I. O dano decorrente da privação da fruição de uma fração habitacional constitui dano patrimonial autónomo suscetível de indemnização, quando o proprietário se viu privado de um bem que faz parte do seu património, deixando de dele poder dispor e gozar livremente, cabendo, assim, pela violação do direito de propriedade, o direito a indemnização pela ocorrência desse dano.
II. O dano decorrente da privação da fruição do imóvel é indemnizável ainda que não se tenha provado que utilidade ou vantagem concreta o proprietário teria retirado do bem, durante todo o período de privação, sendo que a indemnização deve ser fixada equitativamente, em razão das dificuldades de prova que existem em matéria da quantificação da indemnização por equivalente.
I. AA instaurou a presente ação de condenação, sob a forma comum de processo, contra Condomínio do Edifício Quinta Verde, J..., Lda, e BB pedindo:
a) A condenação do primeiro Réu na realização de obras de reparação das partes comuns do edifício que são responsáveis pelas infiltrações de água e humidade na fração autónoma propriedade da Autora;
b) A condenação do primeiro Réu na reparação integral dos danos existentes na fração autónoma propriedade da Autora, designadamente paredes e tetos, em todas as divisões afetadas ou que venham a ser afetadas na consequência das obras acima descritas;
c) A condenação do primeiro Réu no pagamento da quantia de €170,00 por cada mês em que a Autora esteve privada do uso pleno da sua fração, isto é, desde maio de 2018, até à data de conclusão das referidas obras;
d) A condenação do primeiro Réu no pagamento da quantia de €133,65, a título das despesas da Autora com as vistorias da G..... e C..;
e) A condenação dos Réus no pagamento da quantia de €5.000,00, a título de danos não patrimoniais;
f) A condenação do primeiro Réu no pagamento de sanção pecuniária compulsória no valor diário de €50,00 por cada dia de atraso na realização das obras;
g) A exoneração judicial do segundo Réu das suas funções.
Articulou, com utilidade, que é proprietária de uma fração autónoma, que identifica, e que é parte integrante do edifício do primeiro Réu, constituído em propriedade horizontal.
Mais alega que foi comunicada à administração do condomínio, em 7.05.2018, pela anterior proprietária, a existência de danos na fração autónoma, causados por infiltrações provenientes das partes comuns, tendo sido solicitada a marcação de uma assembleia geral extraordinária, e, não tendo a respetiva missiva sido rececionada, em 24.08.2018 foi por aquela remetida nova missiva, com a mesma finalidade, sem que as obras tendentes a eliminar a causa desses danos se realizassem.
Por esse motivo, a Autora, na qualidade de proprietária, interpelou o primeiro Réu para a realização das obras, salientando o seu caráter urgente, o que fez em 5.08.2020, data em que requereu, junto da G....., a realização de uma vistoria para verificação da habitabilidade da fração, o que foi feito, que tendo apurado a existência de infiltrações decorrentes da deterioração da impermeabilização dos terraços da face superior de uma varanda e da fissuração da fachada do edifício determinou a necessidade de execução de obras a iniciar no prazo de 45 dias e a completar no prazo máximo de 180, decisão de que o primeiro Réu foi notificado.
Em 19.11.2021 interpelou o primeiro Réu para a realização das obras, sendo que a 29.11.2021 se realizou uma assembleia de condóminos onde nada foi deliberado quanto às mesmas, e até à data não foi recebida qualquer resposta quanto ao pedido de obras.
Alega ainda que a inércia do primeiro Réu lhe tem causado danos de natureza patrimonial e não patrimonial, que descreve, a que se associa a conduta negligente do segundo que se abstém de promover as diligências necessárias à resolução do problema, o que é causa de agravamento dos danos.
2. Regularmente citados, apresentaram-se a contestar, o Réu Condomínio e a sociedade J..., Lda, cuja ilegitimidade para a presente ação foi excecionada.
Alegaram que os condóminos, reunidos em assembleia que se realizou em 29 de novembro de 2021, não aprovaram o orçamento apresentado pela sua então administradora, sendo a razão o facto de não quererem pagar quota extra para essa finalidade.
Mais alegou o primeiro Réu que requereu a prorrogação do prazo para a realização das obras por não conseguir encontrar empreiteiros.
Alegou que a Autora mantém em dívida quotas de condomínio desde janeiro de 2017 e junho de 2021, num total de €2.032,83, o que determinou que lhe fosse movida uma ação tendente a obter o pagamento desse valor e que enquanto esta não cumprir não poderá o Réu, Condomínio executar as obras porque para a sua realização é necessária a verba proveniente das quotas, no que entende estarem reunidos os pressupostos da exceção de não cumprimento mais invocando, neste contexto, o abuso de direito.
3. A Autora pronunciou-se sobre a matéria de exceção invocada.
4. A Autora apresentou articulado superveniente, liminarmente admitido, invocando a existência de danos ocorridos após a propositura da ação e peticionando a condenação dos Réus no pagamento da quantia de €3.007,65, a título de despesas suportadas, bem como da quantia de €2.000,00, a título de danos não patrimoniais.
5. Realizou-se a audiência prévia, no âmbito da qual se homologou a desistência do pedido formulado sob a alínea g) da petição inicial (exoneração do segundo Réu das funções de administrador), bem como a desistência da instância quanto ao Réu, BB.
No mais, foi fixado o valor da ação, foi o processo tabelarmente saneado, fixado o objeto do litígio, enunciados os temas de prova, sem que sofressem tais despachos qualquer reclamação.
6. Calendarizada e realizada a audiência final, foi proferida sentença, em cujo dispositivo se consignou: “Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, julgo a presente parcialmente procedente e, em consequência, decido:
a) Condenar o Réu na realização das obras de reparação das partes comuns do edifício que são responsáveis pelas infiltrações de água e humidade na fração autónoma de que é proprietária a Autora;
b) Condenar o Réu na reparação integral dos danos existentes na fração da Autora, paredes e tetos, em todas as divisões afetadas ou que venham a ser afetadas na consequências das obras acima descritas;
c) Condenar o Réu no pagamento da quantia de €133,65, a título de despesas suportadas pela Autora com as vistorias da G..... e C..;
d) Condenar o Réu no pagamento da quantia de €2.000,00, a título de danos não patrimoniais;
e) Absolver, no mais, o Réu do pedido.”
7. Da predita sentença, apelou a Autora, AA, tendo a Relação proferido acórdão onde concluiu: “Pelo que fica exposto, no parcial provimento do recurso, acorda-se nesta secção cível da Relação do Porto em revogar a sentença recorrida na parte atinente à indemnização pela privação do uso da fração, condenando-se agora o Réu Condomínio a pagar à Autora, a esse título, a quantia de € 340,00 (trezentos e quarenta euros), equivalente a dois meses por ano, devida desde 2020 (inclusive) e até ao ano de conclusão das obras.
Em tudo o mais se mantém o decidido em 1ª instância.”
8. É contra este acórdão, proferido no Tribunal da Relação do Porto que a Autora, AA se insurge, formulando as seguintes conclusões:
“1. Entende a Recorrente que o douto Acórdão recorrido erra na interpretação e aplicação da lei substantiva, mormente nos arts. 483.º, n.º 1, 563.º, 566.º e 1305.º, todos do CC.
2. O objeto do presente recurso assenta no (i) reconhecimento de um dano de privação do uso da fração, o qual, por força do art. 1305.º do CC, é independente da utilização que a Recorrente dava à fração e (ii) a fixação de um quantum indemnizatório, com recurso à equidade, que compense devidamente a totalidade do período em que a mesma se encontrou privada do usufruir da sua fração, em virtude da violação, pelo Recorrido, do dever de manutenção, conservação e reparação das zonas comuns do edifício.
3. A Recorrente é proprietária de uma fração autónoma em regime de propriedade horizontal, a qual se encontra deteriorada devido à conduta omissiva do Recorrido, uma vez que este não cumpriu o dever de conservação das zonas comuns.
4. Em virtude da conduta do Recorrido, a fração da Recorrente apresenta diversos danos, os quais incluem infiltrações de água, humidade nos tetos, deterioração do reboco, o que comprometeu a habitabilidade da fração.
5. Pese embora o Tribunal a quo tenha reconhecido a existência de uma privação do uso como um dano indemnizável, o certo é que errou ao fixar o montante de €170,00 mensais a ser pago apenas duas vezes por ano desde 2020 e até a conclusão das obras,
6. Uma vez que considerou que, encontrando-se a Recorrente a trabalhar no estrangeiro e cifrando-se as suas vindas a Portugal em dois meses ao ano, será apenas de indemnizar esses dois meses por ano, uma vez que nos restantes meses inexistiu qualquer prejuízo.
7. Contudo, atendendo à diversa jurisprudência elencada ao longo do presente recurso, (nomeadamente Supremo Tribunal de Justiça 17/11/2021, Proc. 6686/18.2T8GMR.G1.S1; 08/10/2009, Proc. 1362/06.1TBVCD.S1; 12/01/2010, Proc. 314/06.6TBCSC.S1; 09/07/2024, Proc. 3068/21.2T8STR.E1.S1; Tribunal da Relação de Guimarães, 15/06/2021, Proc. 2125/18.7T8VNF.G2; Tribunal da Relação do Porto, 04/05/2022, Proc. 3156/15.4T8GDM.P1) e à ratio das disposições legais elencadas (arts. 483.º, n.º 1, 563.º, 566.º e 1305.º, todos do CC), conclui-se que a privação de uso da fração da Recorrente em condições normais é, só por si, um prejuízo indemnizável, não sendo pressuposto necessário de tal indemnização a alegação e prova da concreta utilização que esta teriam feito da fração caso a mesma estivesse em bom estado.
8. É pressuposto do direito de propriedade que este integra, como um dos seus elementos fundamentais, o poder de exclusiva fruição, e que isso envolve até o direito de não usar.
9. Assim, a opção pelo não uso constitui uma manifestação dos poderes do proprietário, também afetada pela privação do bem.
10. Pelo que, a concreta violação do direito de propriedade da Recorrente, nos termos em que a mesma ocorreu, gera uma obrigação de indemnizar, mesmo que nada se prove a respeito da utilização ou do destino que seria dado ao bem.
11. Socorrendo-se da jurisprudência já citada, é possível aferir que o dano da privação do uso é sempre, só por si, um dano indemnizável, já que o mero uso constitui uma vantagem suscetível de avaliação pecuniária, pelo que a sua privação constitui naturalmente um dano, uma vez que tem um impacto negativo na esfera do titular do direito.
12. Assim, entender de outro modo representaria admitir a possibilidade de o lesado ver um terceiro interferir no seu direito de propriedade, ficando impedido de fruir e usar os seus bens, dentro dos limites do seu direito, e de se ver ressarcido por tal violação.
13. Aliás, é possível verificar que o legislador, em diversas disposições do Código Civil (v.g. arts. 289.º, n.º 1 e 1045.º), reconhece a importância da reparação integral do prejuízo sofrido pelo titular de um direito de propriedade, pretendendo atribuir ao interessado o direito ao recebimento de uma quantia que pondere o valor de uso dos bens, passando para um plano secundário a consideração do efetivo aproveitamento que deles faria o respetivo titular caso a privação se não tivesse verificado.
14. O legislador assume, em tais situações, que o reequilíbrio patrimonial deve conseguir-se mediante a restituição do valor correspondente, equivalente, na prática, ao valor de uso atinente ao período de privação.
15. É na esteira deste entendimento que a Recorrente entende que o Tribunal a quo, ao colocar em si as exigências probatórias ao nível da utilidade e necessidade concreta do uso da fração, esvazia o funcionamento e préstimo da figura do “dano de privação do uso”.
16. Porquanto é forçoso concluir que a mera privação do uso da fração configura um dano patrimonial específico e autónomo, atingindo o direito de propriedade da Recorrente.
17. A lesão patrimonial decorrente dessa perda de utilização é passível de avaliação pecuniária e deve ser calculada com base na equidade, conforme estipulado no artigo 566.º, n.º 3 do CC.
18. Assim, no entender da Recorrente, as disposições vertidas nos arts. 483.º, n.º 1, 563.º, 566.º e 1305.º, todos do CC, deveriam ter sido interpretadas de modo a concluir que a mera privação de uso de um imóvel, independentemente da frequência com que o proprietário o utilizava, constitui um dano indemnizável (art. 1305.º do CC),
19. Que, fruto da conduta omissiva do Recorrido, a Recorrente sofreu um dano patrimonial, o qual resultou na violação do seu direito de propriedade o que, por si só, faz o Recorrente incorrer no dever de indemnização (art. 483.º, n.º 1 do CC),
20. Que este dever de indemnização existe independentemente da utilização que se faça, ou não, do bem em causa durante o período da privação, ou seja, basta a própria privação para haver indemnização, pois o facto de não ter a fração à disposição já é por si um dano,
21. E, por último, que a obrigação de indemnizar deverá ser determinada através do recurso a critérios de equidade, os quais deverão contemplar, como a jurisprudência elencada neste recurso o defende, a totalidade do período em que a Recorrente se encontrou privada de usufruir da sua fração, ainda que não se tenha provado a utilidade ou vantagem concreta que a mesma teria retirado do bem durante o período de privação (art. 566.º do CC).
22. Em face do exposto, entende a Recorrente que deveria o Recorrido ter sido condenado no pagamento da quantia de €170,00 por cada mês em que a mesma esteve privada do uso pleno da sua fração e até à data de conclusão das referidas obras e não apenas pelo período de dois meses a cada ano, pelo que se impõe a devida correção por este Supremo Tribunal com vista à justa composição do litígio.
Termos em que se requer a V. Exas. que a presente revista seja julgada totalmente procedente com todas as legais consequências, com o que se fará inteira e sã JUSTIÇA!”
9. Não foram apresentadas contra-alegações.
10. Foram cumpridos os vistos.
11. Cumpre decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
II. 1. A questão a resolver, recortada das alegações apresentadas pela Recorrente/Autora/AA, consiste em saber se:
(1) O Tribunal a quo fez errada subsunção jurídica dos factos adquiridos processualmente ao condenar o Réu pela privação do uso pleno da fração, por parte da Autora, até à data de conclusão das articuladas obras, apenas pelo período de dois meses a cada ano de privação, impondo-se diverso sentenciamento no sentido da condenação do Réu no pagamento da quantia de €170,00 por cada mês em que a Autora esteve privada do uso pleno da sua fração, até à data de conclusão das referidas obras?
II. 2. Da Matéria de Facto
Factos Provados:
“1) A Autora é proprietária da fracção autónoma designada pela letra “G”, correspondente ao primeiro andar direito posterior, com entrada pelo n.º 65, habitação T3, do prédio constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ... e Rua ..., da freguesia de ..., descrita na 2ª Conservatória do Registo Predial de ..., sob o número ..69/......06-G;
2) A 7.05.2018, a anterior proprietária da fração em causa procedeu à comunicação detalhada dos diversos danos existentes na fração autónoma, solicitando a marcação de uma assembleia extraordinária para apresentação e aprovação de um orçamento para a reparação urgente;
3) Dado que a administração do condomínio não procedeu ao levantamento da carta, a anterior proprietária viu-se forçada a remeter nova comunicação, datada de 24.08.2018, com denúncia dos defeitos em zona comum;
4) A 5.08.2020, a Autora remeteu à administração do primeiro Réu uma missiva com o seguinte teor:
“Na qualidade de inquilina da fração G do prédio sito em Rua ... e na tentativa frustrada de contacto com o proprietário da mesma fração, com o qual disputo uma ação de preferência do mesmo imóvel, venho por este meio reclamar das várias infiltrações que tenho dentro da fração devido ao estado de conservação do terraço na parte superior e fachada do prédio.
Quando fiz a reclamação diretamente por telefone à administração, prontamente atenderam e procederam a uma pré-vistoria. No entanto agora já passaram 3 semanas e continuo aguardando vossa intervenção. Desde essa pré verificação que realizaram no dia 15 de julho de 2020, já caiu um pedaço do teto na sala, como podem constatar nas fotografias que anexo, o que demonstra uma rápida deterioração e degradação permanente.
Como tal e encontrando-me privada do uso da divisão, e temendo que algo pior possa acontecer, solicito máxima urgência na reparação de todos os danos que as infiltrações estão a causar”;
5) No mesmo dia, isto é, a 5.08.2020, a Autora requereu junto da G....., uma vistoria para verificação da salubridade da habitação;
6) A 23.09.2020, a G..... procedeu a uma pré-vistoria ao imóvel da Autora, onde se assinalaram as seguintes anomalias:
- Manifestações de manchas de humidade de águas pluviais nos tetos sob os terraços da habitação superior, designadamente dum quarto, da cozinha e da sala, cujas anomalias indiciam a deterioração da camada de impermeabilização dos terraços;
- Deterioração/desagregação de parte do reboco do teto da sala, com risco de queda, sendo visível a abobadilha da laje;
- Manifestações de manchas de humidade de águas pluviais no paramento interior de um quarto, cujas anomalias indiciam ser resultantes de infiltração através de fissuração existente na fachada;
- Destacamento da tinta da parte inferior da varanda da sala da habitação superior, indiciando a deficiente impermeabilização da face superior daquela varanda.
7) A 22.04.2021 foi realizada a vistoria técnica no imóvel por parte da G..... e, nessa sequência, por ofício datado de 6.07.2021, foi a Autora notificada de que foi proferida proposta de decisão no sentido de determinar a execução de obras para a correção das anomalias registadas, a iniciar dentro de 45 dias úteis e a completar no prazo máximo de 180 dias úteis;
8) Culminou tal proposta de decisão nos seguintes termos: “Analisadas as patologias assinaladas pelos peritos, conclui-se que as mesmas provocam insegurança e insalubridade no local, afetando significativamente as condições de uso do edifício em causa, para além de prejudicarem a harmonia estética da paisagem urbana envolvente”;
9) A administradora do primeiro Réu entrou em contacto com a Autora, em 17 de setembro de 2021, com vista a marcar uma data para se dirigirem ao imóvel e aferirem os diversos danos e apresentar orçamentos, tendo ficado de comunicar a disponibilidade dos técnicos;
10) A visita ao locado teve lugar no mês de setembro de 2021, onde foi possível apurar os diversos danos existentes no imóvel da Autora;
11) Por notificação datada de 14.10.2021, a G..... deu conhecimento à Autora da ordem administrativa transmitida ao primeiro Réu, para realização de obras, com um elenco das diversas anomalias e prazo de 45 dias para o seu início e 180 dias para a sua conclusão;
12) A 19.11.2021 a Autora voltou a interpelar a administradora do primeiro Réu sobre a necessidade urgente de iniciar a realização das obras, tudo conforme documento 10 que aqui se junta e se dá por integralmente reproduzido.
13) As referidas obras nunca tiveram lugar;
14) Por falta da realização das obras, os danos existentes na sala foram-se agravando;
15) A Autora está impossibilitada de gozar e fruir da sala da sua habitação;
16) Enquanto arrendatária, a Autora pagava a quantia de €510,00 mensais a título de renda;
17) A Autora suportou a quantia de €133,65, a título das despesas com as vistorias da G..... e C.. (, tudo conforme documento 5;
18) A administração do primeiro Réu conseguiu arranjar um orçamento para realização das obras no exterior e nas frações afetadas nos termos que constam do documento n.º 1 anexo à contestação;
19) No dia 22 de novembro de 2021, realizou-se a assembleia de condóminos tendo como ponto 1 da ordem de trabalhos a apresentação, análise e discussão do orçamento a que se alude no facto anterior, sobre o qual foi deliberado o seguinte “Devido a uma queixa apresentada na G....., que resultou no Processo de Contraordenação n.º .95/VT/2020, foi necessário a realização de uma vistoria e posterior orçamentação das obras a ser realizadas, Depois de apresentado o orçamento único, apenso à ata e mais bem identificado Orçamento .25-2021, em virtude das necessidades apontadas pelo Relatório de Vistoria ..09/21, também ele anexado à ata, foi dado início à discussão do orçamento. (…) Concluído o debate, o Orçamento apresentado foi (…) rejeitado;
20) Quando notificada da decisão da G..... no sentido de serem realizadas as obras, a administração do primeiro Réu pediu a prorrogação do prazo;
21) Corre termos no Julgado de Paz de ... a ação nº .33/..22-JP, proposta pelo primeiro Réu contra a Autora e P..., Lda em 29.09.2022, na qual peticiona a condenação das Rés no pagamento da quantia de €2.651,28, a título de contribuições para pagamento das despesas e serviços necessários à conservação e fruição das partes comuns, desde fevereiro de 2017 a junho de 2021;
22) Anteriormente havia corrido termos uma ação executiva contra a aqui Autora, a qual veio a ser declarada extinta quanto aos valores identificados no facto anterior, no âmbito dos embargos de executado movidos por esta, com fundamento na falta de título executivo;
23) Para além da habitação da Autora, outras do mesmo edifício sofrem de infiltrações;
24) Apesar de convocada para todas as assembleias de condóminos, a Autora nunca compareceu;
25) No dia 29 de março de 2023, a Autora recorreu aos Bombeiros Sapadores de ...;
26) No relatório da ocorrência elaborado pelos Bombeiros Sapadores consta o seguinte:
Apartamento habitado ocasionalmente. Os moradores tinham chegado do estrangeiro e encontraram a sua casa com infiltrações, principalmente na sala. O teto da sala tinha tinta descaída, falta de revestimento (gesso) e até um buraco. Como tem um terraço por cima da sala, pensamos que a infiltração virá daí”;
27) A Autora tem um filho, nascido em ........2023;
28) A Autora permaneceu em hotéis nos seguintes períodos temporais:
a) 27 de março a 3 de abril de 2023 no Hotel ..., tendo sido suportado um custo de €894,00 referente à estadia e €52,50, referente ao parqueamento de um veículo automóvel;
b) 3 de abril de 2023 a 7 de abril de 2023, no Hotel ..., tendo sido suportado um custo de €538,25, referente à estadia;
c) 10 de abril a 14 de abril de 2023, no Hotel ..., tendo sido suportado um custo de €530,25 referente à estadia;
29) No período compreendido entre os dias 22 e 28 de junho de 2023 a Autora permaneceu hospedada no Hotel ..., tendo a Autora suportado um custo de €963,60;
30) A Autora sente desgosto ao ver o estado em que se encontra a sua habitação, nomeadamente por apresentar a sala um buraco no teto e de tal divisão não poder usufruir;
31) A demora na execução das obras provoca na Autora inquietação, angústia e desgaste psicológico;
32) A Autora tem necessidade de proceder à limpeza da sala quando há quedas de estuque do teto, no que despende tempo e causa desgaste físico;
33) O apartamento da propriedade da Autora encontra-se habitado “ocasionalmente” porquanto a Autora reside no estrangeiro, apenas se deslocando esporadicamente a Portugal.”
Factos não Provados:
“a) Se as obras na fração da Autora tivessem sido realizadas entre 2018 e 2020, os custos seriam bastante mais diminutos em relação aos custos que a obra comporta aos dias de hoje, porquanto
b) Durante o período de pandemia, altura em que a Autora e a sua família se viram forçados a permanecer na habitação, em teletrabalho e telescola, mesmo nas condições descritas de total insalubridade;
c) A administração do Condomínio contactou empreiteiros no sentido de apresentarem orçamentos, tarefa que se veio a revelar dificílima nos dias que correm em função da falta de mão de obra e do exponencial aumento dos materiais;
d) O pedido de prorrogação de prazo junto da G..... deveu-se ao facto de não conseguir a administração do Condomínio encontrar empreiteiros que apresentassem orçamentos e quisessem realizar as obras;
e) A principal razão porque os condóminos não aprovam orçamentos para obras prende-se com o facto de não querem pagar uma quota extra;
f) O valor cujo pagamento é peticionado no âmbito do processo que corre termos junto do Julgado de Paz de Vila Nova de Gaia foi liquidado pela anterior proprietária;
g) No dia 29 de março de 2023 o apartamento estava inundado;
h) No dia 29 de março de 2023, o apartamento apresentava piores condições de salubridade do que aquelas que anteriormente se verificavam;
i) Por causa do agravamento das más condições do apartamento, a Autora viu-se forçada a sair de casa, juntamente com o seu filho;
j) Em virtude de não ter a Autora familiares que lhe conseguissem ceder casa para residir temporariamente teve a mesma que pernoitar em hotéis porque só assim conseguia assegurar as condições dignas de habitação ao seu filho menor, que se encontrava a estudar nessa altura;
k) No período compreendido entre os dias 22 e 28 de junho de 2023, a Autora teve que ficar hospedada com o seu filho num hotel em virtude das más condições que a fração autónoma apresentava;
l) Em produtos adquiridos para proceder à limpeza profunda que na sua habitação teve que realizar, despendeu a Autora a quantia de €56,05;
m) Em face dos danos apresentados na fração, a Autora ficou impossibilitada de usufruir, juntamente com a sua família, da sua habitação e viu-se impedida de a habitar;
n) O facto de não saber quando é que as obras serão executadas, obrigou a Autora a organizar a sua vida em função das circunstâncias atuais do imóvel;
o) Por causa das infiltrações, a Autora viu-se obrigada a sair temporariamente da sua habitação;
p) Os meses de março e abril de 2023 foram particularmente secos, praticamente com ausência de precipitação”
II. 3. Do Direito
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da Recorrente/Autora/AA, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso, conforme prevenido no direito adjetivo civil - artºs. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.
II. 3.1. O Tribunal a quo fez errada subsunção jurídica dos factos adquiridos processualmente ao condenar o Réu pela privação do uso pleno da fração, por parte da Autora, até à data de conclusão das articuladas obras, apenas pelo período de dois meses a cada ano de privação, impondo-se diverso sentenciamento no sentido da condenação do Réu no pagamento da quantia de €170,00 por cada mês em que a Autora esteve privada do uso pleno da sua fração, até à data de conclusão das referidas obras? (1)
Por força da vida em sociedade, as pessoas são colocadas em confronto, de que emergem conflitos e ofensas aos direitos de cada um.
O princípio de justiça, cristalizado nos brocardos latinos, suum cuique tribuere e alterum non laedere, impõe que aquele que foi lesado, que sofreu um dano por ação de outrem, seja reconduzido à situação em que se encontrava antes da lesão.
Se “o homem é senhor dos seus actos (e dos seus efeitos queridos, previsíveis e evitáveis) é por isso também deles (e desses seus efeitos) responsável, neste sentido, Castanheira Neves, in, Lições de Introdução ao Estudo do Direito, página 165.
Em regra, a reconstituição pressupõe, além do mais, uma ação (omissão) do lesante, e que esta ação (omissão) lhe seja imputada, atribuída, como ato de vontade, ou seja, pressupõe a sua culpa, neste sentido, e será feita, em princípio, à custa do autor da lesão, em obediência ao princípio de que cada um deve assumir as consequências dos seus atos ou omissões, o que é tanto mais evidente, quando e se o prejuízo foi causado por este.
A responsabilidade civil é o campo de eleição da ilicitude da ação ou da omissão, sendo a responsabilidade por factos ilícitos, com base na culpa, a regra, pois, só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei.
No caso trazido a Juízo foi já reconhecido em 1ª Instância, pacificamente aceite pelos litigantes, e confirmado pela Relação, que:
“Percorrida a factualidade provada, da mesma resulta que as partes comuns do edifício, ao nível das fachadas e dos terraços que à fração autónoma de que é proprietária a Autora servem de cobertura, se mostram deterioradas e estão na origem de infiltrações de água e no surgimento de humidades no interior daquela fração.
Como tal, e sem necessidade de maiores considerandos, terá o Réu Condomínio que ser condenado na realização das obras nas partes comuns que estão na origem das infiltrações e humidades surgidas na fração de que a Autora é proprietária, já que foi a falta de conservação da impermeabilização de fachadas e dos terraços que lhes deram causa. Resultou igualmente demonstrado que como consequência do comportamento omissivo do Réu viu a Autora afetada a sua fração autónoma, que apresenta danos por cuja reparação terá aquele que ser responsabilizado.” sendo que a dissensão da Autora/AA, objeto de ponderação na presente revista, respeita ao entendimento sufragado pelas Instâncias quanto à pretensa indemnização pelo dano da privação do pleno uso do imóvel, tendo a 1ª Instância concluído a este propósito, e passamos a citar:
“Pretende ainda a Autora ser indemnizada pelo dano de privação do imóvel, que computa em €170,00 mensais, desde maio de 2018 e até à data da conclusão das obras.
Provou-se que a sala do apartamento não pode ser utilizada, sendo o mesmo de tipologia T3.
Mas também se apurou que a Autora apenas ocasionalmente utiliza a fração, já que reside no estrangeiro e aí se desloca ocasionalmente.
Neste confronto entre uma efetiva limitação no uso de parte da fração autónoma e o seu não uso pela Autora por residir no estrangeiro, apenas aí se deslocando ocasionalmente, afigura-se-nos não estar provado o dano de privação que justificaria a atribuição indemnizatória pretendida, que assim lhe será negada.”
Por seu turno, o Tribunal recorrido sustentou, com utilidade:
“No caso em apreço, o pedido da Autora reportou-se à simples privação do uso do veículo – “pagamento da quantia de €170,00 por cada mês em que a Autora esteve privada do uso pleno da sua fração, isto é, desde maio de 2018, até à data de conclusão das referidas obras”. Ou seja, estamos no âmbito de danos patrimoniais autónomos, os transtornos e arrelias de quem não pode retirar as vantagens proporcionadas por uma coisa de sua propriedade.
Esta mera privação desse uso, será ela um dano indemnizável?
(…) Também nós consideramos ser indemnizável a mera privação da possibilidade do uso de um bem de que se é proprietário.
Na verdade, se alguém tem uma casa deve poder utilizá-la como bem lhe aprouver, seja habitando-a ou arrendando-a. E mesmo que não a habite de forma contínua.
Existe sempre uma utilidade proporcionada por um bem e é a pessoa que dela se vê privada quando decide usar esse bem.
Apesar de viver no estrangeiro, o certo é que a Autora decidiu comprar a fração para as visitas que faz a Portugal, em desprimor de se alojar em hotel ou de arrendar. Tal é significativo da utilidade que para ela é (foi) significativa em ter casa própria para o efeito das deslocações a Portugal.
(…) O maior ou menor grau dessa privação é que já necessitaria de concretização factual (por exemplo, frequência e tipo de utilização) para se poder aquilatar de um maior ou menor montante indemnizatório.
Ora, ficou provado que a Autora está impossibilitada de gozar e fruir da sala da sua habitação (facto provado 15).
E, para além da sala, que a casa não tem condições de salubridade, apresentando manchas de humidade de águas pluviais nos tetos sob os terraços da habitação superior, designadamente dum quarto, da cozinha e da sala, cujas anomalias indiciam a deterioração da camada de impermeabilização dos terraços; que existe desagregação de parte do reboco do teto da sala, com risco de queda, sendo visível a abobadilha da laje.
A entidade oficial G..... concluiu pela insegurança e insalubridade no local, afetando significativamente as condições de uso do edifício em causa e ordenou a realização compulsiva das obras (factos provados 6 a 8, 11, 25 e 26).
Apesar de ter comprado uma habitação para as suas deslocações a Portugal, a Autora não pode usufruir da fração e tem-se visto compelida a recorrer a hotéis, como resulta dos factos provados 28 a 29. Será caso para dizer que de nada valeu o investimento na compra.
Quanto ao lapso de tempo a considerar, a Autora pretende a indemnização desde maio de 2018 e por cada mês em que tem estado privada da fração.
E neste ponto surgem as dificuldades. O dano respeita ao proprietário e não sabemos desde quando a Autora se tornou proprietária, referindo os factos provados 2 e 3 que em maio e agosto de 2018 ainda existia uma “anterior proprietária”. Mas sabemos que m 2020, já era a Autora a interpelar o Condomínio e as entidades oficiais (factos provados 4 e 5). Assim, iremos considerar o ano de 2020 como o início da privação do uso da fração, já na qualidade de proprietária.
Por outro lado, desconhece-se a frequência das deslocações da Autora a Portugal, sabendo-se apenas que em 2023 (factos provados 28 a 29) aqui permaneceu nos meses de março e abril e alguns dias de junho.
É sabido que o prejuízo da privação do uso, pela sua própria natureza, é impossível de ser quantificado com rigor, pelo que se impõe o recurso a critérios de equidade (art.º 496º nº 4 e 566º nº 3 do CC), sem que seja de confundir equidade com a subjetividade do julgador.
(…) Neste âmbito, à míngua de dados exatos, e olhando aos factos existentes, iremos considerar que as estadias da Autora em Portugal se cifram numa média de dois meses por ano e se iniciaram em 2020.
Quanto ao quantum, consideramos equilibrados os €170,00 mensais peticionados, o que corresponde a um valor de €340,00 (2 meses) anuais, desde 2020 e devido até à data de conclusão das obras.”
Disto isto, sublinhamos que o objeto da presente revista incide sobre a problemática do direito à indemnização pela privação do uso de um determinado bem.
Ora, relembrando que a Autora/AA reclama uma indemnização pela reconhecida privação do uso pleno da sua fração habitacional, até à data de conclusão das articuladas obras, não apenas pelo período de dois meses a cada ano de privação, como decidido pela Relação, mas por cada mês em que esteve e estará privada do uso pleno da fração, até à data da conclusão das referidas obras, impõe-se encontrar fundamentada e justa solução para o dissidio trazido a Juízo.
Quando falamos da privação do uso e do dano da privação do uso atemo-nos ao prejuízo resultante da falta de utilização de um bem (da impossibilidade temporária de usar um bem, dos inconvenientes da pura e mera impossibilidade de usar um bem) que integra o património do lesado. Estamos a falar da privação do uso, só por si, como um dano autónomo e patrimonial suscetível de avaliação, e não discorremos sobre aquelas situações em que a privação do uso não origina uma verdadeira diferença patrimonial.
Quando um bem que faz parte de determinado património, sofreu danos que limitam e privam o respetivo proprietário do seu pleno uso, deixando de dele poder dispor e gozar livremente, nos termos consagrados no art.º 1305º do Código Civil, constitui dano patrimonial autónomo suscetível de indemnização, cabendo, assim, pela mera violação do direito de propriedade, o direito a indemnização pela ocorrência desse dano.
O dano da privação do uso é sempre, só por si, um dano indemnizável, já que o mero uso constitui uma vantagem suscetível de avaliação pecuniária, daí que a sua privação constitui, naturalmente, um dano, uma vez que tem um impacto negativo na esfera do titular do direito.
Este entendimento vem sendo sufragado pela Doutrina e pelos nossos Tribunais superiores.
Abrantes Geraldes sustenta que “não custa a compreender que a simples privação do uso seja uma causa adequada de uma modificação negativa na relação entre o lesado e o seu património que possa servir de base à determinação da indemnização” in, Indemnização do Dano Privação do Uso, páginas 39-41.
Paulo Mota Pinto, in Interesse Contratual Negativo e interesse contratual Positivo”, Vol. I, 2008, páginas 594-596, sustenta que a indemnização do dano da privação do uso pressupõe a demonstração da possibilidade de certa utilização concreta ou da afetação da possibilidade dessa utilização, como integradora das faculdades do proprietário.
Ao direito subjetivo absoluto, como é o caso do direito de propriedade da aqui demandante, é intrínseco um dado conteúdo patrimonial que se traduz numa nota de utilidade, pelo que, sempre que tal utilidade não possa ser realizada, fruto da intervenção de um estranho à esfera de domínio traçado pelo direito, como é, no caso, a intervenção ou omissão de intervenção do aqui demandado, tem que se considerar que ocorre um dano, que corresponde à utilidade ordinária e normal do bem e que é a consequência (dano consequencial) que a lesão tem na esfera da pessoa lesada.
Este dano é indemnizável ainda que não se tenha provado que utilidade ou vantagem concreta o proprietário teria retirado do bem durante todo o período de privação. Só assim não ocorrerá se se demonstrar que o lesado não tem qualquer interesse nas faculdades/utilidades ordinárias e normais do bem ou se por circunstâncias estranhas ao âmbito do domínio o lesado não tiver qualquer possibilidade de utilização do bem, hipóteses em que será de concluir não ter existido tal dano consequencial, o que, de resto não distinguimos no caso sub iudice.
Face aos artºs. 562º a 564º e 566º todos do Código Civil, da privação de uso de um imóvel, em consequência de dano causado por outrem, pode resultar, não só um dano emergente - a utilização mais onerosa de uma outra fração habitacional alternativa como o seria, nomeadamente, o arrendamento de outro imóvel, a necessidade de alojamento numa unidade hoteleira; mas também, um lucro cessante - a perda de rendimento que a fração habitacional dava com o seu destino a uma atividade lucrativa; outrossim, pode resultar um dano advindo da mera privação do uso da fração que impossibilita o seu proprietário de dele livremente dispor com o conteúdo definido no art.º 1305º do Código Civil, fruindo-o e aproveitando-o como bem lhe aprouver.
Reconhecemos, pois, o princípio assente em direito de que a privação ilícita do uso de qualquer bem constitui um dano de que o lesado deve ser compensado, a calcular nos termos do art.º 566° n.º 3 do Código Civil, neste sentido, Menezes Leitão, in, Direito das Obrigações, vol. I, pág 317, Cadernos de Direito Privado, anotação de Júlio Gomes, nº. 3, página 62.
E não se diga, como decorre do acórdão recorrido que:
“Neste âmbito, à míngua de dados exatos, e olhando aos factos existentes, iremos considerar que as estadias da Autora em Portugal se cifram numa média de dois meses por ano e se iniciaram em 2020.
(…) “condenando-se agora o Réu Condomínio a pagar à Autora, a esse título, a quantia de € 340,00 (trezentos e quarenta euros), equivalente a dois meses por ano, devida desde 2020 (inclusive) e até ao ano de conclusão das obras.”.
Na verdade, como já adiantamos, o dano decorrente da privação da fruição da fração habitacional é indemnizável ainda que não se tenha provado que utilidade ou vantagem concreta o proprietário teria retirado do bem durante todo o período de privação.
Conquanto saibamos que a responsabilidade civil, gerando obrigação de ressarcir, não pode concretizar-se onde não há um dano a reparar, certo é que o próprio legislador, em situações bastante similares, v. gr. o art.º 289º n.º 1 do Código Civil, sobre a reintegração do “valor correspondente”, e o art.º 1045º do Código Civil, a propósito da indemnização pelo atraso na restituição do locado, a atribuir ao interessado o direito ao recebimento de uma quantia que pondere o valor de uso dos bens, passando (o legislador) para um plano secundário a consideração do efetivo aproveitamento que deles faria o respetivo titular se acaso a privação se não tivesse verificado, ou seja, o legislador assume, em tais situações, que o reequilíbrio patrimonial pode/deve conseguir-se mediante a restituição do valor correspondente, equivalente, na prática, ao valor de uso atinente ao período de privação, importa que no caso concreto tenhamos em devida consideração que não podemos restringir o poder da exclusiva e plena fruição, por parte da Autora, que passa não só pelo uso pessoal do imóvel, com a sua presença, bem como, pela liberdade de dispor da aludida fração como lhe aprouver, desde que de modo licito, enquanto titular do reconhecido direito subjetivo absoluto, como é o caso do direito de propriedade.
Revertendo ao caso dos autos, e relembrando a facticidade adquirida processualmente (factos adiante consignados), temos de convir que a mesma é determinante para que se possa exigir do lesante, aqui Réu/Condomínio do Edifício Quinta Verde, uma indemnização a título de privação do uso da fração articulada, por todo o período que medeia entre agosto de 2020 (esta data, e não outra, conforme justificação adiante enunciada) até à conclusão das obras, judicialmente impostas.
Assim:
“1) A Autora é proprietária da fracção autónoma designada pela letra “G”, correspondente ao primeiro andar direito posterior, com entrada pelo n.º 65, habitação T3, do prédio constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ... e Rua ..., da freguesia de ..., descrita na 2ª Conservatória do Registo Predial de ..., sob o número ..69/......06-G;
4) A 5.08.2020, a Autora remeteu à administração do primeiro Réu uma missiva com o seguinte teor:
“Na qualidade de inquilina da fração G do prédio sito em Rua ... e na tentativa frustrada de contacto com o proprietário da mesma fração, com o qual disputo uma ação de preferência do mesmo imóvel, venho por este meio reclamar das várias infiltrações que tenho dentro da fração devido ao estado de conservação do terraço na parte superior e fachada do prédio.
Quando fiz a reclamação diretamente por telefone à administração, prontamente atenderam e procederam a uma pré-vistoria. No entanto agora já passaram 3 semanas e continuo aguardando vossa intervenção. Desde essa pré verificação que realizaram no dia 15 de julho de 2020, já caiu um pedaço do teto na sala, como podem constatar nas fotografias que anexo, o que demonstra uma rápida deterioração e degradação permanente.
Como tal e encontrando-me privada do uso da divisão, e temendo que algo pior possa acontecer, solicito máxima urgência na reparação de todos os danos que as infiltrações estão a causar”;
5) No mesmo dia, isto é, a 5.08.2020, a Autora requereu junto da G....., uma vistoria para verificação da salubridade da habitação;
6) A 23.09.2020, a G..... procedeu a uma pré-vistoria ao imóvel da Autora, onde se assinalaram as seguintes anomalias:
- Manifestações de manchas de humidade de águas pluviais nos tetos sob os terraços da habitação superior, designadamente dum quarto, da cozinha e da sala, cujas anomalias indiciam a deterioração da camada de impermeabilização dos terraços;
- Deterioração/desagregação de parte do reboco do teto da sala, com risco de queda, sendo visível a abobadilha da laje;
- Manifestações de manchas de humidade de águas pluviais no paramento interior de um quarto, cujas anomalias indiciam ser resultantes de infiltração através de fissuração existente na fachada;
- Destacamento da tinta da parte inferior da varanda da sala da habitação superior, indiciando a deficiente impermeabilização da face superior daquela varanda.
7) A 22.04.2021 foi realizada a vistoria técnica no imóvel por parte da G..... e, nessa sequência, por ofício datado de 6.07.2021, foi a Autora notificada de que foi proferida proposta de decisão no sentido de determinar a execução de obras para a correção das anomalias registadas, a iniciar dentro de 45 dias úteis e a completar no prazo máximo de 180 dias úteis;
8) Culminou tal proposta de decisão nos seguintes termos: “Analisadas as patologias assinaladas pelos peritos, conclui-se que as mesmas provocam insegurança e insalubridade no local, afetando significativamente as condições de uso do edifício em causa, para além de prejudicarem a harmonia estética da paisagem urbana envolvente”;
9) A administradora do primeiro Réu entrou em contacto com a Autora, em 17 de setembro de 2021, com vista a marcar uma data para se dirigirem ao imóvel e aferirem os diversos danos e apresentar orçamentos, tendo ficado de comunicar a disponibilidade dos técnicos;
10) A visita ao locado teve lugar no mês de setembro de 2021, onde foi possível apurar os diversos danos existentes no imóvel da Autora;
11) Por notificação datada de 14.10.2021, a G..... deu conhecimento à Autora da ordem administrativa transmitida ao primeiro Réu, para realização de obras, com um elenco das diversas anomalias e prazo de 45 dias para o seu início e 180 dias para a sua conclusão;
12) A 19.11.2021 a Autora voltou a interpelar a administradora do primeiro Réu sobre a necessidade urgente de iniciar a realização das obras, tudo conforme documento 10 que aqui se junta e se dá por integralmente reproduzido.
13) As referidas obras nunca tiveram lugar;
14) Por falta da realização das obras, os danos existentes na sala foram-se agravando;
15) A Autora está impossibilitada de gozar e fruir da sala da sua habitação;
27) A Autora tem um filho, nascido em ........2023;
28) A Autora permaneceu em hotéis nos seguintes períodos temporais:
a) 27 de março a 3 de abril de 2023 no Hotel ..., tendo sido suportado um custo de €894,00 referente à estadia e €52,50, referente ao parqueamento de um veículo automóvel;
b) 3 de abril de 2023 a 7 de abril de 2023, no Hotel ..., tendo sido suportado um custo de €538,25, referente à estadia;
c) 10 de abril a 14 de abril de 2023, no Hotel ..., tendo sido suportado um custo de €530,25 referente à estadia;
29) No período compreendido entre os dias 22 e 28 de junho de 2023 a Autora permaneceu hospedada no Hotel ..., tendo a Autora suportado um custo de €963,60;
30) A Autora sente desgosto ao ver o estado em que se encontra a sua habitação, nomeadamente por apresentar a sala um buraco no teto e de tal divisão não poder usufruir;
31) A demora na execução das obras provoca na Autora inquietação, angústia e desgaste psicológico;
32) A Autora tem necessidade de proceder à limpeza da sala quando há quedas de estuque do teto, no que despende tempo e causa desgaste físico;
33) O apartamento da propriedade da Autora encontra-se habitado “ocasionalmente” porquanto a Autora reside no estrangeiro, apenas se deslocando esporadicamente a Portugal.”
Anota-se, por outro lado, e em termos breves que, demonstrado o dano, e sendo dano que advém da privação do uso pleno da fração, na falta de quantificação objetiva, é legitimo o recurso à equidade para fixar a respetiva compensação, conforme, aliás, assumido nos termos do aresto recorrido, assim como, sufragamos o dies a quo a considerar na privação do uso da fração, admitido pelo Tribunal a quo, reconhecendo o mês de agosto de 2020 (facto provado em 4. e 5.), como data a partir da qual há que considerar os danos sofridos pela demandante, respigando, com utilidade, do proferido acórdão:
“Quanto ao lapso de tempo a considerar, a Autora pretende a indemnização desde maio de 2018 e por cada mês em que tem estado privada da fração.
E neste ponto surgem as dificuldades.
O dano respeita ao proprietário e não sabemos desde quando a Autora se tornou proprietária, referindo os factos provados 2 e 3 que em maio e agosto de 2018 ainda existia uma “anterior proprietária”. Mas sabemos que em 2020, já era a Autora a interpelar o Condomínio e as entidades oficiais (factos provados 4 e 5). Assim, iremos considerar o ano de 2020 como o início da privação do uso da fração, já na qualidade de proprietária.”
Ademais, a propósito da fixação de indemnização com recurso à equidade, sublinhamos que a orientação consolidada da Jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça vai no sentido de reconhecer que mais do que discutir a aplicação de puros juízos de equidade que, em rigor, não se traduzem na resolução de uma “questão de direito”, importa, essencialmente, num recurso de revista, verificar se os critérios seguidos e que estão na base de tais valores indemnizatórios são passíveis de ser generalizados e se se harmonizam com os critérios ou padrões que, numa jurisprudência atualista, devem ser seguidos em situações análogas ou equiparáveis, donde, também merece ser acolhida a pretensão da Autora/AA ao reclamar €170,00 mensais pela privação do uso da fração ajuizada, acompanhando, a este propósito, a orientação consolidada na jurisprudência de que quando o Supremo Tribunal de Justiça é chamado a pronunciar-se sobre o cálculo de uma indemnização assente em juízos de equidade, não lhe compete a determinação exata do valor pecuniário a arbitrar, mas tão-somente a verificação exata acerca dos limites e pressupostos dentro dos quais se situou o juízo equitativo formulado na Instância recorrida, face à ponderação casuística da individualidade do caso concreto sub iudicio.
Reconhecemos, pois, ser de desaprovar o período temporal fixado pela Relação quanto à privação do uso pleno da fração, uma vez que, conforme acabado de discretear, a privação do uso da fração, desde agosto de 2020 até à data da conclusão das obras, é, só por si, um prejuízo indemnizável, não sendo pressuposto necessário de tal indemnização a alegação e prova da concreta utilização que a Autora/AA teria feito da fração, caso nenhum impedimento se lhe deparasse para a sua fruição, sendo, assim, indemnizável ainda que não se tenha provado que utilidade ou vantagem concreta a Autora/AA teria retirado da fração durante o período de privação e em que não esteve fisicamente na mesma, ou seja, pese embora tivesse sido demonstrado apenas que a Autora/AA se deslocava à fração em causa, cerca de dois meses por ano, desconhecendo-se como disporia da fração em todo o restante período do ano, não se concede que se limite o poder de exclusiva e livre fruição, por parte da Autora/AA, que poderá passar não só pelo uso pessoal do imóvel, com a sua presença física, mas também, por qualquer outra forma licita que lhe aprouver, enquanto titular do reconhecido direito subjetivo absoluto, como é o caso do direito de propriedade, operando-se, assim, o reequilíbrio patrimonial na esfera jurídica da Autora/AA mediante a restituição do valor correspondente, equivalente, na prática, ao valor do uso atinente ao período de privação da respetiva fruição, sem exigir prova do modo como a Autora/AA disporia da fração no restante período dos anos em que não esteve, fisicamente, na fração articulada.
Tudo visto, considerando o enunciado quadro normativo, jurisprudencial e doutrinal, conjugado com a facticidade demonstrada nos autos, entendemos que o aresto posto em crise pela Recorrente/Autora/AA merece censura, neste concreto segmento atinente à indemnização pela privação do uso da fração ajuizada, devendo ser revogado, sendo substituído por outro que condena o Réu/Condomínio do Edifício Quinta Verde a pagar à Autora/AA, a esse título, a quantia mensal de €170,00 (cento e setenta euros), desde agosto de 2020 até à efetiva conclusão das obras, judicialmente ordenadas, reconhecendo-se, assim, que os fundamentos recursivos aduzidos, encerram virtualidades no sentido de alterar o destino traçado na Instância recorrida.
III. DECISÃO
Pelo exposto e decidindo, os Juízes que constituem este Tribunal, julgam procedente o recurso, concedendo a revista interposta.
Assim, acordam os Juízes que constituem este Tribunal:
I. Em conceder a revista, porque procedente o recurso, impondo-se revogar a parte decisória do acórdão recorrido, no concreto segmento que condenou o Réu/Condomínio do Edifício Quinta Verde a pagar à Autora/AA, pela privação do uso da fração articulada, a quantia de €340,00 (trezentos e quarenta euros), equivalente a dois meses por ano, devida desde 2020 (inclusive) até ao ano de conclusão das obras, substituindo-a por outra, condenando o Réu/Condomínio do Edifício Quinta Verde a pagar à Autora/AA a quantia mensal de €170,00 (cento e setenta euros), a título de indemnização pela privação da fruição da fração habitacional, desde agosto de 2020 (inclusive) até à conclusão das obras, cuja realização foi judicialmente determinada, mantendo-se tudo o mais decidido em 1ª Instância, confirmado pela Relação.
II. Custas pelo Recorrido/Réu/Condomínio do Edifício Quinta Verde.
Notifique.
Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 10 de dezembro de 2024
Oliveira Abreu (relator)
Rui Manuel Duarte Amorim Machado e Moura
Maria de Deus Correia