I - Quando a Convenção de Haia de 1980 sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças distingue as situações entre as que foram despoletadas regularmente antes do prazo de um ano e as que o foram após o mesmo, há que considerar que o elemento em causa tem a sua razão de ser – é um elemento literal, não despiciendo; tem motivos válidos para a sua consagração, mesmo quando visto na perspectiva do cidadão comum.
II - Na situação dos autos, o prazo de um ano não tinha sido ultrapassado, qualquer que fosse a interpretação que se desse aos factos – segundo a sentença, a deslocação ilícita contar-se-ia de junho de 2023.
III - Se uma criança tiver sido indevidamente deslocada ou retida num Estado Contratante que não seja o da sua residência habitual nos termos do artigo 3.º, o tribunal ou a autoridade competente que aprecia o pedido de regresso tem o dever de ordenar o regresso imediato da criança (artigo 12.º, n.º 1).
IV - A Convenção prevê excepções limitadas ao princípio do regresso da criança. Se e quando essas excepções forem invocadas e provadas com êxito, o tribunal do Estado requerido “não está obrigado a ordenar o regresso da criança” ao Estado de residência habitual; por outras palavras, o tribunal poderá exercer o poder discricionário de não ordenar o regresso da criança. Essas exceções constam dos artigos 12.º, n.º 2,40 13.º, n.º1, alíneas a)41 e b), 13.º, n.º 242 e 20.º.
V - A redação do artigo 13.º, n.º 1, alínea b) deixa claro que a questão é saber se existe um risco grave de que o regresso “sujeite a criança a perigos de ordem física ou psíquica ou, de qualquer outro modo, a coloque numa situação intolerável”.
VI - O conceito de risco deve ser entendido como uma verdadeira e extrema excepção, utilizada apenas em última instância e não como um mecanismo de recusa automática.
VII - Trata-se de um conceito a interpretar restritivamente e ponderadamente, sendo claramente de aplicar a situações de maus tratos comprovados, incluindo abuso sexual ou de outro tipo, regresso a zonas de guerra, fome, ou que não respeitem os direitos humanos, que não está em causa na situação da França.
1. O Magistrado do Ministério Público junto do Juízo de Família e Menores de ..., requereu, em 03-04-2024, a pedido de AA, residente em França, pai da menor BB, nascida a ...-...-2019, a instauração, com carácter de urgência, do presente processo tutelar comum para entrega judicial da menor, ao abrigo da Convenção de Haia sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças, de 25-10-1980, contra a mãe da mesma menor, CC.
Alegou que a menor nasceu em França, onde tem a sua residência habitual e que o exercício das responsabilidades parentais foi regulado em França, resultando da sentença aí proferida que o pai e a mãe exercem conjuntamente a autoridade parental (resulta da sentença junta que foi fixada a residência habitual no domicílio da mãe). Que a mãe da menor viajou com esta para Portugal, em março de 2023, aqui permanecendo até hoje, sendo que, desde essa altura, o pai não vê a filha.
Pediu que, realizadas as diligências tidas por adequadas, se decida sobre o regresso da menor a França.
2. Foi proferido despacho em que se determinou a tramitação do procedimento como processo tutelar comum, se atribuiu carácter urgente ao procedimento e se ordenou a citação da requerida para, no prazo de 10 dias, alegar e requerer as diligências probatórias que tivesse por conveniente.
3. A 15/04/2024 procedeu-se à tomada de declarações à progenitora.
A requerida, a 22-04-2024, deduziu requerimento concluindo pela sua expressa oposição ao regresso voluntário da sua filha a França e que seja proferida decisão de recusa de entrega da menor ao abrigo do art. 12º da Convenção de Haia, tendo decorrido mais de um ano entre a vinda da menor para Portugal e a data da interposição do presente processo, estando a mesma inserida e ambientada no meio familiar e escolar, bem como ao abrigo do art. 13º, al. b), da mesma Convenção, por força do risco grave que a decisão de regresso acarretará para a menor.
Alegou que regressou a Portugal para proteger a menor, que havia sido sinalizada pela escola como estando em perigo pela relação que tinha com o pai. Que a menor vive consigo e com dois irmãos adultos (filhos de uma anterior relação sua), com quem já vivia em França e que também regressaram a Portugal. Que, face à doença de que padece, do espectro do autismo, é acompanhada em consultas de psicologia, terapia da fala e pedopsiquiatria, bem como através do médico e enfermeira de família. Frequenta a escola básica e, todos em conjunto, conseguiram reequilibrá-la e acabar com a agitação permanente, a perda de controle e a insociabilidade com outras crianças, tendo sido possível, ao longo dos 13 meses em que vive em Portugal, de interação e cooperação entre todos os cuidadores, restaurar emocionalmente a menor e contribuir para uma personalidade sadia, com estabilidade de rotinas e de relações saudáveis com meninos e meninas da sua idade e com educadores, tendo ganho auto-confiança com as terapias e consultas, o que tudo fica salientado nos diversos relatórios de todos estes profissionais, que junta aos autos como prova, esclarecendo também que, em França, o pai negava o problema de saúde da filha e opunha-se ao acompanhamento médico.
4. Ordenada a notificação do progenitor para, querendo, se pronunciar sobre a oposição deduzida pela progenitora, este nada disse.
5. Teve lugar a audiência de julgamento, com inquirição da pedopsiquiatra, da médica de família, da educadora, da terapeuta da fala, da terapeuta ocupacional, da madrinha, da prima, da irmã e do irmão da menor (todos testemunhas indicadas pela progenitora). Os progenitores prestaram declarações.
6. Foi proferida sentença cujo teor decisório é o seguinte:
“Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Julgar ilícita a retenção em Portugal da menor BB, nascida a ...-...-2019, filha de AA e de CC;
b) Determinar o regresso imediato da referida menor a França, para junto do progenitor, a executar no prazo máximo de 30 dias, cabendo à Segurança Social, com o auxílio da autoridade policial competente, a recolha da menor e a sua entrega ao progenitor, o qual deverá proceder ao acompanhamento da menor desde Portugal ao seu destino;
c) Solicitar à Autoridade Central Portuguesa (Direcção-Geral de Administração da Justiça) que diligencie junto da Autoridade Central Francesa no sentido de sinalizar a situação da menor, após o seu regresso, ao sistema de promoção e proteção dos interesses dos menores no respetivo estado, de modo que a esta beneficie das medidas concretas que se revelem necessárias ao seu bem-estar e tratamento da doença de que padece (Perturbação ...);
d) Determinar a intervenção da Autoridade Central Portuguesa na execução do regresso da menor, designadamente, nos procedimentos de articulação dos operadores envolvidos e dos progenitores, se necessário com intervenção de técnicos com formação em psicologia, sendo que a execução coerciva do regresso deverá ocorrer apenas caso a progenitora não proceda à entrega voluntária da criança à Autoridade Central Portuguesa;
e) Determinar a emissão de mandados de entrega judicial da menor, os quais deverão conter as seguintes informações:
(…)
f) Determinar a comunicação da presente decisão ao Sistema de Informação Schengen, sob responsabilidade do Gabinete Nacional SIRENE, com os dados de identificação da criança em referência nos autos e da requerida (art. 3º, al. a), do DL n.º 292/94, de 18-11, e art. 97º da Convenção Schengen, conjugados com o art. 28º, n.º1, in fine, e 4º do RGPTC), e respeitando o solicitado a fls. 116-A, tendo-se em vista evitar a deslocação da criança fora do que ora se determina, sendo que, em tal caso, assim que a menor seja localizada, deverá ser colocada em segurança;
g) Condenar a requerida no pagamento das custas processuais, sem prejuízo do decidido sobre apoio judiciário;
h) Fixar o valor da causa em € 30 000,01 (trinta mil euros e um cêntimo)”.
7. A requerida/progenitora interpôs recurso de apelação.
8. O progenitor contra-alegou, pugnando pela manutenção da sentença recorrida.
9. No mesmo sentido respondeu o Ministério Público.
10. O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.
No Tribunal da Relação alterou-se o efeito do recurso para suspensivo, como havia sido requerido pela recorrente.
11. O colectivo de juízes do Tribunal da Relação proferiu acórdão em que consta o seguinte dispositivo:
“Em face do exposto, decide-se julgar procedente a apelação e, em consequência, revogar a sentença recorrida na parte em que determinou o regresso imediato da menor a França, para junto do progenitor, recusando ordenar tal regresso ao abrigo do disposto no artigo 13.º alínea b) da Convenção de Haia de 1980 sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças, devendo ser cancelados todos os procedimentos de operacionalização do regresso que haviam sido determinados, designadamente, junto da Autoridade Central Portuguesa (Direção Geral da Administração da Justiça), da Segurança Social e do Sistema de Informação Schengen.
Custas pelo apelado e pela apelante, na proporção de 2/3 e de 1/3, respetivamente, atento o decaimento.
Diligências necessárias, designadamente, as constantes do artigo 29.º do Regulamento (UE) 2019/1111 do Conselho, de 25 de junho de 2019.”
12. Não se conformando com o acórdão o progenitor – pai – apresentou recurso de revista, no qual formula as seguintes conclusões (transcrição):
“I. O Acórdão do Tribunal de ..., aqui recorrido, de 27/09/2024 viola a lei e os tratados internacionais, o que motiva o presente recurso de revista.
II. Esta violação consubstancia-se na aplicação de preceitos legislativos que não eram passíveis de ser invocados no caso em apreço, e na interpretação errada e sua subsunção ao caso em apreço de outros, o que conduziu igualmente à sua aplicação num caso em que tal não seria possível.
III. A jurisdição francesa, que é a competente para o efeito, já se pronunciou sobre a guarda da menor, que atribuiu ao progenitor, aqui Recorrente.
IV. Aos tribunais portugueses não cabe julgar sobre qual dos pais será o mais capaz de tomar conta da criança, substituindo-se aos tribunais competentes, com base na errada aplicação do Art.º 13.º da Convenção de Haia de 1980 sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças (doravante, Convenção).
V. A sentença revogada fez uma correcta aplicação da lei, não merecendo a impugnação a que foi sujeita.
VI. O Acórdão recorrido refere que “as questões a resolver prendem-se com a impugnação da decisão de facto e a decisão sobre o regresso ou permanência da menor”, sendo sobre esta segunda dimensão que incide realmente o recurso, dividindo-se entre o superior interesse da criança e as excepções do Art.º 13.º da Convenção
VII. O Acórdão admitiu o facto orientador de todo o processo, que é o da verificação da ilicitude da deslocação e retenção da menor BB em Portugal pela progenitora nos termos das alíneas a) e b) do Art.º 3.º da Convenção e das alíneas a) e b) do n.º 11 do Art.º 2.º do Regulamento (EU) n.º 1111/2019, de 25 de Junho (doravante, Regulamento), a folhas 17 e 18 daquele, sem reservas.
VIII. Ambos os diplomas têm a mesma função e objectivo, que é o de classificar a ilicitude da deslocação e retenção de menores como rapto internacional de crianças para promover o rápido regresso destas aos seus países de origem, acautelando os seus superiores interesses.
IX. A decisão da Relação no seu acórdão atenta directamente contra este objectivo, promovendo o infractor e retirando toda a utilidade aqueles diplomas internacionais.
X. O Acórdão recorrido não tem razão quando procura associar o superior interesse da criança ao prazo do Art.º 12.º da Convenção, segundo o qual a autoridade do país contratante onde a criança se encontra deve sempre ordenar o imediato regresso da criança, desde que tenha decorrido menos de um ano desde a deslocação e retenção ilícitas e o inicio do procedimento junto da referida autoridade e, mesmo depois de decorrido um ano, salvo se se realizar prova de que a criança se encontra totalmente integrada no seu novo ambiente.
XI. Em primeiro lugar, não foi realizada prova cabal da integração da menor BB no seu novo ambiente, apenas de que se encontra em desenvolvimento face à situação clínica.
XII. Em segundo lugar, o superior interesse da criança é acautelado, em termos gerais, pela válvula de escape excepcional que se encontra vertida no Art.º 13.º da Convenção, que visa verificar se o seu interesse, risco, perigo ou situações intoleráveis não se verificarão com o seu regresso.
XIII. Ou seja, não pode alegar-se a integração como critério de recusa sem ter decorrido pelo menos um ano desde a deslocação, e o facto de ter quase decorrido esse prazo, não activa a norma que está escrita sem espaço para interpretação: quase não é total, e a lei não permite a aplicação de conceitos de interpretação à vontade do julgador quando se trata de prazo certo e determinado.
XIV. Para se recusar a entrega com base no segundo parágrafo do Art.º 12.º da Convenção, teria obrigatoriamente de ter decorrido mais de um ano, o que não aconteceu, pelo que este artigo foi erradamente aplicado pelo Acórdão recorrido, violando o primeiro parágrafo desta mesma disposição legal.
XV. E nem se refira o superior interesse da criança como critério, uma vez que este está já acobertado pelo Art.º 13.º, que é verificável em todos os momentos e em todas as situações.
XVI. O Acórdão em crise recusa o regresso da criança, também sem razão, por aplicação da alínea b) do Art.º 13.º da Convenção, segundo o qual a autoridade do Estado onde se encontra a criança pode recusar o seu regresso ao país de origem quando se verifique “que existe um risco grave de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica ou, de qualquer outro modo, ficar numa situação intolerável”.
XVII. O regime regra da Convenção e do Regulamento é o da entrega imediata do menor que sofreu uma deslocação e retenção ilícitas, agindo o Art.º 13.º não como uma abrangente válvula de escape à disposição dos infractores, mas antes como uma verdadeira excepção, cujos conceitos deverão ser interpretados de forma muito restritiva.
XVIII. Assim consideraram os Juízes Desembargadores no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, no processo n.º 4033/19.5T8AVR-A.P1 de 24/09/2020 que teve como relator Aristides Rodrigues de Almeida, quando concluíram que “IV - A Convenção define de modo taxativo as situações que podem constituir excepção ao princípio do regresso imediato, as quais devem ser interpretadas de forma restritiva. V - Uma decisão de retorno não é uma decisão sobre o mérito do direito da guarda”.
XIX. Neste mesmo sentido, veja-se o aresto percorrido pelos Juízes Desembargadores no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, no processo n.º 786/09.7T2OBR-AC1 de 22/06/2010, que teve como relator Emídio Costa, , segundo os quais “VII - Este reforça o princípio segundo o qual o tribunal deve ordenar o regresso imediato da criança, limitando ao estritamente necessário as excepções previstas na al. b) do artº 13º da referida Convenção; o princípio é que a criança deve sempre regressar se estiver garantida a sua protecção no Estado-Membro de origem”.
XX. A República Francesa é um Estado de Direito, promotor dos direitos do homem e, em especial, da criança, dotado de infraestruturas e sistemas de promoção e protecção dos interesses dos menores, classificado enquanto país desenvolvido.
XXI. Não é um país em estado de guerra, fome, crise energética, crise das infraestruturas de saúde, estado de sítio ou calamidade.
XXII. Já o pai, sobre quem foi lançado um lascivo anátema pelo Acórdão recorrido, mas a quem as muito confiáveis instâncias francesas confiaram a guarda da menor, demonstrou ser capaz de cuidar dela, diligenciando pelos seus cuidados médicos aquando do seu regresso, garantindo uma rede de apoio, retaguarda familiar, capacidade económico-financeira, provando-se digno de receber a sua filha e lutando por ela em todas as instâncias até ao momento, em dois países diferentes.
XXIII. Nem a essa prova estava sequer obrigado, pois não tem este o ónus de demonstrar a sua idoneidade, mas a autoridade judicial o dever de demonstrar que se verificam os pressupostos do Art.º 13.º da Convenção - o que não fez - e só depois, assim apurados os factos, o primeiro passa a ter o dever de contrariar o preenchimento desse pressuposto.
XXIV. Com efeito, não foi produzida a mais tímida prova de que BB se encontrará numa situação de risco grave e sofrer perigo físico ou psíquico ou de ficar numa situação intolerável.
XXV. Pelo contrário, o pai demonstrou que é capaz de tomar conta dela, não tivesse este merecido a confiança dos tribunais franceses, que retiraram a guarda à mãe.
XXVI. A condição médica da BB não integra aquele conceito do Art.º 13.º, uma vez que qualquer impacto provocado pelo seu regresso é, como ficou demonstrado, recuperável, nunca conduzindo também ao risco, perigo ou situação insustentável para a menor.
XXVII. Isso mesmo ficou demonstrado na sentença revogada, que fez uma prudente ponderação.
XXVIII. O tribunal de primeira instância, e a própria relação, foram totalmente incapazes de indicar um único facto que integra a situação restritiva a que se reporta o Art.º 13.º da Convenção, tendo-se referido apenas ao superior interesse da criança e à sua doença que, como vimos, não se inserem no pressuposto de excepção daquele artigo, neste caso.
XXIX. Veja-se o que decidiram os Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Coimbra no processo n.º 400/22.5T8GRD-A.C1 de 13/09/2022, que teve como relator Fonte Ramos, segundo os quais "III - Impõe-se uma reação pronta e rápida, que frustre os objetivos prosseguidos pelo infrator do direito de custódia, neutralizando a alteração da situação por ele ´contra legem` criada, e deixando para os tribunais do país da residência habitual da criança a discussão sobre qual o progenitor melhor colocado para exercer as responsabilidades parentais. IV - Daí que o procedimento instaurado seja simples, não obrigando, em princípio, ao exame da problemática relativa ao superior interesse da criança”.
XXX. De outro modo, corre-se o perigo de promover os infractores e despir de toda o sentido e utilidade prática a Convenção e o Regulamento.
XXXI. Deve insistir-se que os tribunais portugueses não são competentes para julgar sobre a guarda da menor,
XXXII. Devendo antes limitar-se a decidir se se verifica alguma excepção à obrigação de ordenar o seu imediato regresso ao país de origem.
XXXIII. A República Francesa pronunciou-se sobre a guarda e entregou-a ao aqui Recorrente.
XXXIV. A Autoridade portuguesa apenas se pode desviar da entrega obrigatória se alguma excepção se verificar com grau de intensidade que, dentro dos parâmetros definidos na lei e nos tratados, justifique a recusa.
XXXV. Não se verificou nos autos qualquer facto susceptível de integrar uma situação de risco grave, perigo de ordem física ou psíquica ou uma situação intolerável, o que se demonstrou.
XXXVI. Não podendo o acórdão recorrido ter aplicado a alínea b) do Art.º 13.º da Convenção, tendo, assim, feito uma errada aplicação da lei.
XXXVII. O douto acórdão recorrido violou, pois, o disposto nos artigos 2.º, 11.º, 12.º, 13.º da Convenção e artigo 27.º do Regulamento.”
13. O Ministério Público junto do Tribunal recorrido apresentou alegações, onde defende a manutenção da decisão, concluindo (transcrição):
“1 - Embora tenha ocorrido uma deslocação ilícita da menor para Portugal, promovida pela sua mãe e sem o conhecimento ou autorização do pai, nos termos art. 3.º, al. a) da Convenção da Haia, conjugado com o artigo 2.º, n.º 11 do Regulamento (UE) 2019/1111, bem como com o n.º 9 do mesmo artigo, o Tribunal decidiu pelo não regresso, ao abrigo do art. 12º da Convenção, atendendo a que a criança se encontra perfeitamente integrada no seu novo ambiente em Portugal e ainda, porque o regresso a França, interrompendo toda a evolução positiva a que vinha sendo sujeita, implicaria um retrocesso no desenvolvimento emocional e comportamental da menor, que sofre de perturbação do espectro ... – com as inerentes dificuldades com as interações sociais, o que integra as excepções do art. 13º al. b) da Convenção da Haia.
2 - Ao contrário do alegado, a interpretação do prazo estabelecido no art. 12º da Convenção de Haia face à situação concreta é a que melhor acautela o superior interesse da criança, pois que, estando os prazos no limite do ano previsto no art. 12.º da Convenção de Haia, a excepção prevista no 2.º § do art. 12.º, que o regresso da criança não deve ocorrer quando se prove que esta já se encontra integrada no seu novo ambiente e atendendo ao superior interesse da criança, não pode decidir-se pelo regresso apenas porque o prazo de um ano não está cumprido por alguns dias ou semanas.
3 - Por sua vez, existe um risco grave de a criança, no seu regresso a França, interrompendo toda a evolução positiva a que vinha sendo sujeita, implicaria um retrocesso no desenvolvimento emocional e comportamental da menor, que sofre de perturbação do espectro ... –ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, ficar numa situação intolerável, o que se integra nas excepções do art. 13º al. b) da Convenção da Haia.
4 - O Tribunal recorrido fez uma correcta interpretação dos arts. 2.º, 11.º, 12.º, 13.º da Convenção e artigo 27.º do Regulamento.”
14. A mãe da menor apresentou igualmente contra-alegações, sustentando que a decisão deve ser mantida, concluindo (transcrição):
1ª Não estão reunidos os pressupostos para o recebimento do recurso de revista, porquanto nos termos do nº2 do artigo 988º, nº2, quando a decisão recorrida decidiu pelo não regresso com base em juízos de conveniência e oportunidade, não se trata de uma questão de legalidade estrita;
2ª Sem prescindir da conclusão anterior, encontra-se preenchida a previsão do artigo 12º da Convenção de Haia, uma vez que desde que o processo se iniciou já tinha decorrido mais de 1 ano da deslocação para Portugal;
3ªE ainda que tal prazo não se verifique por uma questão de dias ou semanas, deve ser recusada a entrega porque o superior interesse da menor, perfeitamente inserida na comunidade portuguesa e vimaranense, e face a toda a matéria de facto dada como provada no caso concreto, a isso determina e obriga;
4ª Sem prescindir de todas as outras conclusões, encontra-se preenchida a excepção da alínea b) do artigo 13º da Convenção de Haia, em virtude de que a imposição do regresso a França da BB, face a toda a matéria de facto dada como provada, era violar de uma forma brutal e desumana o seu superior interesse nesta fase fundamental da sua vida: manter os laços com a sua família e ver assegurado o seu desenvolvimento num ambiente sadio e de conforto;
5ª As consequências inevitáveis e perniciosas de uma separação forçada e não compreendida pela BB das suas figuras de referência – mãe e irmãos – com quem manteve desde o seu nascimento um laço emocional e de afectivade positivo e seguro para o seu desenvolvimento, seria colocá-la numa situação de risco grave de vivência de uma situação a que não deu causa e não tem culpa absolutamente nenhuma, violando de forma gravíssima e incompreensível o seu superior interesse (referido na conclusão anterior);
6ª Assim, deve ser negada a Revista, mantendo-se a decisão.”
Colhidos os vistos legais, cumpre analisar e decidir.
II. Fundamentação
De Facto
15. Nas instâncias foram considerados os seguintes factos como provados:
1. BB nasceu a ...-...-2019 e é filha de AA e de CC – cf. certidão de assento de nascimento junta com a oposição apresentada a 22-04-2024 e com a petição inicial no processo principal;
2. Por sentença proferida a 15-12-2022, pelo Tribunal Judicial de Sens – Tribunal de Recurso de Paris, França, no processo n.ºRG 22/...39, que aqui se dá por reproduzida, em que foram partes os progenitores da menor BB, acima referidos, decidiu-se, além do mais:
a) Dizer que o poder paternal em relação à menor BB é exercido em conjunto pelos pais;
b) Lembrar que o exercício em conjunto do poder paternal implica que os pais têm deveres e direitos iguais em relação ao seu filho e que, ao abrigo do artigo 372º do Código Civil, os mesmos devem:
a. Tomar juntos as decisões importantes relativas à saúde, orientação escolar, educação religiosa e mudança de residência da menor;
b. Manterem-se mutuamente informados para que possam comunicar entre si sobre a organização da vida da menor (escola, desporto, cultura, tratamentos médicos, actividades de lazer, férias …);
c. Permitir que a criança esteja em contacto com o outro progenitor no respeito do ambiente de vida de cada um, permitindo que a criança comunique livremente com o outro progenitor com o qual não reside;
d. Respeitar a imagem e o lugar do outro progenitor na vida da criança, comunicar, consultar-se e cooperar no interesse da menor;
e. Fornecer mutuamente os respetivos endereços e dados de contacto;
c) Fixar a residência habitual da BB em casa da mãe, a Sra. CC;
d) Dizer que, na ausência de acordo entre as partes sobre o direito de visita e de acolhimento de AA, será exercido da seguinte forma:
a. Um fim-de-semana de quinze em quinze dias, semanas ímpares, de Sexta-feira após as aulas até Domingo às 19H00 e metade das férias escolares, a primeira metade nos anos ímpares e a segunda metade nos anos pares, e uma partilha por quinze dias das Férias do Verão, os primeiros quinze dias de julho e de agosto nos anos ímpares e as segundas metades nos anos pares;
b. A partir dos 6 anos de idade, um fim-de-semana todos os quinze dias, semanas ímpares, de Sexta-feira após as aulas até Domingo às 19H00 e de Terça-feira à tarde após as aulas até Quarta-feira às 19H00 nas semanas pares, e metade das férias escolares, a primeira metade nos anos ímpares e a segunda metade nos anos pares;
c. Será da responsabilidade de AA e a suas próprias expensas, ir buscar ou mandar buscar a menor e levá-la ou mandar levá-la a casa de CC;
e) Lembrar que qualquer mudança de residência de um dos progenitores, desde que altere as modalidades de exercício do poder paternal, deve ser objeto de informação prévia e atempada ao outro progenitor e que, em caso de falta de acordo, o progenitor mais diligente recorre ao Juiz de Família que decidirá de acordo com os interesses da menor;
f) Condenar AA a pagar a CC a quantia mensal de cento e cinquenta euros (€ 150,00) para a alimentação e a educação da BB a partir da decisão;
g) Dizer que a contribuição referida será paga de forma adiantada, todos os meses e o mais tardar até ao dia 10, incluindo os períodos de exercício do direito de visita e de acolhimento de férias, em casa do credor, até que a criança atinja a maioridade;
3. Por sentença proferida a 17-03-2023, por Juíza de Assuntos de Família de ..., França, no processo n.ºRG 23/...21, que aqui se dá por reproduzida, em que foram partes os progenitores da menor BB, acima referidos, decidiu-se, tendo em conta a sentença de 15-12-2022 do Juiz de Família do Tribunal Judicial de ..., França, além do mais:
a) Recordar que a autoridade parental referente à menor BB é exercida conjuntamente pela Sra. CC e o Sr. AA;
b) Recordar que, no âmbito desse exercício conjunto da autoridade parental, cabe aos progenitores tomar em conjunto as decisões importantes na vida da criança, relativas à escolaridade, à saúde e às eventuais escolhas religiosas;
c) Autorizar a Sra. CC, na ausência de autorização do Sr. AA, a estabelecer acompanhamento médico por um pedopsiquiatra;
d) Julgar improcedente o pedido do Sr. AA de proibição de saída da criança do território francês;
e) Rejeitar o pedido de inquérito social formulado pelo Sr. AA;
f) Julgar improcedente o pedido de transferência de residência do Sr. AA;
g) Manter a residência da criança fixada no domicílio da mãe, Sra. CC;
h) Julgar improcedente o pedido da Sra. CC de alteração dos direitos de visita e alojamento do pai;
i) Declarar que o pai, Sr. AA, acolherá a criança BB no seu domicílio, sob reserva de melhor acordo, de acordo com os termos e condições estabelecidos na decisão de 15-12-2022 do Juiz de Família do Tribunal Judicial de ....
4. Por sentença proferida a 19-12-2023, por Juíza de Assuntos de Família de ..., França, no processo n.ºRG 23/...99, que aqui se dá por reproduzida, em que foram partes os progenitores da menor BB, acima referidos, decidiu-se, além do mais:
a) Dizer que o Sr. AA exerce exclusivamente autoridade parental sobre a criança;
b) Recordar que a Sra. CC mantém o direito e o dever de supervisionar a manutenção e a educação da criança, devendo, portanto, ser informada das escolhas importantes relacionadas com a vida da criança;
c) Fixar a residência da criança na casa do Sr. AA;
d) Dizer que a Sra. CC deverá devolver a criança ao Sr. AA no prazo de oito dias a contar da notificação desta decisão, sob pena de multa após este período de € 50,00 por dia de atraso durante dois meses, findo o qual poderá ser estabelecida nova estatuição;
e) Reservar ao foro respetivo o poder de decidir sobre a liquidação da pena;
f) Rejeitar o pedido de constituição de direito de visita e hospedagem em benefício da Sra. CC;
g) Fixa em trezentos euros (€ 300,00) por mês a contribuição que a Sra. CC deverá pagar, durante todo o ano, antecipadamente e antes do dia 5 de cada mês, ao Sr. AA para a manutenção e educação da filha;
h) Condenar a Sra. CC a pagar a referida pensão a partir desta decisão;
5. A menor BB sofre de Perturbação ....
6. A menor BB tem a progenitora como a figura cuidadora e afetiva de referência;
7. A menor tem os dois irmãos uterinos mais velhos também como figuras afetivas de referência;
8. Os progenitores viveram juntos até setembro de 2022, altura em que o progenitor saiu de casa;
9. A progenitora, em outubro de 2022, mudou a sua residência para outro local, situado em França;
10. Desde setembro de 2022 e até à presente data, a menor BB passou a residir ininterruptamente com a progenitora e com os irmãos, DD e EE;
11. A progenitora e a BB têm nacionalidade portuguesa;
12. Em setembro de 2015, a progenitora passou a residir em França para cumprir uma comissão de serviço pelo ..., pelo período de 2 anos, renováveis, até final de agosto de 2023, nos termos do DL nº65-A/2016 de 25 de outubro – cfr. docs. ns. 7 e 8;
13. A progenitora vinha periodicamente a Portugal visitar a família quando residia em França;
14. A progenitora esteve de baixa médica de 06-04-2023 até 24 04-2023 e de 12-05-2023 até 13-09-2023 – cfr. doc nº9.
15. Em março de 2023, a progenitora veio com a menor e os dois filhos maiores para ..., Portugal;
16. Na altura referida no ponto anterior, a progenitora comunicou ao progenitor que se deslocava com a menor para Portugal em férias para descansar;
17. Em junho de 2023, a progenitora comunicou ao progenitor que iria ficar a residir em Portugal com a menor;
18. A menor BB, por iniciativa da progenitora, começou a frequência de ensino pré-escolar em ... no Agrupamento de Escolas ..., em abril de 2023;
19. A menor BB frequenta, neste Ano Letivo de 2023/2024, estabelecimento de ensino no Agrupamento de Escolas ...;
20. A progenitora trabalhou como docente, de 26 de setembro de 2023 até 31-01-2024, na Escola ..., em ...;
21. A progenitora, desde 06-02-2024, trabalha como docente na Escola EB1 ..., em ...;
22. A menor BB, quando passou a residir em ..., apresentava agitação permanente, perda de controlo com gritos e histeria constantes, fazia as refeições com as mãos, evidenciava insociabilidade com outras crianças e choro constante;
23. A menor BB, por iniciativa da progenitora, desde que habita em ..., passou a ser seguida em consultas de Pedopsiquiatria, Psicologia, Terapia da Fala e Terapia Ocupacional;
24. A menor BB, desde que reside em ..., encontra-se inscrita em Centro de Saúde, tem atribuídos médico e enfermeiro de família e tem a vacinação obrigatória cumprida;
25. Devido ao acompanhamento referido acima e ao apoio de que beneficia em ambiente escolar e familiar, a menor BB apresenta-se reequilibrada, deixou de evidenciar agitação permanente, perda de controlo com gritos e histeria constantes, de fazer as refeições com as mãos, insociabilidade com outras crianças e choro constante;
26. A menor BB apresenta dificuldades no planeamento motor e ao nível da coordenação motora global;
27. Para desenvolver o planeamento motor e a coordenação motora global, por iniciativa da progenitora, a menor passou a frequentar aulas de dança desde março de 2024;
28. A menor BB consegue expressar-se com maior facilidade em Português do que em Francês;
29. A manutenção da situação referida em 25 e o desenvolvimento da menor BB, incluindo o planeamento motor e a coordenação motora global, carece da manutenção de acompanhamento da menor por médico pedopsiquiatra, psicólogo, frequência de terapia da fala e ocupacional e frequência de aulas de dança;
30. Os cuidados da menor BB são assegurados pela progenitora e, quando esta se encontra impedida de tal, pelos seus irmãos mais velhos.
16. Vieram dados como não provados os seguintes factos:
a) Quando a progenitora vinha periodicamente a Portugal visitar a família, trazia a menor consigo;
b) A separação dos progenitores referida na matéria de facto provada ocorreu por comportamentos de violência doméstica do progenitor à progenitora;
c) A baixa médica da progenitora referida na matéria de facto provada ocorreu devido a danos psicológicos pela mesma sofridos em consequência do relacionamento com o progenitor;
d) O estabelecimento escolar frequentado pela menor BB sinalizou e comunicou às autoridades francesas que a menor estava em perigo em consequência de comportamento do progenitor;
e) A menor Séréne começou a demonstrar medo, nomeadamente do “lobo”, choro, gritos e inquietude sempre que a progenitora lhe falava sobre o progenitor;
f) A progenitora decidiu vir para Portugal com a menor BB após as diligências das autoridades policiais francesas decorrentes da comunicação referida, conjuntamente com os seus dois filhos maiores, para salvaguardar a menor BB do perigo em que o pai a estava a colocar, uma vez que, no âmbito do respetivo processo, tal perigo não estava a ser afastado;
g) A menor BB, em março de 2023, apresentava desequilíbrio emocional resultante da separação dos pais, de comportamentos de violência doméstica a que assistiu e de transtorno que sofreu na última visita a casa do pai;
h) O progenitor nega que a menor BB padece de Perturbação ...;
i) eliminado (TRG).
De Direito
17. Questão prévia – admissibilidade do recurso
Na situação dos autos encontramos duas posições antagónicas: a da sentença, favorável ao regresso da menor a França; a do acórdão recorrido, desfavorável.
Ambas as decisões se encontram devidamente fundamentadas, em termos de facto e de direito, tendo tomado por referência a Convenção de Haia sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças, concluída em Haia em 25/10/1980, ratificada por Portugal através do Decreto do Governo n.º 33/83, de 11/05 e ao abrigo do Regulamento (UE) 2019/1111 do Conselho de 25 de junho de 2019 relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e ao rapto internacional de crianças (Bruxelas II Ter).
A divergência jurídica a que se assiste decorre, assim, da diferente interpretação que os tribunais envolvidos têm sobre o sentido das normas jurídicas, que foram essenciais nas respectivas decisões:
a. A norma relativa ao prazo de 1 ano - artigo 12º da Convenção de Haia;
b. A norma relativa aos efeitos do decurso do prazo e a da integração da criança
c. Os casos de recusa de regresso- art.º 13.º
O artigo 12º da Convenção de Haia, que diz1:
Quando uma criança tenha sido ilicitamente transferida ou retida nos termos do Artigo 3.º e tiver decorrido um período de menos de 1 ano entre a data da deslocação ou da retenção indevidas e a data do início do processo perante a autoridade judicial ou administrativa do Estado contratante onde a criança se encontrar, a autoridade respectiva deverá ordenar o regresso imediato da criança.
A autoridade judicial ou administrativa respectiva, mesmo após a expiração do período de 1 ano referido no parágrafo anterior, deve ordenar também o regresso da criança, salvo se for provado que a criança já se encontra integrada no seu novo ambiente.
Quando a autoridade judicial ou administrativa do Estado requerido tiver razões para crer que a criança tenha sido levada para um outro Estado, pode então suspender o processo ou rejeitar o pedido para o regresso da criança.
Artigo 13.º
Sem prejuízo das disposições contidas no Artigo anterior, a autoridade judicial ou administrativa do Estado requerido não é obrigada a ordenar o regresso da criança se a pessoa, instituição ou organismo que se opuser ao seu regresso provar:
a) Que a pessoa, instituição ou organismo que tinha a seu cuidado a pessoa da criança não exercia efectivamente o direito de custódia na época da transferência ou da retenção, ou que havia consentido ou concordado posteriormente com esta transferência ou retenção; ou
b) Que existe um risco grave de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, a ficar numa situação intolerável.
A autoridade judicial ou administrativa pode também recusar-se a ordenar o regresso da criança se verificar que esta se opõe a ele e que a criança atingiu já uma idade e um grau de maturidade tais que levem a tomar em consideração as suas opiniões sobre o assunto.
Ao apreciar as circunstâncias referidas neste Artigo, as autoridades judiciais ou administrativas deverão ter em consideração as informações respeitantes à situação social da criança fornecidas pela autoridade central ou por qualquer outra autoridade competente do Estado da residência habitual da criança.
Em comum à apreciação das instâncias temos a questão de ter ocorrido uma deslocação ilícita da menor BB, uma vez que foi violado o direito de guarda conferido por decisão judicial proferida em França, que era o país onde a criança tinha a sua residência habitual imediatamente antes da deslocação –artigo 3.º, alínea a) da Convenção de Haia de 1980, conjugadamente com o artigo 2.º, n.º 11 do Regulamento (UE) 2019/1111.
O Tribunal da Relação entendeu que o facto de não ter decorrido um ano entre a data da deslocação ilícita e a data em que é pedido o regresso a França não releva porque faltariam poucos dias para esse ano estar cumprido.
E que nessas circunstâncias porque o prazo estava praticamente atingido dever-se-ia dar maior relevo ao facto relativo à integração da criança, que seria suportado ainda na ponderação do superior interesse da criança.
E foi assim justificada a apreciação:
“Em primeiro lugar, devemos considerar a problema do decurso do tempo.
Verifica-se que, no caso dos autos, a progenitora veio com a menor e os dois filhos maiores para Portugal, em março de 2023, comunicando ao progenitor que se deslocava em férias e só em junho de 2023 comunicou ao progenitor que iria ficar a residir em Portugal com a menor.
Ora, se é certo que só em junho de 2023, a progenitora comunicou que iria ficar a viver em Portugal com a menor, a verdade é que já cá se encontravam desde março, ou seja, haviam já decorrido três meses fora da residência habitual e sem que o progenitor pudesse exercer o seu direito de visita e exercer, em conjunto com a progenitora, o poder paternal sobre a menor. Daí que não possa ficcionar-se que só a partir de junho é que ocorre a deslocação ilícita, uma vez que já desde março de 2023 que a menor se encontrava a residir em Portugal e, conforme decorre do pedido efetuado pelo progenitor à Autoridade Central Francesa, “desde março de 2023 que não vê a filha e que não autorizou a deslocação para Portugal”.
Só em 27/03/2024 a DGAJ remete ao Ministério Público o pedido do progenitor a solicitar o regresso da sua filha, resultando dos documentos juntos que tal pedido – Requerimento para o restabelecimento da guarda de menores - foi efetuado em França no dia 02/02/2024 (cfr. fls 20 a 22 dos autos) e a autoridade central desse país comunicou o mesmo à DGAJ a 01/03/2024 (fls. 42 dos autos).
Como se vê, os prazos estão no limite do ano previsto no artigo 12.º da Convenção de Haia, devendo considerar-se, atendendo ao superior interesse da criança que, como já vimos, está subjacente à convenção e ao Regulamento, que deve atender-se à exceção prevista no 2.º § do artigo 12.º, ou seja, que o regresso da criança não deve ocorrer quando se prove que esta já se encontra integrada no seu novo ambiente.
Quando está em causa o superior interesse da criança, não pode decidir-se de uma forma ou de outra, apenas porque o prazo de um ano foi cumprido por escassos dias ou semanas, até.
Isto porque entendemos que o fim geral visado com esta legislação relativa aos aspetos civis do rapto internacional de crianças não pode sobrepor-se ao interesse da própria criança na situação em concreto que estiver a ser analisada – ver neste sentido o Acórdão do STJ de 15/02/2022, processo n.º 687/16.2T8TMR-H.E1.S1, in www.dgsi.pt.
E o tribunal conjuga ainda os seguintes argumentos:
“Considerando porém, que está envolvida na situação ilicitamente criada, uma criança e que pode haver risco grave para esta, de ficar sujeita a perigo quer de ordem psíquica quer de ordem física, no seu regresso, podendo ainda este constituir uma situação intolerável para a mesma, criou a Convenção a válvula de segurança consagrada no artigo 13º alínea b) e bem assim a prevista no artigo 12º facultando ao progenitor requerido a prova de factos que substanciem esta situação excecional.
E ainda com a prevalência do superior interesse da criança, na decisão a proferir:
“Ora, atendo-nos aos factos provados, não há dúvida que a menor se encontra perfeitamente integrada no seu novo ambiente.
De acordo com o relatório subscrito pela educadora da Escola Básica ..., a menor está aí matriculada desde abril de 2023, frequentando o Jardim de .... Tinha 4 anos acabados de fazer quando começou a frequentar a escola portuguesa, e o relatório evidencia, sem sombra de dúvidas, a evolução e o desenvolvimento da menor, potenciado pelo acompanhamento pelas terapeutas da fala e ocupacionais, por pedopsiquiatra, bem como o apoio da família e a intervenção pedagógica da escola. O Relatório está nos autos e fala por si, parecendo desnecessário estar a transcrevê-lo, apenas se deixando ficar aqui uma frase, que diz muito acerca da conclusão sobre a sua plena integração no novo ambiente (por contraponto, até, aos inúmeros problemas que manifestava aquando da sua chegada a Portugal): “Fala constantemente dos animais que tem em casa e da família próxima, refere-se aos irmãos, à sua mãe e também ao pai, com quem fala através do telemóvel, de forma saudável (…) a família materna é solícita, presente e muito cuidadosa com a criança. Apresenta uma boa relação afetiva com os seus irmãos, seus padrinhos (de 21 e 23 anos), quando a vêm buscar à escola.”
Do que fica dito resulta o nosso entendimento de que deve ser recusado o regresso da menor BB a França, considerando que a mesma se encontra perfeitamente integrada no seu ambiente em Portugal, vivendo com a mãe, com quem sempre viveu e que é a sua figura cuidadora e afetiva de referência (recorde-se que, após a separação dos pais, a menor, ainda em França, ficou a viver com a mãe) e com os irmãos, considerando a sua idade, o facto de estar em Portugal desde março de 2023 e, sobretudo que, conjugada toda a prova que foi possível reunir, esta é a solução que melhor acautela o seu superior interesse, nos termos já por nós definidos.
Contudo, e como já vimos, a Convenção de Haia prevê, também, no seu artigo 13.º exceções que devem ser ponderadas, no sentido de não ser ordenado o regresso da criança, delas se destacando a contida na sua alínea b):
“Sem prejuízo das disposições contidas no Artigo anterior, a autoridade judicial ou administrativa do Estado requerido não é obrigada a ordenar o regresso da criança se a pessoa, instituição ou organismo que se opuser ao seu regresso provar:
b) Que existe um risco grave de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, a ficar numa situação intolerável.
Ora, da prova reunida, resulta, sem margem para dúvida, que o regresso da menor a França, interrompendo toda a evolução positiva a que vinha sendo sujeita, implicará um retrocesso no desenvolvimento emocional e comportamental da menor que, não esqueçamos, sofre de perturbação do espectro ... – com as inerentes dificuldades com as interações sociais, relacionando-se a ansiedade neste tipo de doentes com a preocupação com a interrupção de rotinas e rituais.”
Já na sentença a posição do tribunal foi a seguinte:
“Está demonstrada nos autos a forte ligação afetiva da menor com a progenitora e mesmo com os irmãos, com quem reside, e que a menor, desde que passou a estar em ..., evidencia uma evolução comportamental francamente positiva, decorrente do acompanhamento médico, psicológico, terapêutico e escolar de que tem beneficiado, tendo passado de uma situação em que apresentava agitação permanente, perda de controlo com gritos e histeria constantes, fazia as refeições com as mãos, evidenciava insociabilidade com outras crianças e choro constante (cf. ponto 22) para uma situação em que se mostra reequilibrada, deixou de evidenciar agitação permanente, perda de controlo com gritos e histeria constantes, de fazer as refeições com as mãos, insociabilidade com outras crianças e choro constante (cf. ponto 25).
Está, igualmente, provado que a manutenção da situação atual e o desenvolvimento da menor BB, incluindo o planeamento motor e a coordenação motora global, carece da manutenção de acompanhamento da menor por médico pedopsiquiatra, psicólogo, frequência de terapia da fala e ocupacional e frequência de aulas de dança (cf. ponto 29).
Considerando o circunstancialismo referido, tem-se como muito provável que a alteração do centro de vida da criança para junto do progenitor, com a inerente privação de contacto com a progenitora, que é a sua figura afetiva de referência, e mudança dos profissionais e das pessoas com quem tem vindo a conviver, importe comprometimento da evolução referida e da sua estabilidade emocional”.
Apesar disso, o tribunal concluiu que “tal probabilidade não integra a situação de risco grave de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica ou, de qualquer modo, ficar numa situação intolerável, a que se refere o artigo 13.º, alínea b) da Convenção, não tendo a intensidade bastante, tanto mais que se assume que a menor beneficiará dos cuidados de que tem beneficiado em ... e que se mostram adequados a mitigar fortemente os efeitos nocivos acima mencionados”
Que dizer?
Em primeiro lugar, a exposição anterior permite responder à questão da admissibilidade do recurso, colocada pela progenitora.
Na verdade, como resulta à evidência do exposto, está em causa uma questão de legalidade, nomeadamente na interpretação dos art.º 12 e 13.º da citada convenção, pelo que o presente recurso é admissível.
Assim, a intervenção deste STJ vai ater-se ao problema da legalidade – e interpretação das normas em aplicação – mas naturalmente que a solução final não pode deixar de ter em consideração a concreta situação do menor, à luz do seu superior interesse.
18. Entrando na análise do objecto do recurso
Notas prévias
O primeiro ponto que se impõe afirmar é o da reacção negativa a comportamentos de progenitores desviantes do que seriam as suas obrigações parentais, que venham a redundar em situações difíceis e com implicações que, nalguma medida, é provocada por aqueles e que também se reflete na vida das crianças envolvidas.
O segundo ponto é relativo ao critério da integração da criança no novo ambiente, que comporta uma possibilidade de utilização abusiva e tendente a criar um facto consumado favorável a quem não respeitou as suas obrigações legais – e que terá de ser interpretado como não sendo de importância decisiva na aferição da melhor solução.
O terceiro ponto é o relativo ao que se possa considerar como elementos a ponderar na aferição do conceito indeterminado risco grave (risco grave de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, a ficar numa situação intolerável).
19. No que se reporta à questão do prazo de um ano.
Quando a Convenção distingue as situações entre as que foram despoletadas regularmente antes do prazo de um ano e as que o foram após o mesmo, há que considerar que o elemento em causa tem a sua razão de ser – é um elemento literal, não despiciendo; tem motivos válidos para a sua consagração, mesmo quando visto na perspectiva do cidadão comum.
Na situação dos autos, o prazo de um ano não tinha sido ultrapassado, qualquer que fosse a interpretação que se desse aos factos – segundo a sentença, a deslocação ilícita contar-se-ia de junho de 2023; segundo o acórdão recorrido, a deslocação ilícita contar-se-ia da data da saída de França.
Mas quer isto dizer que tendo a deslocação ocorrido à menos de um ano o tribunal não pode recusar o regresso?
Não cremos. Na verdade, para além do sentido que se dê a esse prazo, não deixa de ser verdade que o art.º 13º da Convenção contém outros elementos a ponderar na decisão de recusa, e que não se relacionam com o referido prazo.
Quer isto dizer que o problema do prazo, no caso concreto, perde importância, enquanto possível elemento de decisão, se não se fizer uma interpretação restritiva do mesmo (do tipo, com menos de um ano, não há que atender ao facto relativo à integração da criança; com mais de um ano, já se teria de considerar essa integração) – que não fazemos.
E no caso concreto somos sensíveis aos seguintes factos:
- A deslocação ilícita ocorreu mas a progenitora apresentou ao pai uma justificação, que o mesmo pode ter acreditado ser verdadeira – teria vindo de férias e descansar (em Março) – não se perspectivando a retenção ilícita senão na data em que a progenitora comunica que não regressará com a criança – em Junho (cf. factos provados 16 e 17 );
- O progenitor procurou junto das autoridades francesas tutela preventiva para a situação que hoje enfrenta – pedindo que fosse proibida a deslocação para o estrangeiro – e não lhe foi concedida (a decisão do Tribunal francês disse assim:
“Sobre a proibição de sair do território francês
Nos termos do artigo 373.º-2-6 do Código Civil, o Juiz do Tribunal delegado em matéria de Família deve resolver as questões que lhe são submetidas nos termos do presente capítulo, com especial atenção para a proteção dos interesses dos filhos menores. O Juiz pode tomar medidas para assegurar a continuidade e a eficácia da manutenção dos laços da criança com cada um dos progenitores. Em especial, pode ordenar que a criança seja proibida de sair do país sem o consentimento de ambos os progenitores. Esta proibição de sair do país sem a autorização de ambos os progenitores é inscrita no ficheiro de pessoas procuradas pelo Procurador da República.
A proibição só deve ser imposta quando a capacidade de um dos progenitores em respeitar os direitos do outro for questionável e existir uma relação com o estrangeiro que dê origem a um receio de rapto.
No caso em apreço, a Sra. CC tem nacionalidade francesa e o Sr. AA não apresentou qualquer prova de uma ligação entre a Sra. CC e um país estrangeiro, nomeadamente Portugal, que suscitasse o receio de rapto da criança por este último. Além disso, não apresentou qualquer prova de que a Sra. CC tenha ameaçado levar a criança para Portugal. Uma vez que não existem razões sérias e graves que justifiquem este pedido, o mesmo deve ser indeferido.”
- Mas a progenitora mãe bem sabia que também tinha nacionalidade portuguesa e qual a sua situação profissional, que a fazia estar em França temporariamente (afinal é isto que nos diz em Portugal em defesa contra o pedido de regresso da criança! – cf. email de 18 de março de 2024 10:56 da progenitora, junto à PI; facto provado 11. A progenitora e a BB têm nacionalidade portuguesa; facto provado 12. Em Setembro de 2015, a progenitora passou a residir em França para cumprir uma comissão de serviço pelo ..., pelo período de 2 anos, renováveis, até final de Agosto de 2023, nos termos do DL nº65-A/2016 de 25 de outubro – cfr. docs. ns. 7 e 8);
- O progenitor lançou mãos de mecanismos jurídicos com vista ao regresso da criança com prontidão – mas o procedimento não chegou a Portugal senão em Março de 2024, por facto que não lhe é imputável;
- Entretanto a progenitora criou – e bem – em Portugal condições para um desenvolvimento o mais satisfatório possível das necessidades da menor.
20. Assim sendo, estamos em crer que na interpretação da convenção – art.º 12.º e 13.º - intervêm todos os elementos apurados sobre a concreta situação da criança, e a integração no novo local é um desses elementos – que terá igualmente de ser ponderado à luz do art.º 13.º - riscos graves possíveis do regresso da criança.
21. A nossa dúvida é se existem elementos objectivos que permitam considerar demonstrado qualquer risco grave para a criança, se a mesma retornar a França.
E na aferição desse risco entendemos que devem ser chamadas à colação:
- As alegações da progenitora de risco físico – que não logrou provar e que o tribunal não encontrou sequer indiciado;
- A doença da criança – em que o tipo e gravidade devem ter uma ponderação de razoabilidade; na disponibilidade do pai para oferecer, em França, acompanhamento médico e terapêutico equivalente ao seguido em Portugal, não obstante, no passado ter sido necessário fazer intervir o tribunal para suprir a possível falta da sua autorização para consultas de pedopsiquiatria (sendo que a sentença francesa manifesta até que o pai não se opôs às consultas, dizendo-se aí:
“Quanto ao pedido de autorização de acompanhamento médico por um pedopsiquiatra
Depreende-se do atestado médico do Dr. FF de 3 de fevereiro de 2023 que BB tem Transtorno ..., exigindo uma avaliação psicomotora, uma avaliação ortofónica e um acompanhamento médico- psicológico.
É de notar que o Sr. AA afirmou, na audiência, que não se opunha à introdução do acompanhamento médico necessário para a patologia da criança.
Se a Sra. CC não conseguir obter a autorização do Sr. AA para este acompanhamento médico, nomeadamente por um pedopsiquiatra, a Sra. CC deve ser autorizada a estabelecer o acompanhamento médico necessário relativamente à patologia da criança.
Por conseguinte, o interesse da criança impõe que este pedido seja deferido.) – doc. Junto com a petição do MP, a fls...);
- As condições que a criança teria de acompanhamento médico e especializado para a patologia em França e o propósito de o progenitor de lhas facultar, como semelhança ao que ocorre em Portugal no momento, não se extraindo da posição do pai nenhuma ideia de as consultas não serem executadas pela especialidade médica adequada, apenas porque o documento que as recomenda ser passado por médico cuja especialidade é diversa (gerontologia), já que não se pode assumir que seria esse o profissional a executar o acompanhamento;.
Por outro lado, não nos impressiona a dependência da criança da sua cuidadora e os reflexos que isso tem do seu retrocesso, se afastada da mãe.
Só nos parece que este elemento é falacioso e tem ínsito um preconceito no sentido de porque a mãe é figura de referência não pode haver mudanças, até porque se assim é – e os factos o demonstram – há na atitude da progenitora um comportamento típico da posse de um bem de que dispôs e que pretende ver sancionado judicialmente, em prejuízo de uma convivência da criança com ambos os seus pais.
A delicadeza da situação é também agravada pelo exercício da profissão da progenitora em França com um prazo, que ambos os pais sabiam ser temporário, e com o fim do prazo a sua perspectiva de vida profissional provavelmente envolvia o seu regresso a Portugal, colocando-se sempre a questão: com quem a criança viverá?
Responder a estas dúvidas todas, desprovidos de preconceitos, não é tarefa fácil, pelo que, optaremos por salientar os elementos objectivos com que nos podemos ater – a da falta de prova convincente da existência de um risco grave para a criança no seu regresso a França.
E porque não há prova de risco grave?
Porque risco grave não é equivalente a inexistência de risco. Como o conceito pressupõe pode haver risco. E as alterações da vida de uma criança que há quase um ano está em Portugal nas condições desta menor, sendo ordenado o seu regresso a França, sempre se farão sentir. E serão sentidas pela menor e pela sua mãe.
Mas são consequências com risco grave? Há risco de não ter cuidados de saúde adequados à sua patologia? Há perigos de saúde física e emocional relacionados com a pessoa do seu pai?
No que se reporta à pessoa do pai, na sentença de França, junta pelo MP e já citada, a questão foi assim analisada:
“A Sra. CC recorreu prontamente ao Juiz do Tribunal de Família desse Tribunal menos de dois meses após essa decisão que determinou os direitos de visita do pai.
Ela alega que o Sr. AA tem um comportamento perigoso e está a colocar a filha em perigo, que ele é consumidor de cannabis, inclusive quando está a cuidar da filha, que ele assedia a filha na escola, e que se opõe ao acompanhamento médico que é essencial para a patologia da criança.
Resulta dos autos que o Sr. CC apresenta numerosos documentos anteriores à decisão de 15 de dezembro de 2022, que foram tidos em conta e que não constituem elementos de prova novos desde a decisão anterior.
A Sra. CC apresentou quatro queixas e registos de ocorrência junto dos serviços de polícia entre 3 de janeiro de 2023 e 18 de fevereiro de 2023, ou seja, após a decisão anterior. Durante a sua audição de 3 de janeiro de 2023, a Sra. CC manifestou os seus receios no cuidado da sua filha pelo Sr. AA, nomeadamente no que diz respeito ao seu consumo ...; no dia 23 de janeiro de 2023, ela apresentou um registo de ocorrência que indica que a diretora da escola da criança relatou que o Sr. AA veio falar com a filha enquanto ela estava na escola e que a filha estava a chorar; no dia 10 de fevereiro de 2023, a Sra. CC apresentou queixa por agressão ... à filha por parte do pai; no dia 18 de fevereiro de 2023, a Sra. CC afirmou em novo registo de ocorrência que o Sr. AA usou o seu perfil de WhatsApp para enviar mensagens falsas.
No entanto, a Sra. CC não apresenta qualquer documento que sustente as suas queixas e registo de ocorrências. Também não apresenta o seguimento dado às suas queixas.
Também não inclui no processo o relato da escola a que se refere.
Resulta dos autos que o Sr. AA foi condenado em 7 de setembro de 2021 por condução sob o efeito de ....
No entanto, o Sr. AA apresentou um certificado datado de 18 de maio de 2022 que atesta a sua participação num curso de sensibilização sobre os perigos do consumo de ..., bem como análises biológicas, datadas de 15 de fevereiro de 2023, que não permitiam encontrar qualquer marcador biológico do consumo de ..., nomeadamente de ....
O Sr. AA declarou igualmente que também tinha feito um registo de ocorrência dia 26 de dezembro 2022 e apresentou duas queixas junto dos serviços de polícia em 20 de janeiro de 2023 e 3 de fevereiro de 2023 por não apresentação de criança pela Sra. CC, o Sr. AA indicando que não vê a sua filha desde 11 de dezembro de 2022, apesar da decisão proferida em 15 de dezembro de 2022 pelo Juiz do Tribunal de Família do Tribunal Judicial de .... Afirmou que se deslocava à escola às sextas-feiras à hora de saída da escola para cumprir o seu direito de visita, mas que a criança não está na escola quando chega.
Assim, resulta destes elementos que, embora o conflito parental se esteja a intensificar, a Sra. CC não faz prova de quaisquer novos elementos surgidos desde a decisão anterior, nomeadamente os elementos de perigo para o seu filho no domicílio do pai a que se refere. Pelo contrário, o Sr. AA justifica a ausência de consumo de ....
Por conseguinte, na ausência de qualquer elemento novo significativo que afete a vida da criança desde a última decisão judicial proferida em 15 de dezembro de 2022, há que indeferir o pedido da Sra. CC de alteração do direito de visita e alojamento que tinha sido concedido ao Sr. AA para que fosse estabelecido um direito de visita mediado.
Os direitos de visita e de alojamento do pai devem, por conseguinte, ser mantidos em conformidade com as modalidades estabelecidas na decisão de 15 de dezembro de 2022.
Também nestes autos não se provou (cf. os factos no relatório e que se reproduzem aqui, na parte relevante):
b) A separação dos progenitores referida na matéria de facto provada ocorreu por comportamentos de violência doméstica do progenitor à progenitora;
c) A baixa médica da progenitora referida na matéria de facto provada ocorreu devido a danos psicológicos pela mesma sofridos em consequência do relacionamento com o progenitor;
d) O estabelecimento escolar frequentado pela menor BB sinalizou e comunicou às autoridades francesas que a menor estava em perigo em consequência de comportamento do progenitor;
e) A menor Séréne começou a demonstrar medo, nomeadamente do “lobo”, choro, gritos e inquietude sempre que a progenitora lhe falava sobre o progenitor;
f) A progenitora decidiu vir para Portugal com a menor BB após as diligências das autoridades policiais francesas decorrentes da comunicação referida, conjuntamente com os seus dois filhos maiores, para salvaguardar a menor BB do perigo em que o pai a estava a colocar, uma vez que, no âmbito do respetivo processo, tal perigo não estava a ser afastado;
g) A menor BB, em março de 2023, apresentava desequilíbrio emocional resultante da separação dos pais, de comportamentos de violência doméstica a que assistiu e de transtorno que sofreu na última visita a casa do pai;
h) O progenitor nega que a menor BB padece de Perturbação ...;
Há riscos de retrocessos em matéria de saúde e desenvolvimento da criança, por referência à patologia de que sofre e que não sejam seguidos de possibilidade razoável de recuperação? O retrocesso seria irrecuperável? Os efeitos do regresso são intoleráveis para a criança?
Ora, sobre este ponto não existem elementos objectivos que possam ter-se por seguros.
Mas há um bom senso. E esse dita que na idade da criança os avanços e retrocessos são habituais. A criança terá certamente sofrido um retrocesso ao ser deslocada para Portugal e afastada do pai – e com ajuda médica e especializada mostrou melhorias significativas no seu comportamento já depois de cá estar. Mas em nenhum momento alguém chamou a atenção para o sofrimento da criança pelo afastamento do pai – e a criança tem um historial de vivência conjunta com o pai de cerca de três anos, seguida de manutenção da sua presença na sua vida (já com maior turbulência, como denotam os processos que foram despoletados em França relativos ao exercício das responsabilidades parentais).
E a nossa resposta é: não existe evidência de risco grave.
O conceito de risco deve ser entendido como uma verdadeira e extrema excepção, utilizada apenas em última instância – como diz o progenitor pai, posição com que se concorda – e não como um mecanismo de recusa automática.
Trata-se de um conceito a interpretar restritivamente e ponderadamente, sendo claramente de aplicar a situações de maus tratos comprovados, incluindo abuso sexual ou de outro tipo, regresso a zonas de guerra, fome, ou que não respeitem os direitos humanos, que não está em causa na situação da França.
No sentido de a interpretação do conceito dever ser restritiva, cf.
a seguinte publicação da Conferência da Haia 2 (omitem-se as notas de rodapé, mas as mesmas devem ser tidas em consideração):
“19. Se uma criança tiver sido indevidamente deslocada ou retida num Estado Contratante que não seja o da sua residência habitual nos termos do artigo 3.º, o tribunal ou a autoridade competente que aprecia o pedido de regresso tem o dever de ordenar o regresso imediato da criança (artigo 12.º, n.º 1).
20. A Convenção não especifica a quem a criança deve ser entregue. Em particular, não exige o regresso da criança aos cuidados do progenitor que ficou sem a criança. A Convenção também não especifica para que local no Estado de residência habitual a criança deve regressar. Essa flexibilidade é deliberada e reforça o conceito subjacente de que a questão de quem cuidará da criança após o seu regresso deve ser determinada pelo tribunal ou pela autoridade competente do Estado de residência habitual, de acordo com a lei que rege os direitos de custódia, incluindo qualquer ordem que possa ser aplicada entre os pais ou outras pessoas interessadas.36
21. O dever de devolver a criança imediatamente é reforçado pelo artigo 11.º, que exige que os tribunais ou as autoridades competentes adotem procedimentos de urgência com vista ao regresso da criança e que, se uma decisão não for tomada no prazo de seis semanas a contar da data de participação, consagra o direito de solicitar uma declaração sobre as razões da demora.37 Este dever tem um “duplo aspeto”: “primeiro, a utilização dos procedimentos mais rápidos ao dispor no seu sistema jurídico;38 segundo, estes pedidos devem, na medida do possível, receber tratamento prioritário”.39
22. O dever de adotar procedimentos de urgência não significa que o tribunal deva negligenciar a avaliação adequada das questões, inclusive nos casos em que a exceção de um risco grave de perigo é invocada. É, no entanto, necessário que o tribunal recolha informações e/ou obtenha provas que sejam suficientemente relevantes para essas questões e que as examine, inclusive as opiniões de peritos ou provas, de forma muito focada e expedita.
f. Exceções limitadas ao dever de ordenar o regresso imediato
23. A Convenção prevê exceções limitadas ao princípio do regresso da criança. Se e quando essas exceções forem invocadas e provadas com êxito, o tribunal do Estado requerido “não está obrigado a ordenar o regresso da criança” ao Estado de residência habitual; por outras palavras, o tribunal poderá exercer o poder discricionário de não ordenar o regresso da criança. Essas exceções constam dos artigos 12.º, n.º 2,40 13.º, n.º1, alíneas a)41 e b), 13.º, n.º 242 e 20.º.43
24. Através das exceções enumeradas, a Convenção reconhece que o não regresso de uma criança deslocada ou retida ilicitamente pode, por vezes, ser justificado. O conceito geral de que um regresso imediato é do interesse superior da criança pode, portanto, ser refutado no caso particular em que uma exceção for provada.
g. Interpretação restritiva das exceções
25. As exceções enumeradas devem, no entanto, ser aplicadas restritamente. O Relatório Explicativo declara que as exceções “devem ser aplicadas apenas na medida em que o podem ser, mas não além isso“, portanto “de maneira restritiva, para que a Convenção não se torne letra morta”.44 O Relatório observa que “uma invocação sistemática das […] exceções, substituindo o foro escolhido pelo raptor pelo do local de residência da criança, levariam ao colapso de toda a estrutura da Convenção, privando-a do espírito de confiança mútua que é a sua inspiração”.45
26. Em particular, ainda que as exceções derivem da consideração do interesse superior da criança,46 elas não transformam o processo de regresso num de custódia. As exceções concentram-se no (possível não) regresso da criança. Não devem nem lidar com questões de custódia nem exigir uma “avaliação do interesse superior” completa para uma criança em processo de regresso. O tribunal ou a autoridade competente encarregue do processo de regresso deve aplicar as disposições da Convenção e evitar intervir em questões que são da competência do Estado de residência habitual.47
27. Dito isto, as exceções servem um propósito legítimo, pois a Convenção não contempla um mecanismo automático de regresso. As alegações de que existe um risco grave devem ser prontamente examinadas na medida exigida pela exceção, dentro do âmbito limitado do processo de regresso.
28. Isto significa que, embora o objetivo da Convenção seja abordar os efeitos nocivos do rapto internacional de crianças, garantindo o regresso imediato da criança ao Estado de residência habitual, onde devem ser resolvidas a custódia e/ou direito de visita e quaisquer questões relacionadas, pode haver circunstâncias excepcionais que permitem o não regresso da criança.
2. O artigo 13.º, n.º 1, alínea b) – compreender a exceção de um risco grave
29. A exceção de um risco grave é baseada no “interesse principal de qualquer pessoa em não ser exposta a riscos físicos ou psicológicos ou ser posta numa situação intolerável”.48
a. Três tipos de “risco grave”
30. O artigo 13.º, n.º 1, alínea b) inclui os três tipos de risco seguintes:
– Risco grave49de que a criança, no seu regresso, fique sujeita a perigos de ordem física;
– Risco grave de que a criança, no seu regresso, fique sujeita a perigos de ordem psíquica; ou
– Risco grave de que a criança, no seu regresso, fique, de qualquer outro modo, numa situação intolerável.
31. Cada tipo de risco pode ser invocado de forma independente para justificar uma exceção ao dever de garantir o regresso imediato da criança e, portanto, dependendo dos factos do caso em particular, os três tipos foram invocados em processos, cada um por direito próprio. No entanto, embora separados, estes três tipos de risco costumam ser alegados em conjunto, e nem sempre os tribunais os distinguem claramente nas suas decisões.
b. Um risco grave para a criança
32. A redação do artigo 13.º, n.º 1, alínea b) deixa claro que a questão é saber se existe um risco grave de que o regresso “sujeite a criança a perigos de ordem física ou psíquica ou, de qualquer outro modo, a coloque numa situação intolerável”.
33. No entanto, perigos para os pais, sejam eles físicos ou psicológicos, podem, em algumas circunstâncias excepcionais, criar um risco grave de que o regresso sujeite a criança a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, a coloque numa situação intolerável. A exceção do artigo 13.º, n.º 1, alínea b) não exige, por exemplo, que a criança seja vítima direta ou primária de perigo físico se houver prova suficiente de que, devido ao risco de perigo direcionado aos pais adotivos, exista um risco grave para a criança.
c. Nível de “risco grave”
34. O termo “grave” qualifica o risco e não o perigo para criança. Indica que o risco deve ser real e atingir um nível de seriedade que o caracterize como “grave”.50 Quanto ao nível de perigo, deve corresponder a uma “situação intolerável”51, ou seja, uma situação que não se espera que uma criança tolere. O nível relativo de risco necessário para constituir um risco grave pode variar, dependendo da natureza e gravidade do potencial perigo para a criança.52
d. Uma exceção de risco grave “prospetiva”
35. A redação do artigo 13.º, n.º 1, alínea b) também indica que a exceção é “prospectiva”, na medida em que se concentra nas circunstâncias da criança ao regressar e se essas circunstâncias sujeitariam a criança a um risco grave.
36. Portanto, embora a avaliação da exceção de um risco grave exija geralmente uma análise das informações/provas apresentadas pela pessoa, instituição ou outro organismo que se oponha ao regresso da criança (na maioria dos casos, o progenitor raptor), ela não deve limitar-se a uma análise das circunstâncias que existiam antes ou no momento da transferência ou retenção indevida. Em vez disso, requer um olhar para o futuro, ou seja, quais seriam as circunstâncias se a criança regressasse de imediato. A análise da exceção de um risco grave também deve incluir, se considerado necessário e apropriado, ponderação da disponibilidade de medidas de proteção adequadas e eficazes no Estado de residência habitual.53
37. No entanto, o facto de a exceção ser de natureza prospetiva não significa que não sejam tidos em consideração comportamentos e incidentes passados que possam ser relevantes para a avaliação de um risco grave54 após o regresso da criança ao seu Estado de residência habitual. Por exemplo, incidentes passados de violência doméstica ou familiar podem, dependendo das circunstâncias particulares, ser probatórios sobre a questão de saber se existe um risco grave. Dito isto, comportamentos e incidentes passados não são, por si só, determinantes de que não estejam disponíveis medidas de proteção eficazes para proteger a criança de um risco grave.55”
E sobre a intenção dos redatores do art.º 13.º ao criar a excepção de risco grave, consta da nota 50 o seguinte: “O termo “risco grave” reflete a intenção dos redatores de que essa exceção seja aplicada, de acordo com a abordagem geral das exceções da Convenção, de forma restritiva. Durante o processo de redação, foi acordada uma redação mais restritiva do artigo 13.º, n.º 1, alínea b) do que o inicialmente sugerido. O termo inicial usado na exceção foi “risco substancial”, que foi substituído por “risco grave”, pois a palavra “grave” foi considerada um qualificador mais intensivo. Ver também Trabalhos da Décima Quarta Sessão (1980), (op. cit. nota 10), p. 362. “
Também na nota 55 consta um elemento fundamental.
Diz-se aí:
“Ver, por exemplo, 12 UF 532/16, 6 de julho de 2016, Oberlandesgericht München Senat für Familiensachen (Alemanha) [Referência INCADAT: HC/E/DE 1405] no par. 42, em que o Tribunal constatou que não se podia deduzir que um suposto comportamento violento no passado fosse causa de risco no regresso e observou que havia uma ordem de restrição vinculativa em vigor para que o progenitor raptor pudesse procurar proteção adequada contra qualquer alegado comportamento do progenitor que ficou sem a criança; H.Z. v. Autoridade Central do Estado, 6 de julho de 2006, Tribunal Pleno do Tribumal de Família da Austrália em Melbourne (Austrália) [Referência INCADAT: HC/E/AU 876] no par. 40 onde, ao discutir o comportamento violento e inadequado do passado, o juiz concluiu que “[o] passado pode ser um bom indicador do futuro, mas não é determinante” e que a disponibilidade de proteção legal contra esse comportamento impediu a descoberta de um risco grave de que o regresso exporia a criança a perigos físicos ou psíquicos ou a colocaria numa situação intolerável.”
O guia recomenda igualmente que se atente no modo como são formuladas as alegações do opositor e as provas que apresenta, nomeadamente sobre o outro progenitor:
“39. A Convenção não prevê testes diferentes para avaliar um risco grave com base no tipo de risco ou nas circunstâncias subjacentes levantadas pela pessoa que se opõe ao regresso. Todas as alegações de risco grave são, portanto, avaliadas com base no mesmo padrão ou limiar e numa análise passo-a-passo. Dito isto, certos tipos de situações - por exemplo, aquelas com maior probabilidade de colocar em risco imediato a integridade física ou psicológica da criança - são mais frequentemente encontradas como atingindo o limite estabelecido pela exceção de risco grave.
40. Em primeiro lugar, o tribunal deve considerar se as alegações são dessa natureza e se contêm pormenor e substância suficientes para constituir um risco grave. É muito improvável que alegações amplas ou gerais sejam suficientes.56
41. Se avançar para a segunda etapa, o tribunal determina se está convencido de que a exceção de grave risco ao regresso da criança foi estabelecida examinando e avaliando as provas apresentadas pela pessoa que se opõe ao seu regresso e na informação recolhida e levando em conta as provas/informações referentes às medidas de proteção disponíveis no Estado de residência habitual. Isso significa que, mesmo que o tribunal determine que há provas ou informações suficientes que demonstrem elementos de potencial perigo ou de uma situação intolerável, deve, no entanto, considerar devidamente as circunstâncias como um todo, incluindo se estão disponíveis medidas adequadas de proteção ou se podem vir a ser necessárias para proteger a criança do risco grave de tal perigo ou situação intolerável,57 ao avaliar se a exceção de risco grave foi estabelecida.
42. Uma vez feita a avaliação:
– Quando o tribunal não está convencido de que as provas apresentadas/as informações recolhidas, inclusive em relação às medidas de proteção, configuram um risco grave, ordena o regresso da criança;58
– Se o tribunal estiver convencido de que as provas apresentadas/as informações recolhidas, inclusive em relação a medidas de proteção, configuram um risco grave, não está obrigado a ordenar o regresso da criança, o que significa que fica ao critério do tribunal ordenar o regresso da criança.”
E ainda (mesmo guia):
“51. O ónus de estabelecer a exceção recai sobre a pessoa, instituição ou organismo que se opõe ao regresso da criança66, na maioria dos casos, ao progenitor raptor. Mesmo que um tribunal recolha ex officio informações ou provas (de acordo com os procedimentos nacionais), ou se a pessoa ou entidade que apresentou o pedido para o regresso da criança não estiver ativamente envolvida no processo, o tribunal tem de estar convicto de que o ónus da prova para estabelecer a exceção foi cumprido pela parte que se opõe ao regresso.”
22. Por outro lado, também cumpre aqui ponderar os REGULAMENTOS REGULAMENTO (UE) 2019/1111 DO CONSELHO de 25 de junho de 2019 relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e ao rapto internacional de crianças 3– em cujo art.º 27.º consta:
Artigo 27.º Processo de regresso da criança
1. O tribunal não pode recusar o regresso da criança, exceto se a pessoa que pretende o regresso da criança tiver tido oportunidade de ser ouvida.
2. Em conformidade como artigo 15.º, o tribunal pode, em qualquer fase do processo, examinar se o contacto entre a criança e a pessoa que pretende o regresso da criança deverá ser ou não assegurado, tomando em consideração o superior interesse da criança.
3. Se um tribunal ponderar recusar o regresso de uma criança apenas com base no artigo 13.º, primeiro parágrafo, alínea b), da Convenção da Haia de 1980, não pode recusar o regresso da criança se a parte que pretende o regresso da criança der garantias ao tribunal, apresentando meios de prova suficientes, ou se o tribunal tiver de outro qualquer modo essa convicção, de que foram tomadas providências adequadas para garantir a proteção da criança após o seu regresso.
4. Para efeitos do n.º 3 do presente artigo, o tribunal pode comunicar com as autoridades competentes do Estado- -Membro onde a criança tinha a sua residência habitual imediatamente antes da deslocação ou retenção ilícitas, quer diretamente, em conformidade com o artigo 86.º, ou recorrendo à assistência das autoridades centrais.
5. Se decretar o regresso da criança, o tribunal pode tomar, se for caso disso, medidas provisórias e cautelares, em conformidade com o artigo 15.º do presente regulamento, a fim de proteger a criança do risco grave a que se refere o artigo 13.º, primeiro parágrafo, alínea b), da Convenção da Haia de 1980, desde que a análise e tomada de tais medidas não atrase desnecessariamente o processo de regresso.
6. Uma decisão que ordene o regresso da criança pode ser declarada executória a título provisório, não obstante qualquer recurso, se o regresso da criança antes da decisão sobre o recurso for exigido pelo superior interesse da criança.
E no que se reporta ao n.º3, há que atentar nos esforços do pai – cf. requerimento de 12-6-2024, em que o mesmo apresentação documentação alusiva a possível continuação da cuidados médicos e especializados em França – e que o tribunal recorrido desvalorizou com a referência à especialidade médica do autor da declaração entregue como documento de suporte, mas com uma justificação que não se afigura completamente objectiva – e que não confirma estar-se seguro de não haver garantias suficientes da boa integração da menor junto do pai e das autoridades francesas.
Na falta desse risco grave, com a situação dos presentes autos, deve a criança retornar à França, por de lá ter sido ilicitamente deslocada, estando reguladas em França a responsabilidades parentais em termos que não permitem ao tribunal português duvidar da legalidade e ponderação do superior interesse da menor.
23. A progenitora cita jurisprudência deste tribunal que considera revelar elementos de identidade com a situação do presente recurso, procurando nela apoio para a sua pretensão de não envio da criança para França - STJ de 13-09-2022, Proc. nº20/22.4T8VVC-A.E1.S1, in www.dgsi.pt
Contudo na alegação que desenvolve, está presente uma diferença fáctica relevantíssima entre o recurso de que estamos a tratar e aquele a que se reporta o acórdão de 13-09-2022, e que a própria recorrente manifesta conhecer, nas transcrições que executa, e que passamos a reproduzir (negritos nossos):
“Relativamente a uma criança com menos de três anos de idade, à data da retirada do país de residência habitual, que sempre viveu e esteve aos cuidados da mãe desde o seu nascimento...deve ser recusado o regresso ao estado de residência habitual da criança se, em concerto, o relacionamento afectivo e a proximidade estabelecidos entre a criança e a progenitora aconselharem a manutenção dessa situação até à definição, na sede própria, do regime de regulação das responsabilidades parentais”.
(…)
“Sujeitar a criança a uma tal privação de contactos directos com a mãe – único progenitor com quem, à luz dos factos apurados, a criança mantém um bom relacionamento efectivo, sendo desconhecidas as características do seu relacionamento com o pai – é objectivamente gerar um grave risco de potenciar uma situação substancialmente intolerável e violadora do seu superior interesse nesta fase inicial da sua vida.”
Por outro lado, também não acompanhamos integralmente a interpretação que o tribunal recorrido fez do aresto do TEDU, e que o levou a dizer:
“Aqui, cabe referir que o TEUDH no acórdão proferido pela 1.ª Secção, no processo Phostira Efthymiou e Ribeiro Fernandes c. Portugal (processo n.º 66775/11), a 5 de Fevereiro de 2015 apud “o Rapto de Crianças no Plano Internacional- Alguns Aspetos, Rui Moura Ramos Revista de Legislação e Jurisprudência ano 144 nº 3992 pg 381-406” decidiu que a Convenção de Haia deve ser aplicada de acordo com os princípios de direito internacional, em particular os relativos à proteção internacional dos direitos do homem; e, no que respeita mais precisamente às obrigações positivas que o artigo 8.º nº 2 da Convenção Europeia.
Este entendimento faz pesar sobre os Estados contratantes em matéria de reunião de um progenitor e dos seus filhos, que eles se devem interpretar à luz da Convenção da Haia mas também da Convenção dos Direitos da Criança de 20 de Novembro de 1989 “
Se é verdade que a consideração das referidas convenções deve ser tida em conta, na sua ligação estreita, não encontramos no acórdão referido do TEDU uma interpretação que denote uma posição clara, que possa ser extraída, para qualquer caso, senão a que respeita ao procedimento devido pelo tribunal que decide: olhar atentamente para todos os argumentos apresentados e sobre eles ponderar fundamentadamente a decisão que se lhe afigura ser a que se impõe.
É ainda de referir que o referido aresto não foi unânime, mesmo na consideração da concreta situação que foi apresentada e que no voto de vencido há também elementos não despiciendos – e que passamos a citar (na versão francesa, por inexistência de tradução oficial, disponível em https://hudoc.echr.coe.int/eng#{%22itemid%22:[%22001-150793%22]}, consultada a 26/11/2024):
“OPINION DISSIDENTE DES JUGES STEINER ET SICILIANOS - “….Or on rappelle que l’article 13 b) parle d’« un risque grave que le retour de l’enfant ne l’expose à un danger physique ou psychique, ou de toute autre manière ne le place dans une situation intolérable ». Les « conséquences émotionnelles », sans autre précision, sont quasiment inéluctables dans ce genre de situation, mais elles ne semblent pas aller, à notre avis, au-delà des « désagréments nécessairement liés à la situation vécue en cas de retour ». En d’autres termes, la situation relevée par le psychologue – que nous n’avons aucunement l’intention de contester – ne dépasserait pas le seuil de gravité requis par l’article 13 b). Autrement dit encore : si l’on refuse le retour d’un jeune enfant chaque fois qu’un psychologue estime que ce retour aurait sur lui des « conséquences émotionnelles », la Convention de La Haye risque d’être vidée de son sens et de son objet.
7. Suivant la même logique, la Cour suprême a infirmé l’arrêt de la cour d’appel de Coimbra, jugeant que les conditions factuelles permettant l’application de l’exception prévue à l’article 13 b) de la Convention de La Haye n’étaient pas remplies car il n’avait pas été prouvé « de faits qui puissent attester de façon solide de l’existence d’un risque pour l’enfant ou le placer dans une situation intolérable » (paragraphe 25 de l’arrêt). En d’autres termes, la Cour suprême a examiné et motivé son arrêt sous l’angle de l’exception tirée de l’article 13 b), tout en interprétant cette dernière de manière plus stricte. Il nous semble, par conséquent, que la Cour suprême a agi de manière conforme à la jurisprudence de notre Cour et qu’en tout état de cause elle n’a pas dépassé les limites de sa marge d’appréciation. Partant, à notre avis, l’exécution de l’arrêt de la Cour suprême en date du 14 avril 2011 ne constituerait pas une violation de l’article 8 de la Convention.”
III. Decisão
Pelos fundamentos indicados é concedida a revista, revogando-se o acórdão recorrido e repristinando-se a sentença.
Custas pela recorrida, sem prejuízo do apoio judiciário.
Lisboa, 10 de Dezembro de 2024
Fátima Gomes (relatora)
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Rui Manuel Machado e Moura
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1. Consultada em https://dcjri.ministeriopublico.pt//sites/default/files/documentos/instrumentos/convencao_aspetos_civis_rapto_internacional_criancas.pdf
2. Convenção sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças de 25 de outubro de 1980 - Guia de Boas Práticas – edição de outubro de 2020 - Publicado pela Conferência da Haia de Direito Internacional Privado – HCCH – e traduzido pela Direção-Geral da Política de Justiça do Ministério da Justiça, órgão nacional de Portugal junto da Conferência da Haia de Direito Internacional Privado – disponível em https://dgpj.justica.gov.pt/Noticias-da-DGPJ/Guia-de-boas-praticas-da-Convencao-sobre-Rapto-de-Criancas
3. https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?artigo_id=3731A0025&nid=3731&tabela=leis&pagina=1&ficha=1&so_miolo=?area=Identifica%E7%E3o&nversao=