I. — A dedução da ofensa de caso julgado como fundamento específico de recorribilidade faz com que deva distinguir-se estritamente as questões da admissibilidade e da procedência do recurso:
II. — Dentro do aspecto da admissibilidade do recurso, cabem duas averiguações:
1.ª Se há uma decisão, com trânsito em julgado, que possa ter sido ofendida;
2.ª Se essa decisão, em confronto com a decisão recorrida, tem valor de caso julgado a respeitar, o que equivale a dizer: se entre as duas decisões existem as três identidades mencionadas no artigo 581.º do Código do Processo Civil..
III. — Dentro do aspecto da procedência do recurso cabe a averiguação sobre se a decisão recorrida ofendeu, realmente, o caso julgado.
ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
I. — RELATÓRIO
1. Flexdeal-Simfe, S.A., propôs a presente acção executiva contra Hero, S.A. e AA.
2. O Tribunal de 1.ª instância julgou extinta a execução por impossibilidade superveniente de prosseguimento da lide, em resultado aplicação conjugada do artigo 88.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e do artigo 277.º, alínea e), do Código de Processo Civil.
3. Inconformada, a Exequente Flexdeal-Simfe, S.A., interpôs recurso de apelação.
5. A Executada AA contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.
6. O Tribunal da Relação julgou procedente a apelação, revogando a sentença recorrida.
7. Inconformada, a Executada AA interpôs recurso de revista.
8. Finalizou a sua alegação com as seguintes conclusões:
Primeira: A recorrente não se conforma com o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, que julgou procedente o recurso interposto pela exequente FLEXDEAL-SIMFE, S.A. da sentença proferida pelo Tribunal de Primeira Instância, que tinha determinado a extinção da execução; e que, consequentemente, revogou a referida sentença.
Segunda: De acordo com o disposto no artigo 637.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, “O requerimento de interposição do recurso contém obrigatoriamente a alegação do recorrente, em cujas conclusões deve ser indicado o fundamento específico da recorribilidade; …” (nosso relevo); pelo que são as conclusões das alegações de recurso que delimitam os poderes de cognição do Tribunal.
Terceira: O fundamento específico para a apresentação do recurso invocado pela exequente nas suas alegações de recurso da decisão da Primeira Instância que julgou extinta a execução foi a alegação de que “… a suspensão e extinção da instância executiva previstas no artigo 88.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, só é aplicável relativamente a diligências executivas que atinjam os bens integrantes da massa insolvente.”
Quarta: Face ao que antecede, o Tribunal recorrido, ao ter decidido que “… as questões a decidir consistem em saber se:
a) ocorre caso julgado formal que impede a reapreciação da questão suscitada;
b) foi correcta a decisão de declarar extinta a execução;”
foi, no que diz respeito à questão elencada sob a alínea b), para além dos limites dos seus poderes de cognição, pois, na análise sobre a correcção da decisão de declaração da extinção da execução, ponderou fundamentos que vão para além do fundamento específico de recorribilidade invocado pela recorrente, pelo que, sempre salvaguardando o devido respeito, o Acórdão recorrido, enferma da nulidade prevista na segunda parte, da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 666.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, e que expressamente se invoca.
Quinta: Delimitados, nos termos que antecedem, os poderes de cognição do Tribunal, a decisão proferida no Acórdão recorrido viola o caso julgado formal – artigo 620.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.
Sexta: Os fundamentos invocados pelo Tribunal recorrido no despacho proferido em 14 de Outubro de 2022 para suspender a execução são, na parte que releva, exactamente os mesmos que os invocados pelo Tribunal recorrido na sentença que determinou a extinção da instância, uma vez que, em ambas as decisões, o Tribunal recorrido parte da mesma norma.
Sétima: Os fundamentos da decisão de suspensão da execução inserem-se no processo lógico, necessário e imprescindível da mesma. Porque assim é, o caso julgado da referida decisão de suspensão estende-se aos seus fundamentos.
Oitava: A exequente / recorrente veio no recurso que interpôs da sentença que determinou a extinção da instância atacar os fundamentos da decisão, olvidando que estes são, na parte que releva, exactamente os mesmos invocados pelo Tribunal recorrido, mais de um ano antes, na decisão que determinou a suspensão da instância e que transitou em julgado.
Nona: o fundamento específico do recurso apresentado pela exequente / recorrente - a alegação de que “… a suspensão e extinção da instância executiva previstas no artigo 88.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, só é aplicável relativamente a diligências executivas que atinjam os bens integrantes da massa insolvente.” - tinha igual aplicação em sede de eventual reacção ao despacho que determinou a suspensão da instância.
Décima: Face a tudo o que antecede, a procedência do recurso violou o caso julgado formal e, concretamente, o preceituado no artigo 620.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.
Termos em que, o recurso deve ser julgado procedente, com todas as legais consequências.
9. A Exequente Flexdeal-Simfe, S.A., contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.
10. O Exmo. Senhor Juiz Desembargador relator não admitiu o recurso de revista.
11. Fundamentou a sua decisão nos seguintes termos:
O acórdão proferido nestes autos, em que a sentença recorrida considerou que se verificava no caso uma impossibilidade superveniente do prosseguimento da lide executiva, e julgou extinta a execução, julgou o recurso procedente e revogou a sentença recorrida. No fundo, limitou-se a determinar o prosseguimento da execução.
AA, executada, veio interpor recurso de revista para o STJ, invocando o artigo 671º,1 CPC.
Em contra-alegações o recorrido veio dizer que o Acórdão recorrido recaiu sobre decisão que declarou extinta a execução por impossibilidade superveniente da lide. Não se tratou assim de uma decisão que conhecesse do mérito da causa. Mas antes de uma decisão que colocou termo ao processo. No entanto, sem que tenha absolvido da instância o Réu. Por esse motivo, não se enquadra em nenhum dos casos previstos no artigo 671º, n.º 1 do CPC. Não sendo, assim, o Acórdão recorrido susceptível de recurso.
Conhecendo: com efeito, o Acórdão da Relação não admite recurso de revista, pelas razões que o recorrido aponta. Em resumo, o acórdão da Relação apreciou uma questão meramente processual, decidindo que não havia impossibilidade superveniente da lide executiva, e logo esta não devia ter sido julgada extinta, antes devia prosseguir. Mas nunca o Acórdão recorrendo se pronunciou sobre a questão de fundo da existência da dívida exequenda, da sua subsistência, do seu valor, ou de eventuais penhoras, graduações de credores, etc.
Como tal, não admito o recurso (art. 671º,1 CPC).
Custas pela recorrente.
12. Inconformada, a Executada, agora Recorrente, AA veio reclamar do despacho de não admissão do recurso de revista, ao abrigo do artigo 643.º do Código de Processo Civil.
13. Fundamentou a sua reclamação nos seguintes termos:
1.º O despacho que decidiu não admitir o recurso, no essencial, fundamenta a sua decisão nos seguintes argumentos:
- o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação apreciou uma questão meramente processual, decidindo que não havia impossibilidade superveniente da lide executiva;
- o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação não se pronunciou sobre o mérito da causa.
2.º Salvo o devido respeito, a reclamante não concorda, pelas razões que passará a expor.
3.º De acordo com o disposto no artigo 637.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, “O requerimento de interposição do recurso contém obrigatoriamente a alegação do recorrente, em cujas conclusões deve ser indicado o fundamento específico da recorribilidade; …” (nosso relevo); pelo que são as conclusões das alegações de recurso que delimitam o objecto do recurso.
4.º No que releva para esta reclamação, a recorrente formulou as suas conclusões de recurso, para além do mais, do seguinte modo:
CONCLUSÕES […]
Quinta: Delimitados, nos termos que antecedem, os poderes de cognição do Tribunal, a decisão proferida no Acórdão recorrido viola o caso julgado formal – artigo 620.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.
Sexta: Os fundamentos invocados pelo Tribunal recorrido no despacho proferido em 14 de Outubro de 2022 para suspender a execução são, na parte que releva, exactamente os mesmos que os invocados pelo Tribunal recorrido na sentença que determinou a extinção da instância, uma vez que, em ambas as decisões, o Tribunal recorrido parte da mesma norma.
Sétima: Os fundamentos da decisão de suspensão da execução inserem-se no processo lógico, necessário e imprescindível da mesma. Porque assim é, o caso julgado da referida decisão de suspensão estende-se aos seus fundamentos.
Oitava: A exequente / recorrente veio no recurso que interpôs da sentença que determinou a extinção da instância atacar os fundamentos da decisão, olvidando que estes são, na parte que releva, exactamente os mesmos invocados pelo Tribunal recorrido, mais de um ano antes, na decisão que determinou a suspensão da instância e que transitou em julgado.
Nona: o fundamento específico do recurso apresentado pela exequente / recorrente - a alegação de que “… a suspensão e extinção da instância executiva previstas no artigo 88.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, só é aplicável relativamente a diligências executivas que atinjam os bens integrantes da massa insolvente.” - tinha igual aplicação em sede de eventual reacção ao despacho que determinou a suspensão da instância.
Décima: Face a tudo o que antecede, a procedência do recurso violou o caso julgado formal e, concretamente, o preceituado no artigo 620.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.”
5.º É o seguinte o conteúdo do n.º 2 do artigo 672.º do Código de Processo Civil:
“Os acórdãos da Relação que apreciem decisões interlocutórias que recaiam unicamente sobre a relação processual só podem ser objecto de revista: a) Nos casos em que o recurso é sempre admissível;” (nosso relevo).
6.º Por sua vez, é o seguinte conteúdo do artigo 629.º, n.º 2 do Código de Processo Civil: “Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso: a) Com fundamento … na ofensa de caso julgado;” (nosso relevo).
7.º Assim, face ao que antecede, o recurso deve ser admitido.
Termos em que, a reclamação deve ser julgada procedente e o recurso admitido, com todas as legais consequências.
Requer que, nos termos do preceituado no n.º 3 do artigo 643.º do Código de Processo Civil, a reclamação seja instruída com o requerimento de interposição do recurso e respectivas alegações, a decisão recorrida e o despacho objecto de reclamação.
14. Em 6 de Outubro de 2024, foi proferida decisão singular, indeferindo a reclamação apresentada pela Executada, agora Recorrente, AA.
15. Inconformada, Executada, agora Recorrente, AA veio requerer que sobre a matéria recaísse um acórdão.
II. — FUNDAMENTAÇÃO
16. O artigo 671.º, n.º 1, do Código de Processo Civil é do seguinte teor:
“Cabe revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos”.
17. O acórdão recorrido não pode coordenar-se a nenhuma das duas hipóteses do n.º 1.
Em primeiro lugar, não é um acórdão que conheça do mérito da causa e, em segundo lugar, dentro dos acórdãos que não conhecem do mérito da causa, não é um acórdão que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus.
Em vez de pôr termo ao processo, o acórdão recorrido fá-lo prosseguir.
18. Excluída a possibilidade de se coordenar o acórdão recorrido a alguma das hipóteses do artigo 671.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, a Executada, agora Recorrente, alega que deve coordenar-se à hipótese do artigo 629.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Civil — ofensa de caso julgado.
19. A dedução da ofensa de caso julgado como fundamento específico de recorribilidade faz com que deva distinguir-se estritamente as questões da admissibilidade e da procedência do recurso:
I. — “Dentro do aspecto da admissibilidade do recurso, cabem duas averiguações:
1.ª Se há uma decisão, com trânsito em julgado, que possa ter sido ofendida;
2.ª Se essa decisão, em confronto com a decisão recorrida, tem valor de caso julgado a respeitar, o que equivale a dizer: se entre as duas decisões existem as três identidades mencionadas [no artigo 581.º]” 1.
II. — Dentro do aspecto da procedência do recurso cabe a averiguação sobre se a decisão recorrida ofendeu, realmente, o caso julgado 2.
20. A decisão, com trânsito em julgado, que a Executada, agora Recorrente, alega que terá sido ofendida foi o despacho de 14 de Outubro de 2022.
21. O despacho de 14 de Outubro de 2022 pronunciou-se a suspensão da instância em consequência da declaração de insolvência das Executadas.
22. Entre o despacho de 14 de Outubro de 2022 e o acórdão recorrido há diferenças fundamentais:
I. — O despacho de 14 de Outubro de 2022 pronunciou-se sobre a suspensão da instância e o acórdão recorrido, sobre a sua extinção.
II. — Os fundamentos da suspensão da instância prevista no n.º 1 do artigo 88.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas são diferentes dos fundamentos da extinção da instância previstos, p. ex., no n.º 3 do artigo 88.º e no artigo 230.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
23. Como se diz no acórdão recorrido,
“As duas decisões em causa são totalmente diversas nos seus fundamentos e na sua eficácia. O despacho de 14.10.2022 limitou-se a declarar suspensa a execução, com fundamento em os executados terem sido declarados insolventes. Já a sentença de 24.10.2023 declarou extinta a execução com o fundamento em que o processo de insolvência tinha sido encerrado por insuficiência da massa, relativamente à executada AA, e após rateio final, relativamente à executada Hero, Lda. Não só a ordem judicial é diversa (suspensão da instância num lado, extinção da instância no outro), como os pressupostos de cada uma delas são diferentes. Finalmente, o argumento quanto a nós definitivo para afastar a possibilidade de haver aqui potencial violação de caso julgado formal emerge do facto de a segunda decisão não ser uma repetição da primeira, não ser sobreponível à primeira, e ter um efeito jurídico totalmente diverso da primeira. Para haver caso julgado formal seria preciso defender que uma vez suspensa a instância executiva, o destino dessa execução teria de ser, em qualquer cenário e em qualquer circunstância, a extinção. Já não poderia em circunstância alguma a execução retomar o seu andamento, finda a causa que tinha levado à suspensão.
Ora, é óbvio que tal coisa não se pode afirmar. Quando uma instância, executiva ou declarativa é suspensa, o seu destino nunca é forçosamente a extinção; caso contrário o despacho a declarar a suspensão seria um acto inútil, antes se devendo decretar logo a extinção. Uma acção executiva suspensa pode retomar o seu andamento, ou pode ser declarada extinta. Tudo depende das ocorrências processuais e substantivas”.
24. Em consequência das diferenças referidas, o despacho de 24 de Outubro de 2022 não tem valor de caso julgado em relação ao acórdão recorrido.
O fundamento específico de recorribilidade invocado pela Executada, agora Recorrente — ofensa de caso julgado formal — não se verifica.
25. Excluída a possibilidade de admitir o recurso ao abrigo do fundamento específico invocado pela Executada, agora Recorrente, fica prejudicado o conhecimento da nulidade por excesso de pronúncia — a arguição de nulidades do acórdão recorrido não pode ser fundamento autónomo de recurso de revista 3.
III. — DECISÃO
Face ao exposto, indefere-se a presente reclamação e confirma-se a decisão singular reclamada.
Custas pela Recorrente AA, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC’s.
Lisboa, 10 de Dezembro de 2024
Nuno Manuel Pinto Oliveira (relator)
Nuno Ataíde das Neves
Maria de Deus Correia
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1. José Alberto dos Reis, anotação ao artigo 678.º, in: Código de Processo Civil anotado, vol. V — Artigos 658.º a 720.º, Coimbra Editora, Coimbra, 1984 (reimpressão), págs. 220-248 (237).↩︎
2. José Alberto dos Reis, anotação ao artigo 678.º, in: Código de Processo Civil anotado, vol. V — Artigos 658.º a 720.º, cit., pág. 237.
3. Cf. designadamente acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Novembro de 2016 — processo n.º 470/15 —; de 12 de Abril de 2018 — processo n.º 414/13.6TBFLG.P1.S1 —; de 2 de Maio de 2019 — processo n.º 77/14.1TBMUR.G1.S1 —, de 19 de Junho de 2019 — processo n.º 5065/16.0T8CBR.C1-A.S1 — e de 05 de Fevereiro de 2020 — processo n.º 983/18.4T8VRL.G1.S1.