolvição; mais invoca a violação do disposto nos art.º 66º/1, al. e) e 2 do CJM, 97,º/5, 124º, 125º, 126º/2 al. a), 127º, 138º, 355º/1, 374º/2, 379º/1 al. c) e 2, 410º/2 al. b), todos do CPP, os art.º 13º e 32º/1 da CRP.
2º- Sucede que, da leitura do Acórdão recorrido e da sua fundamentação factual (factos "provados e não provados") bem como a convicção obtida, são sustentados em prova legalmente admissível, mediante uma exposição concisa, dos motivos de facto de direito que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, dando a conhecer p percurso lógico e racional efectuado em sede de apreciação e valoração da prova que conduziu à demonstração (ou não) da factualidade objecto da decisão recorrida.
3º- Afigura-se-nos que, o Acórdão recorrido cumpre com os requisitos gerais da sentença enunciados no art.º 374.º do CPP, contendo todos os factos que interessam à comprovação do crime praticado e à determinação concreta da pena, não se verifica a nulidade do acórdão, por falta de fundamentação, nos termos do art.º 379.71, al. c), do CPP, pelo que deve improcede esta questão.
4º- Acresce que, o acórdão recorrido não é nulo, nos termos do previsto no art.º 374º/2 e 379º/1 al c) do CPP, pois, não existe omissão de pronúncia quanto ás questões submetidas a apreciação do Tribunal "a quo";
5º - O Tribunal "a quo" apreciou as questões (o thema decidendum) que os sujeitos processuais interessados submetem à apreciação do tribunal (art.º 660º/2, do CPC) ou de que devesse conhecer oficiosamente, quer quanto à relação material, quer quanto à relação processual.
6º- Entendendo-se por questões os dissídios ou problemas concretos a decidir (o thema decidendum) e não sobre motivos ou argumentos; as ditas questões dizem respeito ao concreto objecto que é submetido à cognição do tribunal; a falta de apreciação das primeiras consubstancia a verificação da nulidade; o não conhecimento dos segundos, será irrelevante.
7º- Acresce que, o Tribunal "a quo" tomou posição expressa sobre todas as questões que devia apreciar, afrontando, analisando-as, de forma minuciosa, emitindo a sua opinião, pelo que se conclui que, a decisão recorrida não merece censura.
8º- A recorrente pode manifestar a sua discordância com o ponto de vista defendido pelo julgador, todavia, uma coisa é discordar de uma posição assumida de forma expressa, patente, clara, e com ela não estar em consonância, outra coisa é, por se discordar da mesma, invocar que houve uma omissão de pronúncia; termos em que, não se verifica a nulidade do acórdão, por omissão de pronúncia, nos termos do art.º 379º/1, al. c), do CPP, pelo que deve improcede esta questão.
9º- A recorrente invoca a existência de contradição na fundamentação, todavia não especifica, no texto da decisão impugnada, aquilo que está em contradição; para que tal vício se verifique, o mesmo não pode ser ultrapassável pelo Tribunal de recurso com eventual recurso às regras de experiência ou elementos dos autos.
10º- Na verdade, a recorrente aponta como contradição insanável uma "outra leitura" que faz da prova produzida, invocando a sua própria interpretação/valoração do depoimento de II, transcrevendo-o na parte que considera relevante, para a absolvição da arguida.
11º- Porém, tal argumentação não constitui contradição insanável, que só pode resulta do texto da sentença; a impugnação da matéria de facto que o recorrente pretende ver apreciada, nos termos invocados só pode ser usado pela recorrente como erro de julgamento e não como contradição insanável (ou mesmo erro notório).
12º- Da leitura do acórdão recorrido resulta que não se verifica qualquer contradição insanável, pelo que se concluí que o mesmo não padece do vício enunciado no art.º 410º/2, alínea b) do CPP e deve negar-se provimento ao recurso interposto, nesta parte.
13º- A recorrente impugna a matéria de facto dada como provada nos pontos 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13 e 23, pugnando pela sua inocência e absolvição, por não se mostram preenchidos, em seu entendimento, os elementos do crime de abandono de posto, porém sem razão.
14º- O Tribunal "a quo" para dar como "provado" os pontos 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13 e 23 impugnados, baseou-se nos depoimentos das testemunhas II, KK, JJ, LL e MM, os quais valorou, por serem isentos, credíveis, consistentes, coerentes e honestos, sem que tenha ocorrido qualquer motivo susceptível de descredibilizar os mesmos; sustentou-se a sua convicção, designadamente, na prova documental de fls.343, 446, 472 a 475.
15º- Acresce que, a impugnação da matéria de facto do Acórdão recorrido deve improceder, uma vez que, a convicção que Tribunal "a quo" chegou mostra-se objeto de um procedimento lógico e coerente de valoração, com motivação bastante, e onde não se vislumbre qualquer assumo de arbítrio na valoração e apreciação da prova (art.º 127º do CPP).
16º- Assim, tendo em conta o teor dos citados depoimentos, o Tribunal "a quo" concluiu que a "alegado ordem de substituição da arguida" [do Cap. DD] não foi dada por quem quer que fosse, tendo partido da iniciativa espontânea do JJ a execução do serviço que, naquela data, competiria ser assegurado pela arguida, na patrulha comandada pelo II, dado que a arguida se ausentou para parte incerta sem fornecer, para tanto e a quem quer que fosse, qualquer justificação.
17º- Por outro lado, no exame crítico da prova, o Tribunal "a quo", considerou que as declarações da recorrente e os depoimentos de QQ, DD, EE, FF, GG e HH eram falsos e desconformes à verdade, tendo sido contrariados pelo teor dos depoimentos de II, KK, JJ.
18º- A recorrente, tendo negado a prática dos factos, impugna ainda a prova do elemento subjectivo (pontos 10, 11, 12 e 13 dos factos provados), sucede que, perante a falta de confissão, o conhecimento e a vontade de praticar um crime, (isto é a prova do dolo), são percepcionados a partir dos elementos objectivos, dados como provados (ponto 1 a 9), segundo as regras da experiência e da lógica, como indicadores da sua existência.
19º- Quanto à impugnação da (actualidade do ponto 23 - isto é, a ausência de sentido crítico e de auto-censura exibidos pela arguida - o Tribunal "a quo" sustentou a sua convicção na observação directa e clara que fez do comportamento da recorrente, em julgamento, em termos de forma e conteúdo (de acordo com o princípio da imediação e oralidade).
20º- Portanto, para que ocorra a modificação da decisão de facto é necessário que, as provas produzidas permitam uma decisão diversa da proferida, o que não sucede in casu, uma vez que, a prova especificada pela recorrente não impõe uma decisão diferente da proferida pelo Tribunal "a quo".
21º- A motivação do recurso da recorrente apenas evidencia que, esta diverge apenas com a "forma" como foi apreciada a prova, ora, vigorando no nosso direito processual penal o referido princípio da livre apreciação da prova, o mesmo não integra qualquer vício da decisão recorrida.
22º- A tese da recorrente assente em uma "outra leitura" dos factos e das provas produzidas, bem como da credibilidade conferida (ou não) às testemunhas, sem que tenha indicado contradições ou incoerências que pudessem por em crise a fiabilidade dos depoimentos das testemunhas e da prova documental juntas aos autos e da própria convicção do Tribunal.
23º- O Tribunal "a quo" - respeitando os princípios oralidade e imediação na produção de prova e o princípio da livre apreciação da prova (art.º 127º do CPP)- num procedimento lógico e coerente de valoração, bem fundamentado, não revela qualquer assumo de arbítrio na apreciação da prova, pelo que, não se verifica Qualquer condenação abusiva, sendo o sentido da decisão, uma das soluções possíveis, em consonâncias com as regras da experiência comum, pelo que não deverá ser alterada a factualidade provadas, pelo Tribunal "ad quem".
24º- Assim, tendo em conta a caracterização do crime e os factos dados como provados ( pontos 1 a 25), forçoso é concluir que se mostram preenchidos todos os elementos do tipo que permitem a condenação da recorrente pela prática do crime de abandono de posto na pena fixada, porquanto, a arguida abandonou, temporariamente, sem motivo legítimo e/ou autorização de superior hierárquico, o local ou área determinados para o correto cumprimento das suas funções, não estando na sua disponibilidade alterar unilateralmente os termos em que lhe é estabelecido o cumprimento de tal obrigação de serviço; mais se provou que a arguida, com a sua conduta, prejudicou o cumprimento do serviço, agiu deliberada e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
25º- À luz do que dito, afigura-se-nos que, o acórdão recorrido, não violou o disposto nos art.º 124º, 125º, 126º, 127º, 355º do CPP, os art.º 13º e 32º/1 da CRP e o artº66º/1, al. e) do CJM, pelo que, bem andou o Tribunal "a quo" ao condenar a recorrente pela prática do crime de abandono de posto, devendo improceder o recurso, nesta parte.
26º- Por último, entende a recorrente que o Tribunal "a quo" violou o princípio in dubio pro reo, uma vez que da fundamentação da decisão de facto do acórdão recorrido evidencia a existências de dúvidas que foram solucionadas em desfavor do recorrente, diga-se, porém, que não lhe assiste qualquer razão.
27º- O princípio in dubio pro reo significa para conduzir à condenação, a prova deve ser plena, sendo imprescindível que o tribunal tenha formado convicção acerca da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável; quando assim não é deve o agente do crime ser absolvido de acordo com o citado princípio de direito probatório decorrente da presunção de inocência (art.º 32º da CRP).
28º- Em sede de recurso, o uso feito do princípio in dubio pro reo afere-se pelo texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sendo que quando daí resultar que o Tribunal "a quo" chegou a um estado de dúvida insanável e que, face a ele, optou pelo sentido desfavorável ao arguido, se impõe concluir que ocorreu violação daquele princípio.
29º- Revertendo ao caso em apreço, e apesar das considerações da recorrente na motivação do seu recurso, o Tribunal "a quo", ante a conjugação dos elementos probatórios de modo lógico e coerente, não ficou com qualquer dúvida (razoável, objectiva e motivável) e deu como provado que a arguida praticou a totalidade dos "factos provados" no acórdão recorrido (designadamente os pontos 1 a 25).
30º- Por outro lado, não se detecta qualquer estado de dúvida na explanação efectuada na motivação, porquanto a mesma manifesta a convicção segura do Tribunal "a quo", baseada na indicada prova, pelo que, em concreto não há que lançar mão do princípio in dubio pro reo, pelo que, a decisão recorrida não merece qualquer censura ou reparo, devendo improceder esta parte da impugnação da decisão fáctica .
Termos em que se entende que não assiste razão à recorrente, pelo que deve o recurso improceder, mantendo-se a decisão na integra.
Porém, Vª. Exas. como sempre, farão a costumada JUSTIÇA!
9- Nesta Relação de Lisboa, a Sr.ª Procuradora Geral Adjunta quando o processo lhe foi com vista, nos termos e para os efeitos do art.º 416º/1 do C.P.P, emitiu parecer, onde acompanha a posição do Ministério Público na primeira instância relativamente a ambos os recursos interpostos pela arguida (interlocutório e final, como se transcreve (em resumo):
“Subscrevemos na íntegra a posição do Ministério Público em 1ª Instância, atenta a completude, pertinência, correção jurídica e clareza da sua fundamentação, que, de forma aprofundada, identifica e analisa cada uma das questões, controvertidas e, com total acerto, realça os fundamentos de facto e de direito que levam a concluir pela improcedência do recurso.
Cremos assim deverem ser relevados os argumentos assertivamente expendidos pelo Ministério Público nas respostas a recurso apresentadas em 1ª Instância, impondo-se, como tal, concluir pela improcedência dos recursos.”
10- Foi oportunamente cumprido o art.º 417º/2 do C.P.P. tendo a arguida apresentado a resposta ao parecer do MP, mantendo o que já invocara no seu recuso e acrescentando ainda, quanto ao relatório de georreferenciação, a interpretação inconstitucional que o Tribunal a quo faz da norma contida no artigo 125º do Código de Processo Penal na medida em que considera e valoriza material probatório (dados recolhidos por GPS instalado em veiculo) entregue ao OPC não validado pelo juiz, violando, assim o disposto nos artigos 26º nº 1 e 18º nº 2 da Constituição da República Portuguesa, cfr. Ac. TC n.º 506/2024 de 22-08-2024.
11- Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foi o processo à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
II - Questões a decidir
Delimitação do objecto do recurso
É pacífica a jurisprudência do S.T.J. no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, do conhecimento das questões oficiosas (art.º 410º nº 2 e 3 do C.P.Penal).
Por outras palavras, do art.º 412º/1 do C.P.P resulta que são as conclusões da motivação que delimitam o objecto do recurso e consequentemente, definem as questões a decidir em cada caso (neste sentido vide Germano Marques da Silva em “Curso de Processo Penal”, III, 2ª edição, 2000, pág. 335 e Acs do S.T.J de 13.5.1998 in B.M.J 477-263; de 25.6.1998 in B.M.J 478º-242 e de 3.2.1999 in B.M.J 477º-271), exceptuando aquelas que são do conhecimento oficioso (cf Art.º 402º, 403º/1, 410º e 412º, todos do C.P.P e Ac. do Plenário das Secções do S.T.J de 19.10.1995 in D.R, I - série de 28.12.1995).
Assim, as questões a apreciar por este Tribunal ad quem, são as seguintes:
1 - No Recurso Interlocutório: se o despacho judicial proferido em 19.3.2024 é ilegal, por violação do princípio de igual oportunidade de armas, configurando assim uma violação dos direitos de defesa da arguida
2 – No Recurso da decisão final:
A) Nulidades do Acórdão - Falta de Fundamentação e Omissão de Pronúncia- art.º 374º/2 e 379º/1 al. c) do CPP (conclusões 45º, 46º, 47º, 48º, 49º, 50º, 51º, 52º, 53º e 54º).
B) Impugnação da decisão sobre a matéria de facto – Erro de Julgamento (conclusões 4º a 33º, 35º a 40º) e vícios do art.º 410º/2 do CPP, nomeadamente o vício de contradição na motivação da matéria de facto, previsto no art.º 410º/2 al. b) do CPP (conclusão 34);
C) Violação do princípio in dubio pro reo (conclusões 41º, 42º, 43º e 44º)
III- Fundamentação de Facto
A decisão recorrida
No Acórdão recorrido, o Tribunal a quo considerou provado o seguinte:
FACTOS PROVADOS:
DA ACUSAÇÃO:
1. A arguida é militar da GNR e, à data dos factos, pertencia ao efectivo do Posto de Trânsito de Coisa, integrado no destacamento de trânsito de Setúbal, no qual exercia as funções de patrulheira;
2. No dia 22 de Outubro de 2021 a arguida e o cabo II estavam nomeados de serviço de patrulha às ocorrências do referido posto de trânsito, assumindo este as funções de comandante de patrulha, e a arguida as funções de imediata, no horário entre as 07h00m e as 15h00m;
3. Nesse dia, às 13h30m, estava previsto um desembaraçamento de trânsito, do … para o Alfeite, que consistia na escolta a material de guerra da Marinha;
4. Pelas 13h05m a patrulha saiu do posto para realizar a missão mas, poucos minutos após, o II recebeu uma chamada do DD, que, à data, exercia as funções de Comandante do Destacamento de Trânsito de Setúbal, tendo este dito para regressarem ao posto pois precisava de falar com a arguida;
5. Pelas 13h12m a patrulha deu entrada no posto, tendo a arguida saído do veículo para ir falar com o DD;
6. Após a conversa, a arguida dirigiu-se ao seu veículo particular e abandonou o posto, fardada, e sem dar qualquer justificação ou solicitado autorização para tal ao II ou à Guarda-principal KK, que se encontrava de serviço de atendimento ao público;
7. Não houve qualquer informação de superiores hierárquicos quanto à dispensa de serviço da arguida, ou instruções quanto à substituição da mesma;
8. Com vista a cumprir a missão e uma vez que a arguida se havia ausentado para parte incerta, o II pediu auxílio ao Cabo JJ, que se encontrava no posto naquele momento, e que se prontificou de imediato a acompanhá-lo;
9. Pelas 14h14m a patrulha regressou ao posto, e o II efectuou o resto do serviço sozinho;
10. Ao atuar da forma descrita, a arguida abandonou o local do exercício das suas funções para que estava superior e legalmente nomeada, sem a devida autorização, e sem qualquer motivo legítimo;
11. Sabia a arguida que não lhe era permitido, salvo autorização superior ou do seu comandante de patrulha, o abandono, mesmo que temporário, do local do cumprimento das suas funções, in casu, da patrulha às ocorrências;
12. No entanto, e ainda assim, fê-lo, agindo com o propósito concretizado de abandonar definitivamente as suas funções sem que para tal tivesse qualquer justificação ou autorização superior, e, desse modo, colocou conscientemente em risco as funções de segurança ou necessárias à prontidão operacional;
13. Mais sabia a arguida que a sua conduta era punível por lei;
DA DISCUSSÃO DA CAUSA:
14. No ano de 2020 a arguida iniciou um relacionamento afectivo com DD, Capitão da GNR e seu superior hierárquico, residindo maritalmente com o mesmo desde o ano seguinte;
15. Do seu agregado familiar faz parte um filho menor de DD, fruto de uma anterior relação afectiva deste;
16. O agregado familiar da arguida, composto pela própria, o companheiro e o filho deste, de 5 anos de idade, reside em apartamento adquirido pela primeira no ano de 2017, de tipologia T2, através de empréstimo bancário;
17. A arguida ingressou na Guarda Nacional Republicana em 2009, após ter cumprido cerca de 18 meses de serviço militar, em regime de voluntariado, exercendo funções de patrulheira no Posto da GNR supra referido desde Outubro de 2019;
18. Apresenta como habilitações literárias o 12º ano de escolaridade;
19. O seu processo de desenvolvimento decorreu junto dos progenitores e de urna irmã uterina, tendo-se autonomizado no ano de 2017, mantendo com os seus familiares uma relação de proximidade que, todavia, desconhecem a pendência do presente processo;
20. A arguida aufere, de vencimento mensal, o montante líquido de 1.200€, e o companheiro aufere, de retribuição, 1.600 €;
21. O agregado familiar da arguida suporta, como despesas fixas, o pagamento do empréstimo da habitação, pelo valor mensal de 320€, e ainda cerca de € 820 relativos ao fornecimento de água, energia, telecomunicações e frequência do estabelecimento de ensino do filho do companheiro;
22. Nos tempos livres a arguida privilegia o convívio com amigos e familiares;
23. A arguida, perante os factos subjacentes aos presentes autos, cuja prática desvaloriza, revela ausência de auto-censura e sentido crítico;
24. Da sua folha de matrícula constam duas condecorações, uma referência elogiosa, uma menção honrosa e uma pena disciplinar de repreensão escrita;
25. Não lhe são conhecidos antecedentes criminais.

No Acórdão recorrido, relativamente aos factos não provados, o Tribunal a quo, considerou o seguinte:
FACTOS NÃO PROVADOS:
Com interesse para a decisão da causa, não se provaram os factos alegados na contestação, designadamente, que:
- A caminho da ocorrência supra descrita em 3, e decorridos poucos minutos, a arguida começou a sentir-se mal, sentindo-se enjoada, pelo que enviou uma mensagem ao Comandante de Destacamento, DD, dando-lhe conta desse facto;
- Nessa decorrência, o Comandante de Destacamento, DD, contactou o II, dando ordem para que regressassem ao Destacamento de forma a efectuar a troca de militares, neste caso a troca da arguida;
- Após a chegada da patrulha ao Destacamento, o DD ordenou a troca da arguida pelo JJ, tendo a arguida entrado para o interior do posto;
- Quando o II e a arguida chegaram ao posto, esta referiu que não se sentia bem e, acto contínuo, dirigiu-se ao wc, onde vomitou;
- O DD ordenou directamente ao II a troca da arguida com o JJ;
- Quando a patrulha constituída pelo II e a arguida chegou ao posto, ainda estava no local a patrulha constituída pelo MM, o qual já se encontrava sentado dentro da viatura, e pelo Guarda QQ, que se estava a dirigir ao interior da viatura para se deslocarem para uma ocorrência na Marateca;
- A arguida, depois de ter saído do wc, deslocou-se à sua viatura a fim de recolher uma garrafa plástica, para encher de água no dispensador fornecido pela brisa que é utilizado para consumo no Destacamento, após o que, combalida, permaneceu na caserna (camarata feminina);
- A arguida permaneceu no posto até término do seu horário de serviço;
- A arguida saiu do quartel por volta das 15H45, tendo estado à conversa com o GG, com o Cabo-chefe HH e com o FF.
Consigna-se que não foram incluídos nos elencos supra os factos conclusivos e de carácter técnico-jurídico constantes da contestação, nem os destituídos de relevo para a decisão da causa.
*
O Tribunal a quo fundamentou a sua decisão de facto nos seguintes termos (com sublinhados nossos):
MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO:
A apreciação da prova é feita, nos termos do art.º 127º do Código de Processo Penal (CPP), segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente — excepto quando a lei dispuser diferentemente —, e atendendo à admissibilidade dos meios de prova que não forem legalmente proibidos — art.º 125º do mesmo código.
A obrigação imposta pelo art.º 97º, nº 4, do CPP, de fundamentar a sentença, com a especificação dos motivos, de facto e de direito, que sustentam a decisão, complementada pela indicação e exame crítico das provas que serviram para determinar a convicção do tribunal, a que alude o art.º 374º, nº 2, do diploma referido, decorre da exigência constitucional de fundamentação dos actos jurisdicionais decisórios, vertida no art.º 205º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa (C.R.P.).
Tal dever constitui, simultaneamente, uma garantia integrante do próprio conceito de Estado de direito democrático (art.º 2º da C.R.P.), e um instrumento de legitimação da decisão judicial, impondo-se, por conseguinte, que a motivação fáctica se encontre estruturada de modo preciso e completo, de forma a convencer os seus destinatários de que a operação subsuntiva à norma jurídica foi a única possível, em face da factualidade apurada (neste sentido, v. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3' edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1993, pp. 798 e 799).
Na verdade, a motivação da decisão, ao possibilitar o controlo da racionalidade e coerência da argumentação expendida pelo Tribunal, há-de permitir, ao mesmo tempo, o reconhecimento, por parte da generalidade dos cidadãos, da independência e imparcialidade daquele órgão perante os factos submetidos a julgamento, dissipando eventuais dúvidas quanto a um possível subjectivismo ou discricionariedade na aplicação do direito, apresentando-se particularmente exigível, em matéria penal, a vertente do «controlo público da justiça» — assim, cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 251/00, de 12 de Abril de 2000, proc. nº 867/98, disponível na internet, in https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20000251.html.
Ora, para formar a sua convicção, o Tribunal baseou-se no conjunto da prova constante dos autos e na produzida em audiência de discussão e julgamento, depois de sujeita à respectiva e prudente análise crítica.
Assim, teve o Tribunal em conta, desde logo, que a arguida prestou declarações, negando a prática dos factos, e atribuindo a sua sujeição ao presente processo criminal ao desagrado que alguns militares do Posto de Trânsito de Coina evidenciavam face às classificações de serviço que lhes foram atribuídas pelo DD, com quem a própria iniciou um relacionamento afectivo em 2020, não obstante este, à data, ser seu superior hierárquico. Nessa senda, de forma inconsistente, insegura e em manifesta exibição de ausência de genuinidade, a arguida adoptou um discurso de vitimização, afirmando-se injustiçada por lhe ter sido movido o presente processo, e tentando asseverar que a factualidade ocorrida na data dos factos sucedeu nos moldes preconizados na contestação que apresentou, e que supra se elencou, na sua globalidade, como não provada. Ora, a arguida afirmou que, quando se encontrava, acompanhada do II, no percurso para o serviço de desembaraçamento de trânsito que consistia na escolta de material de guerra da Marinha, supra referido no ponto 3. do elenco de factos provados, começou a sentir-se indisposta, do que deu conhecimento ao II e, simultaneamente, enviou do seu telemóvel uma mensagem ao DD, tendo este, nessa decorrência, ordenado ao II o regresso ao Posto de Trânsito de Coina a fim de se proceder à sua substituição por outro militar. Mais afirmou a arguida que, tendo a sua patrulha regressado ao posto, viu o DD nas escadas, tendo-se dirigido imediatamente à casa de banho, onde vomitou, e de seguida ao seu veículo automóvel, de onde retirou uma garrafa de água. Seguidamente, segundo afirmou, permaneceu na caserna em recuperação e, cerca de uma hora depois, por se sentir melhor, foi despachar expediente, apenas tendo abandonado o Posto de Trânsito perto das 16:00 horas, entrando de seguida em gozo de férias.
Sucede que, para além de tais declarações da arguida terem sido prestadas de forma inconsistente e sem qualquer manifestação de genuinidade e compatibilidade com a verdade, a sua versão foi totalmente contrariada pelo teor dos depoimentos isentos, credíveis, consistentes, coerentes e honestos prestados em audiência de julgamento pelas testemunhas II, KK e JJ, dos quais nenhum motivo transpareceu susceptível de descredibilizar o que relataram.
Na verdade, o II, segundo relatou, no momento em que se encontrava, acompanhado da arguida, a dirigir-se para o serviço de desembaraçamento de trânsito de escolta de material de guerra da Marinha, recebeu uma chamada telefónica do DD, seu superior hierárquico, ordenando-lhe que regressasse ao Posto de Trânsito de Coina uma vez que necessitava da chave da sua residência, e que tal chave se encontrava na posse da arguida, pelo que, em obediência a tal ordem, regressou ao aludido posto. Segundo asseverou, de forma isenta e sem qualquer hesitação, em momento algum a arguida o informou de que se encontrava indisposta ou sem condições de saúde para cumprir o serviço para o qual se encontrava nomeada, tendo, pelo contrário, demonstrado forte desagrado perante a ordem de regresso ao Posto transmitida pelo DD. Nessa sequência, conforme afirmou com inteira demonstração de rigor e imparcialidade, tendo regressado ao Posto de Coina na companhia da arguida, esta, de imediato, dirigiu-se ao DD, que se encontrava trajando à civil, trocou com o mesmo algumas palavras e, momentos depois, entrou na sua viatura pessoal, seguindo o DD, logo de seguida, igualmente no seu próprio veículo, atrás do da arguida. Mais assegurou que em momento algum lhe foi dito, fosse pelo DD, fosse por qualquer outro militar, que a arguida se encontrava doente e impossibilitada de cumprir a missão para a qual estava nomeada, do mesmo modo que não recebeu de quem quer que fosse qualquer ordem para substituir a arguida por qualquer outro militar no serviço de patrulha para o qual estavam nomeados. Acrescentou que a arguida apenas regressou ao serviço cerca de duas semanas após a ocorrência dos factos que descreveu, uma vez que a mesma iniciou, nesse dia, o gozo de férias pessoais. Mais acrescentou, sempre com exibição de honestidade, imparcialidade e segurança, que, face à ausência inesperada da arguida do cumprimento da sua missão, entrou no Posto e relatou o sucedido aos militares que aí se encontravam, tendo-se o JJ prontificado a acompanhá-lo em substituição da arguida. Por sua vez, o depoimento prestado em audiência pelo JJ foi coincidente com o sustentado pelo II, na medida em que, de forma isenta, segura e desinteressada, declarou que não recebeu do DD, ou de qualquer outro militar ou superior hierárquico, qualquer ordem ou informação relativas à impossibilidade de a arguida prestar o seu serviço, nem à circunstância de ter que a substituir por a mesma se encontrar indisposta ou doente, tendo, pelo contrário, partido da sua espontânea iniciativa integrar a patrulha com o II a fim de ser viabilizado o serviço de escolta ao material da Marinha, face à impossibilidade de este contar com a arguida, conforme se encontrava previsto para o serviço de patrulha desse dia, dada a circunstância de a mesma se ter ausentado para parte incerta.
Do mesmo modo, do depoimento isento, rigoroso e honesto prestado em audiência de julgamento pela testemunha KK, Guarda Principal da GNR e que, na data dos factos em apreço, se encontrava a assegurar o serviço de atendimento ao público no Posto de Trânsito de Coina, no período compreendido entre as 08:00 e as 16.00 horas, resultou que a arguida, por volta da hora do almoço, regressou ao Posto de Trânsito no veículo de serviço, acompanhada do comandante de patrulha II, dirigiu-se à caserna feminina e, de imediato, entrou na sua viatura pessoal, ausentando-se para parte incerta, sendo seguida pelo DD, que igualmente entrou na sua própria viatura, não tendo nenhum dos dois — a arguida ou o DD -, nesse dia, regressado ao Posto de Coina, pelo menos até às 16.00 horas, momento em que, por ter terminado o seu período de serviço, a própria testemunha saiu do Posto de Trânsito.
Mais esclareceu, sempre com total segurança e consistência, que nenhum superior hierárquico lhe deu conhecimento de qualquer ordem de substituição da arguida do serviço de patrulha para o qual a mesma se encontrava nomeada, do mesmo modo que nem a arguida nem qualquer outro militar a informou de alguma indisposição ou problema de saúde que a mesma apresentasse e que a impedisse de prosseguir o seu serviço. Sempre de forma segura e imparcial, a testemunha KK assegurou ainda que partiu do JJ a iniciativa espontânea de acompanhar o II ao serviço de patrulha que se encontrava previsto, no sentido de viabilizar a escolta ao material de guerra da Marinha, tendo tal iniciativa sido por si presenciada, na sequência do súbito abandono do serviço protagonizado pela arguida, sem que qualquer ordem tenha sido transmitida no sentido de operar a substituição da arguida e a viabilização do serviço previsto para aquela data. Do seu depoimento seguro resultou, pois, inequívoco e assente que a arguida não retornou ao Posto de Trânsito de Coina após ter entrado no seu veículo pessoal e abandonado o local, momentos depois do regresso ao Posto da patrulha comandada pelo II, tendo a testemunha assegurado, de modo firme e totalmente credível, que até às 16:00 horas, momento em que terminou o seu serviço, a arguida se manteve ausente do Posto em apreço. Nenhuma dúvida se suscitou, pois, de que o relato efectuado em audiência pelas mencionadas testemunhas - o II, o JJ e a KK — foi totalmente consentâneo com a verdade, tendo o Tribunal alicerçado a sua convicção no que pelas mesmas foi descrito e afirmado, face à coerência, imparcialidade, consistência e rigor com que se apresentaram em audiência, em absoluto contraste com a atitude demonstrada pela arguida, seja no modo incoerente e inconsistente como prestou declarações, seja no comportamento facial e corporal que adoptou em audiência, não se coibindo de esboçar sorrisos e acenos de cabeça no decurso do aludidos depoimentos, comportamentos esses, por si só, não consentâneos com o respeito e seriedade que se exige de qualquer arguido submetido a julgamento, mais ainda quando se trata de militar a quem é imputada a prática de factos ilícitos de natureza criminal cometidos no exercício de funções.
Ora, em sintonia com a versão sustentada pela arguida em audiência, prestaram depoimento em julgamento as testemunhas QQ, DD, EE, FF, GG e HH, todos militares da GNR. Quanto a QQ, declarou que se encontrava de patrulha com o MM, tendo, por volta da hora do almoço, quando se preparava para acorrer, com este, a uma ocorrência da zona da Marateca, visto o veículo de serviço da patrulha composta pelo II e pela arguida regressar ao Posto de Coina e ouvido o DD dizer ao II para ir chamar o JJ a fim de substituir a arguida no serviço de patrulha. Mais afirmou que, quando regressou ao Posto de Coina, após a ocorrência da Marateca, cerca das 15:00 horas, viu a arguida na camarata, aparentando esta encontrar-se indisposta.
Constata-se, porém, que de forma evidente o Guarda QQ, no depoimento que prestou em audiência, faltou flagrantemente à verdade, uma vez que, desde logo face à circunstância de a arguida, após ter entrado e iniciado a marcha no seu veículo pessoal, não ter retomado ao Posto de Coina nesse dia (pelo menos até às 16:00 horas, o que se adquiriu como incontestável em face do depoimento da testemunha KK, supra mencionado), não pode ter visto a arguida na camarata do posto por volta das 15:00 horas, nem constatado que a mesma aparentava encontrar-se indisposta.
A este respeito, o afirmado pelo Guarda QQ nem sequer coincide com a versão sustentada em audiência pela própria arguida, que afirmou que a sua indisposição se manteve por cerca de uma hora, tendo de seguida recuperado e ido despachar expediente. Sucede, ainda, que do relatório de georreferenciação das viaturas de serviço constante de fls. 472 a 475, resulta inequívoco que o veículo de serviço utlizado na data em causa pela patrulha composta pelo Guarda QQ e pelo MM, com a matrícula ..., e que foi utilizado para que esta patrulha acorresse à ocorrência da Marateca, entre as 13:09 horas e as 14:01 horas, não se cruzou, no Posto de Trânsito, com o veículo de serviço utilizado pela patrulha composta pelo II e pela arguida.
Na verdade, esta viatura, com a matrícula ..., saiu do Posto de Coina entre as 13:05 horas e as 13.08 horas, regressou pelas 13:12 horas, na sequência do já referido telefonema efectuado pelo DD ordenando ao II o regresso ao Posto, tendo saído de novo pelas 13:19 horas, já com o JJ em substituição da arguida, nos moldes supra explicitados, pelo que é também flagrantemente falso o relato efectuado pelo Guarda QQ, na parte em que afirmou ter presenciado a entrada do veículo de serviço utilizado pelo II e pela arguida e ouvido a ordem de substituição da arguida pelo JJ transmitida pelo DD.
A este respeito, tenha-se em conta que, de forma absolutamente isenta, rigorosa e imparcial, a testemunha LL, Major da GNR que procedeu à análise do referido sistema de georreferenciação das viaturas, afirmou, de forma inequívoca, que o sinal de rádio-frequência por ambas emitido, quanto às respectivas localizações espácio-temporais na data em apreço, evidencia e retrata, de forma segura, a sua real localização no tempo e no espaço, não tendo existido qualquer interrupção do sinal de rádio de qualquer das viaturas susceptível de colocar em causa quer as horas, quer os locais, plasmados nos suportes de georreferenciação constantes de fls. 343 e 466, e que foram os elementos por si analisados para a elaboração do relatório a que se aludiu. Por conseguinte, o aludido relatório de georreferenciação das viaturas permite, igualmente, de forma segura e isenta de dúvidas, afirmar ser falso o relatado em audiência pela testemunha QQ, pelo que o seu depoimento teve em vista obstaculizar, de forma propositada, a descoberta da verdade material.
Por outro lado, de forma isenta e segura, o MM, no depoimento que prestou em audiência, declarou que, quando saiu do Posto de Coina acompanhado pelo Guarda QQ, com destino à ocorrência da Marateca, não viu que aí se encontrasse o veículo de serviço utilizado pela patrulha composta pelo II e pela arguida, do mesmo modo que não viu a arguida quando, depois do serviço que efectuou na Marateca, e que fotografou pelas 13:21 horas nos moldes que se encontram documentados a fls. 348, através do seu telemóvel pessoal, retornou ao Posto de Coina, por volta das 15:00 horas da data em apreço.
De igual forma surgiu totalmente desconforme à verdade o sustentado, em audiência, pela testemunha DD.
Na realidade, este, de forma flagrantemente comprometida e inconsistente, depois de declarar que quer o II, quer o JJ, quer a KK, têm contra si "razões de queixa" relativas a classificações de serviço, afirmou ter dado ordem ao II para que procedesse à substituição da arguida pelo JJ por ter recebido da mesma, por mensagem escrita, a notícia de que se encontrava indisposta. Sucede que, face ao que supra se adquiriu tendo em conta os depoimentos incontestavelmente isentos das testemunhas II, JJ e KK, tal ordem de substituição da arguida não foi dada por quem quer que fosse, tendo partido da iniciativa espontânea do JJ a execução do serviço que, naquela data, competiria ser assegurado pela arguida, na patrulha comandada pelo II, dado que a arguida se ausentou para parte incerta sem fornecer, para tanto e a quem quer que fosse, qualquer justificação.
Igualmente falsos e desconformes à verdade surgiram, em audiência de julgamento, os depoimentos prestados pelas testemunhas EE, FF, GG e HH, militares da GNR que, prestando à data serviço no Posto de Trânsito de Coina, afirmaram ter visto a arguida nesse local, na data em apreço, no período compreendido entre as 15:00 e as 16:00 horas.
Na verdade, conforme supra se deixou expresso, momentos após a arguida ter entrado na sua viatura pessoal e iniciado a marcha ao volante da mesma, na sequência do regresso ao Posto ordenado ao II pelo DD, a arguida não retornou, nesse dia, pelo menos até às 16:00 horas, ao local do cumprimento das suas funções, isto é, ao aludido Posto de Trânsito, razão pela qual não corresponde à verdade o afirmado pelas testemunhas EE, FF, GG e HH, constatando-se que, de forma deliberada, tentaram obstaculizar, através dos respetivos depoimentos, a descoberta da verdade material, à semelhança do que se verificou quanto às testemunhas QQ e DD.
Ora, analisados, nos seu conjunto, os meios de prova produzidos em audiência, nos termos acabados de explanar, não teve o Tribunal dúvidas em formar a sua convicção, quanto à realidade do que sucedeu no dia 22 de Outubro de 2021, nos exactos moldes que resultam do elenco de factualidade provada supra exarado, tendo resultado falsa a versão sustentada em audiência pela arguida e, inexorável e flagrantemente falsa, por sua vez, a factualidade narrada e sustentada em julgamento pelas testemunhas QQ, DD, EE, FF, GG e HH, pelo que, nos termos e para os feitos do disposto no art.º 360º, nºs 1 e 3, do Código Penal, determinar-se-á, infra, a extracção de certidão para efeitos de procedimento criminal contra tais testemunhas.
Resta considerar que dos depoimentos prestados em audiência pelas testemunhas NN e OO não se retirou utilidade para a decisão da causa, seja porque o primeiro não revelou conhecimento dos factos objecto dos autos, seja porque o segundo, de forma aerifica e infundamentada, se limitou a afirmar que os sistemas de georreferenciação das viaturas de serviço da GNR não apresentam qualquer segurança ou fiabilidade quanto à realidade que se destinam a reproduzir, não constituindo, por conseguinte, elemento credível a ser considerado pelo Tribunal para efeitos de prova.
A situação pessoal, familiar e profissional da arguida, que supra se elencou como provada, decorreu do que, a tal respeito, resulta do teor relatório social elaborado pela DGRSP, que consta dos autos a fls. 697 e seguintes, e do teor da folha de matrícula da arguida, constante de fls. 357 e seguintes.
A ausência de antecedentes apurou-se por referência ao certificado de registo criminal constante de fls. 663-verso.
Finalmente, a ausência de sentido crítico e de autocensura exibidos pela arguida decorreu da observação directa ao seu comportamento e forma como se apresentou em audiência, para além do conteúdo do que afirmou, o que foi percepcionado pelo Tribunal de forma nítida, face à imediação com que analisou a sua presença em julgamento.
ANALISANDO
DO RECURSO INTERLOCUTÓRIO
Por despacho proferido em 19.3.2024, o Tribunal a quo indeferiu diligências probatórias requeridas pela arguida (em sede de contestação) nos seguintes termos:
“fls 648 e segs: Por legal e tempestiva admito a contestação apresentada pela arguida bem como o rol de testemunhas – art.º 311º - B nº 1 do C.P.P.
Indefiro a requerida notificação do SIRESP, bem como a realização da perícia, uma vez que não se vislumbra que se trate de diligências essenciais e indispensáveis à decisão da causa e à descoberta da verdade material, ou sequer que assumam relevo para estas, face ao acervo factual descrito na acusação, para além de que, notoriamente, se afigura que tais diligências são dilatórias e em nada contribuem para a decisão a proferir.”
Neste seu recurso, veio a arguida invocar que do elenco das provas indicadas pelo MP, se encontra entre outras, a indicada como prova documental, o Registo de sistema de georreferenciação a fls 324 a 343 e 463 a 466 – e auto de visualização de imagens de georreferenciação – a fls 470 a 476 – e o relatório da Polícia Militar, o qual foi elaborado tendo por base aqueles registos de georreferenciação das viaturas automóveis utilizadas pelos agentes da GNR.
Mais acrescenta que na acusação, muitos dos factos aí descritos, são datados no tempo com precisão, com recurso a informação conferida por esse sistema.
Contudo, argumenta que esse sistema é composto de informação segregada por aparelhos de GPS eletrónicos existentes nos veículos automóveis utilizados pelos agentes da GNR, os quais não são infalíveis e importa aferir da precisão dos mesmos.
Por isso, entende a arguida, que as suas diligências probatórias requeridas na sua contestação, no sentido de obter da parte do SIREP informação sobre o funcionamento do registo de georrefenciação dos rádios SIREP e ainda a realização de perícia àqueles aparelhos electrónicos que fornecem tais informações, são importantes e necessárias para a boa decisão da causa.
Pugna assim, neste seu recurso, pela revogação do despacho judicial de 19.3.2024, que indeferiu tais diligências, substituindo-o por outro que defira a prova por ela requerida, fundamentando a sua pretensão, com a alegação de que tal decisão configura uma violação do princípio da igualdade de armas, do princípio do contraditório e dos direitos de defesa da arguida.
O MP pelo contrário (secundado pela Sr.ª Procuradora Geral Adjunta aqui na Relação), expressou posição diversa, invocando que não se verificava qualquer violação dos direitos de defesa da arguida e daqueles mencionados princípios, argumentando do seguinte modo (conclusões, 4º, 5º, 11º, 12º e 13º):
“No caso concreto a recorrente está acusada da prática de um crime de abandono de posto, previsto e punido no art.º 66º/1, al. e) do CJM, aprovado pela Lei nº 100/2003, de 15.11, cuja a conduta ilícita traduz-se em o militar abandonar (de forma permanente ou temporária) sem prévia autorização, o posto ou lugar de serviço designado ou o serviço que lhe cumpria, intimamente ligados à actividade militar.
Ora, tendo em conta a acção típica do ilícito, afigura-se-nos que as informações do SIRESP e a perícia requerida, não tem a virtualidade de infirmar ou confirmar a violação do bem jurídico em causa, pelo que, bem andou o Tribunal "a quo" ao concluir que, tais meios de prova não são essenciais, idóneos e relevantes, para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa, pelo que deve improceder o recurso intentado, nesta parte
O regime processual penal não impõe a busca da verdade absoluta, nem o tribunal "a quo" dispõe de um poder ilimitado na produção da prova, pois que, a verdade processual é uma verdade judicial, prática e, sobretudo, não é uma verdade obtida a todo o preço, mas processualmente válida; a prova deve ser obtida com observância das regras impostas pelo legislador e não com desrespeito das mesmas, como pretende a recorrente.
No caso concreto, o despacho recorrido não é arbitrário, irrazoável ou não fundamentado e não envolve uma compressão excessiva do princípio da igualdade de armas.
Ante o exposto, o Ministério Público defende que, o despacho recorrido não violou o princípio da investigação oficiosa da verdade, o princípio da igualdade de armas, o princípio do contraditório e as suas garantias de defesa, previstos nos artºs 315º/3 e 340º do CPP, artº20º/1 e 4 e 32º/1 e 5 da CRP.”
Quid Juris?
Não assiste qualquer razão à arguida.
Está em causa a prática de um crime de abandono de posto p.p no art.º 66º/1 e) do Código de Justiça Militar (CJM) aprovado pela lei nº 100/2003 de 15.11, que consiste em o agente da força de autoridade, deixar de forma definitiva ou temporária o seu posto militar, sem qualquer justificação.
O Tribunal a quo chegou à conclusão, da análise crítica de toda a prova recolhida e produzida em julgamento, que a conduta da arguida nestes autos, preencheu objectiva e subjectivamente esse tipo legal de crime.
Da leitura atenta da decisão sobre a fundamentação da matéria de facto, verificamos que a convicção do Tribunal assentou maioritariamente nos depoimentos de várias testemunhas ouvidas em audiência, que prestaram declarações consideradas isentas e seguras, confirmando assim o conteúdo do relatório da PM.
Por outro lado, esse mesmo relatório da PM (ao contrário do alegado pela arguida), não assenta exclusiva ou maioritariamente na análise do sistema de georreferenciação das viaturas automóveis utilizadas pelos elementos da GNR, embora também tivesse tido em atenção o conteúdo do mesmo.
Com efeito, os timings das deslocações das viaturas automóveis conduzidas pelos vários agentes da GNR no dia dos factos, não é elemento absolutamente essencial para o preenchimento do tipo legal em causa, sendo de sublinhar além do mais, que foi ao volante da sua viatura automóvel pessoal, que a arguida se ausentou do seu posto de serviço, sem dar qualquer justificação, no circunstancialismo de tempo e espaço referidos na acusação.
Daí que tivesse sido possível, de acordo com as regras da experiência e do normal desenrolar dos acontecimentos da vida, tal como sucedeu no caso em apreço, lograr demonstrar através de prova testemunhal que foi considerada segura e fiável, não desmentida pelo sistema de georreferenciação das viaturas da GNR, que efectivamente ocorreu esse “abandono” do posto por parte da arguida, agente da GNR que estava ao serviço, no circunstancialismo de tempo e de lugar descritos na sentença.
Acresce que o Relatório da PM e as informações constantes do sistema de georreferenciação das viaturas automóveis utilizadas pelos elementos da GNR, constituem prova documental apresentada pelo MP, a qual foi oportuna e suficientemente contraditada em audiência de julgamento – com respeito pleno pelo exercício do contraditório, sendo expressamente ali feita referência ao depoimento da testemunha LL da GNR, cfr melhor se pode ver da leitura da passagem a seguir transcrita:
A este respeito, tenha-se em conta que, de forma absolutamente isenta, rigorosa e imparcial, a testemunha LL, Major da GNR que procedeu à análise do referido sistema de georreferenciação das viaturas, afirmou, de forma inequívoca, que o sinal de rádio-frequência por ambas emitido, quanto às respectivas localizações espácio-temporais na data em apreço, evidencia e retrata, de forma segura, a sua real localização no tempo e no espaço, não tendo existido qualquer interrupção do sinal de rádio de qualquer das viaturas susceptível de colocar em causa quer as horas, quer os locais, plasmados nos suportes de georreferenciação constantes de fls. 343 e 466, e que foram os elementos por si analisados para a elaboração do relatório a que se aludiu. Por conseguinte, o aludido relatório de georreferenciação das viaturas permite, igualmente, de forma segura e isenta de dúvidas, afirmar ser falso o relatado em audiência pela testemunha QQ, pelo que o seu depoimento teve em vista obstaculizar, de forma propositada, a descoberta da verdade material. Por outro lado, de forma isenta e segura, o MM, no depoimento que prestou em audiência, declarou que, quando saiu do Posto de Coina acompanhado pelo Guarda QQ, com destino à ocorrência da Marateca, não viu que aí se encontrasse o veículo de serviço utilizado pela patrulha composta pelo II e pela arguida, do mesmo modo que não viu a arguida quando, depois do serviço que efectuou na Marateca, e que fotografou pelas 13:21 horas nos moldes que se encontram documentados a fls. 348, através do seu telemóvel pessoal, retornou ao Posto de Coina, por volta das 15:00 horas da data em apreço”.
Daí que em momento prévio à realização desse julgamento, não existia qualquer fundamento para a arguida vir requerer em sede de contestação “esclarecimentos adicionais” por parte do SIRESP, nos termos por esta formulados.
Nem tão pouco se percebe, salvo o devido respeito, qual o interesse ou razão, em vir requerer em momento prévio à realização do julgamento, a realização de prova pericial aos aparelhos electrónicos que forneceram tais informações (necessárias para a georreferenciação das mencionadas viaturas automóveis utilizadas pelos militares da GNR), quando na realidade em sede de inquérito, nunca tais dúvidas se colocaram, pelo que o Tribunal a quo não tinha quaisquer razões para desconfiar do seu eficiente funcionamento.
Aliás, ao requerer uma prova pericial, para contraditar uma simples prova documental (que pode ser analisada e discutida em julgamento com observância do pertinente contraditório), sem qualquer motivo sério e devidamente fundamentado, se tivesse sido obtida uma decisão favorável pelo Tribunal a quo a tal pretensão, afigura-se-nos que nessa circunstância hipotética, essa decisão judicial é que poderia ser considerada uma violação do princípio de armas, em benefício da arguida.
O relatório de georreferenciação das viaturas automóveis constitui, pois, uma prova da acusação, que foi validade pelo Sr. Juiz de julgamento, desde logo, quando recebeu a acusação e designou data para julgamento.
E constitui esse elemento, um dos vários meios de prova que fundaram a convicção do Tribunal de julgamento, pelo que não padece o Acórdão recorrido de qualquer ilegalidade ou inconstitucionalidade, nem foi proferida decisão condenatória assente em prova proibida.
Dispõe o art.º 340º/1 do CPP, preceito que se pode aplicar extensivamente a diligências probatórias requeridas em sede de contestação pelos arguidos, o seguinte:
O tribunal ordena oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa
E no nº 4: Os requerimentos de prova são ainda indeferidos se for notório que:
alínea b) as provas requeridas são irrelevantes ou supérfluas;
(...)
alínea d) o requerimento tem finalidade meramente dilatória.
Com efeito, o Tribunal de julgamento, deve proceder a uma ponderação cuidadosa entre o dever oficioso (ou a requerimento) de esclarecer a verdade, e os limites impostos pelo princípio constitucional do julgamento no mais curto prazo e pelo princípio da oportunidade da audiência (art.º 32º/2 da CRP).
Veja-se que este é um processo de natureza urgente (art.º 119º do Código de Justiça Militar) e o requerimento de realização de uma perícia, no contexto em que foi pedida no caso em apreço, para contraditar uma simples prova documental apresentada pelo MP, assume sem dúvida uma natureza dilatória, porquanto a arguida tinha consciência de que com tal pretensão, estava a prejudicar o regular andamento dos autos, sem que o resultado da mesma, caso se viesse a concretizar, pudesse objectivamente contribuir para o esclarecimento da verdade material.
Segundo o princípio da necessidade que vigora no nosso sistema processual penal, só os meios de prova cujo conhecimento se afigure necessário para habilitar o julgador a proferir uma decisão justa, devem ser produzidos por determinação do Tribunal na fase de julgamento ou a requerimento dos sujeitos processuais.
Daí que bem tenha sido sublinhado pelo MP na sua resposta ao recurso que “quer a prova requerida em julgamento, ou a produzir em fase de julgamento, quer a prova requerida na fase da contestação não podem colidir com o interesse da realização da justiça penal, (…) pois que a teste da irrestrita possibilidade de apresentação de meios de prova a produzir na fase de julgamento consentiria a realização de diligências inúteis para a descoberta da verdade e boa decisão da causa, podendo conduzir, no limite, à própria frustração da justiça penal”
Tudo visto, por todas as razões supra mencionadas, concluímos não haver dúvidas, que as mencionadas diligências probatórias requeridas pela arguida em sede de contestação, se revelavam manifestamente inoportunas (desde logo, pelo factos de os esclarecimentos sobre a prova documental apresentada pelo MP, poderem ser prestados em audiência de julgamento, como de facto veio a suceder neste caso) e não imprescindíveis à boa decisão da causa – durante o inquérito nada indiciou que os aparelhos electrónicos de recolha da informação em causa, que permitiu a localização espácio temporal das viaturas automóveis conduzidas pelos agentes da GNR no dia dos factos, tivessem sofrido algum problema técnico (além de que esse conhecimento sobre a localização espácio temporal das viaturas automóveis conduzidas pelos elementos da GNR, só indirectamente releva para situar no tempo, a conduta da arguida que preencheu o tipo objectivo do tipo de crime por ela praticado, pois que a arguida se ausentou do seu posto de trabalho, ao volante da sua viatura automóvel pessoal), pelo que bem decidiu o Tribunal a quo ao proferir o despacho de indeferimento de 19.3.2024.
Nestes termos, julga-se totalmente não provido o recurso interlocutório, mantendo na íntegra o despaho recorrido.
DO RECURSO PRINCIPAL
A) Da alegada falta de fundamentação e exame crítico da prova e da invocada omissão de pronúncia – vícios que determinam a nulidade do Acórdão, nos termos do art.º 379º/1 a) e alínea c) e art.º 374º/2 do C.P.P - (conclusões 46 a 55 do recurso principal);
Nas conclusões do recurso principal (46 a 55) alega a arguida que o Acórdão condenatório é nulo, por falta de fundamentação, nos termos do art.º 374º/2 do C.P.P e também por omissão de pronúncia, nos termos do art.º 379º/1 alínea c) do C.P.P, sem que explicite concretamente e com clareza ao longo da motivação, porque razão extrai tal conclusão, limitando-se a dizer o seguinte, nas suas conclusões:
A recorrente entende que a decisão recorrida padece de nulidade atento o disposto nos artigos 374º, nº 2 e 379º do C.P.P.
A fundamentação deve ser um desenvolvimento das premissas previamente enunciadas, para que, mais do que vencer, a decisão logre convencer e demonstrar-se perante os seus destinatários como plena, racional e motivada.
Parafraseando Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. II, pág. 293: "É hoje entendimento generalizado que um sistema de processo penal inspirado nos valores democráticos não se compadece com decisões que hajam de impor-se apenas em razão da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que lhes subjaz. Por isso é que todos os Códigos modernos exigem a fundamentação das decisões judiciais, quer em matéria de facto, quer em matéria de direito".
"A fundamentação dos actos é imposta pelos sistemas democráticos com finalidades várias: permite a sindicância da legalidade do acto, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça (—) ".
Ora, da decisão recorrida, restam sem solução ou resposta questões importantíssimas que se suscitam na motivação que antecede às quais o Tribunal a quo não apresenta a mínima explicação.
Pelo que a não apreciação de tais questões conforma omissão de pronúncia, a implicar a declaração de invalidade do acórdão recorrido.
Deste modo, padece a decisão recorrida de nulidade por ausência de fundamentação e omissão de pronúncia quanto a questões essenciais, o que determina a declaração da sua invalidade e a sua substituição por outra que se pronuncie sobre todas as questões suscitadas, com respeito pelo correlativo dever de fundamentação que devem revestir todas as decisões judiciais.
A não pronúncia sobre tais questões além de geradora de nulidade, nos termos gerais do art.º 379º, nº 1, al. c) do C.P.P. acima mencionados, consubstancia uma inconstitucionalidade, por violação dos artigos 32º nº 1, 203º e 205º, nº 1 da C.R.P., inconstitucionalidade essa que desde já se argui para todos os efeitos legais.
Ao não decidir pela absolvição da arguida, a recorrente entende que, a decisão condenatória devia ser considerada nula, devendo proceder-se à sua revogação por outra que absolva a arguida.
Preceitos violados: art.º 66º nº 1 al. e) e nº 2 do Código de Justiça, e 97º nº 5, 124º, 125º, 126º nº 2 al. a), 127º, 138º, 355º nº 1, 374º nº2, 379º nº 1 al. c) do CPP e, ainda, 13º e 32º nº1 da C.R.P.
O M.P pelo contrário, veio defender que a motivação da decisão de facto é bem esclarecedora, quer quanto aos meios de prova que sustentaram a convicção formada, quer quanto ao percurso lógico seguido na sua formação, nenhuma falha ou incorreção se detetando no exame crítico da prova, e ainda que o Tribunal de julgamento se pronunciou sobre todas as questões que lhe foram colocadas pelas partes (conclusões 2 a 8 da sua resposta): “Sucede que, da leitura do Acórdão recorrido e da sua fundamentação factual (factos "provados e não provados") bem como a convicção obtida, são sustentados em prova legalmente admissível, mediante uma exposição concisa, dos motivos de facto de direito que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, dando a conhecer o percurso lógico e racional efectuado em sede de apreciação e valorÁáo da prova que conduziu à demonstração (ou não) da factualidade objecto da decisão recorrida.
Afigura-se-nos que, o Acórdão recorrido cumpre com os requisitos gerais da sentença enunciados no art.º 374º do CPP, contendo todos os factos que interessam à comprovação do crime praticado e à determinação concreta da pena, não se verifica a nulidade do acórdão, por falta de fundamentação, nos termos do art.º 379º/1, al. c), do CPP, pelo que deve improcede esta questão.
Acresce que, o acórdão recorrido não é nulo, nos termos do previsto no art.º 374º/2 e 379º/1 al c) do CPP, pois, não existe omissão de pronúncia quanto ás questões submetidas a apreciação do Tribunal "a quo";
O Tribunal "a quo" apreciou as questões (o thema decidendum) que os sujeitos processuais interessados submetem à apreciação do tribunal (art.º 660º/2, do CPC) ou de que devesse conhecer oficiosamente, quer quanto à relação material, quer quanto à relação processual.
Entendendo-se por questões os dissídios ou problemas concretos a decidir (o thema decidendum) e não sobre motivos ou argumentos; as ditas questões dizem respeito ao concreto objecto que é submetido à cognição do tribunal; a falta de apreciação das primeiras consubstancia a verificação da nulidade; o não conhecimento dos segundos, será irrelevante.
Acresce que, o Tribunal "a quo" tomou posição expressa sobre todas as questões que devia apreciar, afrontando, analisando-as, de forma minuciosa, emitindo a sua opinião, pelo que se conclui que, a decisão recorrida não merece censura
A recorrente pode manifestar a sua discordância com o ponto de vista defendido pelo julgador, todavia, uma coisa é discordar de uma posição assumida de forma expressa, patente, clara, e com ela não estar em consonância, outra coisa é, por se discordar da mesma, invocar que houve uma omissão de pronúncia; termos em que, não se verifica a nulidade do acórdão, por omissão de pronúncia, nos termos do art.º 379º/1, al. c), do CPP, pelo que deve improcede esta questão.
Quid Juris?
Não assiste razão à recorrente.
Na verdade, esta argumentação da arguida, apenas traduz a diferente leitura que a mesma faz da prova produzida em audiência de julgamento, a qual pretende ver sobreposta àquela que foi feita pelo Tribunal recorrido na 1ª instância.
É verdade que o art.º 374º/2 do C.P.P exige:
Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e reprovados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal”.
E que o art.º 379º/1 do mesmo diploma legal, preceitua:
“É nula a sentença:
alínea a) Que não contiver as menções referidas no nº 2 e na alínea b) do nº 3 do art.º 374º do C.P.P (...)
alínea b) Que condenar por factos diversos dos da acusação ou da pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstas nos artigos 358º e 359º do C.P.P.
alínea c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.”
Sem dúvida que a sentença penal, como decisão que reconhece em definitivo o direito ao caso concreto, comporta na sua dimensão um juízo fáctico, consubstanciado na “reconstrução do acontecimento acompanhado da valoração de carácter probatório” – cfr Carlo Zanza in “La Sentença Penal”, Geoffrey Editore 2004 pág. 60 – e um juízo jurídico “as conclusões com relevância jurídica do acontecimento, que se traduzem numa recondução a uma norma incriminadora” ibidem, pág. 60.
É através da fundamentação, que se possibilita o controlo da sentença por um Tribunal superior, evitando decisões arbitrárias, que se concretiza a garantia de defesa do arguido (na medida em que apenas com a fundamentação pode ser concretizado o direito constitucional ao recurso) e se assume um mecanismo de autocontrolo do próprio Tribunal.
A fundamentação deve sempre ser suficiente coerente e razoável, de modo a permitir o cumprimento das finalidades que lhe estão subjacentes.
Tem-se entendido, que a fundamentação da sentença penal, como decorre da norma do art.º 374º, nº 2 do C.P.P, é composta por dois grandes segmentos:
- um primeiro que consiste na enumeração dos factos provados e não provados;
- e outro que consiste na exposição concisa, mas completa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que contribuíram para a formação da convicção do Tribunal.
A enumeração dos factos provados e dos factos não provados, mais não é do que a narração de forma metódica, dos factos que resultaram provados e dos factos que não resultaram provados, com referência aos que constavam da acusação ou da pronúncia, da contestação, e do pedido de indemnização, e ainda dos factos provados que, com relevo para a decisão, e não constando de nenhuma daquelas peças processuais, resultaram da discussão da causa.
É esta enumeração de factos que permite concluir se o Tribunal conheceu ou não, de todas as questões de facto que constituíam o objecto do processo.
A exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão deve ser completa mas tem que ser concisa, contendo e enunciação das provas que serviram para fundar a convicção alcançada pelo Tribunal – o que não exige, relativamente à prova por declarações, a realização de assentadas tendo por objecto os depoimentos produzidos em audiência –, bem como a análise crítica de tais provas.
Esta análise crítica deve consistir na explicitação do processo de formação da convicção do julgador, concretizada na indicação das razões pelas quais, e em que medida, determinado meio de prova ou determinados meios de prova, foram valorados num certo sentido e outros não o foram ou seja, a explicação dos motivos que levaram o Tribunal a considerar certos meios de prova como idóneos e/ou credíveis e a considerar outros meios de prova como inidóneos e/ou não credíveis, e ainda na exposição e explicação dos critérios, lógicos e racionais, utilizados na apreciação efectuada.
O aludido exame crítico, deverá pois consistir na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou por outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o Tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pela ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção.
Em resumo, podemos sintetizar que uma decisão só será nula, quando se verifique qualquer das situações referidas nas alíneas a) a c) do nº 1 do art.º 379º do C.P.P.
Ora, analisado o Acórdão recorrido, constata-se que nele estão indicados os factos provados e os não provados, as provas em que o Tribunal a quo se baseou para dar como assentes tais factos, a análise critica dessas mesmas provas e, de seguida, os motivos de direito que fundamentam a condenação.
Tudo em conformidade com o disposto nos nºs 2 e 3 al. a) e b) do art.º 374º do C. P. Penal, nada havendo pois a criticar no caso concreto, quanto à realização de exame crítico da prova que se mostra efectuado, nem quanto à fundamentação do Acórdão, de facto ou de direito.
Isto é, depois de descrever os meios de prova que credibilizou, o Tribunal recorrido faz uma “análise crítica” para nós suficiente, de acordo com a experiência comum e com critérios objetivos, para deixar bem claro o seu raciocínio lógico e consistência das provas apresentadas, como resulta da simples leitura da motivação de facto constante do Acórdão e acima reproduzida.
Assim sendo, sem dúvida que esta pretensão da arguida, repetimos, apenas traduz afinal de contas, a diferente leitura que ela próprio faz, da prova produzida em audiência de julgamento.
Não lhe assiste pois qualquer razão, na medida em que no fundo, está afinal apenas a colocar em causa, a valoração da prova produzida, que foi feita pelo Tribunal a quo, esquecendo-se que no nosso sistema penal vigora não um regime de prova vinculada, mas um sistema de prova livre, em que ao julgador cabe a faculdade de poder apreciar e valorar a prova e fundar a sua convicção livremente, de acordo com o art.º 127º do C.P.P.
E não é pelo facto de a recorrente discordar da valoração da prova feita na 1ª instância, que tal posição a legitima a imputar ao Acórdão recorrido, as nulidades que veio invocar.
Acresce que os factos pelos quais a arguida foi condenada, foram aqueles que constam da acusação, não se verificando afinal uma qualquer alteração da qualificação jurídica em relação ao crime de que vinha acusada.
Com efeito, veio a mesma a ser condenada pela prática em autoria material e na forma consumada, de um crime de abandono de posto p.p no art.º 66º/1 alínea e) do CJM, cometido no circunstancialismo de tempo e de lugar descrito na acusação pública deduzida neste processo – crime pelo qual lhe foi aplicada a pena de 8 meses de prisão, suspensa na sua execução por 1 ano, sob regime de prova.
E quanto à alegada omissão de pronúncia?
Neste ponto, importa antes de mais atentar, nos contornos deste vício de omissão de pronúncia, tal como surge retratado na Jurisprudência e doutrina.
Assim, no Acórdão do STJ de 15/12/2011, in www.dgsi.pt foi decidido o seguinte:
Conforme estabelece o art.º 379º, nº 1, al. c), 1ª parte, do CPP, é nula a sentença quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar, sendo tal disposição correspondentemente aplicável aos acórdãos proferidos em recurso, por força do nº 4 do art.º 425º do mesmo diploma.
A omissão de pronúncia significa, fundamentalmente, a ausência de posição ou de decisão do tribunal sobre matérias em que a lei imponha que o juiz tome posição expressa. Tais questões são aquelas que os sujeitos processuais interessados submetem à apreciação do tribunal (art.º 660º, nº 2, do CPC) e as que sejam de conhecimento oficioso, de que o tribunal deva conhecer independentemente de alegação e do conteúdo concreto da questão controvertida, quer digam respeito à relação material, quer à relação processual.
Como uniformemente tem sido entendido no STJ, a omissão de pronúncia só se verifica quando o juiz deixa de se pronunciar sobre questões que lhe foram submetidas pelas partes e que como tal tem de abordar e resolver, ou de que deve conhecer oficiosamente, entendendo-se por questões os dissídios ou problemas concretos a decidir e não as razões, no sentido de simples argumentos, opiniões, motivos, ou doutrinas expendidos pelos interessados na apresentação das respectivas posições, na defesa das teses em presença.
A pronúncia cuja omissão determina a consequência prevista no art.º 379º, nº 1, al. c), do CPP – a nulidade da sentença – deve incidir sobre problemas, os concretos problemas, as questões específicas sobre que é chamado a pronunciar-se o tribunal (o thema decidendum), e não sobre motivos ou argumentos; é referida ao concreto objecto que é submetido à cognição do tribunal e não aos motivos ou razões alegadas.
A doutrina e jurisprudência distinguem entre questões e razões ou argumentos; a falta de apreciação das primeiras consubstancia a verificação da nulidade; o não conhecimento dos segundos, será irrelevante.
Acompanhamos e subscrevemos a Jurisprudência acima enunciada e como tal, fazemos nossa a posição defendida pelo MP nesta matéria, no sentido da improcedência da pretensão da arguida.
Resulta com clareza dos preceitos acima enunciados, que este vício da omissão de pronúncia, se reporta à sentença ou Acórdão final e se configura quando o Tribunal, nessa decisão final, não se pronunciou sobre todas as questões, concretas, suscitadas pelas partes.
Sendo certo, porém, que Tribunal a quo não é obrigado a pronunciar-se sobre todas as razões/argumentos ou entendimentos da doutrina mencionados pelas partes, na apresentação e fundamentação das respetivas posições.
Ora sendo assim, não assiste qualquer razão à arguida recorrente, quanto à invocação deste vício, porquanto resulta da matéria de facto provada e não provada e respectiva fundamentação exaradas no Acórdão recorrido, que o Tribunal a quo se pronunciou sobre todas as questões concretas suscitadas pelas partes.
Por outras palavras, resulta da simples leitura do Acórdão, que no caso em apreciação, sobre todos e cada um das questões colocadas pelas partes (MP e defesa), recaiu a atenção do Tribunal de julgamento, afrontando, analisando, como se referiu, de forma minuciosa, todas as questões suscitadas, isto é, tomou posição de forma expressa sobre as mesmas, com a qual obviamente a recorrente pode não concordar.
A recorrente pode manifestar a sua discordância acerca do ponto de vista defendido pelo Tribunal a quo, mas uma coisa é discordar de uma posição assumida de forma expressa, patente, clara, e com ela não estar em consonância, outra coisa é, por se discordar da mesma, invocar que houve uma omissão de pronúncia, vício que notoriamente não vislumbramos existir aqui.
Por tudo o acima exposto, não se vê onde possa ter existido a omissão de pronúncia previsto no art.º 379º, nº 1, al. c), 1ª parte, do CPP, que a arguida pretende imputar ao Acórdão recorrido.
Em resumo, não padece o Acórdão recorrido de qualquer vício, nomeadamente das nulidades que lhe foram apontadas pela arguida.
O recurso improcede neste segmento.
B) Impugnação da decisão sobre a matéria de facto – erro de julgamento (conclusões 4º a 33º, 35º a 40º) e vícios do art.º 410º/2 do CPP, nomeadamente o vício de contradição na motivação da matéria de facto, previsto no art.º 410º/2 al. b) do CPP (conclusão 34);
Veio a arguida AA, invocar que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento e o Acórdão recorrido padece do vício de manifesta contradição na sua fundamentação e de erro notório na apreciação da prova (art.º 410º/2/b) e c) do C.P.P), devendo por isso serem considerados não provados os factos que o Tribunal julgou estarem assentes e descritos na factualidade provada sob os pontos 4., 5., 6., 7., 8., 9., 10., 11., 12., 13. e 23., porquanto nenhuma prova carreada para os autos, corrobora suficientemente a denúncia anónima apresentada, sendo como tal abusiva a condenação da arguida, por abandono de posto, tal como o descrito na acusação, e que não faz o menor sentido – conclusões 4 a 33, 34, 35 a 40.
Argumentou com efeito do seguinte modo: “(…) não andou bem o Tribunal a quo em considerar o abandono de posto com base na denúncia anónima, na divergência dos depoimentos, conversas de caserna, no diz que disse, produzido por terceiros e por quem não teve conhecimento directo dos factos.
As alegadas suspeitas contra a arguida são meramente circunstanciais, somente suspeições não baseadas em factos consistentes e decisivos não demonstrando a menor força e dignidade para a condenar. Ou seja, a arguida foi vítima de uma intriga que o Tribunal a quo não conseguiu percepcionar.
É o que resulta com evidência de toda a matéria que consta dos autos e de todos os depoimentos prestados em sede de audiência e julgamento, mormente do depoimento prestado pela testemunha da acusação II, Comandante da Patrulha "... ela no meio disto tudo foi uma vítima também porque ..." vd. 04:04 a 04:07, que, imediatamente, interrompido pelo Tribunal a quo, não fosse a testemunha embaraçar a linha persecutória adoptada, bem como o depoimento prestado, em 04-05-2023, pelo FF cfr. fls. 458 e reiterado na audiência e julgamento de 24-04-2024 e registado entre as 15 horas e 49 minutos e as 15 horas e 59 minutos, onde se ouve "... vou ser brega, se me vai perdoar, é um ninho de víboras, pronto, aquilo toda a gente tenta-se prejudicar a toda a gente." Vd. 08:03 mn a 08:47 mn. Não obstante a transparência e credibilidade do seu depoimento, mereceu, como as demais testemunhas arroladas pela defesa, a extracção de certidão para procedimento criminal só porque disse que viu a arguida na parte exterior do posto entre as 15 e as 16 horas no dia dos factos cfr. inquirição de fls. 458, prestada em 04-05-2023, e depoimento registado em audiência vd. 03:25 a 03:55.
Na decisão recorrida existe manifesta contradição na sua fundamentação. O Tribunal a quo valoriza e credibiliza o depoimento da testemunha da acusação II atribuindo-lhe um sentido errado para o enquadramento jurídico.
A credibilização desse depoimento, que acompanhamos, conduz, como supra referido, necessariamente à absolvição da arguida.
Na verdade, é que de todos os depoimentos prestados nada se retirou que permitisse ao Tribunal a quo fazer um juízo convicto sobre a, eventual, prática de um crime de abandono de posto.”
E termina, pedindo a sua absolvição do crime de abandono de posto pelo qual foi condenada.
O M.P pelo contrário, veio refutar esta concreta pretensão da recorrente, defendendo que não padece o Acórdão de qualquer deficiência de fundamentação, que infirme a decisão de condenação da arguida, sustentando para o efeito, o seguinte: “A recorrente impugna a matéria de facto dada como provada nos pontos 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13 e 23, pugnando pela sua inocência e absolvição, por não se mostram preenchidos, em seu entendimento, os elementos do crime de abandono de posto, porém sem razão
O Tribunal "a quo" para dar como "provado" os pontos 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13 e 23 impugnados, baseou-se nos depoimentos das testemunhas II, KK, JJ, LL e MM, os quais valorou, por serem isentos, credíveis, consistentes, coerentes e honestos, sem que tenha ocorrido qualquer motivo susceptível de descredibilizar os mesmos; sustentou-se a sua convicção, designadamente, na prova documental de fls.343, 446, 472 a 475.
Acresce que, a impugnação da matéria de facto do Acórdão recorrido deve improceder, uma vez que, a convicção que Tribunal "a quo" chegou mostra-se objeto de um procedimento lógico e coerente de valoração, com motivação bastante, e onde não se vislumbre qualquer assumo de arbítrio na valoração e apreciação da prova (art.º 127º do CPP).
Assim, tendo em conta o teor dos citados depoimentos, o Tribunal "a quo" concluiu que a "alegada ordem de substituição da arguida" [do Cap. DD] não foi dada por quem quer que fosse, tendo partido da iniciativa espontânea do JJ a execução do serviço que, naquela data, competiria ser assegurado pela arguida, na patrulha comandada pelo II, dado que a arguida se ausentou para parte incerta sem fornecer, para tanto e a quem quer que fosse, qualquer justificação.
Por outro lado, no exame crítico da prova, o Tribunal "a quo", considerou que as declarações da recorrente e os depoimentos de QQ, DD, EE, FF, GG e HH eram falsos e desconformes à verdade, tendo sido contrariados pelo teor dos depoimentos de II, KK, JJ.
A recorrente, tendo negado a prática dos factos, impugna ainda a prova do elemento subjectivo (pontos 10, 11, 12 e 13 dos factos provados), sucede que, perante a falta de confissão, o conhecimento e a vontade de praticar um crime, (isto é a prova do dolo), são percepcionados a partir dos elementos objectivos,dados como provados (ponto 1 a 9), segundo as regras da experiência e da lógica, como indicadores da sua existência.
Quanto à impugnação da factualidade do ponto 23 - isto é, a ausência de sentido crítico e de auto-censura exibidos pela arguida - o Tribunal "a quo" sustentou a sua convicção na observação directa e clara que fez do comportamento da recorrente, em julgamento, em termos de forma e conteúdo (de acordo com o princípio da imediação e oralidade).
Portanto, para que ocorra a modificação da decisão de facto é necessário que, as provas produzidas permitam uma decisão diversa da proferida, o que não sucede in casu, uma vez que, a prova especificada pela recorrente não impõe uma decisão diferente da proferida pelo Tribunal "a quo".
Conclui assim, que o Tribunal a quo decidiu em consonância com a sua convicção e de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, orientado pela descoberta da verdade material, respeitando o princípio da presunção de inocência.
Quid Juris?
Como se sabe, o apelidado “erro de julgamento” pode suscitar dois tipos de recurso:
- um que visa a reapreciação da prova produzida em audiência, ao abrigo do art.º 412º/3 do C.P.P. (impugnação em sentido mais alargado).
- e outro com fundamento no próprio texto da decisão, por ocorrência dos vícios a que alude o art.º 410º/2 do C.P.P (impugnação em sentido mais restrito).
Resulta expresso na motivação do recurso da arguida, a sua pretensão de impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto, nos termos acima expostos, mas nessa impugnação, não procedeu de acordo com o disposto no art.º 412º nºs 3 e 4 do C.P.P.
Na verdade, resulta evidente do corpo da motivação do seu recurso, que não se mostram cumpridos os ónus formais de que depende a reapreciação da prova - isto é, não foram integralmente respeitadas as exigências deste preceito legal, quando veio impugnar a factualidade provada, invocando para tal, a existência de erro de julgamento.
Sendo assim, está necessariamente votada o insucesso, a impugnação da matéria de facto, em termos mais amplos, tendo em conta a falta de pressupostos exigidos pela referida norma no nº 3 e 4 deste preceito legal, não valendo para o efeito, requerer como a arguida fez, a reapreciação da prova toda (das declarações prestadas pelas testemunhas e da apreciação da prova documental produzida nos autos), genericamente falando.
Com efeito, dispõe o nº 3 do artigo 412º, do Código de Processo Penal:
“Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) as provas que devem ser renovadas”.
Da análise do supra mencionado normativo, resulta pois que o recorrente, quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto nos termos do art.º 412º do C.P.P, tem que especificar na motivação e conclusões, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, bem como indicar as provas que, no seu entendimento, impunham decisão diversa da recorrida e aquelas que devem ser renovadas.
No caso presente, ao longo da sua motivação, a recorrente embora se manifestem no sentido de pretender formular um pedido de impugnação da matéria de facto e venha indicar quais os factos que considera mal julgados de forma especificada, a verdade é que não indicou de forma descriminada e especificada, quais as provas que em seu entender impõem decisão diversa.
Limitou-se a arguida nas suas conclusões, a negar a prática do crime de abandono de posto, que lhe foi imputado pelo MP, alegando que por ordem do próprio Comandante do Destacamento de Trânsito de Setúbal Sr. DD - seu superior hierárquico, com quem a arguida mantinha na data dos factos uma relação marital - foi dispensada da missão militar, para a qual fora destacada em conjunto com o Cabo Chefe da GNR II.
Fazendo para o efeito, alusão à sua própria leitura dos factos e às declarações prestadas pelas testemunhas ouvidas em juízo (reproduzindo, contudo, apenas enxertos selectivos dos depoimentos dessas testemunhas ouvidas em juízo) e por fim a fazer considerações genéricas sobre as mesmas, assim como acerca de toda a prova documental produzida e sobre as regras de apreciação e valoração das mesmas.
Defende nessa sequência, inexistir qualquer prova directa e suficiente, que sustente para além de qualquer dúvida, a responsabilização jurídico penal da arguida, nos exactos contornos que foram decididos na 1ª instância.
Deste modo, embora tenha feito referência à matéria de facto provada, descrita no Acórdão recorrido, que considerou incorrectamente julgada (isto é, tenha indicado de forma concreta, os factos que pretendia impugnar, acima já mencionados), não indicou especificamente, repete-se, quais as provas que no seu entender, impunham decisão diversa, para cada um desses factos provados concretos, que veio impugnar, esquecendo-se nomeadamente que o valor das declarações do arguido, nunca pode ser igual ao de qualquer outra testemunha, porquanto o arguido não é obrigado a falar sobre os factos que o incriminam (podendo sempre optar em julgamento pelo direito ao silêncio) e quanto fala, não o faz sob juramento, pelo que querendo pode sempre faltar à verdade ou omitir pormenores que o incriminem.
E por fim, tão pouco indicou a arguida, expressamente e de forma especificada, quais as provas que pretendia ver renovadas.
No fundo, a arguida limitou-se a requerer de forma abrangente e generalizada, a renovação de toda a prova produzida, no que respeita ao objecto da acusação analisada pelo Tribunal a quo, o que no fundo equivale a requerer um segundo julgamento.
Ora tal indicação/pretensão, não só não cai fora da previsão do citado preceito, como o pedido de realização de um segundo julgamento, não é como se sabe, permitido no nosso sistema de recursos.
Embora a recorrente possa com base na sua própria visão/convicção probatória, discutir a convicção que o Tribunal de julgamento formou quanto à prova, há que evidenciar desde logo que por ausência de imediação e de oralidade, o Tribunal de 2ª instância não tem, quanto ao recurso da matéria de facto, os mesmos poderes que tinha a 1ª instância.
Só pode alterar o aí decidido, se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida (alínea b) do nº 3 do artigo 412º do C.P.P).
E no caso em apreço, ainda que a prova produzida e examinada na audiência da 1ª instância, nos pontos indicados pela recorrente pudesse permitir - pelo menos na opinião daquela - uma decisão em sentido diferente, claramente ela não impunha decisão diversa da proferida.
É, pois, visível que a recorrente, não especificou em relação a cada ponto de facto que considerou incorrectamente julgados, quais as provas que impunham decisão diversa da recorrida, por referência aos respectivos suportes técnicos de gravação, no que respeita à prova testemunhal e qual a prova que pretende ver reapreciada pelo Tribunal da Relação.
Isto é, a recorrente não identifica em relação a cada ponto de facto, objecto da sua discordância, quais as concretas razões da sua discordância.
Nestes casos, como o dos presentes autos, em que a recorrente não dá cumprimento ao ónus de impugnação especificada, nem nas conclusões, nem na motivação de recurso, não há que endereçar-lhe convite para aperfeiçoamento, pois tal equivaleria, no fundo, à concessão de novo prazo para recorrer, o que não pode considerar-se compreendido no próprio direito ao recurso.
Neste sentido se pronunciaram os Ac do Tribunal Constitucional nºs 259/2002 de 18/6/2002 e 140/2004 de 10/3/2004, ambos disponíveis in https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/.
Assim sendo, improcede a impugnação de facto nos termos do art.º 412º do C.P.P e consequentemente a alteração da matéria de facto só seria possível, no caso em apreço, se o Acórdão recorrido padecesse de algum dos vícios do art.º 410º/2 do C.P.P, o que também se constata não ocorrer, como de seguida se passa a demonstrar.
Como acabou de ser dito, a arguida, alega haver factos que foram incorrectamente julgados, existindo provas que justificariam decisão contrária àquela que foi proferida, mas nenhuma das provas a que faz referência, possui essa potencialidade.
Fundamentou a sua impugnação da matéria de facto, na reprodução de extractos de declarações das testemunhas, bem como a negação do crime de abandono de posto, pelo qual foi condenada, com base na sua versão dos factos, ou seja, expressando apenas as suas próprias convicções, assentes na sua própria valoração e apreciação da prova testemunhal e documental que foi produzida em julgamento.
Na realidade, a recorrente confundindo o erro de julgamento com vícios da decisão, começou por enunciar um pedido de correcção do erro de julgamento, não cumpriu depois os ónus formais de que depende tal pedido (ao abrigo do art.º 412º do C.P.P) e no que respeita à impugnação da matéria de facto, acaba no final por integrar a fundamentação do seu recurso, invocando os vícios do Acórdão previstos no art.º 410º/2 b) e c) do C.P.P.
Vejamos então se assiste razão à arguida.
Como resulta da letra da lei, qualquer dos vícios a que alude o nº 2 do art.º 410º do C.P.P tem de dimanar da própria decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso, portanto, a quaisquer elementos externos à decisão, designadamente declarações ou depoimentos exarados no processo durante o inquérito ou a instrução, ou até mesmo o julgamento, sendo que, por regras da experiência comum deverá entender-se as máximas da experiência que todo o homem de formação média conhece.
Veio assim invocar a recorrente (conclusões 32. 34. e 35.), que a decisão recorrida padece do vício previsto na alínea b) do nº 2 do art.º 410º do C.P.P - contradição manifesta na sua fundamentação da matéria de facto - porquanto segundo alega, foi vítima de uma intriga que o Tribunal a quo não conseguiu percepcionar e existiu uma notória contradição entre o que se deu como provado com base no depoimento do Cabo chefe II – sendo que a credibilização deste depoimento, se tivesse sido valorizado correctamente, impunha a decisão de absolvição da arguida da prática do crime de abandono de posto.
A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão prevista na alínea b) do nº 2 do art.º 410º do C.P.P, apenas se verificará, quando analisada a matéria de facto se chegue a conclusões irredutíveis entre si e que não possam ser ultrapassadas ou seja quando se dá por provado e como não provado o mesmo facto, quando se afirma e se nega a mesma coisa ao mesmo tempo ou quando simultaneamente se dão como provados factos contraditórios ou quando a contradição ocorre entre a fundamentação probatória da matéria de facto, sendo ainda de considerar como integrando este vício a existência de contradição entre a fundamentação e a decisão final do Tribunal.
A arguida imputa ao Acórdão recorrido, o vício de manifesta contradição da sua fundamentação, pelo facto de a convicção do Tribunal a quo no sentido da sua condenação, ter assentado além do mais, num errado enquadramento jurídico do depoimento de uma testemunha, o cabo Chefe II.
Nestes termos a sua pretensão está votada ao insucesso, pois atentos os contornos legais deste vício acima mencionados, se vê que aquilo que a arguida vem fazer, a pretexto da invocação da existência de um alegado vício de manifesta contradição na fundamentação, é afinal de novo e apenas, uma leitura subjectiva da prova que foi produzida em audiência.
E resulta claramente, da simples leitura atenta da fundamentação do Acórdão, que não existe qualquer contradição entre os vários factos entre si, que ficaram demonstrados em julgamento e a conclusão final alcançada pelo Tribunal a quo, ou decisão condenatória.
Tal como bem foi sublinhado pelo M.P: “O Tribunal "a quo" para dar como "provado" os pontos 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13 e 23 impugnados, baseou-se nos depoimentos das testemunhas II, KK, JJ, LL e MM, os quais valorou, por serem isentos, credíveis, consistentes, coerentes e honestos, sem que tenha ocorrido qualquer motivo susceptível de descredibilizar os mesmos; sustentou-se a sua convicção, designadamente, na prova documental de fls. 343, 446, 472 a 475.
Acresce que, a impugnação da matéria de facto do Acórdão recorrido deve improceder, uma vez que, a convicção que Tribunal "a quo" chegou mostra-se objeto de um procedimento lógico e coerente de valoração, com motivação bastante, e onde não se vislumbre qualquer assumo de arbítrio na valoração e apreciação da prova (art.º 127º do CPP).
Assim, tendo em conta o teor dos citados depoimentos, o Tribunal "a quo" concluiu que a "alegada ordem de substituição da arguida" [do Cap. DD] não foi dada por quem quer que fosse, tendo partido da iniciativa espontânea do JJ a execução do serviço que, naquela data, competiria ser assegurado pela arguida, na patrulha comandada pelo II, dado que a arguida se ausentou para parte incerta sem fornecer, para tanto e a quem quer que fosse, qualquer justificação.”
Por tudo o acima exposto, não se vislumbra que a decisão recorrida padeça do vício previsto na alínea b) do nº 2 do art.º 410º do C.P.P – manifesta contradição na fundamentação dos factos dados como provados – sendo que em bom rigor, nem sequer se vislumbra nas conclusões da arguida, ter sido concretizada de forma coerente a imputação deste vício, tudo não passando da invocação de uma interpretação subjectiva sua, sobre o depoimento da testemunha II.
Com efeito, analisada a decisão recorrida, nomeadamente os factos provados e a respectiva fundamentação, não se vislumbra ali qualquer contradição, decorrendo dessa fundamentação, a indicação das razões de facto e de direito, que levaram o Tribunal a quo, de uma forma lógica e devidamente sustentada, a dar como assentes tais factos, pelo que é manifesto que não padece tal decisão, do vício previsto na alínea b) do nº 2 do art.º 410º do C.P.P.
Em síntese, não se vislumbra assim, na situação acabada de enunciar, a contradição invocada pela arguida, pelo que é manifesto que não padece tal decisão, do vício previsto na alínea b) do nº 2 do art.º 410º do C.P.P.
Passemos agora a analisar se o Acórdão recorrido, padece do vício de erro notório na apreciação da prova, previsto no art.º 410º nº 2 c) do C.P.P.
Este vício configura-se quando se retira de um facto dado como provado, uma conclusão ilógica, arbitrária ou visivelmente violadora do sentido da decisão e/ou das regras de experiência comum.
O erro notório na apreciação da prova tem pois que resultar impreterivelmente do próprio teor do Acórdão, existe este erro, quando considerado o texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras de experiência comum, se evidencia um erro de tal modo patente que não escapa à observação do cidadão comum ou do jurista com preparação normal.
Ocorre este vício, quando se dão por provados factos que face às regras de experiência comum e à lógica normal, traduzem uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável e por isso incorrecta, quando se violam as regras sobre prova vinculada ou de “leges artis” ou quando resulta do próprio texto da motivação da aquisição probatória que foram violadas as regras do “in dubio”.
Alega a arguida, que o Acórdão padece deste vício porquanto o Tribunal a quo recorrido, nunca poderia ter dado como assentes os pontos 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13 e 23, da matéria de facto provada, a partir da prova testemunhal e documental, que foi produzida em audiência.
E que não é claro por isso, o percurso cognoscitivo e valorativo que levou à tomada da decisão por parte do Tribunal de julgamento, quanto à prova daqueles factos em concreto, isto é não se faz aí referência ao percurso lógico e valorativo que levou a que da prova produzida se pudesse retirar com a certeza absoluta que se exige em julgamento, a conclusão de que a arguida praticou o crime de abandono de posto pela qual foi condenada.
Examinados estes factos provados, entendemos que não assiste qualquer razão à arguida e a sua argumentação, além de não ser relevante em termos de poder integrar o vício que invoca de erro notório na apreciação da prova (porquanto é evidente que a recorrente se está a socorrer de elementos de prova externos ao próprio texto da decisão recorrida), também não possui qualquer consistência.
O que no fundo ocorre aqui, é que a arguida discorda da leitura ou apreciação da prova que foi feita pelo Tribunal a quo e como é sabido essa simples discordância não pode servir de fundamento para motivar um recurso.
Como é do conhecimento geral, a prova é apreciada de acordo com o princípio da livre apreciação da prova consignado no art.º 127º do C.P.P onde claramente se pode ler “…a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
Estamos, pois, em sede de um certo poder discricionário do Juiz que “só pode ser atacado em função de vícios típicos endógenos da sentença ou erros de direito, ou claros erros de julgamento”, os quais no caso presente não se verificam notoriamente.
Com efeito, citando a jurisprudência constante do Ac. da Relação de Coimbra de 6.3.2002 in C.J II, 44: “Quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear em opção assente na imediação e na oralidade, o Tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum”.
De resto, como se sabe, a decisão da matéria de facto, tem de resultar da análise conjunta e avaliação crítica de toda a prova produzida em audiência e não apenas de segmentos fragmentados dessa mesma prova.
Por outro lado, de acordo com o referido princípio da livre apreciação da prova que domina o nosso sistema (por oposição ao regime da prova legal) não existem normas que determinam o valor ou a eficácia probatória a atribuir a cada meio probatório.
Nessa medida a atribuição de maior ou menor força a um meio de prova depende apenas da convicção do julgador, desde que se mostre de acordo com a experiência comum.
E passando agora aos factos que em concreto foram impugnados, importa antes de mais referir que, ao contrário do que parece querer salientar a arguida, o Tribunal a quo não se bastou com as declarações prestadas em juízo pela testemunha o II, foi igualmente ponderada a restante prova testemunhal e documental, cfr passagem a seguir transcrita (com sublinhados nossos):
“(…) Ora, para formar a sua convicção, o Tribunal baseou-se no conjunto da prova constante dos autos e na produzida em audiência de discussão e julgamento, depois de sujeita à respectiva e prudente análise crítica.
Assim, teve o Tribunal em conta, desde logo, que a arguida prestou declarações, negando a prática dos factos, e atribuindo a sua sujeição ao presente processo criminal ao desagrado que alguns militares do Posto de Trânsito de Coina evidenciavam face às classificações de serviço que lhes foram atribuídas pelo DD, com quem a própria iniciou um relacionamento afectivo em 2020, não obstante este, à data, ser seu superior hierárquico. Nessa senda, de forma inconsistente, insegura e em manifesta exibição de ausência de genuinidade, a arguida adoptou um discurso de vitimização, afirmando-se injustiçada por lhe ter sido movido o presente processo, e tentando asseverar que a factualidade ocorrida na data dos factos sucedeu nos moldes preconizados na contestação que apresentou, e que supra se elencou, na sua globalidade, como não provada. Ora, a arguida afirmou que, quando se encontrava, acompanhada do II, no percurso para o serviço de desembaraçamento de trânsito que consistia na escolta de material de guerra da Marinha, supra referido no ponto 3. do elenco de factos provados, começou a sentir-se indisposta, do que deu conhecimento ao II e, simultaneamente, enviou do seu telemóvel uma mensagem ao DD, tendo este, nessa decorrência, ordenado ao II o regresso ao Posto de Trânsito de Coina a fim de se proceder à sua substituição por outro militar. Mais afirmou a arguida que, tendo a sua patrulha regressado ao posto, viu o DD nas escadas, tendo-se dirigido imediatamente à casa de banho, onde vomitou, e de seguida ao seu veículo automóvel, de onde retirou uma garrafa de água. Seguidamente, segundo afirmou, permaneceu na caserna em recuperação e, cerca de uma hora depois, por se sentir melhor, foi despachar expediente, apenas tendo abandonado o Posto de Trânsito perto das 16:00 horas, entrando de seguida em gozo de férias.
Sucede que, para além de tais declarações da arguida terem sido prestadas de forma inconsistente e sem qualquer manifestação de genuinidade e compatibilidade com a verdade, a sua versão foi totalmente contrariada pelo teor dos depoimentos isentos, credíveis, consistentes, coerentes e honestos prestados em audiência de julgamento pelas testemunhas II, KK e JJ, dos quais nenhum motivo transpareceu susceptível de descredibilizar o que relataram.
Na verdade, o II, segundo relatou, no momento em que se encontrava, acompanhado da arguida, a dirigir-se para o serviço de desembaraçamento de trânsito de escolta de material de guerra da Marinha, recebeu uma chamada telefónica do DD, seu superior hierárquico, ordenando-lhe que regressasse ao Posto de Trânsito de Coina uma vez que necessitava da chave da sua residência, e que tal chave se encontrava na posse da arguida, pelo que, em obediência a tal ordem, regressou ao aludido posto. Segundo asseverou, de forma isenta e sem qualquer hesitação, em momento algum a arguida o informou de que se encontrava indisposta ou sem condições de saúde para cumprir o serviço para o qual se encontrava nomeada, tendo, pelo contrário, demonstrado forte desagrado perante a ordem de regresso ao Posto transmitida pelo DD. Nessa sequência, conforme afirmou com inteira demonstração de rigor e imparcialidade, tendo regressado ao Posto de Coina na companhia da arguida, esta, de imediato, dirigiu-se ao DD, que se encontrava trajando à civil, trocou com o mesmo algumas palavras e, momentos depois, entrou na sua viatura pessoal, seguindo o DD, logo de seguida, igualmente no seu próprio veículo, atrás do da arguida. Mais assegurou que em momento algum lhe foi dito, fosse pelo DD, fosse por qualquer outro militar, que a arguida se encontrava doente e impossibilitada de cumprir a missão para a qual estava nomeada, do mesmo modo que não recebeu de quem quer que fosse qualquer ordem para substituir a arguida por qualquer outro militar no serviço de patrulha para o qual estavam nomeados. Acrescentou que a arguida apenas regressou ao serviço cerca de duas semanas após a ocorrência dos factos que descreveu, uma vez que a mesma iniciou, nesse dia, o gozo de férias pessoais. Mais acrescentou, sempre com exibição de honestidade, imparcialidade e segurança, que, face à ausência inesperada da arguida do cumprimento da sua missão, entrou no Posto e relatou o sucedido aos militares que aí se encontravam, tendo-se o JJ prontificado a acompanhá-lo em substituição da arguida. Por sua vez, o depoimento prestado em audiência pelo JJ foi coincidente com o sustentado pelo II, na medida em que, de forma isenta, segura e desinteressada, declarou que não recebeu do DD, ou de qualquer outro militar ou superior hierárquico, qualquer ordem ou informação relativas à impossibilidade de a arguida prestar o seu serviço, nem à circunstância de ter que a substituir por a mesma se encontrar indisposta ou doente, tendo, pelo contrário, partido da sua espontânea iniciativa integrar a patrulha com o II a fim de ser viabilizado o serviço de escolta ao material da Marinha, face à impossibilidade de este contar com a arguida, conforme se encontrava previsto para o serviço de patrulha desse dia, dada a circunstância de a mesma se ter ausentado para parte incerta.
Do mesmo modo, do depoimento isento, rigoroso e honesto prestado em audiência de julgamento pela testemunha KK, Guarda Principal da GNR e que, na data dos factos em apreço, se encontrava a assegurar o serviço de atendimento ao público no Posto de Trânsito de Coina, no período compreendido entre as 08:00 e as 16.00 horas, resultou que a arguida, por volta da hora do almoço, regressou ao Posto de Trânsito no veículo de serviço, acompanhada do comandante de patrulha II, dirigiu-se à caserna feminina e, de imediato, entrou na sua viatura pessoal, ausentando-se para parte incerta, sendo seguida pelo DD, que igualmente entrou na sua própria viatura, não tendo nenhum dos dois — a arguida ou o DD -, nesse dia, regressado ao Posto de Coina, pelo menos até às 16.00 horas, momento em que, por ter terminado o seu período de serviço, a própria testemunha saiu do Posto de Trânsito. Mais esclareceu, sempre com total segurança e consistência, que nenhum superior hierárquico lhe deu conhecimento de qualquer ordem de substituição da arguida do serviço de patrulha para o qual a mesma se encontrava nomeada, do mesmo modo que nem a arguida nem qualquer outro militar a informou de alguma indisposição ou problema de saúde que a mesma apresentasse e que a impedisse de prosseguir o seu serviço. Sempre de forma segura e imparcial, a testemunha KK assegurou ainda que partiu do JJ a iniciativa espontânea de acompanhar o II ao serviço de patrulha que se encontrava previsto, no sentido de viabilizar a escolta ao material de guerra da Marinha, tendo tal iniciativa sido por si presenciada, na sequência do súbito abandono do serviço protagonizado pela arguida, sem que qualquer ordem tenha sido transmitida no sentido de operar a substituição da arguida e a viabilização do serviço previsto para aquela data. Do seu depoimento seguro resultou, pois, inequívoco e assente que a arguida não retornou ao Posto de Trânsito de Coina após ter entrado no seu veículo pessoal e abandonado o local, momentos depois do regresso ao Posto da patrulha comandada pelo II, tendo a testemunha assegurado, de modo firme e totalmente credível, que até às 16:00 horas, momento em que terminou o seu serviço, a arguida se manteve ausente do Posto em apreço. Nenhuma dúvida se suscitou, pois, de que o relato efectuado em audiência pelas mencionadas testemunhas - o II, o JJ e a KK — foi totalmente consentâneo com a verdade, tendo o Tribunal alicerçado a sua convicção no que pelas mesmas foi descrito e afirmado, face à coerência, imparcialidade, consistência e rigor com que se apresentaram em audiência, em absoluto contraste com a atitude demonstrada pela arguida, seja no modo incoerente e inconsistente como prestou declarações, seja no comportamento facial e corporal que adoptou em audiência, não se coibindo de esboçar sorrisos e acenos de cabeça no decurso do aludidos depoimentos, comportamentos esses, por si só, não consentâneos com o respeito e seriedade que se exige de qualquer arguido submetido a julgamento, mais ainda quando se trata de militar a quem é imputada a prática de factos ilícitos de natureza criminal cometidos no exercício de funções (…)”
Por outro lado, no Acórdão recorrido, o Tribunal a quo, concluiu pela verificação do dolo da arguida (nos factos descritos sob o nº 10 a 13), com recurso também a presunções judiciais, no confronto com a demais factualidade objectiva apurada, em conexão com o princípio da normalidade e das regras da experiência.
Importa sublinhar, que tal como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 4.05.1994 (disponível em www.dgsi.pt), “o dolo não é susceptível de apreensão directa por pertencer ao foro íntimo de cada um, pelo que só poderá ser captado através de presunções legais, em conexão com o princípio da normalidade e as regras da experiência que permitam inferi-lo a partir de factos materiais comuns, entre os quais avulta o preenchimento da materialidade da infracção”.
Deste modo, nada temos a censurar a tal conclusão do Tribunal a quo, no que respeita aos elementos subjectivos do crime de abandono de posto imputado à arguida, tendo presente que o próprio S.T.J tem defendido, que a prova por presunção é legítima, inclusive para demonstração dos elementos objectivos do tipo, sendo normal o recurso a este tipo de prova, na grande maioria dos crimes em que inexistem em regra testemunhas presenciais e a prova documental nem sempre é possível ou é completa.
Assim, o Tribunal a quo não ignorou o recurso à prova indirecta, nem a jurisprudência do Tribunal da Relação de Lisboa, expressa no Acórdão de 3.6.2009 proferido no processo nº 6053/08.3TDLSB, nem a Jurisprudência do S.T.J no sentido acima referido.
No caso concreto, os factos provados acima descritos, relativos à conduta da arguida, integram, portanto, sem qualquer dúvida os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal do crime de abandono de posto p.p no art.º 66º/1 e) do CJM aprovado pela Lei nº 100/2003 de 15.11, nos exactos termos enunciados no texto do Acórdão.
Acresce que inexistem quaisquer causas de exclusão da ilicitude ou da culpa da arguida quanto a este ilícito.
A leitura da fundamentação do Acórdão, mostra claramente que o Tribunal a quo examinou criticamente as provas que serviram para formar a sua convicção, tendo ainda explicado de forma suficiente, porque razão não lhe mereceu credibilidade a versão apresentada em juízo pela defesa e essa valoração da prova feita pelo Tribunal recorrido é perfeitamente legítima, não sendo violadora das regras da experiência e da lógica.
É assim perfeitamente perceptível no Acórdão, os elementos que em razão das regras da experiência comum ou critérios lógicos do homem médio suposto pela ordem jurídica, levaram à condenação da arguida recorrente pelo crime de abandono de posto, não tendo havido qualquer preterição de procedimentos obrigatórios, nem das normas legais ou constitucionais.
Nada temos pois a apontar, ao processo de valoração da prova feita na 1ª instância e face à motivação da decisão de facto expressa no Acórdão, podemos constatar que o Tribunal a quo se reportou expressamente à prova produzida em julgamento, num raciocínio lógico e inteligível, em que foram examinadas criticamente as provas que serviram para formar a sua convicção.
Bem andou assim o Tribunal a quo, quando decidiu depois de valorada toda a prova produzida, de forma crítica, dar como assente que a arguida, preencheu objectiva e subjectivamente com a sua conduta, da forma que ficou descrita no Acórdão recorrido, todos os elementos do tipo de crime de abandono de posto p.p no art.º 66º/1 e) do CJM aprovado pela Lei nº 100/2003 de 15.11, que lhe vinha imputado na acusação, crime esse cometido na forma consumada.
Mostram-se assim bem julgados os factos que integram essa conduta típica e ilícita, descrita nos pontos 1) a 13), da matéria provada, de acordo com as provas produzidas e analisadas conjugadamente com as regras da experiência comum.
Com efeito, não se vislumbra da matéria de facto dada como provada pelo Tribunal recorrido e da respectiva fundamentação acima reproduzidas, qualquer apreciação de prova que resulte ser manifestamente ilógica, arbitrária ou de todo insustentável, denunciando a existência de um erro notório evidente para um cidadão comum ou um jurista com preparação normal.
Ou que tivesse sido dado como provado algum facto com recurso a provas proibidas ou a métodos proibidos de prova, violando qualquer das regras que disciplinam esta matéria nos artigos 124º a 139º do C.P.P e conduzindo por essa via a uma prova ilegal.
Pelo contrário, repetimos, entendemos que a fundamentação da matéria de facto está estruturada de forma respeitadora dos diversos critérios legais e designadamente do art.º 127º do C.P.P, sendo isento de dúvidas sobre a adequação dos factos provados à avaliação crítica das diversas provas produzidas, não se vislumbrando assim que sofra de vício algum, nomeadamente de erro notório na apreciação da prova – vício previsto na alínea c) do nº 2 do art.º 410º do C.P.P.
Em resumo, percebe-se, pois, claramente, como já acima ficou dito, que aquilo que a recorrente invoca não é mais do que a expressão de uma divergência sua em relação ao decidido, divergência essa meramente intelectual, que não se prende com qualquer vício da decisão, que inexiste.
Face a tudo o acima exposto, reiteramos ser possível concluir, que a fundamentação do Acórdão recorrido se mostra coerente, lógica e feita de acordo com as normais legais e com as regras da experiência comum.
Improcede assim a imputação ao Acórdão recorrido, do vício previsto na alínea c) do nº 2 do art.º 410º do C.P.P e a impugnação da matéria de facto é julgada não provida na íntegra, nos termos acima expostos.
C) Da alegada violação do princípio in dubio pro reo e do princípio da presunção da inocência do arguido consagrado no art.º 32º/2 da C.R.P
Relacionado com a valoração da prova, alegou ainda a arguida recorrente, ter havido violação do princípio do “in dubio pro reo”, que invoca a seu favor para obter uma absolvição, porquanto entende que perante a prova produzida que classifica de insuficiente, o Tribunal a quo jamais poderia ter dado como provada a matéria descrita na acusação.
Sustentou a sua pretensão, argumentando cfr se pode ler nas suas conclusões 39. a 44. (com sublinhados nossos):
“Nunca é demais repetir que, é ao Ministério Público que cabe a prova de que a arguida praticou os factos que lhe estão a imputar. Não é a arguida que tem de provar os factos que demonstram a sua inocência, mas é a acusação que, além de ter de provar os factos de onde resulte a sua culpabilidade, terá de indiciá-los por factos que integrem o tipo de crime pelo qual a acusa.
E o Tribunal a quo não pode inverter o ónus da prova e abster-se de Julgar com imparcialidade. Há que descobrir a verdade material e respeitar os princípios constitucionalmente consagrados.
Perante a análise critica dos factos descritos na motivação e respectivo enquadramento jurídico, crê a recorrente que a existirem ou subsistirem dúvidas insupríveis na avaliação da prova, tais dúvidas não podem ser valoradas contra si.
É o que impõe o princípio in dubio pro reo, como contrapólo do princípio da oficiosidade que caracteriza o processo penal.
E sempre se diga, nunca é demais repetir, que: "1. Nos termos do nº2 do artigo 32º da Constituição da República, «todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa». Por sua vez, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 de Dezembro de 1948 (cuja autoridade interpretativa e integradora em matéria de direitos fundamentais está estabelecida no artigo 16º, nº 2 da Constituição da República), estatui, no nº 1 do seu artigo 11º, que «toda a pessoa acusada de um acto delituoso presume-se inocente até que a sua culpabilidade fique legalmente provada no decurso de um processo público em que todas as garantias necessárias de defesa lhe sejam asseguradas». De igual modo, no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, de 1976, estabelece-se que «qualquer pessoa acusada de infracção penal é de direito presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido legalmente estabelecida» (artigo 14º, nº2), e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, de 1950, estabelece-se que «qualquer pessoa acusada de uma infracção presume-se inocente enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente provada» (artigo 6º, nº2)." Vd. O Princípio da Presunção de Inocência do Arguido no Actual Processo Penal Português, AAFDL, Rui Patrício, 2000.
Pelo exposto, o Tribunal recorrido ao não ter aplicado o princípio in dubio pro reo, não procedeu em conformidade com os princípios que norteiam a apreciação da prova, princípio este que assim deverá ser, caso se julgue necessário, aplicado pelo Tribunal ad quem na apreciação da matéria que motiva o presente recurso.”
Pelo contrário, o M.P na sua resposta ao recurso (conclusões 26 a 30), veio defender posição oposta, sustentando resultar claramente da análise crítica da prova, que o Tribunal a quo não teve qualquer dúvida quanto à prática dos factos ilícitos pela arguida, pelos quais a mesma foi condenada, não havendo assim lugar para a aplicação deste princípio in dubio pro reo, não se mostrando violada qualquer norma ou princípio legal, pelo que o Acórdão não lhe merece qualquer censura, cfr argumentação que aqui se transcreve:
“Por último, entende a recorrente que o Tribunal "a quo" violou o princípio in dubio pro reo, uma vez que da fundamentação da decisão de facto do acórdão recorrido evidencia a existência de dúvidas que foram solucionadas em desfavor da recorrente, diga-se, porém, que não lhe assiste qualquer razão.
O princípio in dubio pro reo significa que para conduzir à condenação, a prova deve ser plena, sendo imprescindível que o tribunal tenha formado convicção acerca da verdade dos factos, para além de toda a dúvida razoável; quando assim não é, deve o agente do crime ser absolvido de acordo com o citado princípio de direito probatório decorrente da presunção de inocência (art.º 32º da CRP).
Em sede de recurso, o uso feito do princípio in dubio pro reo, afere-se pelo texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sendo que quando daí resultar que o Tribunal "a quo" chegou a um estado de dúvida insanável e que, face a ele, optou pelo sentido desfavorável ao arguido, se impõe concluir que ocorreu violação daquele princípio.
Revertendo ao caso em apreço, e apesar das considerações da recorrente na motivação do seu recurso, o Tribunal "a quo", ante a conjugação dos elementos probatórios de modo lógico e coerente, não ficou com qualquer dúvida (razoável, objectiva e motivável) e deu como provado que a arguida praticou a totalidade dos "factos provados" no acórdão recorrido (designadamente os pontos 1 a 25).
Por outro lado, não se deteta qualquer estado de dúvida na explanação efectuada na motivação, porquanto a mesma manifesta a convicção segura do Tribunal "a quo", baseada na indicada prova, pelo que, em concreto não há que lançar mão do princípio in dubio pro reo, pelo que, a decisão recorrida não merece qualquer censura ou reparo, devendo improceder esta parte da impugnação da decisão fáctica (…)”.
Vejamos.
Constitui Jurisprudência corrente que, o princípio "in dubio pro reo" é a consagração da presunção da inocência e destina-se a não permitir que o arguido possa ser considerado culpado de algum delito, enquanto restar dúvida sobre a sua inocência.
Dispõe o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 07/12/2005 que: "O princípio in dubio pro reo é uma imposição dirigida ao juiz no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não houver a certeza sobre factos decisivos para a solução da causa".
Em face do que já acima referimos, aquando da análise da impugnação da matéria de facto, não é minimamente aceitável a tese vertida no recurso quanto a este ponto, que se revela totalmente inconsistente, dado que a convicção do Tribunal a quo se mostra alicerçada em factos objectivos e concretos, que o julgador não teve dúvidas em dar como provados.
Na verdade, este princípio in dubio pro reo tem aplicação na apreciação da prova, impondo que, em caso de dúvida insuperável e razoável sobre a valoração da prova, se decida sempre a matéria de facto, no sentido que mais favorecer o arguido.
É um princípio probatório que procura solucionar um problema de dúvida, em relação à matéria de facto e não quanto ao sentido de uma norma jurídica.
Trata-se de um princípio, que traduz o correspectivo do princípio da culpa em Direito Penal, ao garantir a não aplicação de qualquer pena, sem prova suficiente dos elementos típicos, sendo um corolário lógico do princípio da presunção de inocência do arguido e que não tem quaisquer reflexos ao nível da interpretação das normas penais.
Por isso, não podemos deixar de realçar que a violação de tal princípio, só existiria se o Tribunal de julgamento reconhecendo a dúvida, ainda assim condenasse a arguida AA.
O que não foi o caso.
Tal como já acima ficou dito, em nosso entender foi apreciada conjunta e criticamente toda a prova produzida em audiência de discussão e julgamento, pelo que nenhum reparo nos merece o Acórdão recorrido, no que concerne à matéria de facto considerada provada e não provada.
O Tribunal a quo, apreciando criticamente todas as provas produzidas conjugadas entre si e com as regras de experiência comum, conforme consta da respectiva fundamentação de facto, convenceu-se, sem margem para dúvidas, de determinados factos que constam da decisão ora em crise.
Relativamente à discordância factual da recorrente, quanto à convicção do Tribunal a quo, o que já acima vimos e ficou dito supra, é que a mesma não tem qualquer base de sustentação - pois a simples leitura da matéria de facto provada e respectiva fundamentação constantes do Acórdão recorrido, revelam que a referida convicção não é notoriamente errada, ilógica, contrária às regras da experiência comum.
No fundo, e a nosso ver, repetimos, o que a recorrente pretende sindicar é a forma como o Tribunal a quo valorou a prova produzida em audiência de julgamento, valoração que como já acima dissemos, o Tribunal de 1ª instância, é livre de fazer, ao abrigo do disposto no art.º 127º do C. P. Penal.
Ora resulta da fundamentação do Acórdão recorrido, não se ter o mesmo baseado em raciocínios ou juízos ilógicos, arbitrários ou contraditórios ou ter sido elaborado, com desrespeito das regras sobre o valor da prova vinculada e dos princípios gerais sobre a produção da prova, nem a existência de qualquer dúvida insanável, donde não é possível concluir também ter incorrido o Tribunal a quo, na violação do princípio in dubio pro reo.
A decisão proferida, tendo em conta o seu teor, mostra-se coerente, harmónica, sem antagonismos factuais, não contém factos contrários às regras da experiência comum, nem a existência de erro, que seja patente para qualquer cidadão médio.
Por outras palavras, face ao que vem de ser exposto, podemos concluir que a dúvida da recorrente é aqui irrelevante e jamais poderia servir para sustentar a violação de tal princípio, que é no fundo uma regra de que apenas o próprio julgador se deve socorrer, quando tem dúvidas insanáveis.
Não basta que exista um depoimento ou um documento, que ao recorrente não mereça credibilidade, para simplesmente se poder concluir que a sua valoração pelo Tribunal a quo redundou na violação do princípio “in dubio pro reo”.
Uma coisa é a dúvida da recorrente, outra, a do julgador, e só a dúvida deste, pode legitimar a prolação duma decisão com recurso a tal princípio.
Analisar criticamente a prova significa, justamente concluir um facto, da conjugação dos vários elementos trazidos à discussão da causa e reputá-lo como verdadeiro ou falso, em face daquilo que for a convicção do julgador, dentro do seu critério de livre apreciação.
Defender no contexto referido, a violação do princípio “in dubio pro reo”, como fez a recorrente, carece, pois, de fundamentos sustentáveis.
Efectivamente, no caso sub Júdice, lendo a decisão recorrida, designadamente a fundamentação de facto e a indicação e exame crítico das provas, em que se baseou a convicção do Tribunal de julgamento, quanto ao crime de abandono de posto p.p no art.º 66º/1 alínea e) do CJM, imputado à arguida AA, não se vislumbra que aquele Tribunal tivesse dado como provado, qualquer um dos factos que como tal enumerou, tendo dúvidas sobre a sua verificação, nem se nos afigura que tais dúvidas tivessem existido.
«A censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de quaisquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção. De outra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão.» - Cfr. Ac. do Tribunal Constitucional 198/2004 de 24/03/2004, D.R. II Série, de 02/06/2004 in https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/
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Resulta assim claro que o preceituado no art.º 127º CPP deve ter-se por cumprido, sempre que a convicção a que o Tribunal de julgamento chegou, se mostra objecto de um procedimento lógico e coerente de valoração, com motivação bastante, onde não se vislumbre qualquer assomo de arbítrio na apreciação da prova, considerando que o objecto da prova tanto inclui os factos probandos (prova directa) como factos diversos do tema de prova, mas que permitam, com o auxilio das regras de experiência, uma ilação quanto a estes (prova indirecta ou indiciária).”
Face ao que acima ficou dito, torna-se de difícil compreensão a argumentação da recorrente, no que respeita à alegada incorrecta aplicação deste princípio in dubio pro reo pelo Tribunal a quo ou quanto à alegada violação do princípio da presunção da inocência do arguido, consagrado no art.º 32º/2 da C.R.P, por tal alegação não se encontrar minimamente fundamentada, nem ter qualquer correspondência com a realidade factual apurada.
Sem necessidade de mais considerandos, concluímos que também neste ponto o recurso ora em análise, não será provido.
Por tudo o acima exposto, o recurso da arguida improcede na sua totalidade.
IV - Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes na 3ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa, em:
A) Julgar não providos o recurso interlocutório, bem como o recurso da decisão final condenatória, interpostos pela arguida AA, mantendo-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.
B) Custas a cargo da arguida recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UCs.

Lisboa, 5 de Dezembro de 2024
Ana Paula Grandvaux
Alfredo Costa
Fernando Jorge Ferreira Seuanes