RECURSO PARA O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
LAPSO MANIFESTO
REFORMA DE ACÓRDÃO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
EXCESSO DE PRONÚNCIA
ERRO GROSSEIRO
OPOSIÇÃO ENTRE FUNDAMENTOS E DECISÃO
INDEFERIMENTO
Sumário


O artigo 616.º, n.º 2, do Código de Processo Civil pressupõe um lapso manifesto, revelado por referência a elementos exteriores.

Texto Integral

ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Reclamente: Pauta de Flores, Lda.

Reclamado: Sport Comércio e Salgueiros

I. — RELATÓRIO

1. Sport Comércio e Salgueiros requereu o arresto de bens de Pauta de Flores, Lda., sem audiência da Requerida, para garantia de um crédito de 2 480 686,23 euros, resultante da soma:

I. — de 575 037,11 euros, a título de “indemnização pelo dano ex contractu inerente à ilicitude da resolução perpetrada pela Requerida”;

II. —de 1 905 649,12 euros, a título de “capital e juros devidos desde 31 de Dezembro de 2017, correspondente a 50% do valor de supostas ofertas, sem suporte documental ou justificação, que a Requerida usou para falsificar ou adulterar os resultados de exercício pelo menos até essa data”.

2. O Requerente Sport Comércio e Salgueiros, no início da audiência, reduziu o pedido para efeitos da providência cautelar para a quantia de 1 905 649,12 euros.

3. A redução do pedido foi admitida, “nos termos previstos pelo artigo 265.º, n.º 2, do Código de Processo Civil”.

4. Em 7 de Fevereiro de 2024, o Tribunal Judicial da Comarca ... decretou o arresto requerido para garantia do crédito de 1.013.118,28 euros, acrescido dos juros vencidos e vincendos, desde 31 de Dezembro de 2017.

5. A Requerida Pauta de Flores Lda., deduziu oposição ao arresto decretado a requerimento do Sport Comércio e Salgueiros em 7 de Fevereiro de 2024.

6. Em 20 de Abril de 2024, o Tribunal de 1.ª instância julgou improcedente a oposição deduzida.

7. Inconformada, a Requerida Pauta de Flores Lda., interpôs recurso de apelação.

8. Em 12 de Setembro de 2024, o Tribunal da Relação julgou totalmente improcedente o recurso.

9. Inconformada, a Requerida Pauta de Flores Lda., interpôs recurso de revista.

10. O Requerente Sport Comércio e Salgueiros contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.

11. Em 29 de Outubro de 2024, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu não tomar conhecimento do objecto do recurso.

12. Inconformada, Pauta de Flores, Lda., veio requerer a reforma do acórdão de 29 de Outubro de 2024.

13. Fundamentou o seu requerimento nos seguintes termos:

[…] 11. Neste contexto, fácil é constatar que o pedido reconvencional do aqui Recorrido, formulado na ação arbitral (tal como o pedido da aqui Recorrente, diga-se) determinava, obrigatoriamente a análise de toda a contabilidade do Consórcio para se apurar, não só os movimentos registados na contabilidade, como também para se verificarem os documentos de suporte, para apuramento de alguma irregularidade, incongruência e até mesmo para se efetuarem juízos de valor, necessariamente de índole subjetiva (no caso com recurso à equidade), sobre a justeza e pertinência de determinados gastos.

12. A perícia solicitada obrigava os peritos o exame das (todas) contas do Consórcio.

13. Não se poderia concluir esta perícia à contabilidade do consórcio sem o exame de todas as contas previstas no Sistema de Normalização Contabilística, para se apurar, entre outros:

– montante de vendas anual de cartões;

– margem de comercialização de produtos no bar;

volume de ofertas no bar;

Montante das compras anuais;

Salários;

FSE;

os valores de elementos patrimoniais (móveis, imóveis) – lucros ou prejuízos registados em determinados anos;

etc.

14. Com efeito, a prova pericial pretendia apurar o lucro do consórcio para, consequentemente, se apurar o valor (a meação) devida e pertencente a cada um dos consorciados,

15. E esse exame de todas as contas previstas no Sistema de Normalização Contabilística foi efectuado!

16. Sendo certo que, relativamente às ofertas do Bar, a perícia não efetuou qualquer sugestão de correção das mesmas “por considerarmos que não tínhamos suporte, justificação nem nos foram disponibilizadas evidência que nos permitissem de forma segura avaliar a justeza e a pertinência” dessas ofertas.

17. Apoditicamente, não seria, possível ao Tribunal arbitral apurar “a totalidade dos lucros” a que o aqui Recorrido teria direito pela atividade desenvolvida no Bingo ..., no período de 2012 a 2017 , sem que tivesse em conta a totalidade das contas que integram a situação patrimonial do Consórcio (entre as quais a conta 61 - Custo das mercadorias vendidas e das matérias consumidas).

18. Isto é: o Tribunal arbitral só poderia apurar a meação da “totalidade dos lucros” e meação do aqui Recorrido, após a análise e verificação das ofertas registadas na contabilidade e da eventual não aceitação de parte delas e consequentemente a não aceitação dos custos dessas ofertas (desconsideradas).

19. Pois que a sobredita não aceitação de parte desses custos implicaria necessariamente o aumento dos lucros do consórcio pela desconsideração dos custos referentes a essas ofertas não aceites.

20. Verdade de Monsieur de La Palisse!

21. Portanto é inequívoco que a verificação das ofertas do bar (como dos restantes elementos da contabilidade) integravam o pedido reconvencional para se apurar o lucro do consórcio e a meação devida ao aqui Recorrido nos anos em causa.

22. Assim, a matéria das ofertas do Bar integra o pedido reconvencional do Recorrido e integra o objeto do litigio.

23. Esta matéria consta do objeto do litígio, tendo sido matéria apreciada pela perícia, que sobre ela se pronunciou, não corrigindo as mesmas, sendo que o Tribunal arbitral,não alterou, neste circunspecto,a posição da perícia e aceitou os custos com as ofertas.

24. Pelo que a sentença arbitral tem autoridade de caso julgado.

25. Na verdade, a identidade de pedido – que integra a tríplice identidade (coincidência de sujeitos, de pedido e de causa de pedir), é avaliada em função da posição das partes quanto à relação material, podendo considerar-se que existe tal identidade sempre que ocorra coincidência na enunciação da forma de tutela jurisdicional – implícita ou explícita – pretendida pelo autor/Reconvinte, no conteúdo e objeto do direito a tutelar e nos efeitos jurídicos pretendidos.

26. Ocorre identidade de pedidos – que a par da identidade da causa de pedir e das partes, constitui fundamento da exceção de caso julgado – se o autor, numa e noutra ação, pretende obter o mesmo efeito útil, como sucede in casu: Receber a meação da totalidade dos lucros a que teria direito pela atividade de exploração do Bingo ..., ..., entre os anos de 2012 e 2017, mas que não chegou a receber do Chefe do Consórcio.

Repete-se,

27. Na parte decisória da sentença arbitral a indemnização a pagar pela aqui Recorrente ao ora Recorrido, circunscreve-se à quantia de 262.188,95 €.

28. E que corresponde à “meação na totalidade dos lucros a que esta última teria direito pela atividade de exploração do Bingo desenvolvida nas instalações do antigo Cinema ..., ..., entre os anos de 2012 e 2017, mas que não chegou a receber do Chefe do Consórcio como deveria ter recebido”.

29. A análise e verificação dos custos com as ofertas registadas na contabilidade e sua eventual e parcial não aceitação por parte do Tribunal arbitral, implicaria necessária e decorrentemente o aumento dos lucros do consórcio pela desconsideração dos custos referentes a essas ofertas não aceites.

30. Portanto é inequívoco que a verificação das ofertas do bar (como dos restantes elementos da contabilidade) integravam o pedido reconvencional para se apurar o lucro do consórcio e a meação devida ao recorrido nos anos em causa.

31. Ora, contra o decidido no acórdão recorrido e no Acórdão reformando, a sentença arbitral tem autoridade de caso julgado e não poderá o Recorrente instaurar nova ação para obter o que a sentença arbitral não lhe concedeu.

Termos em que, com o douto suprimento do omitido, deve ser admitida e deferida a presente reforma do douto acórdão prolatado.

14. Sport Comércio e Salgueiros respondeu ao requerimento apresentado por Pauta de Flores, Lda., pugnando pelo seu indeferimento.

II. — FUNDAMENTAÇÃO

15. O artigo 616.º, n.º 2, do Código de Processo Civil é do seguinte teor:

2. — Não cabendo recurso da decisão, é ainda lícito a qualquer das partes requerer a reforma da sentença quando, por manifesto lapso do juiz:

a) Tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos;

b) Constem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida.

16. A doutrina e a jurisprudência concordam em que que o texto do n.º 2 do artigo 616.º do Código de Processo Civil pressupõe um lapso manifesto, revelado por referência a elementos exteriores 1:

— Entre os casos de lapso manifesto na determinação da norma aplicável estão aqueles em que o juiz aplique uma norma que não esteja em vigor, p. ex., por ter sido revogada, e aqueles em que o juiz não aplique uma norma que esteja em vigor.

Entre os casos de lapso manifesto na qualificação jurídica dos factos, ou seja, na coordenação dos factos às normas aplicáveis, estão aqueles em que haja “ofensa de conceitos… elementares”, ou de “princípios elementares de direito”; entre os casos de lapso manifesto na apreciação das provas estão aqueles em que “o juiz […] não repare que está feita a prova documental, por confissão ou por admissão de certo facto, incorrendo assim em erro grosseiro que determine a decisão […] tomada” 2.

17. Pauta de Flores, Lda., alega que houve um erro manifesto do Supremo Tribunal de Justiça na interpretação da decisão do tribunal arbitral e que o erro manifesto do Supremo Tribunal de Justiça na interpretação da decisão do tribunal arbitral foi determinando “por um segmento dessa sentença arbitral que traduz manifesto lapso, ou compreensível desconhecimento de conceitos fácticos contabilísticos”.

18. O segmento da decisão arbitral que traduziria “manifesto lapso” seria aquele em que se diz:

“No que concerne às demais despesas reconduzíveis à rubrica «61 CMVMC - Custo de Mercadorias Vendidas e Matérias Consumidas», e designadamente ao específico item das «ofertas de bebidas e produtos alimentares» no valor de € 2.026.236,56, uma vez que é matéria que, não obstante ter sido analisada pelos peritos, não se integra nem nas causas de pedir, nem nos pedidos quer da Autora/Reconvinda, quer da Ré/Reconvinte, não será objeto de apreciação e decisão no presente processo arbitral”.

19. Pauta de Flores, Lda., alega que o segmento da sentença arbitral em causa está em contradição:

I.— com a definição do objecto do litígio pelo tribunal arbitral (n.º 7);

II.— com o pedido formulado pelo Sport Comércio e Salgueiros (n.º 6);

III.— com a fundamentação da resposta ao quesito 15 (n.ºs 8 e 9);

IV.— com a decisão proferida pelo tribunal arbitral (n.º 10).

20. As alegações deduzidas por Pauta de Flores, Lda., não são de forma nenhuma suficientes para que se conclua que houve erro do Supremo Tribunal de Justiça na interpretação da decisão do tribunal arbitral — sobretudo, desde que se tenha, como deve ter-se em conta que o erro há-de ser manifesto.

21. O acórdão reclamado explica que a definição do objecto do processo relevante é, tão-só, a definição do objecto do processo feita pelo acórdão recorrido 3.

22. Ora, atendendo àquilo que é dito no segmento da decisão arbitral transcrito por Pauta de Flores, Lda., não pode sustentar-se que tenha havido um erro do Supremo Tribunal de Justiça na interpretação da decisão do tribunal arbitral — ou. em todo o caso, não pode sustentar-se que tenha havido um erro manifesto do Supremo Tribunal de Justiça na interpretação da decisão do tribunal arbitral.

23. Pauta de Flores, Lda., admite-o, ainda que só implicitamente, ao dizer que há um segmento da decisão do tribunal arbitral que traduz manifesto desconhecimento ou manifesto lapso do tribunal arbitral e que o segmento em causa explica as interpretações do Tribunal de 1.ª instância, do Tribunal da Relação e do Supremo Tribunal de Justiça.

24. O problema está em que, desde que haja um segmento que explica a interpretação do Supremo Tribunal de Justiça, fica excluída a hipótese de o acórdão impugnado ter incorrido em erro manifesto, relevante para efeitos do artigo 616.º do Código de Processo Civil.

25. Pauta de Flores, Lda., pretenderá porventura manifestar a sua discordância em relação ao acórdão impugnado.

26. Simplesmente, “[o] incidente de reforma não deve ser usado para manifestar discordância do julgado ou tentar demonstrar error in judicando (que é fundamento de recurso) mas apenas perante erro grosseiro e patente, ou aberratio legis, causado por desconhecimento, ou má compreensão, do regime legal” 4.

III. — DECISÃO

Face ao exposto, indefere-se o presente requerimento de reforma.

Custas pela Recorrente: Pauta de Flores, Lda., fixando-se a taxa de justiça em 3 UC’s.

Lisboa, 10 de Dezembro de 2024

Nuno Manuel Pinto Oliveira (relator)

Rui Manuel Duarte Amorim Machado e Moura

Fátima Gomes

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1. Cf. designadamente José Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, anotação ao artigo 616.º, in: Código de Processo Civil anotado, vol. II — Artigos 362.º a 626.º, 3.ª ed., Livraria Almedina, Coimbra, 2018 (reimpressão), págs. 740-743 (742).

2. José Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, anotação ao artigo 616º, in: Código de Processo Civil anotado, vol. II — Artigos 362.º-626.º, cit., pág. 742.

3. José Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, anotação ao artigo 621.º, Código de Processo Civil anotado, vol. II — Artigos 362.º a 626.º, cit., págs. 54-755.

4. Cf. acórdãos do STJ de 12 de Fevereiro de 2009 — processo n.º 08A2680 — e de 4 de Maio de 2010 — processo n.º 364/04.4TBPCV.C1.S1.