I - O atestado médico apresentado pela Recorrente, quanto à determinação da percentagem da incapacidade da pessoa avaliada, constitui um meio de prova sujeito à livre apreciação do julgador e não um documento autêntico.
II - É o entendimento que resulta do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 8/2024, publicado no Diário da República 121/2024, Série I de 25-06-2024.
AA, residente na Rua ... ..., ... ..., intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra a sua filha:
BB, ambas melhor identificadas nos autos, peticionando a condenação da Ré a prestar-lhe a quantia mensal de € 750,00, a título de alimentos.
Para tanto, alega, em síntese, ter doado à Ré o prédio onde reside, com a obrigação de esta prestar aos doadores (o falecido marido da Autora era vivo ao tempo da doação) todos os serviços pessoais e domésticos de que eles carecessem, fornecendo-lhes toda a alimentação, bem como todos os cuidados de higiene, limpeza e vestuário, providenciando condições habitacionais dignas, até à sua morte. Todas as despesas seriam suportadas pelos doadores, complementando a donatária com o que faltasse. Sucede que a Ré não cumpriu com as obrigações constantes da escritura de doação e abandonou a habitação que lhe foi doada e onde residia com os pais.
A ré apresentou contestação, impugnando a factualidade alegada pela Autora, bem assim como o efeito jurídico que da mesma, a Autora pretende retirar.
A Autora veio ainda apresentar articulado superveniente, que foi admitido, alegando ter, no decurso dos presentes autos, ingressado num lar da Santa Casa da Misericórdia, tendo deixado, por isso, de fazer sentido o pedido de assistência directa e acompanhamento, agora prestados por aquela instituição. Assim, peticiona, a final, a condenação da Ré a suportar e entregar à Autora o valor que esta tem que pagar, mensalmente, àquela instituição, além do valor que constitui a sua pensão, correspondente ao diferencial entre esta e o montante mensal de € 1.600,00, nos termos do Regulamento e contrato celebrado com a Santa Casa da Misericórdia de ... . Este valor inclui custos relacionados com assistência medicamentosa, materiais necessários à assistência e transportes.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção totalmente improcedente e absolveu a Ré do pedido.
Inconformada, a Ré interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Guimarães, com impugnação da decisão sobre a matéria de facto. O recurso foi julgado improcedente e, consequentemente, foi confirmada, na integra, a sentença recorrida.
1 - O recurso de revista excecional funda-se principalmente na apreciação da questão do valor de um atestado médico como prova pericial ou como documento autêntico.
2 - Não sendo indiferente que, mesmo que o tribunal admita tratar-se de mero juízo pericial, e não documento autêntico, um tal juízo, se afastado, tem que ter a suportá-lo uma prova idêntica uma prova de idêntica natureza ou assente na qualificação e competência de quem emite o juízo pericial.
3 - Pelo que mesmo que se entenda que tal prova sempre se sujeita ao critério da livre apreciação da prova, a fundamentação contra esse juízo pericial deve ser encontrada com recurso a outro juízo de idêntica natureza, por forma a ser claro e explícito o fundamento em que o julgador se baseou para afastar aquele juízo técnico.
4 - Assim decidiu, aliás, em Acórdão no Processo da RG, de 01.10.2015, que se invoca como fundamento: o juízo científico que encerra o parecer pericial, só deve ser suscetível de uma crítica material e igualmente científica. Deste entendimento das coisas deriva uma conclusão expressiva: sempre que entenda afastar-se do juízo científico, o tribunal deve motivar com particular cuidado a divergência, indicando as razões pelas quais decidiu contra essa prova ou, pelo menos, expondo os argumentos que o levaram a julgá-la inconclusiva.
5 - Significa isso que depoimentos de testemunhas que dizem que a Autora é vista a passear ou mesmo que é capaz de dançar, neste caso por referência à sua autonomia, não são depoimentos capazes de motivar uma cuidada divergência para justificar contra a juízo pericial.
6 - O juízo técnico de incapacidade é um juízo científico, que não decorre, como nos depoimentos de testemunhas, de mera aparência, antes tem inerente qualidade científica que não é posta em causa por aquela aparência.
7 - Estamos ainda num domínio em que há divergência jurisprudencial, na medida em que neste Supremo Tribunal há mesmo quem defenda que a prova pericial por Junta Médica é prova plena, prova pois tarifada e vinculada.
8 - Mesmo para quem não aceite este critério de prova autêntica, sempre deverá prevalecer aqueloutro da RG, no sentido de que apenas muito excepcionalmente se pode afastar do juízo técnico em sentido diferente, como aliás acontece no direito processual penal.
9 - Não preenche nenhum critério válido, sendo prova arbitrária, afastar o juízo de prova pericial apenas por meras referências a alguns depoimentos de testemunhas, ou porque viram a Autora a circular (“passear”) ou por dizerem mesmo que tem autonomia “sendo capaz de dançar”.
10 - Podemos ainda afirmar que, no limite, em face da inexistência de um juízo pericial em sentido diferente do que consta atestado em junta médica, este documento se configura como documento autêntico, em conformidade ao Acórdão do STJ de 24-11- 2016 (Tavares de Paiva), proferido no Processo 7531/12, pelo que faz prova plena.
11. Porque em causa estão interesses de particular relevância, o julgador no momento da aplicação do direito, não pode basear a sua decisão num conceito de necessidade estrito dominado por mero interesse privado, antes deve avaliar e conseguir um conceito de necessidade plena, em função da condição social em que está a recorrente, que ocupa uma vaga social em instituição social.
12. Só é possível alcançar este conceito se o julgador não se abstrair de que os limites de imperatividade da lei são de força maior e ordem pública.
13. E que no caso em apreço, por dizerem respeito à Segurança Social, em nada se confunde com a circunstância de ser parte em processo se em causa está a ocupação de vaga social por necessidade.
14. Se o Estado confiou que as instituições têm capacidade avaliativa para determinar que uma vaga social é ocupada nos limites da necessidade do interessado, não pode o julgador vir vagamente suportar a sua decisão sem ignorar o carácter imperativo da lei de bases em se funda a intervenção do sistema de segurança social.
15. O simples carácter de ocupação de vaga social é, por si, critério que fundamenta um estado de necessidade daquele que invoca em tribunal que dispôs de uma doação em que clausulou que a donatária se obrigou a entregar o que faltar.
16. A Segurança Social tem todo o interesse inerente a esse estado de necessidade, já que havendo forma de liquidação de despesa pela família ou por bem doado não tem o erário público que cumprir e manter vaga social.
17. Fere o sentimento jurídico que existindo uma doação em que se clausula que o donatário suporta o que faltar, venha o doador utente a ter que recorrer ao sistema público protector para poder sobreviver.
Foram violadas as disposições dos artigos 70,227,280,406,762e798,341,347,406, 762, 798 e 799, 963 e 2004, 2010, 2011.º do CC, assim como os artigos 1º, 13, 18 e 36 da Constituição da República Portuguesa, bem como o princípio do artigo 11 da Lei de bases da Segurança Social, Lei nº 83-A/2013, de 30 de Dezembro, primeira alteração à Lei n.º 4/2007, de 16 de Janeiro, que aprova as bases gerais do sistema de segurança social.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Por isso, concluiu “pela não existência de dupla conforme quanto a esta questão concreta suscitada no recurso e por conseguinte, admite-se o mesmo, circunscrito apenas à questão de saber se foram violadas normas de direito probatório material na reapreciação da matéria constante do n.º 10 do elenco dos factos provados.”
Mais se decidiu naquele despacho remeter os autos à Formação, nos termos do disposto no art.º 672.º n.º 3 do CPC para análise dos pressupostos específicos da revista excepcional.
Por acórdão proferido em 02-10-2024, pela Formação, foi considerada “prejudicada a apreciação da admissibilidade da revista excepcional quanto à questão de saber se um atestado de junta médica é um documento autêntico ou traduz um mero juízo pericial” e não admitiu, “no demais, o recurso de revista excepcional, por incumprimento do ónus adjetivo a que alude a alínea b) do n.º2 do art.º 672.º do CPC”
Mais determinou aquele acórdão a remessa dos autos à aqui Relatora, para apreciação do recurso de revista, já admitido nos termos gerais.
II - OS FACTOS
Os factos que vieram provados das instâncias são os seguintes:
1. Por escritura pública de 18 de Dezembro de 2009, lavrada a fls. 21 e 22 do livro n.º 75-A no Cartório Notarial da Notária ..., a aqui autora e o marido, CC, declararam doar à aqui ré e marido, DD, com reserva de usufruto simultâneo e sucessivo até à morte do último dos doadores, o prédio urbano composto por casa de rés-do-chão e andar e logradouro, no sítio de ..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ..21, inscrito na matriz sob o artigo .14.
2. Na escritura referida em 1, declararam os doadores: “esta doação à qual atribuem o valor de cinco mil euros, é feito por conta da quota disponível, deles doadores, e fica subordinada às seguintes cláusulas:
1ª- A donatária fica obrigada a tratar dos doadores na saúde e na doença, assegurando-lhes assistência médica, medicamentosa e hospitalar, quando disso eles necessitarem, sendo todas as despesas suportadas pelos doadores, completando a donatária com o que faltar.
2ª- A donatária fica ainda obrigada a prestar aos doadores todos os serviços pessoais e domésticos de que eles careçam, fornecendo-lhes toda a alimentação, prestar-lhes todos os cuidados de higiene, limpeza e vestuário, providenciando condições habitacionais dignas, até à sua morte, sendo todas as despesas suportadas pelos doadores, complementando a donatária com o que faltar”.
3. Correram termos no J2 da Instância Local Cível de ..., do Tribunal da Comarca de Braga, os autos n.º 2055/13.9..., pelos quais a aqui autora e o falecido marido peticionaram a revogação da doação referida em 1, acção que foi julgada improcedente.
4. Pelo menos desde 2013, a ré e o marido nunca mais habitaram a casa da autora.
5. No decurso dos presentes autos, a autora conseguiu vaga na Santa Casa da Misericórdia de ..., que a acolheu.
6. A autora vivia sozinha aquando da integração referida em 5.
7. A autora padece de problemas de saúde, entre os quais doença que lhe afecta a visão.
8. Desloca-se frequentemente ao IPO, ....
9. A autora auferiu, no ano de 2020, a título de pensão por velhice e de sobrevivência, a quantia global anual de € 8.436,02.
10. A autora não se encontra acamada nem é inválida.
11. A autora circula sozinha na cidade de ....
12. O prédio doado foi alvo de obras.
E foi considerado não provado o seguinte:
a. A ré e o marido não prestaram qualquer assistência à autora e ao falecido marido desta, nem posteriormente à morte deste prestaram qualquer apoio à autora.
b. A autora não tem qualquer tipo de apoio familiar ou amparo.
c. A autora necessita de ajuda para desempenhar grande parte das tarefas diárias.
d. Da quantia referida em 9., a autora gasta mensalmente mais de € 70,00 em medicação.
e. Em táxi para o IPO gasta, por cada vez que lá vai, a quantia de € 55,00.
f. Em luz, água e demais despesas fica praticamente sem qualquer valor.
g. A ré cumpriu as condições estabelecidas na doação, tendo tratado dos doadores na saúde e na doença, assegurando-lhes assistência médica, medicamentosa e hospitalar, acompanhando-os enquanto lhe foi permitido pela autora, nas deslocações médicas e hospitalares, quando disso eles necessitaram.
h. Prestando ainda aos doadores todos os serviços pessoais e domésticos de que eles careceram, fornecendo-lhes toda a alimentação, prestando-lhes todos os cuidados de higiene, limpeza e vestuário, enquanto lhe foi permitido pela autora, providenciando condições habitacionais dignas (com todas as despesas de beneficiação suportadas pela ré ao contrário do estabelecido na doação), até à sua morte.
i. Foi a autora e falecido marido que não permitiram que a ré e família continuassem a viver no prédio doado.
j. Mesmo assim, a ré sempre tentou prestar ao longo do tempo assistência à autora, providenciando cuidados de saúde, limpeza e companhia.
k. Assistência que sempre foi recusada pela autora.
l. As obras referidas em 12. foram integralmente suportadas pela ré e seu marido.
m. Na instituição aludida em 5., a autora tem um encargo de permanência de € 1250,00/mês, a que acresce medicação, deslocações a unidades de saúde, por isso transporte fornecido pela entidade, em custo estimado global por mês de € 1600,00.
n. A troco de assistência e permanência na mencionada instituição, a autora tem o dever de pagar a quantia de € 1250,00 por mês, acrescido de demais despesas com medicamentos e outros produtos necessários à sua subsistência e tratamento e demais encargos.
o. A integração em instituição social decorreu de uma necessidade fruto do abandono a que a autora foi votada.
p. A autora foi admitida sob condição de que alguém teria de pagar alimentos, isto é, assistência de saúde, alojamento e a mais despesa que isso implica.
III - O DIREITO
Colhidos os vistos, cumpre decidir, tendo presente que são as conclusões das alegações recursivas que delimitam o objeto do recurso, estando vedado ao tribunal de recurso conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, com excepção daquelas que são de conhecimento oficioso (cfr. art. 635º nº 4, 639º nº 1, 608º nº 2, ex vi art. 679º, todos do CPC).
Considerando ainda o que supra ficou referido, quanto à delimitação do objecto do recurso, segue-se que a única questão a apreciar consiste em saber se foram violadas normas de direito probatório material na reapreciação da matéria constante do n.º 10 do elenco dos factos provados.
A Recorrente começa mesmo por concluir que o seu recurso “funda-se principalmente na apreciação da questão do valor de um atestado médico como prova pericial ou como documento autêntico”.
E o acórdão da Formação deste STJ não deixou de notar que “ a questão a que a demandante atribui relevância jurídica e social e relativamente à qual suscita a existência de contradição jurisprudencial é, precisamente, aquela que foi integrada no objeto do recurso de revista já admitido e que concerne ao valor probatório de um atestado de junta médica – questão, aliás, que suscitou já resposta uniformizadora por parte do STJ através da prolação do AUJ n.º 8/2024”.
Recordemos o que refere o artigo 10.º do elenco dos factos provados:
“A Autora não se encontra acamada nem é inválida”
Sobre a impugnação da decisão de dar este facto como provado, lê-se no acórdão recorrido:
“A recorrente pretende que se dê como provado, por ser prova que resulta de documentos, que a Autora, tem uma incapacidade permanente de 87%, porque afirma que o Tribunal omitiu o que resulta do atestado multiuso junto.
O Tribunal justificou a não prova deste facto da forma já exposta supra, de tal facto, bem como o documento que o sustenta, terem sido impugnados pela ré.
Pensamos que tudo se resume a saber se o documento no qual a autora baseia a sua pretensão deve ser considerado documento particular, ou autêntico.1 Se concluirmos que se trata de um documento particular, então está sujeito à mesma regra supra enunciada, foi impugnado e não foi comprovado ou confirmado por outros meios de prova, e como tal não tem força probatória bastante, e a pretensão da recorrente improcede. Se for de considerar como documento autêntico, então terá a força probatória que estes possuem.
A questão não é líquida na jurisprudência, sendo que enquanto o Acórdão do STJ de 24.11.2016 (Tavares de Paiva), proferido no P. 7531/12, decidiu que o documento emitido pela Administração Regional de Saúde, denominado Atestado Médico de Incapacidade Multiuso, subscrito e assinado pelo Presidente da Junta Médica, deve ser classificado como documento autêntico, já o Acórdão do mesmo Supremo Tribunal, de 17.06.2021 (Ferreira Lopes), consagra entendimento contrário.
Esta última solução é a que nos parece a mais correcta, por mais conforme ao espírito da lei e atento o elemento sistemático da interpretação.
Pode ler-se no Acórdão em causa o seguinte: “o art.º 362º do CCivil dá-nos a noção de prova documental: “…a que resulta de documento; diz-se documento qualquer objecto elaborado pelo homem com o fim de reproduzir uma pessoa, coisa ou facto.”
Documento autêntico é aquele que, emanando da entidade competente para o fazer, atesta os actos praticados por essa entidade e aqueles decorrentes das percepções da entidade documentadora, fazendo prova plena, sendo que os meros juízos pessoais do documentador não são abrangidos por esta prova plena (arts. 369º e 371º do CC).
Ora, um atestado médico não atesta, não certifica factos; trata-se sim de uma conclusão pericial2. Daí que não integre um documento autêntico, como decidiu o Acórdão do STJ de 24.06.2010, P. 600/09, in www.dgsi.pt: “Um atestado médico não é feito com base na percepção factual directa do médico, mas sim com base na sua opinião derivada da respectiva competência pericial. O médico não atesta factos, faz diagnósticos. Donde tal relatório não possa ser considerado um documento autêntico. Tanto assim que a força probatória dos peritos é fixada livremente pelo tribunal, art.º 389º do C. Civil.”
Neste sentido decidiram os Acórdãos do STJ de 12.01.2010 P. 429-C/1995, e de 06.02.2019, P. 639/13, acessíveis em dgsi.pt, constando do sumário deste último: “A força probatória das juntas médicas é fixada livremente pelos tribunais, e estes não estão impedidos de atribuírem maior força probatória a outros meios de prova.”
O que está em causa é, por conseguinte, não apurar a força probatória de um documento autêntico, mas a força probatória de um relatório pericial.
Prova que deve ser feita no processo, sujeita ao contrário. Tratando-se de prova pré-constituída, a parte contrária tem o direito de impugnar, tanto a respectiva admissão como a sua força probatória (art.º 415º do CPC).
A força probatória das respostas dos peritos é fixada livremente pelo tribunal (art.º 399.º do CCivil).
O meio de prova adequado para aferir da situação de incapacidade é a pericial, por estar em causa a apreciação de factos que exigem conhecimentos especiais que os julgadores não possuem…” (art.º. 388.º do CCivil).
A forma de realização da perícia está prevista no art.º 467º do CPC, dizendo o nº 3 que “as perícias médico legais são realizadas pelos serviços médico-legais ou pelos peritos médicos contratados, nos termos do diploma que as regulamenta.”
Este diploma é a Lei nº 45/2004 de 19.10, de acordo com o qual as perícias médico-legais deverão obrigatoriamente ser realizadas nas delegações e nos gabinetes médico-legais do INML, só excepcionalmente, perante manifesta impossibilidade dos serviços, o podendo ser por entidades terceiras.
O Instituto de Medicina Legal de Lisboa era, assim, a entidade com competência legal para realizar a perícia médico-legal à Autora. (cf. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, 2º, pág. 312: “A redacção do nº 3 (do art. 467º), mostra claramente que, tratando-se de perícia médico-legal, é obrigatoriamente realizada por médicos do Instituto de Medicina Legal e Ciências Forenses, ou por peritos médicos por estes contratados (…)”.
Como referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa, Código de Processo Civil anotado, I, pag. 534, “a obrigatoriedade de realização de perícias médico-legais no INML não constitui restrição dos direitos processuais das partes, porquanto esta instituição tem autonomia e independência técnico-científica, estando numa posição de equidistância perante as partes, sendo que os seus peritos garantem um padrão de elevada qualidade científica.”
E por isso é que o sumário deste Aresto consagra:
“I - Um atestado médico multiuso emitido por uma Administração Regional de Saúde, por meio de Junta Médica para verificação de incapacidades, não pode ser considerado, para efeitos probatórios, um documento autêntico;
II - Trata-se antes de uma conclusão pericial, sujeita à livre apreciação do julgador (art.º 389º do CCivil)”;
Aplicando esta Jurisprudência ao caso em apreço, concluímos que o documento a que a autora se refere é um documento particular, e como tal a impugnação feita pela ré surte pleno efeito.
Como acabámos de ver, a prova da incapacidade da autora deveria ter sido feita dentro do processo, através de prova pericial requisitada ao INML, com sujeição ao contraditório, e não através da junção de um documento que tem de ser classificado como documento particular, sujeito portanto à livre apreciação do Tribunal, e que foi devidamente impugnado.
Portanto, também aqui a decisão de não dar como provado o facto que a recorrente pretende acrescentar, nos parece correcta.
Assim, também esta parte do recurso improcede.”
A questão está, pois, em saber se esta decisão violou alguma norma de direito probatório material ao reapreciar a decisão sobre a matéria constante do ponto 10.º do elenco dos factos provados, concretamente ao considerar o atestado médico multiuso no qual a autora baseia a sua pretensão, um documento particular e não um documento autêntico.
Sobre esta matéria se pronunciou este Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 8/20243, precisamente no sentido que foi seguido pelo acórdão recorrido.
Naquele AUJ pode ler-se:
Urge distinguir entre os factos referidos no “atestado médico de incapacidade multiuso” que correspondem à outorga do documento-atestado (à emissão da própria declaração, com aquela forma e com aquele conteúdo) e à percepção factual directa do presidente (quem emite a declaração) e dos membros da “junta médica” (por exemplo, a identificação do processo, o local em que a avaliação médica da pessoa identificada nesse atestado foi realizada, os elementos de identificação da pessoa avaliada, o ou os “atestados” anteriormente realizados) - prova plena nos termos do art. 371.º, 1, 1.ª parte, do CCiv.;
e os factos constantes desse documento que decorrem da apreciação pelos mesmos membros da “junta médica” no âmbito da respectiva competência especializada, ou seja, dos factos decorrentes do diagnóstico (incluindo o tempo de referência para a situação de incapacidade) e da respectiva determinação de um grau de incapacidade, no uso de conhecimentos científicos e, assim sendo, juízos de ordem pessoal assentes num “convencimento lógico-dedutivo” (e decisório, como se viu) susceptível de ser contrariado ou infirmado, com referência a LUÍS PIRES DE SOUSA, Direito probatório material comentado, Almedina, Coimbra, 2020, sub artigo 371.º, págs. 136-137”.
E, assim, foi uniformizada a jurisprudência deste Supremo no sentido de que “O atestado médico de incapacidade multiuso, emitido para pessoas com deficiência de acordo com o Decreto-Lei n.º 202/96, de 21 de Outubro, é um documento autêntico, que, de acordo com o artigo 371.º, n.º 1, em conjugação com o artigo 389.º, do Código Civil, faz prova plena dos factos praticados e percepcionados pela “junta médica” (autoridade pública) competente e prova sujeita à livre apreciação do julgador quanto aos factos correspondentes às respostas de avaliação médica e de determinação da percentagem de incapacidade da pessoa avaliada.”
Portanto de acordo com esta jurisprudência, o atestado médico apresentado pela Recorrente, quanto à determinação da percentagem da incapacidade da pessoa avaliada, neste caso a própria Recorrente, constitui um meio de prova sujeito à livre apreciação do julgador, e não um documento autêntico, tal como decidido no acórdão recorrido e ali, suficiente e acertadamente, fundamentado.
Foi o que o Tribunal recorrido fez. Analisou o documento que foi impugnado pela parte contrária e apreciou-o, confrontando o seu teor com os demais meios de prova, designadamente a prova testemunhal. Não violou o Tribunal qualquer norma de direito probatório material, ao proceder desse modo, ou seja, ao tratar tal documento como prova sujeita ao princípio da livre apreciação do julgador.
E assim o entendemos, com os fundamentos constantes do AUJ mencionado, dispensando-nos de aqui os repetir já que também subscrevemos tal acórdão.
Nesta conformidade, improcedem as conclusões de recurso a este respeito.
IV - DECISÃO
Face ao exposto, acordamos neste Supremo Tribunal de Justiça, em negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.
Custas pela Recorrente.
Lisboa, 10 de dezembro de 2024
Maria de Deus Correia (relatora)
Nuno Ataíde das Neves
Maria de Fátima Gomes
______
2. Destaque nosso, porque nos parece o ponto nevrálgico da questão.
3. Publicado no Diário da República 121/2024, Série I de 25-06-2024, e subscrito também pelos Juízes Conselheiros que compõem este Colectivo.